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Confisco

pena ou consequência jurídica da condenação?

Confisco: pena ou consequência jurídica da condenação?

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O confisco é uma medida de grave restrição e, ainda que não seja considerada uma pena, mas uma consequência, deve ser vista como uma espécie de sanção, o que justificaria em tese a aplicação de princípios garantistas do processo e do direito penal.

A definição da natureza jurídica do confisco não é tarefa fácil, já que para alguns se trata de verdadeira pena (como parece ser o caso do Chile[1], onde é considerada uma pena acessória), enquanto que para outros uma consequência acessória. O Código Espanhol traz o confisco como consequência assessoria, muito embora em códigos posteriores tenha sido considerada uma verdadeira pena.

Há ainda aqueles que entendem que o confisco é uma consequência acessória inserta dentro do âmbito de sanções penais, enquanto que outros acreditam se tratar de uma pena de conteúdo patrimonial.

A relevância da consideração da natureza jurídica do confisco é de importância inegável, na medida em que influenciará nas consequências que devem ser extraídas de sua aplicabilidade e, mais ainda, nas regras e princípios que devem nortear a sua positivação, podendo lançar sérios questionamentos sobre as hipóteses em que se pode, de fato, sustentar não ser uma medida que invada em demasia - e de forma a trazer um desiquilibro dada sua agressividade -  a liberdade do individuo.

A bem da verdade, a despeito da perspectiva dogmática, há que se fazer um parêntese sobre o tema. Há um movimento internacional, que se revela da leitura dos acordos e tratados internacionais – e sobretudo de ações adotadas por diversos países, como o recentíssimo caso FIFA, deflagrado pela polícia federal americana, o FBI - que indicam a forte influência de políticas criminais que tentam a todo custo frear a delinquência econômica internacional utilizando diversos mecanismos questionáveis, sobre o ponto de vista de garantias tradicionais histórica e heroicamente conquistadas pelo cidadão e guardadas pelo direito penal.

Entre essas medidas está o confisco, que vai justamente de encontro ao que supostamente mais interessa à criminalidade econômica: dinheiro, patrimônio, bens (trazendo quase automaticamente o que também valoram: poder). Não falamos, portanto, do confisco de instrumentos de execução do crime (instrumentum sceleris) ou do objetum sceleris, mas especialmente dos bens obtidos pela atividade criminosa, do productum sceleris, e sobre os quais há inegavelmente maior reflexo e questionamentos, ainda que não seja absolutamente tranquila a questão quanto às demais hipóteses.

E aqui, talvez nos deparemos novamente com a questão da natureza do confisco: é uma pena efetiva, é uma espécie de sanção patrimonial? O que se busca com o confisco? O objetivo é o mesmo que se busca com a imposição da pena ao condenado? Estamos falando de retribuição? Prevenção geral, prevenção especial ou podemos simplesmente considerar o confisco como uma “mera” consequência que ataca bens e patrimônio supostamente relacionado com a atividade criminosa, sem que haja a necessária observância das rígidas regras que devem nortear o direito penal e processual penal?

E o alcance do confisco, por exemplo, no caso de bens em nome de laranjas? Em sendo uma pena, como justificar que seja atribuída além da pessoa do condenado? E aqui, sábias as palavras de MANZANARES SAMANIEGO para que o confisco não cumpre as exigências mínimas que deveria levar em conta toda e qualquer pena, desde o ponto de vista de proporcionalidade, culpabilidade.

MUÑOZ CONDE y GARCÍA ARÁN com propriedade assinalam “No son penas porque no guardan proporción ni con la gravedad del hecho ni con la culpabilidad del autor; tampoco pueden considerarse como medidas de seguridad porque no se asientan en juicio sobre la peligrosidad personal del responsable”.

A simples invocação do confisco como pena, ainda que se tenha essa impressão em razão da gravidade de sua imposição, não resiste, a análise sobre o ponto de vista dos elementos definidores de uma pena, dos princípios que a ela devem ser aplicados, quiçá de sua finalidade, ainda que de algum modo possamos identificar pontos de leve contato.

A solução, ao que tudo indica, é considerar realmente o confisco uma consequência assessoria. Mas, o que isso significa? Qual a sua natureza jurídica? Ao consideramos uma consequência jurídica, por mero critério adotado pelo legislador, como no caso da Espanha (artigos 127 y 128 do Código Penal) e do Brasil[2] estaríamos livres para adotar e impor indiscriminadamente o confisco, sem a necessária observância das regras penais e processuais penais, bem como de seus princípios?

Novamente nos deparamos com vários entendimentos sobre qual é a natureza jurídica do confisco analisado como sendo uma consequência acessória. Para alguns é uma categoria indefinida de consequências que por decisão do legislador se unem à condenação[3]; para outros, consequência acessória de natureza peculiar[4], enquanto há aqueles que afirmam que não são sanções, nem penais, nem administrativas, mas tão e somente consequências jurídicas preventivas-afirmativas desprovidas de natureza sancionatória.

Consequência acessória ou não, a verdade é que não pode o confisco ser utilizado como instrumento livre para buscar, para atingir patrimônio, de forma automática, apenas por consequência fruto de uma condenação, sem que se tenha como norte uma perspectiva garantista, como assinala PALMA “ Entiendo, sin embargo, que el hecho de que el comiso no pueda considerarse ya una pena no significa que no deba seguir sometido a los principios que rigen el proceso penal y que garantizan los derechos del acusado. El carácter aflictivo de esta medida –pese a no ser pena- justifica que se dé al titular de los bienes objeto de decomiso la oportunidad de defender la ausencia de conexión entre esos bienes y el delito, la “limpieza” de los mismos...”[5]

Não há dúvidas de que há inegável movimento dos organismos internacionais em buscar a expansão da aplicabilidade do confisco. É um reflexo da adoção de politicas criminais, agora globais, que utilizam o direto penal como medida de controle social, como primeira ferramenta de freio da criminalidade. A justificativa que se verifica é muito mais focada na pseudo efetividade de medidas que, a despeito de ambientadas no fragmentário, subsidiário e tido como ultima ratio - e que também deveria impor o menor sofrimento ao cidadão – da legalidade, tem como perspectiva infligir verdadeiras sanções patrimoniais, sob o argumento de que, por ser esse o alvo da moderna criminalidade, deveria igualmente representar o mal que se deveria se impor aos seus agentes.

As mudanças recentes nas legislações de vários países refletem essa perspectiva. Não há duvidas de que o direito penal econômico, que enfrenta uma criminalidade que se ocupa de ferramentas e mecanismos modernos, cujos alcance e reflexos não mais se limitam ao ataque de bens jurídicos individuais - marcante na criminalidade tradicional – mas difusos, coletivos, exigem a adoção de medidas que, sem se afastar dos princípios sagrados do direito penal – afastada a pretensão proposta pela escola de Frankfurt, em especial Hassemer – protejam esses bens.

O confisco, nesse cenário, tende a ser uma das ferramentas que melhor representam a tensão entre a expansão de medidas que se distanciam dos princípios e garantias penais e o apetite da politica criminal que tenta buscar equilíbrio social e respeitos às regras estabelecidas pelo estado com uso primário do direto penal.

A decisão em ampliar ou regulamentar o uso do confisco encontrará, certamente, limites constitucionais e resistência doutrinária e jurisprudencial, a depender da amplitude do avanço.  

As últimas alterações promovidas na legislação espanhola indicam, por exemplo, um avanço sobre a aplicabilidade do confisco, que passa a ser uma consequência assessória da ação típica e não mais da pena, alargando assim o seu espectro de alcance.

Enfim, a verdade é que o confisco é uma medida de grave restrição e, ainda que não seja considerada uma pena, mas uma consequência, deve ser considerada com uma verdadeira espécie de sanção, o que justificaria em tese a aplicação de princípios garantistas e aplicáveis ao processo e ao direito penal, protegendo o cidadão contra os riscos de violação de sua liberdade.


Notas

[1] Art. 31 do Código Penal.

[2] A doutrina majoritária entende que o artigo 45, §3o. do Código Penal Brasileiro trataria da hipótese de confisco pena (productum sceleris) enquanto que o artigo 91, III, b do confisco efeito da condenação.

[3] Mapelli C.; Terradillos B. Las consecuencias jurídicas del delito, citados por Bacigalupo, S., ob. cit. Pág. 84.

[4] Mir Puig, S. (2005). Derecho Penal, parte general. 7o ed. Buenos Aires: Editorial B de F, Pág. 767.

[5] Palma Herrera, J.M. (2000). Los delitos de blanqueo de capitales. Madrid: Edersa. Págs. 764 - 765 (pie de página)


Autor

  • Franklin Gomes

    Franklin Gomes é mestre em Direito Penal Econômico pela Universidade de Granada (Espanha), pós graduado em Teoria da Infração Criminal Revisitada (IDPE Universidade de Coimbra, Portugal), possui curso de extensão em Propriedade Intelectual pelo Franklin Pierce Center for Intellectual Property da Universidade de New Hampshire (USA), pós graduação em Processo Penal pela FMU, atendeu ao Summer Course da WIPO - Organização Mundial da Propriedade Intelectual, tem curso de extensão em Fundamentos do Sistema Legal Americano pela Thomas Jefferson School of Law (San Diego, USA) e curso em Forense Computacional (Data Security). É advogado, agente da propriedade industrial, membro da Comissão de Direito Penal Econômico da OAB/SP, associado da ABPI, ABAPI, INTA, IBCCRIM, ASPI, autor de artigos publicados em diversas revistas, co-autor de livros sobre propriedade intelectual e sócio de Franklin Gomes Advogados.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Franklin. Confisco: pena ou consequência jurídica da condenação?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4476, 3 out. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/43311. Acesso em: 23 abr. 2024.