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O Ministério Público de Robespierre.

O caso polêmico do GAECO

O Ministério Público de Robespierre. O caso polêmico do GAECO

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1. O Problema

O Ministério Público ganhou novas e amplas dimensões com a Carta Magna de 1988. Consagrou a independência e a unicidade, as garantias que instrumentalizam suas funções fiscalizatórias e concedeu a titularidade da ação penal pública. Ocorre que não trata a Constituição sobre a possibilidade de conduzir ou presidir diretamente inquéritos penais e sim cíveis, preparatórios de ações cuja titularidade é do próprio órgão ministerial. Trata-se aqui de determinar se pode ou não o Parquet imiscuir-se no Inquérito Policial, questão tormentosa pelas vaidades entre promotores e delegados, pela interpretação mais ou menos extensiva e liberal e, ainda, pelo cunho ideológico que se reveste.


2. Introdução

A polêmica foi iniciada com a Constituição de 1988, desenvolveu-se com a promulgação da Lei Orgânica do Ministério Público e se aprofundou com a edição da Lei do Crime Organizado. Pode o Ministério Público conduzir inquéritos policiais? Parece que a polêmica está concentrada na apuração e desmonte de crimes cometidos por organizações criminosas. Não se excede o dissenso deste ponto.

É bem verdade que a legislação constitucional e infraconstitucional não se posiciona de forma a permitir ou proibir expressamente a possibilidade ou a vedação, permitindo conclusões as mais diversas, temperadas por conveniências e políticas públicas concorrentes. Delegados contra promotores, advogados contra ambos, juízes impassíveis, ministros que se confrontam em seus entendimentos: eis o panorama da discussão. Mas o que preocupa, na verdade, é a possibilidade de validação ou anulação dos procedimentos preparatórios conduzidos pelo Ministério Público: eis a verdadeira celeuma e receio dos Grupos de Atuação de Combate ao Crime Organizado, também chamados pela sigla Gaeco. Processo anulado é o terror do zeloso promotor público que aposta na possibilidade; aposta o advogado que conseguirá anular o feito.

Ocorre que, em processo penal, um dos bens jurídicos mais relevantes do homem que é a liberdade não pode se prestar a apostas.

O Estado de Mato Grosso foi um dos pioneiros na criação do Gaeco, primeiramente por meio de Portaria expedida pela Procuradoria Geral de Justiça do Estado, declarada inconstitucional pela unanimidade do Tribunal de Justiça do Estado, e depois por meio de legislação estadual. Logo após a declaração de inconstitucionalidade, dois membros do Parquet, Drs. Marcos Machado e Roberto Turim, fizeram publicar o artigo que vai transcrito abaixo, introduzindo o presente estudo com uma apaixonada defesa do Ministério Público que, ao final, julgaremos equivocada. Senão vejamos:

O e. Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, em sua composição plena, declarou, por maioria de votos, a inconstitucionalidade da Resolução nº 009/99-PPJ, de 11.08.99, editada pelo Colégio de Procuradores de Justiça, órgão superior do Ministério Público Estadual, que criou o GAECO – Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado -, composto por Promotores de Justiça, com a atribuição para "oficiar nas representações, inquéritos policiais, procedimentos investigatórios, e processos destinados a identificar e reprimir as organizações criminosas", abrangendo "a apuração e repressão dos crimes que se tornem conhecidos no decorrer das investigações".

A decisão foi tomada em julgamento realizado no dia 18.10.01, acolhendo-se ação direta de inconstitucionalidade promovida pela Associação dos Delegados de Polícia do Estado, e teve como relatora a i. Desa. Shelma Lombardi de Kato. Seria mais uma decisão, entre inúmeras editadas pelo tribunal pleno, que poderia passar despercebida se não fosse o fato de devolver, indistintamente, a todos os signatários da ordem e da paz o sentimento de impunidade "oficializada", que atende e beneficia apenas os "intocáveis", grupos organizados de pessoas que encomendam, friamente, homicídios de seus desafetos, sonegam tributos em alta escala, falsificam e fraudam o que for necessário para atingirem objetivos mercenários, além praticarem atos, modelares e em série, de corrupção contra a Administração Pública.

A comentada decisão colegiada deverá enfrentar recursos extraordinário e especial a serem formulados, pela Procuradoria Geral de Justiça, ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça, respectivamente, por ofensa a normas constitucionais e legais, precipuamente a Lei Orgânica do Ministério Público, porém levará o Colégio de Procuradores de Justiça a editar nova Resolução, assim que publicado o v. acórdão, visando adequar a atuação do GAECO aos limites do julgado, em virtude do efeito recursal, unicamente, devolutivo.

Sem subjulgar o entendimento dos e. Desembargadores que acompanharam o voto condutor, nem sugerir qualquer defesa de classe, a decisão, por si só, merece ser levada à crítica popular. Isto porque, enquanto, em todos os Estados, a política de segurança pública está voltada ao fortalecimento do Ministério Público para combater a criminalidade difusa, em Mato Grosso, por interpretação judicial, o órgão que, constitucionalmente. possui, entre suas funções, o controle externo da atividade policial, a titularidade, privativa, da ação penal, inclusive podendo dispensar o Inquérito Policial, dependeria da Polícia Civil para investigar fatos que configuram crime, mesmo que cometidos por policiais, delegados, praças e oficiais da Polícia Militar.

Como ensina Valter Foleto Santin (Revista da Unirondon, nº 1, 2000, pág.51-69) a atividade de investigação criminal destina-se ao fornecimento de elementos mínimos sobre a autoria e a materialidade do delito, para a formação da opinio delicti do Ministério Público, o desencadeamento ou não da ação penal pública e o embasamento para o recebimento da denúncia e concessão de medidas cautelares pelo juiz. Também serve para embasar a queixa-crime da vítima nos crimes de ação privada ou ação penal subsidiária. A atribuição para a realização de investigação criminal é das polícias, especialmente a Polícia Federal, as Polícias Civis e as Polícias Militares, por crimes federais, estaduais e militares, respectivamente. Com propriedade, salienta que o principal obstáculo do acesso à justiça na esfera criminal relaciona-se à investigação criminal, pelo sistema burocrático e demorado com que realizada tradicionalmente pela polícia, quase de forma exclusiva, sendo necessária a análise da exclusividade da polícia na investigação criminal, se as demais polícias podem investigar delitos fora da sua área de atuação normal, se outros entes estatais extrapoliciais podem investigar e a atuação da vítima, do indiciado e do cidadão. Destaca, assim, que os serviços de segurança pública são obrigação do Estado, com a participação de todos, para a preservação da ordem pública e incolumidade e patrimônio do cidadão (CF, art.144, caput), e esses serviços destinam-se à prevenção, repressão, investigação de delitos, vigilância e polícia de fronteiras e polícia judiciária. Esses serviços são encarados como funções para a segurança pública. A prevenção destina-se a evitar a ocorrência de crimes; a repressão é a pronta providência para a prisão do infrator; a investigação é para fornecer elementos de prova para o desencadeamento da pretensão punitiva estatal; a polícia de fronteiras é para controlar o ingresso e saída de pessoas e mercadorias no país; a polícia judiciária é para auxiliar e cooperar com as atividades do judiciário e do Ministério Público, no cumprimento de mandados e diligências.

Conclui-se, portanto, que as polícias não têm exclusividade na realização de investigação criminal. O reconhecimento do monopólio investigatório da polícia não se coaduna com o sistema constitucional vigente, que prevê o poder investigatório das comissões parlamentares de inquérito (art.58, § 3º), o direito do povo de participar dos serviços de segurança pública (art.144, caput), função na qual a investigação criminal se inclui (art. 144, § 1º, I e § 4º), o acesso ao judiciário (art. 5º, XXXV), o princípio da igualdade (art. 5º, caput e I), e sobretudo a incumbência do Ministério Público de instaurar a ação penal, que tem como pressuposto válido a investigação criminal (art. 129, I, III e VI).

Por força do princípio e da universalização da investigação, que tem como base a democracia participativa, a transparência dos atos administrativos, o acesso ao Judiciário, não há "privatividade" ou "exclusividade" para investigar. No que toca à Polícia Civil, cuja função é a de apurar infrações penais (crimes e contravenções penais), o Código de Processo Penal não exclui que autoridades administrativas, a quem a lei seja cometida a função de investigar (CPP, art.4º, § único), possam, concomitantemente, desvendar fatos ilícitos.

Não é razoável que haja, no poder estatal de menor relevância, a investigação criminal, especialmente porque a fase de investigação é facultativa para o exercício da ação penal e acesso ao Judiciário, se a acusação possuir elementos suficientes da autoria e materialidade do crime para embasar a denúncia penal (CPP, arts.39, § 5º e 40). A Constituição Federal não condiciona o exercício da ação penal à realização de investigação policial. Observe-se que ofende o óbvio a proibição do Ministério Público investigar quanto se verifica que a Constituição Federal o incumbe, textualmente, de promover privativamente a ação penal (art. 129, I), instaurar o inquérito civil e promover a ação civil pública (III), expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los (VI), requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial (VIII), além de exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade (IX), dispositivos que evidenciam a possibilidade de empreender todo o tipo de investigação (administrativa, civil ou criminal). A atuação do Ministério Público na investigação ainda gera debates jurídicos e não está pacificada, mas no âmbito do e. Supremo Tribunal Federal sua e. 1ª Turma decidiu. ser "regular a participação do Ministério Público em fase investigatória", sinal da possibilidade de investigação criminal pelo Ministério Público. Por seu turno, no e. Superior Tribunal de Justiça, é pacífico o entendimento de que o Ministério Público pode atuar na fase investigatória, a ponto de a questão estar sumulada: Súmula 234, pela qual a participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia.

Nos Tribunais Regionais Federais, principalmente da 4ª Região (RS), reconhece-se possibilidade de denúncia com base em "investigações precedidas pelo Ministério Público", que "pode investigar fatos, poder que se inclui no mais amplo de fiscalizar a correta execução da lei", de modo que tal "poder do órgão Ministerial mais avulta quando os envolvidos na infração penal são autoridades policiais, submetidas ao controle externo do Ministério Público" (HC 97.04.26750-0/PR).

Nos Tribunais de Justiça, há julgados em São Paulo e no Rio Grande do Sul que permitem o acompanhamento, pelo Ministério Público, dos atos de investigação ou realização direta de diligências relevantes que não se erigem em impedimento à sua atuação (RT 660/288), bem como que autoriza o Ministério Público a colher provas para servir de base à denúncia ou à ação penal (RT 651/313).

Na doutrina, a atuação investigatória do Ministério Público é defendida, de forma sistemática em normas positivas, por Valter Foleto Santin, Frederico Marques, Hélio Bicudo, Julio Fabbrini Mirabete, Marcellus Polastri de Lima, Hugo Nigro Mazzilli, entre outros. Em suma, todos convergem para o entendimento segundo o qual o Ministério Público, por lei que disciplina suas funções criminais (CPP e LONMP - nº 8.625/93), pode instaurar procedimento administrativo autônomo para investigar fatos ilícitos e seus autores, ou fazê-lo no próprio inquérito policial, através de notificações, ou requisições de diligências, documentos e perícias, haja visto que a investigação criminal deve ser desburocratizada e instrumentalizada de forma simples e célere, para permitir a imediata análise do Ministério Público e a formação do convencimento sobre o desencadeamento da ação penal ou o arquivamento do caso.

Portanto, a decisão do e. Tribunal de Justiça de Mato Grosso, proferida na ADIN que impugna a criação e o funcionamento, serve apenas para privilegiar um sentimento egoísta de classe, sentimento esse que, com certeza, não é unânime dentro dos quadros da Polícia Civil do Estado. No mais, a referida decisão beneficia apenas e tão somente a um segmento da sociedade: o crime organizado, contribuindo para que a coletividade se sinta ainda mais desprotegida e ameaçada e passe a confiar ainda menos nos órgãos públicos encarregados da segurança pública.

O GAECO é um órgão do Ministério Público, com estrutura material e pessoal, incumbido de atribuições específicas que não restringem nem usurpam as funções da Polícia Civil. Pelo contrário, une instituições públicas que tem o dever de velar, juntas, pela segurança pública.

Acima de tudo, o GAECO tem por escopo combater organizações que praticam os mais graves crimes na escala de repressão da lei penal. Por isso, o poder de investigação direta pelo Ministério Público é tido como imprescindível e vital para o êxito de ações penais a serem instaladas, a considerar-se que não há "crime organizado" sem a efetiva participação ou favorecimento de agentes públicos, entre os quais os policiais.

 Ao Ministério Público cabe investigar, de maneira independente e autônoma, todo e qualquer crime, principalmente aqueles que porventura não tenham sido investigados ou solucionados pela autoridade policial. Nessas hipóteses, o Ministério Público cumpre sua missão constitucional de defensor dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

É óbvio que ninguém investiga a si mesmo e, sem que haja poder de investigação amplo e irrestrito, consagra-se mais uma homenagem à impunidade.

Como vemos, calcado de argumentos está o desabafo dos promotores públicos. E não são quaisquer argumentos: uma fortíssima corrente doutrinária e jurisprudencial quer, à força da aplicação da norma e do preenchimento de lacunas, instituir um sistema que até então nos é estranho. Não sabemos se operações do tipo italiano "mãos limpas" ou a prática da "tolerância zero" daria resultado no Brasil: sempre foi discutível a importação de modelos alienígenas e sua adaptação aos padrões brasileiros. As sociedades são diferentes, os panoramas distintos, as necessidades enormemente diversas. É factível que soluções de além-mar possam indicar melhora no combate ao crime organizado?

Num vai e vem de interpretações, emaranhados de citações e intermináveis opiniões, o meio jurídico recebe aqui e ali indicativos pela legitimidade ou ilegitimidade do Ministério Público para investigar. O certo é que não há lei específica.

A recente notícia, veiculada pelos órgãos oficiais do Supremo Tribunal Federal, causou comoção no meio jurídico nacional, mais precisamente junto ao operadores jurídicos que atuam com o direito penal e processual penal:

Turma do STF discute poderes investigatórios do Ministério Público ao julgar recurso

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal deu provimento hoje (6/5) ao Recurso em Habeas Corpus (RHC 81326) interposto por um delegado de polícia do Distrito Federal contra decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que validou atos investigatórios promovidos pelo Ministério Público do Distrito Federal.

O delegado foi notificado por um representante do Ministério Público do DF para comparecer ao Núcleo de Investigação Criminal e Controle Externo da Atividade Policial, instituído pela Procuradoria local, a fim de ser ouvido em um procedimento administrativo investigatório supletivo.

O procedimento, segundo o policial, tem por finalidade apurar fato que, em tese, poderia configurar crime. Contra a notificação, ele impetrou Habeas Corpus no Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que foi indeferido. E, insatisfeito, impetrou novo recurso, desta vez no STJ, que também o indeferiu, sob o argumento de que "têm-se como válidos os atos investigatórios registrados pelo MP, que pode requisitar esclarecimentos ou diligenciar diretamente visando a introdução dos seus procedimentos administrativos para fim de oferecimento de denúncia".

O delegado, por sua vez, interpôs recurso junto ao STF com o objetivo de modificar a decisão do STJ que reconheceu validade à requisição expedida pelo MP.

Para o relator do recurso no STF, ministro Nelson Jobim, a falta de legitimidade do MP para realizar diretamente investigações e diligências em procedimentos administrativos investigatórios a fim de apurar crime cometido por funcionário público – no caso o delegado de polícia – não é controvérsia nova no meio jurídico.

Jobim fez uma regressão histórica e citou um caso de 1936, em que o, à época, ministro da Justiça, Vicente Rao, tentou introduzir no sistema processual brasileiro o instituto dos Juizados de Instrução. A tese foi acolhida pela comissão responsável pelo Anteprojeto de Código de Processo Penal, mas ela, entretanto, não vingou. Na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, ponderou-se pela manutenção do inquérito policial, pois a criação dos Juizados de Instrução, que importava limitar o poder do policial de prender criminosos, averiguar a materialidade dos crimes e indicar testemunhas, só é praticado sob a condição de que as distâncias dentro do seu território de jurisdição sejam fáceis e rapidamente superáveis.

"A polícia judiciária deverá ser exercida pelas autoridades policiais com o fim de apurar as infrações penais e sua autoria, e o inquérito policial é o instrumento de investigação penal da polícia. É um procedimento administrativo destinado a subsidiar o MP na instauração da ação penal", destacou Jobim.

"A legitimidade histórica para a condução do inquérito policial e a realização das diligências investigatórias é de atribuição exclusiva da polícia", lembrou Jobim. Citou como precedente o julgamento do HC 34.887, no qual ficou claro que o Código de Processo Penal não autoriza, sob qualquer pretexto, a substituição da autoridade policial pela judiciária e membro do MP na investigação do crime.

O relator salientou ainda que "o controle externo da polícia concedido ao MP pela Constituição foi regulamentado pela Resolução 52/97 do Conselho Superior do Ministério Público Federal. Esses diplomas, no entanto, não lhes deferiram poderes para instaurar inquérito policial. A CF/88 dotou o MP de poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração do inquérito policial. A norma constitucional não completou, porém, a possibilidade do mesmo realizar e presidir inquérito policial. Não cabe, portanto, aos seus membros inquirir diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime, mas sim requisitar a diligência nesse sentido à autoridade competente. Assim decidiu a Segunda Turma no julgamento do RE 233.072".

Na ementa do julgamento - leu Jobim - ficou decidido que "o MP não tem competência para promover inquérito administrativo em relação à conduta de servidores públicos, nem competência para produzir inquérito penal sob o argumento de que tenha a possibilidade de expedir notificações nos procedimentos administrativos, e pode propor ação penal sem inquérito policial, desde que disponha de elementos suficientes. Mas os elementos suficientes não podem ser auto-produzidos pelo MP, instaurando ele inquérito policial".

O ministro Nelson Jobim deu provimento ao recurso e os outros ministros o acompanharam. A decisão foi unânime

Caiu como bomba a unanimidade do entendimento do Pretório Supremo. A Corte Constitucional concluiu, enfim, pelo encerramento do debate, determinando o trancamento de uma ação penal, instruída com a investigação feita pelo próprio Ministério Público. Notícias como essas, somadas às dissensões aqui e ali, fizeram que, depois de ser declarada inconstitucional a Portaria da Procuradoria Geral de Justiça de Mato Grosso, animassem-se os legisladores do Estado por uma lei, pondo pedra sobre a discussão. A pressão foi enorme, a sessão foi amplamente divulgada e a notícia de uma lei pioneira foi recebida com festa pela mídia. Eis a norma estadual:

LEI COMPLEMENTAR Nº 119, DE 20 DE DEZEMBRO DE 2002 - D.O. 20.12.02.

Cria o Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado no Estado de Mato Grosso, e dá outras providências.

O GOVERNADOR DO ESTADO DE MATO GROSSO, tendo em vista o que dispõe o art. 45 da Constituição Estadual, sanciona a seguinte lei complementar:

Art. 1º Fica criado, no âmbito do Poder Executivo e do Ministério Público do Estado de Mato Grosso, o GAECO - Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado, com sede na Capital e atribuições em todo o território do Estado de Mato Grosso.

Parágrafo único O GAECO atuará de forma integrada, funcionará em instalações próprias e contará com equipamentos, mobiliário, armamento e veículos necessários ao desempenho de suas atribuições e da Política Estadual de Segurança Pública.

Art. 2º O GAECO será composto por representantes das seguintes instituições:

I - Ministério Público;

II - Polícia Judiciária Civil;

III - Polícia Militar.

§ 1º O Ministério Público estará representado por Procuradores e/ou Promotores de Justiça, designados pelo Procurador-Geral de Justiça, ouvido o Conselho Superior do Ministério Público.

§ 2º A Polícia Judiciária Civil estará representada por Delegados de Polícia, Agentes Policiais e Escrivães de Polícia, solicitados nominalmente pelo Procurador-Geral de Justiça e designados pelo Diretor-Geral de Polícia Civil, ouvido o Secretário de Estado de Justiça e Segurança Pública.

§ 3º A Polícia Militar estará representada por Oficiais e Praças, solicitados nominalmente pelo Procurador-Geral de Justiça e designados pelo Comandante-Geral da Polícia Militar, ouvido o Secretário de Estado de Justiça e Segurança Pública.

§ 4º Em caso de necessidade, o Coordenador do GAECO poderá, nos termos do art. 23, VIII, da Lei Complementar nº 27, de 19 de novembro de 1993, requisitar serviços temporários de servidores civis ou policiais militares para realização das atividades de combate às organizações criminosas.

Art. 3º O Coordenador do GAECO será um representante do Ministério Público, nomeado pelo Procurador-Geral de Justiça.

Art. 4º São atribuições do GAECO:

I - realizar investigações e serviços de inteligência;

II - requisitar, instaurar e conduzir inquéritos policiais;

III - instaurar procedimentos administrativos de investigação;

IV - realizar outras atividades necessárias à identificação de autoria e produção de provas;

V - formar e manter bancos de dados;

VI - requisitar diretamente de órgãos públicos serviços técnicos e informações necessários à consecução de suas atividades;

VII - oferecer denúncia, acompanhando-a até seu recebimento, requerer o arquivamento do inquérito policial ou procedimento administrativo;

VIII - promover medidas cautelares preparatórias necessárias à persecução penal.

§ 1º Cada integrante do GAECO exercerá, respectivamente, suas funções institucionais conforme previsão constitucional e legal.

§ 2º Durante a tramitação do procedimento administrativo e do inquérito policial, o GAECO poderá atuar em conjunto com o Promotor de Justiça que tenha prévia atribuição para o caso.

§ 3º A denúncia oferecida pelo GAECO, com base em procedimento administrativo, inquérito policial ou outras peças de informação, será distribuída perante o juízo competente, sendo facultado ao Promotor de Justiça, que tenha prévia atribuição para o caso, atuar em conjunto nos autos.

Art. 5º Os inquéritos policiais de atribuição do GAECO serão presididos por Delegados de Polícia.

§ 1º O membro de Ministério Público e o Delegado de Polícia com atribuições no GAECO zelarão para que a coleta de provas seja orientada pelos princípios da utilidade, eficácia, probidade e celeridade na conclusão das investigações.

§ 2º Qualquer autoridade que no exercício de suas funções verificar a existência de indícios de atuação de organização criminosa deverá enviar cópias de autos e peças de informação ao GAECO para a tomada das providências cabíveis.

Art. 6º O GAECO terá dotação orçamentária específica, dentro da proposta orçamentária do Ministério Público e destinação de recursos pelo Poder Executivo.

Parágrafo único Os integrantes do GAECO receberão gratificação adicional não incorporável, correspondente a 10% (dez por cento) de seus respectivos vencimentos fixos, durante o período de atuação no referido Grupo, observada a disponibilidade financeira para despesa de pessoal.

Art. 7º Esta lei complementar entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Palácio Paiaguás, em Cuiabá, 20 de dezembro de 2002.

JOSÉ ROGÉRIO SALLES

Governador do Estado

Não se encerrou, no entanto, a polêmica. Continuam firmes e empedernidos os defensores e opositores do novo Ministério Público Investigativo.

Em homenagem à síntese, os defensores da legitimidade constitucional do poder investigativo do Ministério Público usam-se dos seguintes argumentos:

a) teoria dos poderes implícitos – argumentam os arautos do Gaeco que, em respeito à máxima latina "quem pode o mais, pode o menos", o Ministério Público que é destinatário do inquérito policial para eventual oferecimento da denúncia, poderia, o próprio órgão, investigar diretamente, até porque o Inquérito Policial é dispensável, quando o Parquet reúna elemantos suficientes ao oferecimento da ação penal. Assim, como é o Ministério Público quem vai julgar a regularidade do Inquérito Policial, requisitando até mesmo novas diligências ou arquivando, poderia investigar ou partilhar a investigação, em respeito ao princípio da oportunidade, da economia processual e da eficiência, todos adequados à administração da Justiça. Teria assim, implicitamente, poder para apurar crimes, uma vez que tem explicitamente poder para requerer em juízo a condenação pelas mesmas infrações;

b) analogia constitucional com o inquérito cível – como não trata a Constituição da República de Inquérito Policial, entre as atribuições do Ministério Público, em seu lido e relido artigo 129, poderíamos tomar por base os Inquéritos Cíveis que tem por finalidade promover o levantamento fático de uma futura ação civil pública, em que figura tanto na presidência das investigações como na titularidade da ação, o próprio Ministério Público, não sendo nem por isso, considerado suspeito ou tendo o seu entendimento viciado; e se é assim, lembram também que o Inquérito, tomado como forma de apuração de fatos criminosos, não é por si exclusividade da polícia judiciária, muito ao contrário, há as Comissões Parlamentares de Inquérito, compostas por membros do Legislativo, os Inquéritos Falimentares, os Inquérito Cíveis, os Inquéritos Administrativos, como ilustrações de que a investigação não pode e nem deve estar sob o comando único e monopolizador de uma só instituição;

c) não-vedação expressa – não é vedada expressamente a possibilidade de atuação do Ministério Público na fase inquisitiva, nenhum dispositivo constitucional ou de legislação infra-constitucional proíbe expressamente. Mesmo porque, o que há na legislação é a possibilidade de acompanhar o Inquérito e os atos da autoridade policial, dando parecer em seus requerimentos ao Judiciário, sugerindo oitivas e outros atos administrativos;

d) fiscalização indiciária explícita – não seria por acaso que é o próprio Ministério Público quem, não só oferece a denúncia, mas fiscaliza a Polícia. Qualquer infração penal ou irregularidade procedimental é percebida e sanada pela ação do Parquet na fase pré ou pós processual, tendo assim poder para, ele mesmo, promover investigações onde julgue ter mais condições, mais aparelhamento e mais conveniência sobretudo, do que a Polícia. Explicitamente, delegados de polícia e agentes policiais, não estão subordinados ao Ministério Público, mas são por ele acompanhados e fiscalizados.

Do que redunda, em conclusão, pela ótica das relevantes vozes ouvidas e outras emprestadas em suas conclusões, que o Ministério Público teria legitimidade para presidir ou compartilhar a investigação criminal. O coro cada dia avulta-se, somando a ele um eco da sociedade vitimizada, carcomida pelo medo do poder paralelo, que já sai das sombras com alguma tranqüilidade. A mídia pressiona para que o legislador confira explicitamente esse poder, até então julgado implícito, como se o Ministério Público fosse o último bastião da honestidade do país. E o próprio Parquet incorpora o ímpeto salvacionista, em caricatas personagens que querem exibir uma moral de Robespierre em atitudes franciscanas. Ou seja, uma conjunção de fatores pressionam tanto o legislador como o glosador entender que, atuando no combate direto ao crime organizado, pode o Ministério Público contribuir para o desmonte do poder que reconhece apenas a força. Essa instituição promotora de justiça, também seria de justiciamento, outro anseio popular; essa instituição garantiria a inflexibilidade da lei, a fiscalização de seu cumprimento, a vedação de manobras oblíquas de advogados e, mesmo, as tergiversações do Judiciário.

Espera-se demais do Ministério Público, no nosso entender. Quanto ao tema acerca da possibilidade ou não de investigar, deveremos ouvir as considerações contrárias para tomar partido.


3. Fundamentos Legais e Constitucionais

Sublinhamos o que sustentará os argumentos prós e contra a investigação conduzida ou presidida pelo Ministério Público:

Art. 129 - São funções institucionais do Ministério Público:

I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;

III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

IV - promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição;

V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;

VI - expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva;

VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;

VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;

IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.

Art. 144 - A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - polícia ferroviária federal;

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.

§ 1º - A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:

I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;

II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;

III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras;

IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.

§ 2º - A polícia rodoviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais.

§ 3º - A polícia ferroviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais.

§ 4º - Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

§ 5º - Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.

§ 6º - As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

§ 7º - A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.

§ 8º - Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.

§ 9º - A remuneração dos servidores policiais integrantes dos órgãos relacionados neste artigo será fixada na forma do § 4º do art. 39.

Sem juízos de valor, por ora.


4. Argumentos Pró-Gaeco

O crime organizado ou poder paralelo, conforme a nomenclatura que se dê, cresce a aparece. Sai das sombras para ameaçar a segurança da classe média alta e os mais abastados. O direito criminal saiu da órbita das pequenas colunas onde se estampava apenas nomes de incógnitos sociais para ser manchete, emergindo fatos que toda a sociedade já sabia, mas apenas os mais pobres sofriam. O crime em si penetrou na classe média alta e aterroriza os pais e os formadores de opinião pública, omissos quando se tratava dos pequenos e grandes delitos nos subúrbios, nas favelas.

Mas afirmar apenas que organismos como o Gaeco (Grupo Especial de Combate ao Criem Organizado) surgem apenas do ressentimento é extrapolar. Os Gaecos estaduais surgem de uma legítima preocupação da vulnerabilidade da polícia ao se postar contra um poder tão enfronhado na economia, sociedade e política. Surgiriam para firmar, reforçar e ordenar as investigações de fatos que fogem à alçada de pontuais investigações policiais. Trabalho de inteligência, forças-tarefa, coordenação de esforços são atraentes justificativas para o anseio popular pelo fortalecimento dos Gaeco.

Admitindo que os crimes dessas organizações são, em sua maioria, interestaduais ou internacionais, aquela pequena delegacia de polícia é incapaz de chegar aos cabeças das quadrilhas/empresas, prendendo apenas os criminosos de menor hierarquia, geralmente executores de ordens, rapidamente substituídos por outros tantos que vagam sem emprego no país. Isto é, enxerga pouco a polícia, esmerando-se em exibir símbolos para as câmeras, por oportunidade de pequenas apreensões. As organizações criminosas agradecem e pagam o preço da atividade perigosa, perdendo poucos e desimportantes integrantes, como taxas pelas atividades. São criminosos de menor calibre que nunca têm visão exata da própria organização que integra...verdadeiro "boi de piranha".

Assim, o Ministério Público, pressionado ele mesmo por respostas, soluções à onda de criminalidade, interpretou o rebotalho de leis que guardamos amontoadas umas sobre as outras, e algumas eclipsando a Constituição, e outras ainda contradizendo as primeiras, de modo a concluir por sua legitimidade em segurar o pendão da investigação criminal, direta, sem mediadores.

A sociedade saudou com júbilo a iniciativa, predestinada a desmontar o crime que se mostra às claras e em colunas sociais, num deboche e conluio com poder público. Este, por meio do Executivo e Legislativo, viu uma saída cômoda para recuperar o prestígio e dar resposta rápida à crescente criminalidade. Todos ficam esperançosos. Os Gaeco começam a funcionar e investigar o que era intocável, como o Capone de Chicago. Cruzados, promotores de justiça intimam cidadãos, tomam depoimentos, produzem provas, requisitam providências, tudo acompanhado pela imprensa pressionando o Judiciário, o que não é intrinsecamente negativo.

Integrantes do Gaeco escrevem e defendem a própria instituição com argumentos fortes e coerentes, interpretados todavia ao sabor de cada linha doutrinária preferida.

Em trechos do artigo dos ilustrados Procuradores da República do Rio de Janeiro, Aloísio Firmo G. da Silva, Maria Emilia M. de Araujo e Paulo Fernando Corrêa, estes se insurgem contra a vedação ao Ministério Público poder conduzir investigações criminais. Eis alguns trechos:

Recentemente, dois acórdãos proferidos pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (HC nº 96.02.35446-1, 2ª T., Rel. Des. Fed. Silvério Cabral, v.m., julg. em 11.12.96; HC nº 97.02.09315-5, 1ª T., Rel. Des. Fed. Nei Fonseca, v.u., julg. em 19.08.97, DJU de 09.10.97), encampando decisão isolada do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (HC nº 615/96, 1ª CCrim., Rel. Juiz convocado Silvio Teixeira, DOERJ de 26.08.96), acolheram a inusitada tese de que o Ministério Público não pode conduzir investigação de natureza criminal, sob o fundamento de que tal atribuição é exclusiva da Polícia Judiciária (Polícias Civis dos Estados e Polícia Federal), somente sendo lícito ao órgão ministerial a condução de inquéritos civis.

A tese sufragada pelos julgados supracitados é insustentável, revelando enorme imprecisão jurídica, tanto que será facilmente rechaçada pelas considerações expostas no presente trabalho. Registre-se, desde já, que, em sentido contrário, dando pela legitimidade da apuração direta de ilícitos penais pelo Ministério Público, em sede de inquérito administrativo próprio, já se manifestaram o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, respectivamente, conforme ementas abaixo colacionadas: "Regular participação do órgão do Ministério Público em fase investigatória e falta de oportuna argüição da suposta suspeição do magistrado. Pedido indeferido" (STF, HC nº 75.769-3-MG, 1ª T., Rel. Min. Octavio Gallotti, v.u., julg. em 30.09.97, DJU de 28.11.97); "PROCESSUAL PENAL. DENÚNCIA. IMPEDIMENTO. MINISTÉRIO PÚBLICO. I - A atuação do Promotor na fase investigatória - pré-processual - não o incompatibiliza para o exercício da correspondente ação penal. II - Não causa nulidade o fato do Promotor, para formação da opinio delicti, colher preliminarmente as provas necessárias para ação penal. III - Recurso improvido" (STJ, RHC nº 3.586-2-PA, 6ª T., Rel. Min. Pedro Acioli, v.u., julg. em 09.05.94, DJU de 30.05.94); "HABEAS CORPUS. DENÚNCIA OFERECIDA COM BASE EM INVESTIGAÇÕES PROCEDIDAS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. (...) 1. O inquérito policial é, em regra, atribuição da autoridade policial. 2. O parquet pode investigar fatos, poder que se inclui no mais amplo de fiscalizar a correta execução da lei. 3. (...) 4. Tal poder do órgão ministerial mais avulta, quando os envolvidos na infração penal são autoridades policiais, submetidos ao controle externo do Ministério Público" (TRF/4ª Reg., HC nº 97.04.26750-9-PR, Rel. Juiz Fábio Bittencourt da Rosa, 1ª T., v.u., julg. em 24.06.97, DJU de 16.07.97).

As decisões do TRF/2ª Região vão de encontro a dispositivos constitucionais expressos (art. 129, I, VI e VIII), bem como ao texto da Lei Complementar nº 75/93 (art. 8º, V e VII) - que disciplina especificamente os poderes e prerrogativas institucionais conferidos ao Ministério Público da União -, de aplicação supletiva aos Ministérios Públicos Estaduais (art. 80 da Lei nº 8.625/93), eis que tanto a Lex Mater como a Lei Complementar nº 75/93 são de uma clareza solar em caracterizar a legalidade da atuação do Ministério Público, em se tratando de condução de investigação criminal no bojo de procedimentos administrativos instaurados em seu âmbito interno.

Decorre, via de conseqüência, que é incorreto afirmar que ao Ministério Público somente é dado conduzir investigações que se refiram a inquéritos civis. Tal ressalva, que em momento algum é feita pelos aludidos dispositivos, só pode ter como objetivo obstaculizar a atuação do órgão ministerial, manietando a Instituição que tem, por destinação constitucional, o poder-dever de zelar pela correta e fiel aplicação das leis em geral. Destarte, incide, à espécie, o vetusto princípio de hermenêutica jurídica, consistente na vedação de o intérprete fazer distinção onde o texto legal não fez, e nem foi sua intenção fazê-lo.

Dentro dessa linha de pensamento, com inteira razão HUGO NIGRO MAZZILLI, ao pontificar que "No inciso VI do art. 129, cuida-se de procedimentos administrativos de atribuição do Ministério Público - e aqui também se incluem investigações destinadas à coleta direta de elementos de convicção para a opinio delicti: se os procedimentos administrativos de que cuida este inciso fossem apenas em matéria cível, teria bastado o inquérito civil de que cuida o inc. III... Mas o poder de requisitar informações e diligências não se exaure na esfera cível, atingindo também a área destinada a investigações criminais" (apud MARCELLUS POLASTRI LIMA, "Ministério Público e Persecução Criminal", ed. Lumem Juris, 1997, pág. 89).

Outro argumento que vem corroborar o equívoco interpretativo perpetrado pelo TRF/2ª Região, exsurge da análise da dicção constitucional constante do inciso VIII do art. 129: quisesse o legislador constituinte limitar a atuação ministerial, no campo investigatório, tão-somente às suas intervenções em sede de inquérito policial, não teria, nesse dispositivo, empregado a conjunção aditiva "e", e sim formulado expressão que condicionasse a requisição de diligências no momento da instauração ou no curso do inquérito, motivo por que podemos obtemperar, com o beneplácito do Tribunal de Alçada Criminal do Rio Grande do Sul, que "a CF, ao conferir ao MP a faculdade de requisitar e de notificar, defere-lhe o poder de investigar, no qual aquelas funções se subsumem" (HC nº 291071702, CCrim. de Férias, Rel. Juiz Vladimir Giacomuzzi, julg. 25.7.91, Julgados do TARS nº 79/129).

Cabe refutar, ainda, o frágil fundamento de que a condução da investigação policial seria monopólio das Polícias Civis, Estaduais e Federal, visto que a Constituição, em seu art. 144, na única alusão que faz ao termo "exclusividade" (inciso IV do § 1º), visa afastar a superposição de atribuições entre a Polícia Federal e as Polícias Rodoviária e Ferroviária - também vinculadas à União, mas que têm funções de simples patrulhamento ostensivo das rodovias e ferrovias federais, respectivamente -, bem como entre a Polícia Federal (propriamente dita) e as Polícias Civis dos Estados, impedindo que haja a invasão das respectivas esferas de atuação.

Essa distinção foi feita pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, ao denegar liminar requerida pela ADEPOL (Associação Nacional dos Delegados de Polícia) na ADIn nº 1517-UF (Rel. Min. Maurício Corrêa, julg. em 30.4.97, Informativo STF nº 69) - era questionada a constitucionalidade do art. 3º da Lei nº 9.034/95 (Lei de Combate ao Crime Organizado), conferidor de poderes instrutórios ao juiz na fase investigatória -, tendo prevalecido o entendimento, vencido o min. Sepúlveda Pertence, de que a investigação criminal não é monopólio da Polícia Judiciária, pois, como ressaltado pelo relator, "a Constituição não veda o deferimento por lei de funções de investigações criminais a outros entes do Poder Público, sejam agentes administrativos ou magistrados", o que, aliás, vem confirmar a indiscutível recepção da previsão contida no parágrafo único do art. 4º do Código de Processo Penal.

A conclusão inafastável que deflui da análise da decisão do Pretório Excelso é a de que, restando legitimada a atuação do juiz em sede investigatória de coleta de provas - a qual poder-se-ia objetar que comprometeria sua imparcialidade no ato de julgar (fundamento do voto vencido do Min. Sepúlveda Pertence) -, com muito mais razão dever-se-á admitir a atuação do Ministério Público, órgão detentor da titularidade privativa do exercício da ação penal pública e, portanto, destinatário imediato de qualquer investigação criminal, cuja intervenção pré-processual autônoma terá por objetivo garantir a apuração, isenta e rigorosa, de quaisquer violações às leis penais, evitando-se a ocorrência de um prejuízo potencial ao interesse público.

Por conseguinte, se incumbe ao Ministério Público, privativamente, o exercício da ação penal de iniciativa pública, é forçoso concluir que estarão compreendidos entre seus poderes e prerrogativas institucionais o de produzir provas e investigar a ocorrência de indícios que justifiquem sua atuação na persecução penal preliminar, instaurando o procedimento administrativo pertinente (art. 129, VI, da Carta Política), devendo assim proceder sempre que a atuação da Polícia Judiciária possa revelar-se insuficiente à satisfação do interesse público consubstanciado na apuração da verdade real (p. ex., quando ocorrer falta de isenção para apurar determinada infração penal, haja vista o envolvimento de outros policiais, hipótese verificada em uma das ações penais que foram trancadas pelo TRF/2ª Região, em que existia inquérito policial conduzido de forma flagrantemente favorável aos interesses do organismo policial, levando o Ministério Público Federal a engendrar novas diligências investigatórias em procedimento interno, que redundaram no oferecimento de denúncia contra vários policiais federais).

Outro artigo, não menos relevante, da lavra do Dr. Cristiano Chaves de Faria, promotor de justiça no Estado da Bahia, sustenta que além de ser legítimo para investigar, o promotor que atuou em sede indiciária não teria o óbice da suspeição ou impedimento para interpor ação penal correspondente. Vejamos os argumentos:

Inexistência de impedimento/suspeição para o oferecimento de denúncia pelo MP investigante.

Imperativo, ademais, destacar que inexiste qualquer impedimento ou suspeição para o oferecer denúncia, iniciando ação penal, no fato de o membro do MP atuar ou intervir nas investigações policiais ou mesmo promover investigações motu proprio (o que se inclui no rol de suas atribuições conferidas pela CR e por lei).

Veja-se que não se vislumbra hipótese impeditiva ou de suspeição no taxativo rol elencado nos Arts. 252 e 254 da Cártula Adjetiva Penal - extensivo ao MP ex vi do disposto no Art. 258 do mesmo Codex. Por conseguinte, impende reconhecer a inexistência de causa de impedimento para o oferecimento de denúncia no fato de o mesmo membro do MP, na fase preliminar (investigatória) ter participado das diligências da Polícia Judiciária ou ter realizado investigação autônoma e direta.

O elenco das causas de impedimento e suspeição é numerus clausus e não comporta dilações!

Nesse diapasão, a jurisprudência vem pacificando:

"É de se rejeitar a exceção de suspeição se o excipiente não indica alguma das causas configuradoras (...) elencadas no art. 254 do CPP, cujo rol é taxativo, não comportando ampliação." (TJ/SP, in RT 699:328)

Na mesma trilha: TJ/PR (RT 665:314), TJ/SP (RT 542:333) e TJ/SC (RT 508:404).

Outrossim, destaque-se ser o Parquet (expressão francesa que significa "assoalho", designando o local onde permaneciam os representantes do antigo MP daquele país, de pé, ao lado dos juízes, que ficavam sentados. Daí, inclusive, a origem da denominação "magistratura de pé") o Destinatário Imediato das investigações criminais, tendo interesse direto nelas, a fim de formar a sua opinio delicti. Ora, se pode o mais - que é requisitar tais diligências investigatórias - obviamente, poderá o menos, realizá-las pessoalmente, tendo contato direto com os indícios e provas colhidos, amadurecendo sua convicção.

Aliás, o MP que atua, direta (e pessoalmente) ou indiretamente, é o maior interessado no material indiciário produzido, podendo, com o seu contato pessoal, formar um juízo de valor muito mais seguro e firme.

Como se não bastassem tais argumentos, é de ser destacado que o fato de participar ou presidir diligências investigatórias justifica, ainda mais vigorosamente, a legitimidade do representante ministerial para o ajuizamento da ação penal, porque encontrar-se-á mais habilitado para tal, ciente inteiramente dos acontecimentos.

Repita-se à saciedade: a atividade investigatória é absolutamente intrínseca e inerente à condição de órgão acusador, por ser necessária a existência de um suporte probatório mínimo para o oferecimento de denúncia. Equivale a dizer, a atividade de investigar e apurar os fatos delitivos in these está atrelada à atividade de acusar em juízo, de deduzir a pretensão punitiva estatal, sendo uma suporte da outra.

Ademais, se a função de invest igar é inerente e própria do múnus ministerial, inexiste, via de conseqüência, impedimento para o exercício da função de acusar em juízo, até mesmo por ser função complementar àquela.

É o que sacramenta o escólio do preclaro Julio Fabbrini Mirabete: "não constitui impedimento o fato de ter sido o representante do Ministério Público designado para acompanhar o inquérito policial, intervindo nas investigações, participando da coleta de provas, requisitando diligências, etc., pois tais funções são próprias do exercício do cargo." (cf. Código de Processo Penal Interpretado, São Paulo, Atlas, 3ªed., 1996, p.305)

Outra não é a cátedra de Polastri Lima, para quem "nenhuma contradição ou conflito existe em relação à colheita de provas e posterior oferecimento de denúncia por parte do Ministério Público." (op. cit., p.88)

A ilação que se infere é a única aceitável para a hipótese sub occulis, não sendo possível obstar o membro do MP que exerceu suas funções naturais, previstas pela CF e pela lei, investigando fato criminógeno, de oferecer a denúncia, sob pena de colocar em xeque não somente sua dignidade pessoal e profissional (admitindo-o como suspeito de parcialidade), como toda a credibilidade da Instituição Ministerial - que não teria compromisso com a Verdade e a Justiça, admitindo que não possuiria condições de fazer, isentamente, um juízo de valor após promover investigações.

Os tempos do Ministério Público perseguidor implacável já se foram (e de há muito!) e, hodiernamente, não mais se admite a figura do acusador sistemático!!! Os membros do MP, em verdade, devem "ter o zelo pela justiça e não pela condenação", como adverte com extrema sabedoria Hugo Nigro Mazzili. (cf. Regime Jurídico do Ministério Público, São Paulo, Saraiva, 3ªed., 1996, p.34)

Dando efetividade à tese ora esposada as nossas Cortes já têm precedentes diversos, como, exempli gratia, os que ora transcreve-se:

"Regular participação do órgão do Ministério Público em fase investigatória e falta de oportuna argüição da suposta suspeição do magistrado. Pedido indeferido de ‘HC’." (STF, HC 75.769-3/MG, Ac.unân. 1ªT., v.u., Rel. Min. Otávio Gallotti, j.30.9.97, publ. DJU 28.11.97)

"Não impede o Promotor para a denúncia, o fato de sua designação para participar da coleta de provas informativos, nem a iniciativa de diligências investigatórias do crime." (STJ, in JSTJ 22:247-8)

E mais esse acórdão do Eg. STJ, abordando exatamente a questão em comento, lavrado, unanimemente, de modo magistral:

"Processual Penal. Denúncia. Impedimento. Ministério Público. I- A atuação do Promotor na fase investigatória - pré-processual - não o incompatibiliza para o exercício da correspondente ação penal. II - Não causa nulidade o fato do Promotor, para a formação da ‘opinio delicti’, colher preliminarmente as provas necessárias para a ação penal. III - Recurso improvido." (STJ, RHC 3586-2-/PA, Ac.unân. 6ªT., Rel. Min. Pedro Acioli, v.u., j.9.5.94, publ. DJU 30.5.94)

Mas não é só. Incontáveis decisões vêm sendo proferidas proclamando este entendimento, como as que estão contidas em Lex 58:66 (TACrim./SP) e 56:328 (STF); RTJ 107:98 e 119:120 (STF); RT 665:342 (STJ), 660:288 (TJ/SP); RJTJESP 120:589 (TJ/SP) e JTACRESP 36:63 (TACrim./SP).

Veja-se, inclusive, que no procedimento para apuração de ato infracional (Lei nº8.069/90 - ECA), o membro do MP está incumbido de promover as diligências investigatórias previamente, para, a depender de seu juízo de valor, deflagrar ação sócio-educativa por meio de representação em face do adolescente, inexistindo qualquer impedimento. Igualmente, pode o particular ofendido colher elementos probatórios para embasar a queixa-crime a ser intentada, no caso de ação penal privada, sendo enorme incongruência negar-se tal possibilidade ao Promotor de Justiça ou Procurador da República que promoverem investigações.

Resulta, então, fatal a conclusão de que se é facultado ao Parquet oferecer denúncia prescindindo das peças investigatórias policiais, quando disponha de elementos outros (CPP, 39, §5º), com maior razão ainda poderá investigar pessoalmente, através de procedimento administrativo interno, os fatos delitivos descobertos ou noticiados, a fim de garantir uma peça acusatória segura ou, noutra hipótese, o arquivamento das peças de investigação, evitando vulnerar o status dignitatis do cidadão. Calha bem à matéria a observação do Prof. Sérgio Demoro, lastreado em Tourinho Filho, no sentido de que a investigação policial é dispensável e que "seria uma superfetação exigir-se o inquérito policial se o titular do ‘jus persequendi in judicio’ tive r em mãos os elementos que o habilitem a ingressar em juízo." (op. cit., p.218)

Nesta linha de intelecção, sobreleva firmar posição, com segurança e firmeza, arrimado na communis opinio doctorum et consensus omnium jurisprudencial alhures evidenciados, que inexiste incompatibilidade para a deflagração de ação penal, com o oferecimento de denúncia, por parte do representante do MP que participou ou promoveu atividades investigatórias.

A fim de defender a segurança pública, da qual todos são responsáveis, a incolumidade e eficiência da investigação criminal, o afastamento do crime organizado e a independência com relação a ele, a efetividade da ação penal pública, temos como legítimo o Ministério Público que investiga diretamente crimes, pela ótica de seus defensores.

Legítimo e querido Ministério Público.


5. Argumentos Contrários

O cerne da questão é que não temos um sistema de instrução prévia do processo penal. Nesse sistema, temos um promotor sendo notificado imediatamente de uma prisão em flagrante ou de um crime que a Polícia tomou conhecimento. A própria polícia é um apêndice do Parquet que a controla, subordinando-a funcionalmente. Adotam o sistema de instrução a França, a Itália, a Espanha, Portugal entre outros países. A investigação criminal não poderá ser iniciada sem o placet ministerial ou mesmo a condução direta por um promotor público.

Nesse sistema, temos institutos que igualmente não são comuns no Brasil: acordos extrajudiciais isentando de processo, depoimentos homologados pelo Ministério Público, gravações públicas de confissões ou delações etc. Não temos o magistrado que julga a conveniência da ação penal, antes de ser julgado o seu mérito, como procedimento prévio e bifásico. Assim, o processo penal brasileiro é mais garantista, menos sujeito às conturbadas negociações que se fazem em fases pré-processuais e que viciam o entendimento do promotor.

Temos a Constituição da República que, é verdade, não concede privativamente à polícia o poder de conduzir o inquérito policial, mas aponta para o exercício de diversas instituições, das quais não figura o Ministério Público como legitimado constitucional, pela sua total omissão no art. 144 da CF. Assim, é forçoso reconhecer que a omissão do termo privativo/a, não impede esta interpretação, afastando a hipótese de atribuição concerrente. Da mesma forma, não consta a pretendida atribuição nem no art. 129 da CF, concernente às funções do Ministério Público, nem mesmo na respectiva Lei Orgânica e ainda na legislação de combate ao crime organizado.

Ademais, podemos conjugar diversos artigos do Processo Penal clássico, constantes do Codex, para concluir sem titubeios que não poderá o Ministério Público conduzir a investigação. Vejamos a lei, e analisemos os trechos destacados:

Art. 5º Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado: I - de ofício; II - mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo. Art. 12. O inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra. Art. 16. O Ministério Público não poderá requerer a devolução do inquérito à autoridade policial, senão para novas diligências, imprescindíveis ao oferecimento da denúncia. Art. 17. A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito. Art. 18. Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia. Art. 27. Qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do Ministério Público, nos casos em que caiba a ação pública, fornecendo-lhe, por escrito, informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção. Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.

Pela leitura atenta e desapaixonada do Diploma Processual, temos algumas constatações muito simples:

a) diz a letra da lei que pode o Ministério Público requisitar a instauração do inquérito, donde o delegado de polícia não poderá indeferir a solicitação, mas não diz em momento algum que pode o próprio Parquet instaurar investigação. Se há a distinção e o distanciamento legal, há de ser observado pelos integrantes do Ministério Público;

b) o inquérito policial não é imprescindível ao oferecimento da denúncia, tanto que o art. 16 é bem claro afirmando que "sempre que servir"; haverá casos em que não irá servir ou não será indispensável;

c) as novas investigações, após o arquivamento do inquérito policial, poderão ser feitas apenas pela autoridade policial, em conformidade com o art. 18 do CPP, demonstrando, mais uma vez, a titularidade para conduzir o procedimento investigatório penal;

d) o art. 27 que trata da provocação do Ministério Público quer versar de forma cristalina sobre a possibilidade de apresentação de denúncia ou requisição de instauração de inquérito e não condução da investigação;

e) ora, se o Ministério Público requerer e depois requisitar o arquivamento do inquérito, por meio de seu promotor ou Procurador Geral, significa afirmar que não pode ele mesmo arquivar, porque não tem atribuição para conduzi-lo.

Sem sofismas: é apenas a leitura do texto legal que se mostra claro e sem brechas à gula processual ministerial.

Igualmente insofismável é o artigo de Luiz Flávio Gomes, baluarte do Garantismo Penal no Brasil, tende a confirmar entendimento contrário à legitimidade ministerial para investigar, consubstanciando mais o presente ensaio. A transcrição do artigo correspondente vale ser lida, na íntegra:

O Colendo Supremo Tribunal Federal, em duas decisões mais ou menos recentes, tinha firmado o entendimento de que o Ministério Público não pode realizar diretamente investigações criminais. No RE 205.473-9-AL, rel. Min. CARLOS VELLOSO, j. de 15.12.98, com efeito, proclamou-se o seguinte:

"Constitucional. Processual Penal. Ministério Público: atribuições. Inquérito. Requisição de Investigações. Crime de desobediência. CF, art. 129, VIII; art. 144, § 1º e 4º. – I – Inocorrência de ofensa ao art. 129, VIII, C.F., no fato de a autoridade administrativa deixar de atender requisição de membro do Ministério Público no sentido da realização de investigações tendentes à apuração de infrações penais, mesmo porque não cabe ao membro do Ministério Público realizar, diretamente, tais investigações, mas requisitá-las à autoridade policial, competente para tal (C.F., art. 144, §§ 1º e 4º). Ademais, a hipótese envolvia fatos que estavam sendo investigados em instância superior; - II – R.E. não conhecido" (negrito nosso);

O segundo julgado da Suprema Corte aconteceu no RE 233.072-RJ, rel. Min. Néri da Silveira, j. 18.05.99. Contra acórdão do TRF da 2ª Região, que determinou o trancamento de ação penal pública, ao fundamento de que o Ministério Público teria exorbitado de suas funções ao oferecer denúncia baseada em procedimento administrativo por ele instaurado sem requisição de abertura de inquérito policial, ingressou com Recurso Extraordinário o Ministério Público.

"A Turma [Segunda], por maioria, não conheceu do recurso extraordinário por entender que o acórdão recorrido baseou-se em mais de um fundamento suficiente para a manutenção da decisão, que não foram atacados pelo recorrente, incidindo, portanto, a Súmula 283 ("É inadmissível o recurso extraordinário, quando a decisão recorrida assenta em mais de um fundamento suficiente e o recurso não abrange todos eles"). Vencidos os Ministros Néri da Silveira, relator, e Maurício Corrêa, que conheciam do recurso e lhe davam provimento para determinar o prosseguimento da ação penal. RE 233.072-RJ, rel. Min. Néri da Silveira, 18.05.99" (cfr. Informativo STF n. 150, de 26.05.99, p. 2).

A Constituição brasileira não acolheu o modelo da direção da investigação criminal pelo Ministério Público (cf. Ela Wiecko V. de CASTILHO, Correio Braziliense – Direito & Justiça de 17.05.99, p. 4); aliás, ela "jamais quis transferir para o Ministério Público as funções investigatórias cometidas ao serviço policial" (cf. Cláudio Fonteles, Correio Braziliense – Direito & Justiça de 17.05.99, p. 7). Não palmilhou, assim, a concepção do direito europeu continental (Itália, Alemanha etc.); está mais próxima do sistema inglês (cf. Procesos penales de Europa, dir. De Mireille DELMAS-MARTY, trad. de Morenilla Allard, Zaragoza: Edijus, 2000, p. 475 e ss.; Antonio Evaristo de MORAIS FILHO, em RBCCrim n. 19, p. 105 e ss.);

Por força do art. 144, § 1º e 4º, da CF, a função de investigar diretamente os fatos delituosos cabe à polícia federal, às polícias civis e à polícia militar (nas infrações militares);

Apesar da clareza do texto constitucional, certo é, entretanto, que não existe monopólio ("reserva de mercado", sic) em favor das Polícias para investigar fatos delituosos no nosso país. Em outras palavras: a investigação criminal não é atividade exclusiva da polícia judiciária (CPP, art. 4º, parágrafo único).

Mas isso não significa que o Ministério Público (na atualidade) tenha poderes para tanto. Outras autoridades podem investigar delitos, mas isso depende de lei expressa: "A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas a quem por lei seja cometida a mesma função" (CPP, art. 4º, parágrafo único);

O que está faltando ao Ministério Público (neste momento) é justamente essa lei expressa que lhe autorize presidir e promover diretamente a investigação criminal.

Não há dúvida, assim, que são admitidos, no direito pátrio, outros inquéritos investigativos: o inquérito judicial nos crimes falimentares, as CPIs, IPMs etc. Na ADIn 1.517-DF, rel. Min. Maurício Corrêa, reconheceu-se [muito discutivelmente] inclusive a legitimidade dos juízes para atividades investigatórias (Lei n. 9.034/95, art. 3º); mas tudo deriva de expressa previsão legal, que não existe em favor do Ministério Público.

Consoante a ordem jurídica vigente o Ministério Público conta com muitos poderes, mas especificamente para dirigir a investigação criminal, excepcionando-se a investigação contra seus próprios membros, não há dispositivo autorizador.

Nada obsta, in thesi, que o Ministério Público venha a ter no sistema jurídico nacional poderes de investigação direta: mas para tanto são necessárias reformas legislativas específicas; pelo direito vigente, como vem reconhecendo a Máxima Corte, essa função está juridicamente vedada. É até aconselhável que o Ministério Público venha a assumir algumas tarefas investigatórias (crime organizado, por exemplo), mas no momento não conta com poderes legais para isso.

Não cabe dúvida que o Ministério Público pode participar das investigações, pode acompanhá-las: LONMP, art. 26, IV; LC 75/93, art. 7º, inc. II; LONMP, art. 10, IX, e; HC 75.769, in DJU de 28.11.97. Mas presidir uma investigação é outra coisa.

Não cabe discutir que o Ministério Público é o titular privativo do direito de promover a ação penal pública (CF, art. 129, I). E que nos crimes tributários não depende da representação da Fazenda Pública para atuar (cfr. ADIN 1571-DF, rel. Min. Néri da Silveira).

Não se questiona que pode também "requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais" (CF, art. 129, inc. VIII).

Não há como contestar que pode promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 129, III). Está autorizado, ademais, a realizar inquéritos administrativos (CF, art. 129, VI), particularmente quanto ao meio ambiente (Lei 7.347/85), podendo expedir notificações e requisitar informações e documentos para instruí-los (CF, art. 129, inv. VI).

Cabe ainda ao Ministério Público exercer o controle externo da atividade policial (CF, art. 129, VII).

Conta, de outro lado, com a faculdade de oferecer denúncia sem inquérito policial (CPP, arts. 27 e 39, § 5º; vid. ainda RTJ 76/741), com base em provas colhidas em inquérito civil seu ou inquéritos administrativos, presididos por outras autoridades, autorizadas em lei. Não é correta, assim, a afirmação de que o Ministério Público somente pode promover a ação penal quando a Polícia Judiciária investigou os fatos; mas tampouco é verdadeira a assertiva de que ele pode diretamente promover a investigação criminal.

Alinhadas todas as atribuições do Ministério Público, impõe-se reconhecer, segundo o ius positum, de modo peremptório, que nenhuma lei lhe confere a possibilidade de investigar diretamente o fato delituoso. Por isso é que o Supremo Tribunal Federal, com precisão e firmeza, vem proclamando que não cabe ao membro do Ministério Público realizar, diretamente, investigações criminais, mas requisitá-las à autoridade policial, competente para tal (cf. RE 205.473-9, rel. Min. CARLOS VELLOSO).

A única exceção a esse correto e irreparável entendimento reside no art. 40, parágrafo único, da LONMP, que autoriza a investigação direta pelo Ministério Público quando envolvido algum membro da Instituição.

Aliás, nem sequer no tempo da LC 40/81 podia o Ministério Público assumir a direção da investigação criminal, salvo na ausência de Delegado de Polícia (art. 15, III e V).

O tema não só é tormentoso no presente ensaio, mas no quotidiano forense. Advogados digladiam-se contra a sanha persecutória do Ministério Público e mesmo no Supremo Tribunal Federal, antes do processo decisivo sobre o tema que segue em anexo, temos já as primeiras linhas do entendimento que o Excelso Pretório firmava sobre o tema.

Depoimentos tomados a portas fechados na sede do Ministério Público Federal ou Estadual é odioso, próprio de regimes totalitários, onde o estatal não é público e sim sigiloso e o aparelho do Big Brother quer sufocar as liberdades e o contraditório. Aquele promotor que, sozinho, trancado com o depoente, geralmente amedrontado diante do poder público que representa o Parquet, não é mais do que a caricatura do Robespierre eterno, incorruptível, inflexível e isolado da fermentação democrática. E não são os advogados ou os delegados que apregoam a exorbitância do Ministério Público contemporâneo: os próprios Ministros do Supremo Tribunal já se preocupam com o grau maligno de perseguição, vaidade e intolerância que soçobra aquela Instituição essencial à Justiça.

Questão polêmica, propícia a debates acalorados, é reproduzida aqui pelo diálogo até áspero entre os Ministros Nelson Jobim e Néri da Silveira. Vejamos o voto do Min. Jobim no Recurso Extraordinário 233.072-4 RJ, já mencionado pelo Dr. Flávio Gomes:

Min Jobim: observo que este tema – já participei de debate deste tema em sede legislativa – quando da elaboração da CF de 88, era pretensão de alguns parlamentares introduzir texto específico no sentido de criarmos ou não, o processo de instrução, gerido pelo MP. Isso foi objeto de longos debates da elaboração da Constituição e foi rejeitado.

Mas, o tema voltou a ser discutido, quando, em 1993, votava-se no Congresso Nacional a Lei Complementar relativa ao MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIAO E AO MINISTÉRIO PÚBLICO DOS ESTADOS, em que havia esse discussão do processo de instrução que pudesse ser gerido pelo MP.

A longa disputa entre o MP, a Polícia Civil e a Polícia Federal, em relação a essa competência exclusiva da polícia em realizar os inquéritos. Lembro-me que toda essa matéria foi rejeitada naquele momento, no Legislativo – estou explicitando de memória.

A Lei Complementar 75/93 (Lei Orgânica do MP da União), no art. 6º refere-se à competência do MP da União, elencando vinte incisos de competência do MP.

(...)

Dos eminentes juízes do Tribunal Regional, sobre a conduta do MP em ministério àquilo que foi referido como dispensabilidade do Inquérito Policial, acompanhados pelo eminente representante do MP, Prof. Dr. Juarez Tavares, a quem conheço muito e prestou extraordinários serviços ao Min. da Justiça quando por lá passei, no sentido de acompanhar na elaboração dos projetos legislativos, inclusive no Projeto sobre Lavagem de Dinheiro.

Esses três eminentes magistrados já qualificaram as ações do MP, às quais Vossa Excelência se referiu nos anexos e volumes, referindo-se a isso como a realização, por parte do MP, do Inquérito Penal.

(...)

Concordo plenamente com Vossa Excelência que a ação penal pública independe do Inquérito Policial para ser apresentada, agora, dispondo o MP para o oferecimento da denúncia.

(...)

Tem o MP competência para promover inquéritos administrativos, em relação às condutas do Min. da Fazenda, de funcionários públicos do Poder Executivo?

Não.

Os inquéritos administrativos são da competência do Min. da área. Foi dito aqui pelo eminente sub-procurador da Republica que nos assiste, não haver dúvida sobre isso ser um inquérito, tanto é que diz que se continha dentro da titularidade da ação penal pública, e quem pode o mais, pode o menos.

(...)

Inquérito Penal não é juízo de instrução.

Não temos esse tipo de procedimento no nosso ordenamento jurídico.

Sua criação foi negada em dois momentos de voto no Parlamento.

Não será por exegese que vá se outorgar ao MP aquilo que não foi dado.

(...)

Min. Néri da Silveira: estamos julgando uma denúncia que foi apresentada, que define um quadro típico.

Min. Jobim: Não. Estamos examinando a regularidade da conduta do MP.

Min. Néri da Silveira: o hábeas corpus foi concedido para trancar o processo decorrente dessa denúncia.

Min. Jobim: porque o TRF entendeu relevante, se exorbitou o MP, e a meu juízo, exorbitou das suas funções institucionais, pretensão que já tem há muito tempo em detrimento dos interesses da defesa.

Sei que ao trazer exemplos de casos vividos, corre-se o risco de se trazer aquilo que se chama generalização empírica, mas ao exercer a advocacia penal durante 20 anos, sei como se conduz o MP nesses atos unilaterais de produção de prova.

O MP exorbitou, no caso concreto, das suas funções. Não tem ele competência alguma para produzir um inquérito penal, sob o argumento de que tem possibilidade de expedir notificações em procedimentos administrativos.

Terá, isto sim, por força da LC competente, poder para o exercício das suas atribuições, nos procedimentos de sua competência, notificar testemunhas etc.

Quais são os procedimentos de sua competência?

O Inquérito Civil Público.

O que entendeu o órgão julgador do HC, no voto do relator em relação à matéria? Entendeu, na linha sustentada pelo representante do MP junto ao Tribunal, que ouve exorbitância.

Pergunto à Vossa Excelência: a prova que instruiu a denúncia foi produzida de forma legítima? Se não tinha o MP competência para introduzir aquilo que está assente?

Min. Néri da Silveira: uma prova documental baseada exatamente no processo licitatório.

Min. Jobim: colhida de forma lícita ou ilícita? Tinha ou não competência?

Min. Néri da Silveira: o MP tinha cópia do processo licitatório que é processo de repartição qualquer. Sabemos que o MP pode instaurar uma ação penal contra um funcionário com base no processo administrativo, que lhe seja encaminhado, ou se tiver provas nos autos.

Min. Jobim: concordo com V. EXcia, mas curiosamente, houve a necessidade de notificação para ser ouvido no chamado inquérito administrativo, que foi emitido num juízo no MP local, comum um juízo de existência de Inquérito Penal.

É lícita a forma de colher-se essa prova?

Min. Néri da Silveira: Veja: apenas pela circunstância de o indiciado não haver atendido à notificação, e assim esclarecido mais ao MP, vamos coarctar a ação do MP?

Min. Jobim: não, instaure-se, previamente, o inquérito. Não acompanho Vossa Excelência porque é necessário se coarctar esse tipo de conduta.

Concedido ou negado que seja, estará a Turma reconhecendo a prática de um ato abusivo do MP. Isso ficará na mesma situação, porque estamos perante a prática de um ato que exorbita das suas funções e se viermos a negar o recurso, como pretendo, divergindo de V. Excia, afirmo que nenhuma conseqüência terá o MP das condutas tomadas, porque a sua Corregedoria não irá contra si mesma, aliás este é um tema que temos que discutir com muita clareza e com o dever social de prestar contas à sociedade "accountabily", dos americanos em relação às condutas deste determinado setor público.

Senhor Presidente, quero que com todas as vênias e com o respeito que V. Excia merece, como meu velho professor da Faculdade de Direito do Rio Grande de Sul, possam a defesa e a acusação estarem no mesmo nível, no campo da investigação. Ou seja, com o mesmo status do MP.

Que não esteja a defesa sujeita à ações unilaterais da acusação, no sentido de promover dentro do próprio prédio, isolado, sem possibilidade alguma de qualquer tipo de participação no Inquérito.

Faríamos a divergência perante o juízo.

Mas não teríamos a possibilidade de exercê-lo fora dele, porque quando a polícia sabe-se o que fazer contra o MP pouca coisa tem-se a fazer.

Senhor Presidente, ouso divergir e, pela nossa técnica, não conheço do recurso.

Da excepcional e incomum polêmica no Pretório Excelso, temos o resultado no qual está profundamente inspirando o nosso entendimento:

Ementa: recurso extraordinário. Ministério Público. Inquérito Administrativo. Inquérito Penal. Legitimidade. O MP (1) não tem competência para promover inquérito administrativo em relação à conduta de servidores públicos; (2) nem competência para produzir inquérito penal sob o argumento de que tem possibilidade de expedir notificações em procedimentos administrativos; (3) pode propor ação penal sem o inquérito policial, desde que disponha de elementos suficientes. Recurso não conhecido.

Acórdão: vistos, relatados e discutidos estes autos, acórdão os Ministros do STF, em Segunda Turma, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por maioria, em não conhecer do recurso extraordinário, vencidos o relator e o senhor Min. Maurício Correa que dele conheciam e lhe davam provimento para determinar o prosseguimento da ação penal.

Lembramos o fato de que o relator do voto que segue em anexo como exemplo do mais moderno entendimento acerca do tema esposado é o mesmo Ministro Nelson Jobim que é oriundo do meio advocatício, político e que sentiu, numa e noutra atividade, o receio da democracia em permitir a uma única instituição tantos poderes. Assim, não é demais falar que um carro veloz é oportuno, mas se lhe faltarem os freios, é mais perigoso para o motorista e para a incolumidade pública que aquele outro auto mais lento e seguro. Comparamos, outrossim, a democracia a uma represa formada de pequenas pedras, onde a retirada de uma delas pode fazer ruir toda a barragem. O Ministério Público é fiscal, mas precisa ser fiscalizado; é acusador, mas precisa ser freado em seu ímpeto. No novo ordenamento, não há mais espaço para o promotor vaidoso de condenações, como se cada pena fosse uma condecoração nos quadros da promotoria. Foi o tempo que o "colecionador de ossos", aquele empedernido promotor público, caçava os acusados e os colecionava como troféus, usando condenações para galgar promoções funcionais.

O Ministério Público superou sua dependência do Poder Executivo e deve superar também a arrogância comum àqueles que acusam.

O curioso está no fato de que se usam contra o Gaeco as mesmas teses que, à primeira vista, parecem-lhe favoráveis. As combativas doutrinas que buscam demonstrar a legitimidade ministerial para a investigação criminal são assimiladas e contraditadas pela outra escola de processo penal que nos parece mais democrática. Sob pena de vermos a democracia se curvar à necessidade de segurança nacional, já usada tantas vezes por estados de exceção, deveremos limitar a atuação do Ministério Público.

É falacioso o argumento que, dando poder a um órgão, a sociedade estará mais segura, os crimes melhor apurados e a democracia defendida por um grupo ou um aparelho incorruptível. E além de falacioso, é demagógico e discriminador. E, ainda têm a coragem de afirmar alguns promotores de justiça que, afastar o MP do Inquérito é mascarar a investigação, tornando-a ineficaz, lenta ou corrompida. Como se, antes do Gaeco, não houvesse apuração de delitos; como se, antes do Gaeco, não houvesse investigadores e delegados de polícia sérios e determinados; e, finalmente, como se todos os promotores de justiça fosse, em razão da função, incorruptíveis. Quer-se reinventar Elliot Ness e os intocáveis? No país do norte, as estripulias contra a máfia da bebida e do jogo duraram enquanto durou o moralismo da vedação ao consumo de álcool e jogo.

A corrupção de uma instituição não se cura extinguindo-a ou diminuindo-lhe o poder, mas treinando, aparelhando e retribuindo o trabalho com a justa paga que jamais a polícia viu concretiza-se. Por isso, trata-se de afastar a discussão mais profunda, mais difícil e mais sensível para nos fazer engolir a pílula paliativa do Gaeco, quando falta gasolina, papel, caneta e tecnologia à polícia. E, no mérito, nem mesmo o Ministério Público tem pessoal, treinamento e tecnologia para atuar no combate ao crime organizado, se reclama que tantos feitos administrativos não podem ser respondidos ou apurados por absoluta falta de condições. E, mesmo assim, quer a vaidade de conduzir inquéritos diretamente, presidindo, furtando ainda mais promotores dos quadros da instituição. Certamente, daria mais reconhecimento da opinião pública, mas não resolveria o problema pelo qual nem mesmo os promotores que defendem o Gaeco são capazes de se mobilizar: o aparelhamento da polícia e a criação de institutos de inteligência na investigação criminal de vulto, na prevenção e repressão. Apurar grandes notícias querem, mas se esquecem que o crime que mata é o do vizinho assaltante, estuprador ou assassino.

Vejamos, em conclusão, o porquê dessa aguerrida defesa pelo restabelecimento do papel tradicional do Ministério Público, afastando-o das investigações:

a) teoria dos poderes implícitos? – nem sempre, em Direito, "quem pode o mais, pode o menos", tanto que o destinatário da ação, quem vai julgá-la definitivamente é o Judiciário e, nem por isso, o magistrado pode investigar ele mesmo, pessoal e diretamente. A teoria dos poderes implícitos continua validade para cada órgão administrativo, obedecendo as atribuições conferidas por lei. E isso não é por acaso: é assim em função de garantias que se quer trazer para o acusado, sendo a maior delas a impessoalidade do acusador, conforme se lerá adiante. Mais uma ilustração de que a máxima nem sempre é aplicável é o procedimento especial do Júri, onde após as alegações finais, o magistrado tem quatro possibilidades: pronunciar, impronunciar, absolver e desclassificar; ora, se tem o poder de absolver, que é o mais, porque não julga o mérito de uma só vez, que é o menos? Se tem o poder de desclassificar, afastando o processo penal da competência do Júri, por que não reclassifica assim que pode, expedindo o mérito, já que acompanhou todo o processo? Porque a lei entende que não pode ser o mesmo magistrado, ainda que o processo perca muito de sua cognição, sendo enviado a outro julgador. Mas aquele, originário, passou a não ter mais competência para condenar um réu que não cometera crime doloso contra a vida, mas tinha para absolver sumariamente, duas decisões de mérito equivalentes. Nem sempre, portanto, poder mais é poder menos, deve-se distinguir a qualidade, profundidade e natureza de ambos os atos, assim com o Ministério Público que tem, deveras, o poder de acusar, mas não de investigar;

b) o que significa requisição? – pela lição dos mestres em processo penal, Frederico Marques, Eduardo Espínolla Filho, Hélio Tornaghi, Borges da Rosa, entre tantos outros clássicos, requisição diferencia-se de requerimento sendo que este é um pedido, uma solicitação passível de ser negada, enquanto a requisição é uma determinação, juridicamente impermeável à negativas. O Ministério Público pode, como o magistrado, requisitar a instauração de Inquérito Policial, sempre que tiver conhecimento de um fato criminal que precise ser apurado, termos em que o delegado de polícia não poderá deixar de instaurar o Inquérito requisitado. Ora, se é assim, a lei nos deu uma forte pista sobre o que queria para o Ministério Público: se este pode determinar, sem possibilidade de esquivas, a inauguração de procedimento investigativo, não pode o próprio Parquet investigar, porque senão seria outra a dicção legal. Se o CPP prevê que, quando o Ministério Público quer ver aberto um inquérito, precisa se socorrer de uma requisição, significa que não prevê e até afasta a possibilidade de investigação criminal direta, pois senão poderia o delegado negar a abertura de Inquérito e o próprio promotor interessado conduzir as investigações, hipótese descartada em nosso ordenamento.

c) onde está a imparcialidade? – no curso do processo, o Ministério Público é parte e é fiscal. Situação única e bela em nosso ordenamento processual brasileiro, temos uma instituição que não só é interessada na promoção da justiça, como fiscaliza a regularidade do próprio processo: única, porque não temos paralelo com outros pólos processuais que atuam em nome próprio ou de terceiros em substituição processual, mas nunca defendendo a lisura do pleito requerido pela própria parte. É isto que o Ministério Público faz – detém a titularidade da ação penal, requerendo a condenação do acusado, mas pode a qualquer momento, convencer-se do contrário e requerer a absolvição, ou seja, o Parquet tem uma missão tão nobre que eles mesmo é fiscal de seus atos e imputações. Quando acreditar que mereça a liberdade, a redução de pena, a progressão em sentenças demasiadamente severas, pode também o Ministério Público deduzir suas razões em grau recursal por meio de uma apelação a favor do réu, que o próprio órgão ministerial ajudou a condenar. A Constituição reservou o panteão da legalidade ao Ministério Público, deixando à ponderação de cada promotor de justiça a reserva ética de suas atitudes que têm forte eco no ordenamento jurídico. Entretanto, não se pode negar que o Parquet, processualmente falando, é parte e as partes devem guardar equivalência, pelo princípio da isonomia processual. Não pode o advogado de defesa do investigado apontar ao delegado o que e quando deve fazer, como deve diligenciar, quando seria mais conveniente, quais os próximos passos da investigação, isto porque adotamos um sistema misto, onde a fase do Inquérito é essencialmente inquisitiva e não contraditória. Como, processualmente, o Ministério Público Acusador não vale mais do que a Defesa, e além disso, tem mais o ônus de ser imparcial, deve se afastar do Inquérito, de modo a que as forças mantenham-se equivalentes, equilibradamente medidas, sem que nenhuma das partes tenha prerrogativas sobre a outra. Em outras palavras, o Ministério Público é parte imparcial, se se pode permitir o trocadilho;

d) princípio da legalidade? – interessante é a argumentação de que não há nenhuma vedação expressa do legislador constitucional ao poder investigativo do Ministério Público. Curioso porque, no funcionalismo público, inverte-se a primado penal para outro mais severo que é o administrativo. Em direito penal, tudo é permitido, quando não negado ou tipificado pela lei; em direito administrativo, pode apenas o funcionário público agir em consonância com a lei e não ao seu alvitre, quando não proibido. Só deve fazer o expressamente permitido, o que está claramente apontado pela lei, não deve inovar em matéria legislativa que não compete ao funcionário, não pode exceder-se, extravasar a sua atribuição, nem mesmo supondo que é para o bem social. Portanto, não estar proibido não é argumento para o excesso ministerial, quando, ao contrário, é freio.


6. Conclusões

I. Não há, no sistema processual pátrio, juízo de instrução, pelo qual o titular da ação prepararia documentos, depoimentos e outras provas para apresentar a denúncia num segundo momento. O sistema constitucional vigente é bifásico e autônomo, diverso, portanto dos da França, Portugal, Espanha e Alemanha;

II. Incumbe ao Ministério Público da União ou dos Estados, promover a ação penal pública, baseada ou não em um Inquérito Policial, sendo este prescindível ou dispensável, quando chegue a notícia ao órgão ministerial já munida de elementos suficientes que justifiquem a ação penal;

III. Não há, tanto na Constituição da República, como em nenhuma legislação infraconstitucional, nem mesmo a Lei Orgânica do Ministério Público, hipótese expressa de promoção concorrente ou privativa de diligências investigativas ou mesmo a formação de um Inquérito Policial completo;

IV. Pela dicção expressa, clara e objetiva da Carta Magna, compete às polícias presidir e conduzir um Inquérito Policial, inaugurado por meio de requerimento, portaria, auto de prisão em flagrante ou mesmo de requisição de magistrado ou do Ministério Público, que não pode ser negada;

V. Não pode exorbitar o Ministério Público o que a lei não permitiu expressamente, ainda que com objetivos notoriamente éticos e empenhados no combate ao crime organizado. Por duas oportunidades consecutivas, o Parlamento Brasileiro negou a hipótese de poder o Ministério Público ter mais uma atribuição que é conduzir/presidir inquéritos penais;

VI. Constitui-se, portanto, crime de usurpação de função pública, ao conduzir o promotor de justiça ou procurador de justiça, um inquérito penal, onde a atribuição pública pela presidência é da autoridade policial, não exclusiva mas privativamente, ainda que a expressão não venha consignada desta forma na Carta Magna;

VII. Convém ao Ministério Público, cioso da defesa da sociedade por meio do incremento do aparelho preventivo e repressivo de combate ao crime, pressionar o Poder Executivo e Legislativo a fim de aparelhar eficientemente a polícia civil para prevenir e combater o crime organizado e não se arrogar de mais uma atribuição que o legislador não quis lhe conferir; convém não usar do falacioso e puritano argumento de que a polícia se corrompe mais facilmente, e que a instituição do Parquet seria imune às tentativas de infiltração do crime organizado – não é argumento válido por seu cunho discriminatório e míope, na medida em que um delegado de polícia não tem os mesmos subsídios de um promotor de justiça ;

VIII. Quando atuar o promotor de justiça presidindo ou conduzindo o inquérito concorrentemente, as provas produzidas serão inválidas a sustentar futura ação penal, passível de habeas corpus para o seu trancamento, sendo constragimento ilegal a perspectiva de punição viciada por provas colhidas pela própria parte no processo penal, ainda em fase indiciária;

IX. Além de ser inválida a prova, o promotor de justiça que atuou diretamente no inquérito policial está impedido, sendo nula a condução da ação penal conseqüente;


ANEXO

INFORMATIVO 307 DO STF COM O VOTO DISCUTIDO - TRANSCRIÇÃO

RHC 81.326-DF*

RELATOR : MIN. NELSON JOBIM

EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. MINISTÉRIO PÚBLICO. INQUÉRITO ADMINISTRATIVO. NÚCLEO DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL E CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL/DF. PORTARIA. PUBLICIDADE. ATOS DE INVESTIGAÇÃO. INQUIRIÇÃO. ILEGITIMIDADE.

1. PORTARIA. PUBLICIDADE

A Portaria que criou o Núcleo de Investigação Criminal e Controle Externo da Atividade Policial no âmbito do Ministério Público do Distrito Federal, no que tange a publicidade, não foi examinada no STJ.

Enfrentar a matéria neste Tribunal ensejaria supressão de instância. Precedentes.

2. INQUIRIÇÃO DE AUTORIDADE ADMINISTRATIVA. ILEGITIMIDADE.

A Constituição Federal dotou o Ministério Público do poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial (CF, art. 129, VIII).

A norma constitucional não contemplou a possibilidade do parquet realizar e presidir inquérito policial.

Não cabe, portanto, aos seus membros inquirir diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime.

Mas requisitar diligência nesse sentido à autoridade policial. Precedentes.

O recorrente é delegado de polícia e, portanto, autoridade administrativa.

Seus atos estão sujeitos aos órgãos hierárquicos próprios da Corporação, Chefia de Polícia, Corregedoria.

Recurso conhecido e provido.

Relatório: O recorrente MARCO AURÉLIO VERGÍLIO DE SOUZA, Delegado de Polícia, foi notificado pelo representante do MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL, para comparecer ao Núcleo de Investigação Criminal e Controle Externo da Atividade Policial, a fim de ser ouvido no Procedimento Administrativo Investigatório Supletivo - PAIS, através do ofício 313/00 de 11 de abril de 2000 (fls. 03 e 57).

Este procedimento tem por finalidade apurar fato que, em tese, configura crime, não esclarecido.

Contra essa requisição, o recorrente impetrou HABEAS no TJ/DF (fls. 03).

O mesmo foi indeferido (fls. 56).

O recorrente impetrou HABEAS substitutivo de recurso ordinário no STJ (fls. 02/18).

O STJ indeferiu (fls. 95).

Está na ementa:

"............................

Tem-se como válidos os atos investigatórios realizados pelo Ministério Público, que pode requisitar esclarecimentos ou diligenciar diretamente, visando à instrução de seus procedimentos administrativos, para fins de oferecimento de denúncia.

............................." (fls. 95).

Contra essa decisão, interpôs o presente recurso (fls. 98/115).

Nele, reproduz os argumentos deduzidos no HABEAS do STJ.

Está nas razões:

"............................

No ofício notificação (Ofício nº 313/00-NICCEAP, do MPDF, de 11.04.2000, que veio desacompanhado de contrafé, e sem os requisitos do art. 352, do CPP, está evidentemente implícito, o crime de desobediência (art. 352, CPP) e a condução coercitiva (art. 218, CPP), posto que requisita a apresentação do corrente.

... a Portaria n. 799, de 21.11.96, do chefe do MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL, que criou e instalou o NÚCLEO DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL E CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL, não foi publicada no diário oficial, contrariando os seguintes dispositivos legais que preconizam o PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE: Art. 37, caput, CF; Art. 5º, I, ‘h’, LC 75/93; Art. 5º, V, ‘b’, LC 75/93; Art. 1º, LICC, DL 4657/42; Art. 6º, LICC, DL 4657/42.

.............................

... a nossa tese é no sentido de que o Parquet não pode realizar, diretamente, tais investigações, mas requisitá-las à autoridade policial... " (fls. 100 e 105).

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL apresentou contra-razões (fls. 119/127).

Leio:

"............................

... o acórdão impugnado não tratou, em momento algum, da legalidade ou ilegalidade da portaria do Ministério Público Federal e Territórios que criou o Núcleo de Investigação e Controle Externo da Atividade Policial. Tampouco mencionou a legalidade ou ilegalidade da notificação do Paciente para que comparecesse ao referido núcleo.

... deveria o Recorrente ter oferecido embargos declaratórios para que o Colendo Superior Tribunal de Justiça se manifestasse sobre o tema. Não o tendo feito, a defesa deixou que a tal matéria precluísse, não podendo ser objeto de apreciação neste recurso.

.............................

A intenção da defesa, ao alegar a ausência de publicidade da portaria que criou o Núcleo de Investigação e Controle Externo da Atividade Policial, é anular a notificação feita pelo membro do Parquet para que o Paciente comparecesse à sede do MPDFT para ser ouvido.

... independentemente da legalidade ou ilegalidade da portaria em questão, a Lei Complementar nº 75/93 permite aos membros do Ministério Público da União ‘expedir notificação e intimações necessárias aos procedimentos e inquéritos que instaurar...’ (art. 8º, VII).

... amparado o ato notificatório em Lei Complementar, torna-se inócua a discussão a respeito da publicidade da portaria de criação do núcleo de controle da atividade policial.

Com relação aos poderes investigatórios do Ministério Público, ressalta-se que o inquérito policial tem como destinatário o membro do Parquet, porquanto o Ministério Público é o titular da ação penal pública.

... pode o Parquet ‘notificar testemunhas e requisitar sua condução coercitiva, no caso de ausência injustificada; requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades da Administração Pública direta ou indireta; requisitar informações e documentos a entidades privadas; realizar inspeções e diligências investigatórias, expedir notificações e intimações necessárias aos procedimentos e inquéritos que instaurar’ (incisos I, II, IV, V, VI, VII, do art. 8º, da LC 75/93).

A Constituição Federal, art. 129, I, diz competir, privativamente, ao Ministério Público promover a ação penal pública. Esta atividade depende, para o seu efetivo exercício, da colheita de elementos que demonstrem a certeza da existência do crime e indícios de que o denunciado é o seu autor.

A obtenção destes elementos pode ser feita diretamente pelo Ministério Público, pela Polícia Judiciária ou por outros Órgãos que, em razão de suas atividades, possa colher elementos embasadores de uma ação penal.

Entender-se que a investigação dos fatos delituosos é atribuição exclusiva da polícia, na verdade, inverteria os papéis constitucionalmente definidos, tornando as polícias, civil e federal, no âmbito das suas atribuições, em verdadeiros titulares da ação penal, na medida em que o Ministério Público somente poderia denunciar aqueles fatos ilícitos que as polícias entendessem por bem investigar, cabendo-lhes decidir, em última análise, em quais casos, quando e como, o Ministério Público poderia agir.

............................." (fls. 120/122).

A PGR opinou no sentido do não provimento do recurso (fls. 142).

É o relatório.

Voto: O RECURSO tem por objetivo modificar a decisão do STJ que reconheceu validade à requisição expedida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO/DF.

Essa requisição pretendia fazer o RECORRENTE comparecer ao Núcleo de Investigação Criminal e Controle Externo da Atividade Policial, a fim de ser ouvido em Procedimento Administrativo Investigatório Supletivo (PAIS).

Analiso os fundamentos.

FALTA DE PUBLICIDADE DA PORTARIA.

A falta de publicidade da Portaria nº 799, de 21 de novembro de 1996, que criou o Núcleo de Investigação Criminal e Controle Externo da Atividade Policial, no âmbito do MINISTÉRIO PÚBLICO, embora suscitada perante o STJ, não foi examinada (fls. 03 e 24).

Leio, no parecer do MINISTÉRIO PÚBLICO:

"............................

...o acórdão impugnado não tratou, em momento algum, da legalidade ou ilegalidade da portaria do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, que criou o Núcleo de Investigação e Controle Externo da Atividade Policial. Tampouco mencionou a legalidade ou ilegalidade da notificação do Paciente para que comparecesse ao referido núcleo.

... deveria o Recorrente ter oferecido embargos declaratórios, para que o Colendo Superior Tribunal de Justiça se manifestasse sobre o tema. Não o tendo feito, a defesa deixou que a tal matéria precluísse, não podendo ser objeto de apreciação neste recurso.

............................." (fls. 120).

Confirmo no Voto do Relator, Ministro GILSON DIPP:

"............................

Trata-se de habeas corpus contra decisão do e. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, que denegou ordem impetrada em favor do paciente, visando ao trancamento do procedimento administrativo contra ele instaurado pelo Ministério Público local, para a apuração de crime que, em tese, o paciente teria cometido.

Em razões, reitera-se alegação de ausência de justa causa para constranger o paciente e comparecer ao Núcleo de Investigação a fim de depor. Sustenta-se, da mesma forma, que o procedimento instaurado pelo Ministério Público seria inconstitucional, afrontando ao Princípio do Devido Processo Legal, eis que a apuração do fato caberia à Polícia, por meio de inquérito policial.

............................." (fls. 85).

O RECORRENTE não lançou mão dos embargos para sanar a omissão.

Ressuscitar a matéria, agora, caracterizaria supressão de instância.

Precedentes: HC 66.825, CARLOS MADEIRA; HC 71.603, HC 73.390 e HC 70.734, CARLOS VELLOSO; HC 76.966, MAURÍCIO CORRÊA; HC 79.948, NELSON JOBIM e HC 81.458, SEPÚLVEDA PERTENCE.

Ocorreu a preclusão.

FALTA DE LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO.

Quanto à falta de legitimidade do MINISTÉRIO PÚBLICO para realizar diretamente investigações e diligências em procedimento administrativo investigatório, com fim de apurar crime cometido por funcionário público, no caso DELEGADO DE POLÍCIA, a controvérsia não é nova.

Faço breve exposição sobre sua evolução histórica.

Em 1936, o Ministro da Justiça VICENTE RÁO, tentou introduzir, no sistema processual brasileiro, os juizados de instrução.

A Comissão da Segunda Secção do Congresso Nacional do Direito Judiciário, composta pelos Ministros BENTO DE FARIA, PLÍNIO CASADO e pelo Professor GAMA CERQUEIRA, acolheu a tese no anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal.

Ela, entretanto, não vingou.

Na exposição de motivos do Código de Processo Penal o Ministro FRANCISCO CAMPOS ponderou acerca da manutenção do inquérito policial.

Leio, em parte, a ponderação:

"............................

... O preconizado juízo de instrução, que importaria limitar a função da autoridade policial a prender criminosos, averiguar a materialidade dos crimes e indicar testemunhas, só é praticável sob a condição de que as distâncias dentro do seu território de jurisdição sejam fácil e rapidamente superáveis.... ".

Prossigo.

A POLÍCIA JUDICIÁRIA é exercida pelas autoridades policiais, com o fim de apurar as infrações penais e a sua autoria (CPP, art. 4º).

O inquérito policial é o instrumento de investigação penal da POLÍCIA JUDICIÁRIA.

É um procedimento administrativo destinado a subsidiar o MINISTÉRIO PÚBLICO na instauração da ação penal.

A legitimidade histórica para condução do inquérito policial e realização das diligências investigatórias, é de atribuição exclusiva da polícia.

Nesse sentido, leio em ESPÍNOLA FILHO:

"... a investigação da existência do delito e o descobrimento de vários participantes de tais fatos, reunindo os elementos que podem dar a convicção da responsabilidade, ou irresponsabilidade dos mesmos, com a circunstância, ainda, de somente nessa fase se poderem efetivar algumas diligências de atribuição exclusiva da polícia,... " (grifei)

Com essa orientação, há precedente de NELSON HUNGRIA, neste Tribunal (RHC 34.827).

Leio, em seu Voto:

"................................. o Código de Processo Penal... não autoriza, sob qualquer pretexto, semelhante deslocação da competência, ou, seja, a substituição da autoridade policial pela judiciária e membro do M.P. na investigação do crime...

..............................".

Até a promulgação da atual Constituição, o MINISTÉRIO PÚBLICO e a POLÍCIA JUDICIÁRIA tinham seus canais de comunicação na esfera infraconstitucional.

A harmonia funcional ocorria através do Código de Processo Penal e de leis extravagantes, como a Lei Complementar 40/81, que disciplinava a Carreira do MINISTÉRIO PÚBLICO.

Na Assembléia Nacional Constituinte (1988), quando se tratou de questão do CONTROLE EXTERNO DA POLÍCIA CIVIL, o processo de instrução presidido pelo MINISTÉRIO PÚBLICO voltou a ser debatido.

Ao final, manteve-se a tradição.

O Constituinte rejeitou as Emendas 945, 424, 1.025, 2.905, 20.524, 24.266 e 30.513, que, de um modo geral, davam ao MINISTÉRIO PÚBLICO a supervisão, avocação e o acompanhamento da investigação criminal.

A Constituição Federal assegurou as funções de POLÍCIA JUDICIÁRIA e apuração de infrações penais à POLÍCIA CIVIL (CF, art. 144, § 4º).

Na esfera infraconstitucional, a Lei Complementar 75/93, cingiu-se aos termos da Constituição no que diz respeito às atribuições do MINISTÉRIO PÚBLICO (art. 7º e 8º).

Reservou-lhe o poder de requisitar diligências investigatórias e instauração do inquérito policial (CF, art. 129, inciso VIII)

Ainda assim, a matéria estava longe de ser pacificada.

Leio:

".............................

... Proposta de Emenda Constitucional em trâmite no Congresso Nacional brasileiro, relacionada com a questão do controle externo da atividade policial,... a de n. 109, também de 1995, de autoria do Deputado Federal Coriolano Sales, que se propõe a alterar a redação dos incs. I e VIII, do art. 129, da Constituição da República. A exemplo da anterior, em 03 de junho de 1997, esta também foi apensada à Proposta de Emenda Constitucional 059/95.

Com a alteração da redação do inc. I, do citado art. 129, da Constituição da República, a Proposta pretende incluir a instauração e direção do inquérito como uma das funções institucionais do Ministério Público.

..............................

Em março de 1999, o Senador Pedro Simon apresentou nova Proposta de Emenda Constitucional, sob o n. 21, acrescentando parágrafo único, ao art. 98, da Constituição da República, disciplinando que nas infrações penais de relevância social, a serem definidas em lei, a instrução será feita diretamente perante o Poder Judiciário, sendo precedida de investigações preliminares, sob a direção do Ministério Público, auxiliado pelos órgãos da polícia judiciária."

Prossigo eu.

O Tribunal enfrentou a matéria (RE 233.072, NÉRI DA SILVEIRA).

Na linha do Voto que proferiu na ADIn 1.571, o Relator entendia que o MINISTÉRIO PÚBLICO tinha legitimidade para desenvolver atos de investigação criminal.

Divergi.

Leio, em parte, o que sustentei em meu Voto.

".............................

... quando da elaboração da Constituição de 1988, era pretensão de alguns parlamentares introduzir texto específico no sentido de criarmos, ou não, o processo de instrução, gerido pelo MINISTÉRIO PÚBLICO.

Isso foi objeto de longos debates na elaboração da Constituição e foi rejeitado.

... o tema voltou a ser discutido quando, em 1993, votava-se no Congresso Nacional a lei complementar relativa ao MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO e ao MINISTÉRIO PÚBLICO DOS ESTADOS, em que havia essa discussão do chamado processo de instrução que pudesse ser gerido pelo MINISTÉRIO PÚBLICO.

Há longa disputa entre o MINISTÉRIO PÚBLICO, a POLÍCIA CIVIL e a POLÍCIA FEDERAL em relação a essa competência exclusiva da polícia de realizar os inquéritos.

Lembro-me que toda essa matéria foi rejeitada, naquele momento, no Legislativo...

..............................".

Acompanharam-me os Ministros MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO, compondo a maioria.

Redigi o acórdão.

Está na ementa:

"............................

O Ministério Público (1) não tem competência para promover inquérito administrativo em relação à conduta de servidores públicos; (2) nem competência para produzir inquérito penal sob o argumento de que tem possibilidade de expedir notificações nos procedimentos administrativos; (3) pode propor ação penal sem o inquérito policial, desde que disponha de elementos suficientes. Recurso não conhecido."

A polêmica continuou.

O CONTROLE EXTERNO DA POLÍCIA, concedido ao MINISTÉRIO PÚBLICO pela Constituição foi regulamentado pela Resolução nº 32/97, do CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL.

A Constituição Federal dotou o MINISTÉRIO PÚBLICO do poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial (CF, art. 129, inciso VIII).

A norma constitucional não contemplou, porém, a possibilidade do mesmo realizar e presidir inquérito penal.

Nem a Resolução 32/97.

Não cabe, portanto, aos seus membros, inquirir diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime.

Mas, requisitar diligência à autoridade policial.

Nesse sentido, decidiu a Segunda Turma (RECR 205.473, CARLOS VELLOSO).

Leio na ementa:

".............................

I. - Inocorrência de ofensa ao art. 129, VIII, C.F., no fato de a autoridade administrativa deixar de atender requisição de membro do Ministério Público no sentido da realização de investigações tendentes à apuração de infrações penais, mesmo porque não cabe ao membro do Ministério Público realizar, diretamente, tais investigações, mas requisitá-las à autoridade policial, competente para tal (C.F., art. 144, §§ 1º e 4º). Ademais, a hipótese envolvia fatos que estavam sendo investigados em instância superior.

.............................."

Do Voto de VELLOSO destaco:

".............................

... não compete ao Procurador da República, na forma do disposto no art. 129, VIII, da Constituição Federal, assumir a direção das investigações, substituindo-se à autoridade policial, dado que, tirante a hipótese inscrita no inciso III do art. 129 da Constituição Federal, não lhe compete assumir a direção de investigações tendentes à apuração de infrações penais (C.F., art. 144, §§ 1º e 4º).

.............................."

Prossigo.

O RECORRENTE é DELEGADO DE POLÍCIA.

Autoridade administrativa, portanto.

Seus atos administrativos estão sujeitos aos órgãos hierárquicos próprios da Corporação, Chefia de Polícia, Corregedoria etc.

DECISÃO.

Dou provimento ao RECURSO.

Anulo a requisição expedida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, por faltar-lhe legitimidade.

Em conseqüência, anulo o próprio expediente investigatório criminal instaurado por ele, para ouvir o RECORRENTE.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAHON, Eduardo. O Ministério Público de Robespierre. O caso polêmico do GAECO. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 117, 29 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4459. Acesso em: 26 abr. 2024.