Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/45907
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Afeto: o novo dogma do Direito da Família

Afeto: o novo dogma do Direito da Família

Publicado em . Elaborado em .

A família no século XX sofreu transformações axiológicas, de maneira que cada integrante passou a ter seus direitos individualizados e protegidos pelo Estado, que passou a reconhecê-la como um instituto mantido por laços de afetividade.

INTRODUÇÃO

São vários os sentimentos que os seres humanos podem ter uns com os outros. Dentre estes, o amor é o principal sentimento capaz de motivar uma pessoa a conviver com outra, a dar assistência a seus filhos e, por fim, constituir uma família.

O amor, figurado como relações de afeto entre pessoas, é considerado como o principal elemento que originou a atual concepção de família.

A família passou por mudanças radicais no século XX. Estas mudanças tiveram como fruto a valorização do individualismo nos integrantes da família, fazendo com que antigas diretrizes sucumbissem com o advento do afeto no seio familiar.

A família contemporânea provocou a necessidade de transformações legais no Direito da Família, que, em consequência, originou novos princípios para orientá-la. Dentre estes princípios, há o princípio da afetividade, o qual tornou-se o principal fundamento de aferição das lides de família.

Para chegar a este entendimento, nada melhor do que conhecer a instituição da família contemporânea no Brasil e seus efeitos no ordenamento jurídico.


1. FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA E SUAS GARANTIAS LEGAIS

1.1 A FAMÍLIA NO SÉCULO XX

Singly (2007) divide a história da família contemporânea em dois períodos, primeira modernidade, do séc. XIX até o ano de 1960, e segunda modernidade, de 1960 em diante.

 Na primeira, a família se forma a partir de um casamento baseado no amor e o casal se voltava para os cuidados com a criança, envolvendo os aspectos afetivos, de saúde e de educação. A divisão do trabalho entre marido e mulher era clara: ele provia o lar e ela se incumbia da casa e dos filhos. Predominava a visão de que a família composta por pais casados e seus filhos eram famílias estruturadas enquanto as outra eram desestruturadas.

Apenas era considerada como família as uniões estabelecidas pelo do matrimônio. Isto ocorreu com a influência que a Igreja exerceu com o Direito Canônico, “ordenamento jurídico da Igreja católica Apostólica Romana [...] a denominação ‘canônico’ deriva da palavra kánon (regra, norma), com a qual originariamente se indicava qualquer prescrição relativa a fé ou à ação cristã [...]”( Wald, p.46).

Em consequência, apenas eram legítimas as uniões monogâmicas constituídas pelo casamento, instituto sacralizado pela igreja católica imprescindível para a criação da família. Desta maneira, o homem e a mulher apenas poderiam manter relações íntimas apenas com o fim de procriar e com apenas uma pessoa de sexo distinto, devendo a esta ser fiel até à dissolução do casamento, com a morte.

Quanto as uniões que fugiam à regra, não eram, portanto, consideradas como famílias. Desta maneira, as famílias poderiam ser consideradas formal e informal.

A família formal era a composta por união matrimonial e heterossexual junto com seus filhos. Nesta vigorava o sistema patriarcal, no qual o poder familiar se concentrava nas mãos do pai onde seu desejo prevalecia sobre a da mãe e de seus filhos. O homem, administrador do lar, era quem mantinha financeiramente a família, enquanto a mulher era quem cumpria os deveres domésticos e de criação dos filhos, cuja filiação apenas era reconhecida quando consanguínea.

Em relação à família informal, com o objetivo de elevar a família ao status divino, a igreja passou a se dedicar na luta com tudo que a pudesse pôr em risco. O que tornou as uniões livres, o aborto, o adultério, os filhos adulterinos e os relacionamentos homoafetivos como problemas sociais a serem combatidas ferozmente pela igreja por serem contrárias aos seus dogmas.

Em contrapartida, na segunda modernidade, o modelo anterior começa a ser combatido, por influências do feminismo e da lei do divórcio, e o trabalho assalariado feminino ganha importância na perspectiva de realização social as relações se fundamentam na felicidade individual.

Singly (2007) destaca que a partir dos anos sessenta, foram evidenciadas mudanças da família: diminuição no número de casamentos, aumento das uniões livres, aumento dos divórcios, das separações, crescimento de famílias monoparentais e de famílias recompostas, diminuição do número de nascimentos, aumento de nascimentos fora do casamento, aumento do trabalho assalariado das mulheres e aumento do número de casais inseridos no mercado de trabalho.

Roudinesco (2003) aponta que a concepção de família se transformou com o advento das novas ciências humanas, sociologia, antropologia e psicologia, introduzindo uma nova realidade estrutural aos sistemas de parentesco.

O processo de industrialização trouxe às mulheres a oportunidade de adentrar no ambiente de trabalho, até então de domínio exclusivo dos homens. Esta mudança propiciou a melhoria nas condições de vida, expansão do trabalho assalariado para ambos os sexos. O casamento se tornou um pacto consentindo onde prevalece uma vida afetiva no cotidiano familiar.

A valoração do filho também foi modificada. Este deixou ser uma coisa submissa à vontade de seus pais (Roudinesco, 2003) e tornou-se um integrante da família merecedor de educação, saúde e afeto. O privilegio entre irmão desaparece, e instala-se a preocupação da igualde entre irmãos, mesmo quando não forem do mesmo sangue.

Giddens (2007) aponta uma mudança nas relações em direção à busca de um “relacionamento puro”, não estando ligado ao sentido de pureza sexual, mas a um vínculo emocional próximo e continuado com outra pessoa, que teria como pressuposto a manutenção da relação enquanto estivessem satisfeitas as necessidades pessoais. A sexualidade, já desvinculada da reprodução, teria agora a qualidade de proporcionar a felicidade, numa perspectiva de amor e respeito.

Quanto à sexualidade, houve uma revolução também. Para alcance da felicidade as relações de afeto e as concepções de união também deveriam ser modificadas. A criação de métodos contraceptivos permitiu que o sexo não fosse mais considerado como um ato de procriação, mas sim, como um ato de afeto a ser praticado por duas pessoas que se amam. À mulher também foi permitido a escolha de quando engravidar e com quem quer te filho, tornando a autônoma para decidir sobre a própria vida. Em relação à família, além do exposto, os métodos contraceptivos permitiram o livre planejamento, desta forma, o casal poderia escolher quantos filhos quer de acordo com a situação financeira da família.

Em relação à identidade sexual, a buscas pela felicidade afetiva encorajou a pretensão de casais homossexuais a estabelecer uma união considerada como família. Giddens (2007, p. 197) aponta que o processo de emancipação sexual da sociedade levou a reconhecer que a “sexualidade normal”, até então atribuída à heterossexualidade, seja apenas uma escolha de vida, “ O reconhecimento de diversas tendências sexuais corresponde à aceitação de uma pluralidade de possíveis estilos de vida, o que vem a ser uma atitude política. ”

A qualificação da família contemporânea, em virtude da complexidade alcançada, é difícil. No entanto, Rodrigo da Cunha Pereira com sabias palavras, qualifica a família contemporânea:

A família é vista não como um bloco, mas um agrupamento de individualidades. E o que sustenta não é mais o patrimônio, mas sim o amor. Especificamente em alguns institutos jurídicos que eu considero que evoluíram, estão evoluindo e que tem muito ainda a amadurecer, que são notadamente a paternidade socioafetiva - que podemos ampliar a expressão para parentalidade socioafetiva -; a concepção de famílias formadas por pessoas do mesmo sexo; e também a idéia de famílias unipessoais, além da criação de novas expressões como relações homoafetivas, famílias binucleares, família pluriparentais, mosaicos... todas estas expressões são conseqüências e inovações dessas mudanças paradigmáticas. (2005 apud Antunes, 2010, p. 31).

Destarte, a família contemporânea se tornou “individualista”. Para Singly (2007, p.35), “ a família moderna é uma instituição na qual os membros têm uma individualidade maior dos que nas famílias existentes anteriormente”. Todas as pessoas que constituem a família possuem liberdade de pensar, tendem a procurar a satisfação no ambiente familiar, se preocupa com os outros integrantes da família e os respeita.

1.2 DIREITO DA FAMÍLIA E SEUS AVANÇOS

1.2.1 EVOLUÇÃO LEGAL DA FAMÍLIA ANTES DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

A Código Civil de 1916 é lembrado como patrimonialista e discriminatório pois, conforme exposto anteriormente no início do século XX, prevalecia a influência do Direito Canônico que interferia em nossa cultura e ordenamento jurídico.

Fachin (2003), afirma que ser sujeito de direito significava ser “sujeito de patrimônio”, ou seja, ter muitos bens. Valoriza mais o “ter” do que o “ser” e direcionava-se aos grandes proprietários. Sendo assim, não foram codificados institutos que a sociedade da época não dava importância, como o modo de apropriação de bens e a vida em comunhão.

Àquela época, para ser legítima, a família teria que ser constituída através casamento, sua dissolução ocorria apenas com a morte, vigorava o sistema patriarcal, capacidade da mulher era relativa e os vínculos extramatrimoniais, como também os filhos ilegítimos, não recebiam a tutela protetiva do Estado.

Prova disso é a presença de dispositivos que designava o marido como o único chefe da sociedade conjugal[1] e a função de colaboradora dos encargos familiares a mulher.[2]

Quanto a filiação, havia a clara distinção entre os filhos legítimos e ilegítimos, naturais e adotivos no meio familiar e sucessório. De tal maneira, o filho ilegítimo reconhecido por um cônjuge apenas poderia viver no mesmo teto que este com o consentimento do outro cônjuge[3] e os filhos adotados não participava da sucessão hereditária.[4]

A guarda foi outro instituto que carregou os ideais conservadores àqueles que não respeitavam as diretrizes matrimoniais. A culpa era o elemento norteador que definia o cônjuge sucumbente. Maria Berenice Dias (2011, p. 439) enfatiza:

Para a identificação da guarda, identificava-se o cônjuge culpado, não ficava ele com os filhos. Eram entregues como prêmio, verdadeira recompensa ao cônjuge “inocente”, punindo-se o culpado pela separação com a pena da perda da guarda da prole.

Felizmente, com o passar do tempo, aos poucos o legislador passou a dar atenção as mudanças sociais que ocorreram na metade do século XX, e passou a legislar em favor destes.

Em 1949 entrou em vigor a Lei n° 883, que trata sobre o reconhecimento de filhos ilegítimos. A lei permitiu o reconhecimento dos filhos através de ação de reconhecimento de filiação, possibilitando o pedido de alimentos provisionais e inclusive o direito à herança, o que gerou a igualdade de direitos entre os filhos independente da natureza da filiação.

Em relação a mulher e seus direitos na família, em 1962, foi publicada a Lei n° 4.121, o Estatuto da Mulher Casada, que versava sobre a situação jurídica da mulher casada. Este devolveu a plena capacidade à mulher casada e deferiu-lhe bens reservados que asseguravam a ela a propriedade exclusiva com os bens adquiridos com o seu trabalho.

Quanto ao casamento, houve um avanço importante no que concerne ao instituto do matrimônio e seu sacramento. Em 1977, o divórcio virou realidade no Brasil através da EC 9/77 e da Lei 6.515/77. A primeira terminou com a indissolubilidade do casamento, extinguindo a ideia da família como instituição sacralizada (Dias, 2011, p.30), e a segunda viabilizou o divórcio, desde completados 5 anos da separação de fato, concedeu à mulher o direito de optar ou não pelo uso do nome de família do seu cônjuge e a comunhão parcial de bens status de regime legal.

Outra novidade foi a Lei n° 6.697/79, que regulou a assistência proteção e vigilância de menores, denominada como Código de Menores. Com essa lei, foi criada a adoção plena, reconhecendo os direitos sucessórios ao adotado, deferindo a este a metade dos bens que cabe ao filho legítimo.

Verifica-se que, pela metade do século, o estado passou a reconhecer, diante das variedades de fatos intocados pelo estado, direitos em favor de uma parcela grande da população que necessitava de assistência, qual seja a mulher e o filho. Embora fossem poucas as mudanças legislativas na época, estas representaram o início para formar um ideal mais liberal e protetivo do estado, que se constituirá com a Constituição de 1988.

1.2.2 A FAMÍLIA APÓS A CONSTITUIÇÃO DE 1988

Em 5 de outubro de 1988 foi promulgada a vigente Constituição Federal, o texto supremo que até então disciplina os princípios, direito e garantias fundamentais em nossa República, quais sejam a proteção dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade solidária e a igualdade entre as pessoas a serem aplicados no âmbito familiar.

Na segunda metade do século XX, em virtude da individualização dos integrantes na família contemporânea que ocorreu, o constituinte decidiu modificar antigos ideais normativos no que se refere à família, de forma que, nas palavras de Veloso (1999), num único dispositivo, espancou séculos de hipocrisia e preconceito.

O dito dispositivo é o Art. 226 do Capítulo VII - Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. 

§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. 

§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Destarte, passaram a ser consideradas como família, além das uniões firmadas com o casamento, a união estável e a família monoparental.

Sendo união estável, a comunhão de vida entre duas pessoas com a intensão pública e notória de constituir uma família fora do regime matrimonial, e família monoparental, “ O enlaçamento dos vínculos familiares constituídos por um dos genitores com seus filhos [...]” (Dias, 2011, p. 48).

Em relação ao antigo sistema patriarcal e a indissolubilidade do casamento, estes ficaram de lado com a constitucionalização do dever igualitário entre o homem e a mulher na sociedade conjugal e do divórcio, no qual não é mais necessário haver separação antes do divórcio.

Quanto aos menores de idade, estes ganharam atenção constitucional no que se refere à sua proteção e filiação. A CF/88, em seu Art. 227, caput, responsabiliza a família, a sociedade e o Estado com o dever de assegurar àqueles o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Estas garantias foram posteriormente regulamentadas pelo Estatuto da Criança e Adolescente, Lei n° 8.069/90.

No que tange à filiação, a Carta Magna deixa bem claro que não há diferença entre os filhos, havidos ou não no casamento, ou por adoção, de forma que ambos possuem os mesmos direitos.[5]

Os idosos também não ficaram de fora e receberam especial proteção do Estado. Nos artigos 229 e 230, respectivamente, aos filhos maiores foram impostos o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade, e para a família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar, ao idoso, a participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar, bem como garantindo o direito à vida. Para regularizar estas garantidos, foi editado a Lei 10.741/2003, o Estatuto do Idoso.

A constitucionalização da família foi um feito muito importante, pois permitiu que as referidas garantias sejam aplicadas de imediato no âmbito social e jurídico. A lei maior demonstra que os princípios do direito das famílias foram se modificando de acordo com a evolução social da família, de forma que novos princípios emergiram para orientar judicialmente o instituto da família, sendo o principal destes o Princípio da Afetividade.


2. PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE E SUA EFICÁCIA JURÍDICA

2.1 NOÇÕES DE PRINCÍPIO

Para Reale (2002, p. 303), “os princípios são “verdades fundantes” de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da praxis”. Portanto, os princípios são elementos abstratos, fruto da experiência científica, histórico, social ou jurídica, com a função de orientar o caminho para a prática.

No direito, os princípios cumprem a função de orientar a incorporação das exigências de justiça e de valores éticos que constituem o suporte axiológico, conferindo coerência interna e estrutura harmônica a todo o sistema jurídico. Desta forma, os princípios encontram-se hierarquicamente acima das regras, pois estas devem ser regidas por aqueles.[6]

Antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, o constituinte teve que fazer um levantamento da experiência histórica brasileira e internacional através do direito comparado, de forma que a nova Carta Magna acompanhasse o desenvolvimento social, científico, filosófico e histórico de todas as instituições que esta posteriormente iria reger, o que levou à criação de princípios constitucionais.

Os princípios constitucionais dispõem de primazia diante da lei, sendo a primeira regra a ser invocada em qualquer processo hermenêutico, tornaram-se a porta de entrada para qualquer leitura interpretativa do direito e para a elaboração de leis infraconstitucionais.

Além dos princípios constitucionais, há os princípios gerais de direito, enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas. Esta função orientadora é notada no Art. 4° da Lei de Introdução ao Código Civil, ao disciplinar que quando a norma jurídica for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito (Reale, 2002, p. 304). Sendo assim, na prática, o juiz jamais poderá se eximir da sua função resolutiva pois, na dúvida ou na falta, os princípios sempre estarão presentes para socorre-lo.

Na CF/88, para a construção dos princípios gerais do direito, são extraídos os princípios constitucionais explícitos[7] e implícitos. Sendo estes últimos extraídos através de um processo de indução e abstração pela doutrina e jurisprudência, o que acabou por originar o princípio da afetividade.

2.2 AFETIVIDADE E SEU CONFLITO ENTRE PRINCÍPIOS

O afeto é o laço abstrato que vinculam as pessoas em razão da comunhão de vários sentimentos. Sentimentos de amor, de felicidade, de proteção, dentre outros que originam a vontade de uma pessoa querer sempre estar junto a outra, de querer manter uma união a fim de conviverem entre si.

Tomado como o princípio norteador do direito da família (Dias, 2011, p. 69), embora não tenha sido citado pelo Direito Pátrio como princípio ou fundamento, as conquistas alcançadas pela família, no que se refere à constitucionalização da união estável, da igualdade de filiação independente de sua origem, do dever de amparo e auxílio ao filho e ao idoso pelos familiares, por fim, da dignidade da pessoa humana, demonstrando a intensão do constituinte a elevar a afetividade em princípio jurídico.

O princípio da afetividade é o símbolo de reconhecimento da família contemporânea, esta que segue um modelo eudemonista[8] e igualitário, com maior espaço para o afeto e a realização individual (Carbonera, 1999). Desta feita, o princípio da afetividade é importantíssimo, pois quebra paradigmas, trazendo a concepção da família de acordo com o meio social (Tartuce, 2006, p. 11).

Entretanto, o problema do conflito de princípios dificulta os efeitos do princípio da afetividade. Não há hierarquia entre princípios, e muitas vezes sobre o mesmo caso, mais de um são aplicáveis. É o que ocorre constantemente com o conflito entre o princípio da afetividade e os princípios da monogamia e da legalidade.

O Princípio da Monogamia proíbe o matrimônio com mais de uma pessoa e determina que haja fidelidade recíproca do homem com a esposa e vice-versa. Dessa forma, é imposto que todas as relações de afeto, comunhão, carnais, de deveres e obrigações sejam realizadas com apenas um cônjuge.

No ordenamento jurídico brasileiro, o preceito monogâmico influenciou o Estado a considerar a bigamia como crime[9], da mesma forma, o Código Civil de 2002, impede o casamento de mais de duas pessoas[10], anula a doação feita pelo adúltero a seu cúmplice[11], a infidelidade servia de fundamento para ação de separação[12] e às uniões paralelas, ou concubinas, não eram emprestados efeitos jurídicos[13].

Embora não esteja explícito pela norma, era considerado como dogma no direito da família no período em que o Estado determinava que a família apenas poderia ser constituída através do casamento. Hoje, este princípio não passa de um sistema de regras morais que vem perdendo a força com o passar do tempo.

Já o princípio da legalidade, diferente do princípio da monogamia, encontra-se explícito em nossa Carta Magna ao disciplinar que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (Art. 5°, II). Desta maneira, presume-se estar em lei todos os fundamentos e garantias sociais em nosso ordenamento jurídico, que devem ser seguidos por todos os cidadãos e utilizada como fonte de direito pelos juízes.

Entretanto, diante de omissões e inconstitucionalidades na norma, esta acaba por se tornar objeto de conflito entre princípios. É o que ocorre, por exemplo, com a não regularização da união homoafetiva no Código Civil, ou quanto à diferenciação entre a sucessão do casamento e união estável, tornando uma mais benéfica que a outra quando a constituição fixa a isonomia entre os dois institutos.

Para a resolução destes conflitos, é imperioso buscar auxílio junto ao princípio da razoabilidade. Quando dois princípios incidem sobre determinado fato, o conflito é solucionado levando-se em consideração o peso relativo de cada um. E se ao final, não for possível alcançar a solução, outro princípio emergirá, o da dignidade da pessoa humana (Dias, 2011, p. 59).

2.3 A EFICÁCIA DO PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE.

Para verificar a eficácia do princípio em contexto, imperioso é estudar as decisões dos tribunais.

A chamada “adoção à brasileira” ocorre quando o companheiro “adota” o filho da companheira registrando-o como se fosse seu descendente. Tal ato caracteriza a filiação socioafetiva, por não diferenciar a filiação biológica pela afetiva, e é irreversível por ser constituído através de registro público, salvo ser houver vício de consentimento[14]. É o que ocorre no seguinte caso julgado:

DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. EXAME DE DNA. AUSÊNCIA DE VÍNCULO BIOLÓGICO. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. RECONHECIMENTO. "ADOÇÃO À BRASILEIRA". IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. 1. A chamada "adoção à brasileira", muito embora seja expediente à margem do ordenamento pátrio, quando se fizer fonte de vínculo socioafetivo entre o pai de registro e o filho registrado, não consubstancia negócio jurídico vulgar sujeito a distrato por mera liberalidade, tampouco avença submetida a condição resolutiva consistente no término do relacionamento com a genitora. 2. Em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal de 1988, o êxito em ação negatória de paternidade depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na convivência familiar. Vale dizer que a pretensão voltada à impugnação da paternidade não pode prosperar quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva. 3. No caso, ficou claro que o autor reconheceu a paternidade do recorrido voluntariamente, mesmo sabendo que não era seu filho biológico, e desse reconhecimento estabeleceu-se vínculo afetivo que só cessou com o término da relação com a genitora da criança reconhecida. De tudo que consta nas decisões anteriormente proferidas, dessume-se que o autor, imbuído de propósito manifestamente nobre na origem, por ocasião do registro de nascimento, pretende negá-lo agora, por razões patrimoniais declaradas. 4. Com efeito, tal providência ofende, na letra e no espírito, o art. 1.604 do Código Civil, segundo o qual não se pode "vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro", do que efetivamente não se cuida no caso em apreço. Se a declaração realizada pelo autor, por ocasião do registro, foi uma inverdade no que concerne à origem genética, certamente não o foi no que toca ao desígnio de estabelecer com o infante vínculos afetivos próprios do estado de filho, verdade social em si bastante à manutenção do registro de nascimento e ao afastamento da alegação de falsidade ou erro. 5. A a manutenção do registro de nascimento não retira da criança o direito de buscar sua identidade biológica e de ter, em seus assentos civis, o nome do verdadeiro pai. É sempre possível o desfazimento da adoção à brasileira mesmo nos casos de vínculo socioafetivo, se assim decidir o menor por ocasião da maioridade; assim como não decai seu direito de buscar a identidade biológica em qualquer caso, mesmo na hipótese de adoção regular. Precedentes. 6. Recurso especial não provido. (STJ - REsp: 1352529 SP 2012/0211809-9, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 24/02/2015, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/04/2015)

No que se refere à guarda, a jurisprudência já decidiu que, no sentido de observar o melhor interesse da criança no que ser refere à assistência material e afetiva, é possível a concessão de guarda de menor aos avós, provando que o instituto não se limita apenas aos genitores:

DIREITO DE FAMÍLIA. GUARDA DE MENOR PLEITEADA POR AVÓS. POSSIBILIDADE. PREVALÊNCIA ABSOLUTA DO INTERESSE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE OBSERVADA. 1. É sólido o entendimento segundo qual mesmo para fins de prequestionamento, a oposição de embargos de declaração não prescinde de demonstração da existência de uma das causas listadas no art. 535 do CPC, inocorrentes, no caso. 2. No caso em exame, não se trata de pedido de guarda unicamente para fins previdenciários, que é repudiada pela jurisprudência. Ao reverso, o pedido de guarda visa à regularização de situação de fato consolidada desde o nascimento do infante (16.01.1991), situação essa qualificada pela assistência material e afetiva prestada pelos avós, como se pais fossem. Nesse passo, conforme delineado no acórdão recorrido, verifica-se uma convivência entre os autores e o menor perfeitamente apta a assegurar o seu bem estar físico e espiritual, não havendo, por outro lado, nenhum fato que sirva de empecilho ao seu pleno desenvolvimento psicológico e social. 3. Em casos como o dos autos, em que os avós pleiteiam a regularização de uma situação de fato, não se tratando de “guarda previdenciária”, o Estatuto da Criança e do Adolescente deve ser aplicado tendo em vista mais os princípios protetivos dos interesses da criança. Notadamente porque o art. 33 está localizado em seção intitulada “Da Família Substituta”, e, diante da expansão conceitual que hoje se opera sobre o termo “família”, não se pode afirmar que, no caso dos autos, há, verdadeiramente, uma substituição familiar. 4. O que deve balizar o conceito de “família” é, sobretudo, o princípio da afetividade, que “fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico”. (STJ , Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 15/09/2009, T4 - QUARTA TURMA)

O princípio da afetividade vai além da área cível. O Estatuto da Criança e do Adolescente sofreu recente reforma, através da Lei 12.962/2014, para incluir a garantia de visitas periódicas ao pai ou mãe presos, independentemente de autorização judicial[15]. Desta forma, com o objetivo de garantir a convivência familiar entre a apenada e o filho com o filho, foi decidida que aquela não fosse transferida para outro presídio:

AGRAVO EM EXECUÇÃO. TRANSFERÊNCIA DE PRESÍDIO. DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR. Ainda que o direito de visita ao preso não seja absoluto, deve ser considerada a importância da convivência entre pais e filhos, a fim de concretizar o princípio da afetividade, seja para desenvolvimento da criança, bem como para facilitar a ressocialização da condenada. Embora a transferência ou a permanência de presos dependam da conveniência da Administração Pública, no caso, não há demonstrativos de que a medida adotada pelo Juízo singular seja imprescindível para manutenção da segurança no estabelecimento prisional. Assim, em juízo de ponderação, mais razoável a permanência da agravante na casa prisional em que cumpre pena, a fim de evitar obstaculização ao direito da infante de conviver com sua genitora, mormente a considerar que se trata de prisão cautelar. AGRAVO PROVIDO. POR MAIORIA. (Agravo Nº 70064864432, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jayme Weingartner Neto, Julgado em 24/06/2015).

Caso interessante que faz referência à existência de uniões paralelas, ou seja, comunhão de vida existente com duas pessoas com o objetivo de constituir família. Na presença de duas ou mais uniões estáveis constituídas em períodos diferentes, sem saber se há prevalência entre elas, cabe a divisão do acervo patrimonial adquirido na constância do convívio em partes iguais, o que resultado no que o desembargador Rui Portanova denomina de “triação”. O seguinte julgado demonstra a possibilidade de efeito proporcional entre o princípio da afetividade e monogamia:

APELAÇÃO. UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO. RECONHECIMENTO. PARTILHA. "TRIAÇÃO". ALIMENTOS PARA EX-COMPANHEIRA E PARA O FILHO COMUM. Viável reconhecer união estável paralela ao casamento. Precedentes jurisprudenciais. Caso em que restou cabalmente demonstrada a existência de união estável entre as partes, consubstanciada em contrato particular assinado pelos companheiros e por 03 testemunhas; e ratificada pela existência de filho comum, por inúmeras fotografias do casal junto ao longo dos anos, por bilhetes e mensagens trocadas, por existência de patrimônio e conta bancária conjunta, tudo a demonstrar relação pública, contínua e duradoura, com claro e inequívoco intento de constituir famílias e vida em comum. Reconhecimento de união dúplice que impõe partilha de bens na forma de "triação", em sede de liquidação de sentença, com a participação obrigatória da esposa formal. Precedente jurisprudenciais. Ex- companheira que está afastada há muitos anos do mercado de trabalho, e que tem evidente dependência econômica, inclusive com reconhecimento expresso disso no contrato particular de união estável firmado entra as partes. De rigor a fixação de alimentos em prol dela. Adequado o valor fixado a título de alimentos em prol do filho comum, porquanto não comprovada a alegada impossibilidade econômica do alimentante, que inclusive apresenta evidentes sinais exteriores de riqueza. Apelo do réu desprovido. Apelo da autora provido. Em monocrática (TJ-RS - AC: 70039284542 RS, Relator: Rui Portanova, Data de Julgamento: 23/12/2010, Oitava Câmara Cível).

O afeto também prevaleceu no julgamento do Recurso Especial n° Nº. 1.183.378/RS, da relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão. A decisão foi um divisor de águas ao possibilitar a habilitação para o casamento entre pessoas do mesmo sexo, fundamentando-a com a atual concepção de família, restando definitivamente superada a questão quanto à possibilidade de reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo.[16]


3. CONCLUSÃO

Com o advento do movimento individualista e da família contemporânea, a família deixou de ser um instituto apoiado em antigas regras morais influenciadas pelo sacrilégio, patrimônio, machismo e preconceito, e passou a ser norteado pelas relações de afeto existentes entre os companheiros, independente de gênero, e seus filhos, independente de sua origem, através de diversas formas de família.

Esta nova família originou novos princípios a serem conferidos pelo julgador ao proferir suas decisões, principalmente no que se refere à utilização do princípio da afetividade como principal fundamento, prova de que o afeto tornou-se o novo dogma no direito da família.

Como pôde ser observado através da jurisprudência, o princípio da afetividade, princípio implícito originado da interpretação doutrinária na Constituição Federal, conseguiu incluir em nosso ordenamento jurídico os laços de amor existente entre as pessoas como prova suficiente reconhecer a existência de famílias, o que acaba por reconhecer também que o Direito da Família constitui-se de sentimentos.


REFERÊNCIAS:

CARBONERA, Silvana Maria. O papel jurídico do afeto nas relações de família. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.). Anais do I Congresso Brasileiro de Direito de Família. Repensando o direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. P. 485-512.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, 9ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

BRASIL. LEI N.º 3.071, de 1 de janeiro de 1916. Institui o Código Civil.

_______. DECRETO-LEI N° 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal.

_______. Lei N° 6.515, de 26 de dezembro de 1977. Regula os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento, seus efeitos e respectivos processos, e dá outras providências.

_______. Lei N° 6.697, de 10 de outubro de 1979. Institui o Código de Menores.

_______. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988.

_______. LEI N° 8.069, de 13 de julho de 1990. Institui o Estatuto da Criança e do Adolescente.

_______.LEI N.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil.

_______. LEI N° 10.741, de 1 de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências.

FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

HOLANDA, Aurélio Buarque. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Paraná: Editora Positivo, 2010.

GIDDENS, A. Mundo em descontrole. Rio de janeiro: Record. 2007

ANTUNES, Ana Lúcia Marinônio de Paula. “Sentença vem de sentimento”: sobre a subjetividade dos atores jurídicos em Varas de Família. 2010. 139 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2010.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito, 27° ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

ROUDINESCO, E. A família em desordem. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

TARTUCE, Flávio. Novos princípios do direito de família brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1.069, 5 jun. 2006.

VELOSO, Zeno. “Homossexualidade e Direito”. In jornal O Liberal. Belém do Pará, 22 maio 1999.

SINGLY, F. Sociologia da família contemporânea. Rio de Janeiro: FGV, 2007.

WALD, Arnoldo. O novo direito da família. São Paulo: Saraiva, 2002


Notas

[1]Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal. Compete-lhe: 

I- a representação legal da família; 

II - a administração dos bens comuns e dos particulares da mulher, que ao marido competir administrar em virtude do regime matrimonial adotado, ou de pacto antenupcial; 

III - o direito de fixar e mudar o domicílio da família; 

IV - o direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do teto conjugal; 

V - prover a mantença da família, guardada a disposição do art. 277. 

[2]Art. 240. A mulher assume, pelo casamento, com os apelidos do marido, a condição de sua companheira, consorte e auxiliar nos encargos de família.

[3]Art. 359. O filho ilegítimo, reconhecido por um dos cônjuges, não poderá residir no lar conjugal sem o consentimento do outro.

[4] Art. 377. A adoção produzirá os seus efeitos ainda que sobrevenham filhos ao adotante, salvo se, pelo fato do nascimento, ficar provado que o filho estava concebido no momento da adoção. 

[5] Art. 227.

[...]

§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

[6] Maria Berenice Dias. Manual de Direito da Família, p. 58.

[7] Como exemplo de princípio explícito, há o princípio da dignidade da pessoa humana no seguinte dispositivo constitucional:

Art. 1°. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito federal constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento:

[...]

III – a dignidade da pessoa humana;

[8] Expressão que, na sua origem grega, se liga ao adjetivo feliz e denomina a doutrina que admite ser a felicidade individual ou coletiva o fundamento da conduta humana moral, isto é, que são moralmente boas as condutas que levam à felicidade.

[9] Art. 235 - Contrair alguém, sendo casado, novo casamento:  Pena - reclusão, de dois a seis anos.

[10] Art. 1.521. Não podem casar:

[...]

VI – as pessoas casadas;

[11] Art. 550. A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal.

[12] Art. 1.572. Qualquer dos cônjuges poderá propor a ação de separação judicial, imputando ao outro qualquer ato que importe grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum.

[13] Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.

[14] Art. 1.604. Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.

[15] Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.

[...]

§ 4o Será garantida a convivência da criança e do adolescente com a mãe ou o pai privado de liberdade, por meio de visitas periódicas promovidas pelo responsável ou, nas hipóteses de acolhimento institucional, pela entidade responsável, independentemente de autorização judicial.

[16] DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO (HOMOAFETIVO). INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e1.565 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO EXPRESSA AQUE SE HABILITEM PARA O CASAMENTO PESSOAS DO MESMO SEXO. VEDAÇÃOIMPLÍCITA CONSTITUCIONALMENTE INACEITÁVEL. ORIENTAÇÃOPRINCIPIOLÓGICA CONFERIDA PELO STF NO JULGAMENTO DA ADPF N. 132/RJ EDA ADI N. 4.277/DF. 1. Embora criado pela Constituição Federal como guardião do direito infraconstitucional, no estado atual em que se encontra a evolução do direito privado, vigorante a fase histórica da constitucionalização do direito civil, não é possível ao STJ analisar as celeumas que lhe aportam "de costas" para a Constituição Federal, sob pena de ser entregue ao jurisdicionado um direito desatualizado e sem lastro na Lei Maior. Vale dizer, o Superior Tribunal de Justiça, cumprindo sua missão de uniformizar o direito infraconstitucional, não pode conferir à lei uma interpretação que não seja constitucionalmente aceita. 2. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADPF n.132/RJ e da ADI n. 4.277/DF, conferiu ao art. 1.723 do Código Civil de 2002 interpretação conforme à Constituição para dele excluir todo significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família. 3. Inaugura-se com a Constituição Federal de 1988 uma nova fase do direito de família e, consequentemente, do casamento, baseada na adoção de um explícito poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse núcleo doméstico chamado "família", recebendo todos eles a "especial proteção do Estado". Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do casamento - diferentemente do que ocorria com os diplomas superados - deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade. 4. O pluralismo familiar engendrado pela Constituição -explicitamente reconhecido em precedentes tanto desta Corte quanto do STF - impede se pretenda afirmar que as famílias formadas por pares homoafetivos sejam menos dignas de proteção do Estado, se comparadas com aquelas apoiadas na tradição e formadas por casais heteroafetivos. 5. O que importa agora, sob a égide da Carta de 1988, é que essas famílias multiformes recebam efetivamente a "especial proteção do Estado", e é tão somente em razão desse desígnio de especial proteção que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, ciente o constituinte que, pelo casamento, o Estado melhor protege esse núcleo doméstico chamado família. 6. Com efeito, se é verdade que o casamento civil é a forma pela qual o Estado melhor protege a família, e sendo múltiplos os "arranjos" familiares reconhecidos pela Carta Magna, não há de ser negada essa via a nenhuma família que por ela optar, independentemente de orientação sexual dos partícipes, uma vez que as famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas por casais heteroafetivos, quais sejam, a dignidade das pessoas de seus membros e o afeto. 7. A igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito à auto-afirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias. Em uma palavra: o direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito à diferença. Conclusão diversa também não se mostra consentânea comum ordenamento constitucional que prevê o princípio do livre planejamento familiar (§ 7º do art. 226). E é importante ressaltar, nesse ponto, que o planejamento familiar se faz presente tão logo haja a decisão de duas pessoas em se unir, com escopo de constituir família, e desde esse momento a Constituição lhes franqueia ampla liberdade de escolha pela forma em que se dará a união. 8. Os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar. 9. Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus representantes eleitos, não poderia mesmo "democraticamente" decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário - e não o Legislativo - que exerce um papel contra majoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias. Dessa forma, ao contrário do que pensam os críticos, a democracia se fortalece, porquanto esta se reafirma como forma de governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos. 10. Enquanto o Congresso Nacional, no caso brasileiro, não assume, explicitamente, sua coparticipação nesse processo constitucional de defesa e proteção dos socialmente vulneráveis, não pode o Poder Judiciário demitir-se desse mister, sob pena de aceitação tácita deum Estado que somente é "democrático" formalmente, sem que tal predicativo resista a uma mínima investigação acerca da universalização dos direitos civis. 11. Recurso especial provido. (STJ, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 25/10/2011, T4 - QUARTA TURMA)


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA FILHO, Lima e Leitão Advocacia e Consultoria. Afeto: o novo dogma do Direito da Família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4586, 21 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45907. Acesso em: 18 abr. 2024.