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A possibilidade jurídica de responsabilização civil dos pais por abandono afetivo de seus filhos

A possibilidade jurídica de responsabilização civil dos pais por abandono afetivo de seus filhos

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Não se trata de obrigar o indivíduo a amar ninguém e tampouco reparar essa falta de sentimento, o que torna possível a responsabilização por abandono afetivo é a violação dos deveres jurídicos constitucionais e legais dos pais em detrimento dos filhos.

RESUMO:O presente estudo se propõe ao enfrentamento de um tema de suma importância ao Direito das Famílias, que é a responsabilidade civil dos pais pelo abandono afetivo de seus filhos. O tema encontra posicionamentos de diversas nuances, principalmente no que toca à contraposição de interesses jurídicos nessa situação, estando de um lado o direito de liberdade de escolhas dos pais e de outro o direito dos filhos a uma vida digna. Por meio de um estudo lógico e sistemático, o estudo se pauta na análise dos pontos gerais aos mais específicos do tema, iniciando pela própria concepção do direito das famílias ao atual posicionamento quanto ao dever dos pais de indenizar os filhos por danos extrapatrimoniais decorrentes do abandono afetivo. O levantamento de posições doutrinárias, fundamentos normativos e entendimentos jurisprudenciais é inegável fonte de tratamento dessa problemática e, por isso, foi o mecanismo utilizado para se chegar à conclusão de que é juridicamente possível tal responsabilização. Não se trata de obrigar o indivíduo a amar ninguém e tampouco reparar essa falta de sentimento, o que torna possível a responsabilização por abandono afetivo é a violação dos deveres jurídicos constitucionais e legais dos pais em detrimento dos cuidados e amparo à sua prole. Palavras-chaves: Direito das famílias. Responsabilidade Civil. Abandono afetivo. Deveres jurídicos dos genitores. Indenização moral.

ABSTRACT:This study aims to facing a short topic of importance to the Law on Families, which is the liability of parents for emotional neglect of their children. The theme finds placements in various nuances, especially with regard to the opposition of legal interests in this situation, with on one side the right to freedom of parental choice and the other the right of children to a dignified life. Through a logical and systematic study, the study shall be founded on the analysis of general points to more specific theme, starting with the very conception of the right of families to the current position regarding the duty of parents to indemnify the children by off-balance sheet damage caused by neglect affective. The survey of doctrinal positions, normative foundations and jurisprudential understanding is undeniable source of treatment of this problem and, therefore, was the mechanism used to arrive at the conclusion that it is legally possible such accountability. This is not to compel the individual to love anyone, nor repair this lack of feeling, which makes it possible accountability for emotional abandonment is the violation of constitutional and statutory legal duties of parents to the detriment of care and support to their offspring.Keywords: Right of families. Civil responsability. Emotional neglect. Legal duties of parents. Moral damages.


1. INTRODUÇÃO

O Direito das Famílias – expressão mais adequada aos conceitos atuais – se destina ao amparo jurídico das relações socioafetivas entre os membros de um grupo que, conjuntamente, buscam a realização de seus anseios e ideais, comumente chamada de “busca pela felicidade”.

Partindo desta concepção moderna e acertada, a função social da família tem se tornado ainda mais debatida. Os direitos e obrigações dos genitores no âmbito familiar, independentemente de serem os filhos adotados ou biológicos (princípio da não discriminação dos filhos), tem tratamento constitucional e legal, mas ainda assim carece de algumas peculiaridades que continuam em evidente lacuna normativa. Mesmo diante desta lacuna, é inegável o amparo pelo sistema jurídico brasileiro ao devido desenvolvimento dos filhos, seja física ou psiquicamente.

O que se tem discutido com maior frequência é a violação a esses deveres jurídicos dos genitores e suas consequências. De um lado, se encontra a liberdade de escolhas do indivíduo em estabelecer laços afetivos com quem bem entender. De outro, o amparo constitucional e legal ao bom desenvolvimento das crianças e adolescentes, garantindo-lhes sempre uma vida digna.

Responsabilizar civilmente um indivíduo por não gostar ou amar alguém parece ser um ato de total descabimento, mas permitir que esse comportamento viole direitos inerentes à própria dignidade da pessoa humana incorre em verdadeira afronta à Carta Magna brasileira. A violação a deveres jurídicos é hipótese de incidência das normas atinentes à responsabilização do indivíduo, ora de natureza penal ora de natureza civil. Este estudo se propõe a analisar esta última natureza no que toca ao comportamento dos genitores e a participação destes no desenvolvimento de seus filhos.

Assim, torna-se necessário um aprofundamento nos estudos da possibilidade de responsabilização civil dos pais pela violação de seus deveres de cuidado e amparo da sua prole, indenizando esta última pelo abandono afetivo que sofreu e que lhe trouxe danos extrapatrimoniais de significativa dimensão. E, para isso, devem ser levantados pontos de natureza jurídica, social e psicológica, justamente por ser o tema de alta complexidade. O foco deste trabalho, no entanto, será encontrar os fundamentos jurídicos que permitam tal responsabilização dos genitores, sob a perspectiva doutrinária, normativa e jurisprudencial.


2. BREVE ANÁLISE DO TRATAMENTO DA FAMÍLIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

2.1. Do conceito de família e sua evolução

    A família é o primeiro contato do indivíduo com a sociedade, sendo em virtude disso a sua proteção especial dada pela legislação vigente, conforme assevera o princípio da função social da família. A constituição da família só foi viável em virtude da superação do homem do seu estado de natureza para o estado de socialização.     A concepção de família pode ser entendida, segundo as lições do ilustre civilista Orlando Gomes, como:

O grupo fechado de pessoas, composto dos genitores e filhos, e para limitados efeitos, outros parentes, unificados pela convivência e comunhão de afetos, em uma só e mesma economia, sob a mesma direção” (GOMES, 1998, p. 33).    

No entanto, vale salientar que o conceito de família sofreu diversas alterações ao longo da história, como consequência da evolução da própria sociedade e também da conscientização dos direitos por parte dos indivíduos. Em razão disso, atualmente adota-se um entendimento mais amplo quanto ao que se entende como família, como a ideia de família eudemonista e, de acordo com essa concepção, para ser considerada família não requer que existam laços biológicos entre os indivíduos, o que caracteriza um conjunto de pessoas como família são apenas os vínculos afetivos existentes entre seus membros em conjunto com o respeito e consideração existentes entre si buscando a felicidade na relação com o outro. Percebe-se, então, uma conformidade dessa concepção com o princípio da afetividade, o qual entende que o afeto possui valor jurídico. Sendo assim, em virtude desse novo entendimento, diversas formas de famílias são plenamente admitidas, como a monoparental, as formadas por casais homoafetivos, a família pluriparental, dentre denominações variadas criadas pela doutrina pátria.

2.2. Do conceito de poder familiar e a evolução do papel dos pais

A compreensão de família se faz por completo em conjunto com o que constitui o poder familiar. Poder familiar, conforme a concepção do professor Pablo Stolze (2011, p.586), consiste no “[...] plexo de direitos e obrigações reconhecidos aos pais, em razão e nos limites da autoridade parental que exercem em face dos seus filhos, enquanto menores e incapazes”. Trata-se de um poder não susceptível de renúncia, transferência além de não prescrever e nem se alienar.

O chamado “poder familiar” é uma expressão moderna que teve como origem o denominado “pátrio poder”, oriundo do Direito Romano. Com a evolução da sociedade o papel desempenhado pelos membros de uma família e suas funções foram se alterando, sendo essa a razão da adaptação de uma expressão pela outra.

A concepção do que seria pátrio poder era vislumbrada no Código Civil de 1916, no qual a chefia da família era atribuída à figura do pai, em uma espécie de hierarquia, em razão da dominação exercida pelo mesmo, sendo somente em situações excepcionais, por razões de ausência do pai, que a mulher poderia exercer a chefia familiar. No entanto, pode-se afirmar que houve uma “despatriarcalização” no âmbito familiar, já que na atual concepção, em virtude da igualdade assegurada entre os cônjuges e companheiros nos art. 5º, I e art. 226, § 3º da Constituição Federal de 1988, assim como nos arts. 1.511 e 1.631 do Código Civil de 2002, sendo que tanto o homem quanto a mulher estão aptos a exercerem o poder familiar. Estando presente no art. 1.634 do Código Civil atual e no art. 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) o que é de competência dos pais quanto ao exercício do poder familiar.

O exercício do poder familiar compete igualmente a ambos os pais, mesmo na hipótese de fim do vínculo conjugal entre eles, não gera a extinção do poder familiar, devendo, portanto, continuar sendo exercido pelo pai e pela mãe independente de com quem esteja a guarda. Isto é, a sociedade conjugal não é condição para que seja exercido o poder familiar. Sendo que, mesmo em caso de divórcio ou de fim da união estável nada modifica em relação aos deveres do pai com o filho, conforme expressa o art. 1632 do Código Civil vigente. Segue a mesma concepção o art. 1636 do mesmo diploma ao declarar que não há modificação no poder familiar mesmo que o pai ou a mãe constitua novo vínculo familiar.

No entanto, é importante compreender que antes de existirem certos poderes que os pais possuem em relação ao filho, é necessário que haja o reconhecimento da paternidade. Isto quer dizer que, por meio do reconhecimento de filiação que os deveres em relação ao filho passam a surgir, dentre esses o de sustento, guarda e educação (art. 1.566, IV, Código Civil de 2002). O reconhecimento de filiação pode ser espontâneo ou judicial. Sendo o primeiro aquele em que o pai ou a mãe atua de modo voluntário, enquanto no judicial o meio utilizado pelo filho para obter seu reconhecimento utilizando da via judicial.

O direito ao reconhecimento da paternidade é personalíssimo, indisponível, além de ter como característica a irrevogabilidade, efeito erga omnes e ainda retroagindo, expressamente disposto no art. 1.610 do atual Código Civil até a data do nascimento, isto é, possui também efeitos ex tunc.

 O art. 227, caput da Constituição Federal em conjunto com o art. 4º do ECA, aduzem um conjunto de responsabilidades decorrentes do reconhecimento de paternidade, no entanto, não há nesses diplomas ou no Código Civil referências quanto à obrigação dos pais em dar afeto, carinho, atenção, isto é, assistência no âmbito moral e psicológico, como se a obrigação dos pais com seus filhos fossem sempre de caráter patrimonial, no entanto, é de responsabilidade dos pais não só o desenvolvimento intelectual de seus filhos, mas também o desenvolvimento psicológico e moral.Esse entendimento se faz com base no que declara a Constituição Federal de 1988 em seu art. 227:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (grifo nosso)

 A supressão dessa obrigação pode acarretar a chamada responsabilidade civil, a qual gera a obrigação dos pais indenizarem os filhos em virtude do abandono afetivo, como resultado da desobediência do dever de convívio dos pais com os filhos.


3. A FAMÍLIA SOB A ÓTICA CONSTITUCIONAL E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA)

A Carta Maior, conhecida como Constituição Cidadã, adotou medidas de proteção integral a criança e ao adolescente, tratando-os com absoluta prioridade frente aos direitos fundamentais, conforme já demonstrado pelo seu art. 227.

Contudo, esses direitos apenas foram consagrados com a aprovação da Lei 8.069, de julho de 1990, através da promulgação do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA).  O art. 3° do referido estatuto evidencia que:

Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Este artigo ressaltou que a criança e o adolescente são sujeitos de direitos, que detêm não só proteção jurídica comum a todos os cidadãos, mas “superproteção” para terem seus direitos garantidos e efetivados.

De todas as vertentes do Direito Brasileiro, o direito de família é o que está diretamente ligado às mudanças que ocorrem na sociedade. Segundo o entendido de Maria Berenice Dias (2010, p.33):

Família, apesar do que muitos dizem, não está em decadência. Ao contrário, é o resultado das transformações sociais. Houve a repersonalização das relações familiares na busca do atendimento aos interesses mais valiosos das pessoas humanas: afeto, solidariedade, lealdade, confiança, respeito e amor. Ao Estado, inclusive nas suas funções legislativas e jurisdicionais, foi imposto o dever jurídico constitucional de implementar medidas necessárias e indispensáveis para a constituição e desenvolvimento das famílias.

A família, que detêm uma proteção especial do Estado, é considerada o núcleo para o desenvolvimento do indivíduo na busca de seus anseios. Segundo Telma Fraga (2005, p. 210):

A família é a estrutura fundamental que molda o desenvolvimento psíquico da criança, uma vez que é pela excelência, o primeiro local de troca emocional e de elaboração dos complexos emocionais, que se refletem no desenvolvimento histórico da sociedade e nos fatores organizativos do desenvolvimento psicossocial.

Nesse sentido amplo de família, pode-se concluir que o desenvolvimento da criança e do adolescente está ligada, como tudo no direito de família, ao afeto, ao cuidado e ao carinho.


4. A PRINCIPIOLOGIA DO DIREITO DE FAMÍLIA

Princípios são mandamentos de otimização, que estruturam todo ordenamento jurídico pátrio. Existem princípios gerais do direito de família e princípios elencados no próprio Estatuto da Criança e do Adolescente. Dentre eles, destacam-se: o princípio da dignidade da pessoa humana, da afetividade, do planejamento familiar e da paternidade responsável, da solidariedade e da proteção integral da criança e do adolescente.

4.1. Princípio da dignidade da pessoa humana 

De todos os princípios norteadores do ordenamento jurídico, o princípio da dignidade da pessoa humana, sem sombra de dúvida é a base primordial da sociedade. Elencado no art.1°, inciso III, da Constituição Federal, este macro princípio não apenas limita a atuação do Estado, mas constitui um norte para a sua ação positiva, no sentido de inibir ações estatais que por ventura possam acarretar em atos que violem a dignidade da pessoa humana e “determinar” que o Estado ofereça o mínimo para existência humana.

A família, como núcleo de desenvolvimento pessoal, tem como base o princípio da dignidade da pessoa humana.

O artigo 227 de Constituição Federal de 1988 também destaca a importância deste princípio, ao determinar que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente o direito à dignidade.

4.2. Princípio da afetividade

No século XIX, a finalidade da família era principalmente econômica, com grande representatividade política e religiosa, que tinha como figura principal o homem (pai). Com o passar do tempo, a mulher foi conquistando seu espaço fora das atividades domésticas, mudando drasticamente as posições então definidas no ambiente familiar.

Em decorrência das mudanças, hoje, a família baseia-se principalmente por elos afetivos.  O princípio da afetividade não está expressamente previsto na Constituição Federal, mas se manifesta em todo ordenamento jurídico, como exemplo, o artigo 226, §8°, dispondo que “O Estado assegurará a assistência familiar na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.

Pode-se concluir que o afeto é o elemento essencial e primordial de qualquer núcleo familiar. Como preleciona Sérgio Resende de Barros (2004, p. 213):

Da família, o lar é o teto, cuja base é o afeto. O lar sem afeto desmorona e nela a família se decompõe. Por isso, o direito ao afeto constitui – na escala da fundamentalidade – o primeiro dos direitos humanos operacionais da família, seguido pelo direito ao lar, cuja essência é o afeto. Assim, mesmo sendo subsidiários do direito à família, o direito ao afeto e o direito ao lar são tão fundamentais quanto ele é para os demais direitos operacionais da família.    

Baseado neste princípio, a Constituição Federal veda a distinção entre filhos, uma vez que família como sinônimo de afeto deve respeito aos seus membros. A doutrina e a jurisprudência há muito tempo descartou como primordial considerar família os elos sanguíneos. A família, hoje, pode ser tanto de elos sanguíneos, como socioafetivos.

4.3. Planejamento familiar e paternidade responsável

O princípio do planejamento familiar e da paternidade responsável estão diretamente ligados, uma vez que estabelecem que a responsabilidade dos pais com os seus filhos começa com a concepção e se estende até quando for necessário e justificável, respeitando a ordem constitucional estabelecida no artigo 227 da Constituição Federal.

No artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o princípio da responsabilidade familiar foi explicitamente previsto, estabelecendo que:

Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.

A Constituição Federal estabelece que é obrigação dos pais conduzir a paternidade de forma responsável, baseada na dignidade da pessoa humana e na afetividade.

4.4. Princípio da solidariedade familiar

O princípio da solidariedade familiar nada mais é do que a cooperação mútua entre os membros da família, visando à assistência material, como alimentos, vestuários, educação, mas também a assistência imaterial, o afeto. É nesse sentido que o texto constitucional dispõe em seu art. 229, estabelecendo que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.

4.5. Princípio da proteção integral da criança e do adolescente

O artigo 227, caput, da Constituição Federal, assim como o artigo 3° do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), prevê o princípio da integral proteção da criança e do adolescente.

Para Antônio Carlos Gomes da Costa (apud CUSTÓDIO, 2006, p. 87):

A doutrina da proteção integral da criança e do adolescente afirma o valor intrínseco como ser humano; a necessidade de especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadora da continuidade de seu povo e da espécie e o reconhecimento da sua vulnerabilidade o que torna as crianças e os adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atuar através de políticas específicas para promoção e defesa de seus direitos.           

A criança e o adolescente como sujeitos de direitos e por estarem em desenvolvimento, detêm uma proteção especial do Estado, da família e da sociedade. O reconhecimento de sua vulnerabilidade é que torna imprescindível essa superproteção, no intuito que os seus direitos sejam integralmente protegidos e efetivados.


5. BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

A noção de responsabilidade consiste na ideia de resposta, termo oriundo do vocábulo verbal latino respondere, que por sua vez, possui origem na raiz latina spondeo, na qual, o devedor era vinculado nos contratos verbais no direito romano.

Quando o Direito atribui a responsabilidade a alguém, pressupõe de imediato que alguém, o responsável de um ato lesivo, comissivo ou omissivo, deve responder perante a ordem jurídica.

Conceituar a responsabilidade civil é tarefa bastante árdua para os doutrinadores, por se tratar de um tema complexo e presente em todos os campos do direito. Não obstante, é possível definir a responsabilidade civil como a consequência jurídica e patrimonial que consiste em impor àquele causador de um dano moral ou patrimonial, a reparar o dano causado a outrem. Esta obrigação de reparação pode ser imposta em razão de ato próprio ou de terceiro, de fato de coisa ou animal sob sua guarda, ou por simples previsão legal.

5.1. Evolução histórica da responsabilidade civil

Desde os primórdios, sempre que havia um fato gerador capaz de causar lesão ao patrimônio de terceiro, surgia a necessidade de reparar o dano causado. Essa reparação era realizada através de vingança coletiva contra aquele que lesionou um único integrante do grupo, por meio de retaliação física.

Logo após, surgiu a ideia de vingança individual, consistente na Lei de Talião, “olho por olho, dente por dente”. Tratava-se de vingança tarifada, retaliação física permitida por lei, era a própria retribuição do mal com o mal. O Estado estabelecia apenas o modo de retaliação que o causador do dano iria sofrer, e estas sanções estavam previstas na Lei das XII Tábuas.

Superada a fase da responsabilização com o próprio corpo, surge o momento da composição voluntária, o “preço do homem”. A Lex Aquilia de damno atribuía ao causador do dano a responsabilidade patrimonial, uma forma racional de reparar o dano com o próprio patrimônio.

Com a Idade Média nasce a distinção entre responsabilidade civil e penal, e a inclusão da culpa como fundamento da responsabilidade civil, que antes se dava somente de forma objetiva. No entanto, com a evolução da sociedade, a Teoria da Responsabilidade Civil tornou-se defasada, pois com o implemento das indústrias, maquinários e grande circulação de veículos, surge novas situações de risco, que não estavam garantidas ante a ausência do elemento culpa.

Assim, a teoria da responsabilidade civil passou a compreender a objetivação da responsabilidade, de modo a garantir as situações de risco, sem a indagação da culpa. 

A esse respeito, o Código Civil de 2002 reproduz a obrigação de indenizar no art. 927 e parágrafo único:       

Art. 927: Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem fica obrigado a repará-lo.  Parágrafo único: Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

5.2. Funções da reparação civil

Aquele que causa prejuízo a outra pessoa deverá reparar o dano causado. Destarte, o intuito da responsabilidade civil é restabelecer o status quo ante, ou se este não for possível, compensar aquele que sofreu o dano.

Trata-se de instrumento de equidade com caráter sancionatório, cuja punição possui o intuito de inibir a reiteração das práticas que causam dano, de modo a garantir o direito do lesado à segurança.

Sendo assim, é possível vislumbrar a dupla função da responsabilidade civil, qual seja o caráter compensatório, retornando sempre que possível à situação anterior ao dano, e ante a impossibilidade, a reparação pecuniária visando compensar o dano suportado pelo lesado, e o caráter punitivo, pois junto a obrigação de reparação, impõe-se o desestímulo de novas condutas lesivas.

5.3. Elementos da responsabilidade civil

    Segundo Maria Helena Diniz (2010, p. 73), os pressupostos necessários à configuração da responsabilidade civil, são: ação comissiva ou omissiva, dano moral e/ou patrimonial e nexo de causalidade.

5.3.1. Ação

O primeiro elemento constitutivo da responsabilidade é a ação ou omissão, ato causador de prejuízo a outrem, ou de terceiro que esteja sob sua responsabilidade ou de coisa que esteja sob sua guarda.

A ação pode ser lícita ou ilícita. A responsabilização de uma conduta lícita funda-se no risco (responsabilidade objetiva), já a responsabilidade decorrente de conduta ilícita funda-se na culpa, na reprovação e censura da conduta que poderia ser evitada.

5.3.2. Dano

    O dano é um dos elementos constitutivos da responsabilidade, consistente na diminuição ou destruição que por certo evento, sofre uma pessoa, contra sua vontade em seu bem jurídico, seja ele patrimonial ou moral.

Dano patrimonial é aquele suscetível de avaliação pecuniária, cujo lesado sofre em seu próprio patrimônio.

O dano moral é aquele que recai sobre os bens personalíssimos do lesado, e a avaliação pecuniária aqui não visa estabelecer um preço para a dor, mas tão somente atenuar os prejuízos sofridos.

5.3.3. Nexo de Causalidade

Para a ocorrência da responsabilidade civil, necessária se faz a presença do nexo de causalidade entre o dano e a conduta do agente. É o vínculo entre o ato lesivo (ação ou omissão) e o prejuízo sofrido por outrem.

Trata-se de elemento indispensável para configuração da responsabilidade civil, sendo a causa do dano, e ante a ausência do liame entre a conduta e o resultado, não há que se falar em responsabilidade.

Duas teorias se destacam ao tratar do tema: a primeira é a teoria da equivalência dos antecedentes, segundo a qual toda circunstância que tenha concorrido para a produção do dano é considerada como causa. Já a segunda teoria, denominada teoria da causalidade adequada, considera somente como causadora do dano as condições aptas à produção do evento.

5.4. Espécies de responsabilidade civil

Quanto ao fato gerador, a responsabilidade civil pode ser classificada em: contratual e extracontratual/aquiliana. A primeira espécie decorre do ilícito contratual, ou seja, um dos contratantes descumpre o contrato total ou parcialmente.

É o que estabelece o art. 389 do Código Civil de 2002:

 Art. 389: Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros  atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.

Assim, para que haja responsabilidade civil contratual, necessária é a presença de uma relação jurídica preexistente e sua inexecução, sendo a culpa presumida, cabendo, portanto, o ônus da prova ao devedor.

A segunda espécie de responsabilidade não decorre de contrato, mas de uma violação legal, da inobservância de regras referentes a direitos pessoais ou reais. A responsabilidade aquiliana ocorre quando por ato ilícito uma pessoa causa dano à outra (art. 927, CC), inexistindo entre as partes qualquer relação jurídica preexistente.

Quanto ao fundamento, a responsabilidade pode ser subjetiva ou objetiva. A responsabilidade subjetiva possui sua justificativa na culpa ou dolo do causador do dano, exigindo-se a comprovação da culpa do agente causador do ilícito para que surja a responsabilização.

Carlos Roberto Gonçalves (2009, p. 127), ao conceituar a responsabilidade subjetiva, põe em relevo a culpa como fundamento da responsabilidade. Em não havendo culpa, não há responsabilidade.

A responsabilidade objetiva decorre da Teoria do Risco, significa que quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar, por sua natureza, riscos para os direitos de terceiros, surge o dever de reparação independentemente da comprovação da culpa.

Quanto ao agente, a responsabilidade poderá ser direta ou indireta. A primeira consiste em atribuir ao próprio agente causador do ilícito a obrigação de reparação, respondendo desta forma por ato próprio. A segunda forma incide na responsabilização do agente em face de ato praticado por terceiro, pelo o qual o agente é responsável, por fato de animal ou de coisas inanimadas sob sua guarda.

Feita uma breve explanação do que vem a ser a responsabilidade civil, bem como sua evolução, discute-se a possibilidade de se responsabilizar os pais por abandono afetivo dos filhos, ao serem privados de assistência moral e afetiva. É evidente que o abandono afetivo pode interferir na formação da personalidade da criança e do adolescente, sendo considerada uma atitude atentatória aos direitos da personalidade consagrados na Constituição Federal, portanto, passível de reprimendas por meio de um quantum indenizatório que possui um caráter não de determinar o preço do afeto ou do amor, tampouco obrigar um pai a amar seu filho, mas lembrar os pais sobre a responsabilidade de ser pai e de se ter um filho.


6. O TRATAMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ABANDONO AFETIVO NO DIREITO PÁTRIO

O atual conceito de família vai muito além do simples fato de conviver, auxiliar e apoiar aqueles que convivem diariamente, mas possui também um sentido substancial na medida em que garanta ou pelo menos consiga propiciar a todos carinho, atenção, afeto ou seja amor.

O conceito de afetividade, para Lobo (2008, p.48) se refere a “um dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles”. 

Os atos de negligência e descaso aos direitos garantidos pela Constituição Federal e legislação infraconstitucional podem ocasionar aos filhos abalos e malefícios que muitas vezes podem ser difíceis ou até impossíveis de serem superados pelas crianças e adolescentes ao longo do tempo, fatos estes que levaram o legislador a punir os genitores que descumprem ou se esquivam da autoridade e do dever parental.

O Código Civil de 2002 traz em seu artigo 1.634 um “rol” dito como básico ou até mesmo mínimo de deveres ou obrigações que os genitores devam ter com seus filhos, trazendo certa tranquilidade a tantos direitos básicos que possivelmente, quando colocados em prática, garantem às crianças e adolescentes direitos mínimos, de forma a propiciar aos menores um crescimento ao menos parcialmente digno e eficaz.

Contudo, o legislador mais uma vez se priva a questões meramente patrimoniais, esquecendo daquilo mais importante que se deva ter em uma relação entre pais e filhos, que se trata do amor, carinho, compaixão, afeto e amizade, simples palavras do nosso cotidiano que precisam ser colocadas em relevo e, o mais importante, em prática na relação familiar.

6.1. Responsabilidade Parental

A responsabilidade parental nos dias de hoje é muito difícil de ser entendida em sua totalidade, fazendo com que muitos dos genitores afastem de seus filhos de forma intencional após a separação de seus cônjuges, em famílias monoparentais abandonando efetivamente os filhos, não exercendo o direito de visitas negligenciando, assim, com suas obrigações de convívio, assistência, criação e cuidado com os filhos.

No que se refere ao abandono dos genitores aos seus filhos, Dias (2011, p.71) preleciona:

Os pais são os responsáveis pelo gerenciamento da constituição dos laços sociais e estruturação da criança, onde deve preponderar um vínculo de afeto. Esse decorre do direito à convivência familiar como prioridade absoluta da criança e do adolescente (art. 227º, CF/88).   

Diversas são as situações que podem evidenciar o abandono afetivo de genitores com seus filhos. Podemos citar o simples pagamento de pensão alimentícia, pela qual os genitores acreditam que o pagamento pecuniário supre todas as necessidades da criança e do adolescente; o intencional descumprimento do regime de visitas por um dos genitores muitas vezes motivado pelo sentimento de vingança ao ex-cônjuge e, também, a negligência do cuidado ao filho na qual o genitor exerce com os filhos do novo cônjuge uma relação muito mais afetiva do que com os seus filhos biológicos.

Conforme institui Madaleno (2009, p. 320):

O traço marcante do abandono afetivo, consiste no descaso intencional pela criação, educação e convívio com os filhos, podendo ser nefasto para o desenvolvimento das crianças.

Viafore (2007, p. 04) complementa: 

Essa ausência injustificada origina ainda um prejuízo à formação da criança, decorrente da falta não só de afeto, mas também do cuidado e da proteção que a figura de um pai representa na vida do filho.

O atual Código Civil de 2002 traz em seus artigos 1.637 e 1.638 previsões acerca da responsabilidade dos genitores caso os mesmos não conduzam de forma eficaz e responsável a vida de seus filhos devendo sempre observar os preceitos fundamentais e constitucionais, sofrendo sanções como a destituição ou a suspensão do poder familiar em caso de desvio de suas obrigações.

Preceituam os artigos 1637 e 1638 do CC:

Art. 1.637. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha.

Art. 1.638 : Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:I- Castigar imoderadamente o filhoII- Deixar o filho em abandonoIII-  Praticar os atos contrários à moral e aos bons costumesIV- Incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente

O legislador, de certa forma, teve uma excelente intenção ao prever as sanções nos casos de abandono afetivo, trazendo no próprio código civil penalidades que devem ser aplicadas. Contudo, fica uma certa insegurança quanto a aplicação de tais regras, uma vez que essas medidas poderiam incidir como uma exclusão dos genitores de seus filhos, visto que a perda do poder familiar iria afastar ainda mais a relação pais e filhos, podendo resultar no próprio abandono afetivo.

Existem alguns projetos de lei em trâmite perante o Legislativo que visa alterar e até criar textos legislativos que endureçam as penalidades dos genitores sobre os filhos que sofrem por abandono afetivo, gerando assim uma efetividade plena na punição por tal ato. Podemos citar como exemplo desses projetos a modificação no art. 5º na Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) que visa considerar conduta ilícita, sujeita a reparação de danos, sem o prejuízo de outras sanções, a ação ou a omissão de ofensa aos direitos constitucionais da criança e do adolescente, incluindo o abando moral.

6.2. Responsabilidade por abandono afetivo e o dever de indenizar

A responsabilização civil por abandono afetivo é matéria controversa na doutrina e na jurisprudência pátria, uma vez que alguns doutrinadores acreditam e, dessa forma, defendem que a indenização não alcançará o efeito de aproximar pais e filhos, não gerando assim efeitos práticos uma vez que inexiste o dever jurídico de amar. Contudo, alguns doutrinadores defendem a tese de que a indenização por abandono afetivo não possui o viés de submeter o reestabelecimento do amor entre genitor e filho mas sim tem o objetivo de reparar o irreversível prejuízo causado ao filho pela ausência do genitor.

Alguns doutrinadores defendem que o dano causado pela ausência afetiva é, antes de tudo, um dano causado à personalidade do indivíduo. A base do direito à reparação do dano moral está formulada no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Desta forma a reparação do dano moral para os que defendem esta corrente tem dúplice objetivo, o de compensar aquele que sofre o abandono afetivo e, ao mesmo tempo, corresponde a uma sanção ao genitor. 

Nos posicionamentos de discordância sobre a possibilidade de indenização por danos morais oriundos do abandono afetivo, doutrinadores sustentam aspectos negativos que esta acarretará uma vez que a indenização em virtude do abandono afetivo poderá proporcionar uma “monetarização do Direito de Família”. O doutrinador e Procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais, Nelson Rosenvald, complementa o acima exposto defendendo que a simples violação do afeto não deve ser motivo ensejador a uma indenização por danos morais, uma vez que a conduta que gera um dano material ou moral deve ser dita como ilícita o que no caso em discussão não se enquadra, devendo assim nos casos de abandono afetivo a incidência das previsões do Código Civil para o caso em concreto, sendo possível apenas em alguns casos específicos a indenização a título de custeio de eventuais danos materiais.

O egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais tem posicionamento semelhante a este, negando o dever de indenização no caso de abandono afetivo. A referida Côrte negou seguimento ao recurso, mantendo incólume a decisão de 1ª instância, onde a turma julgadora traz que o direito se limita a impor aos pais deveres de ordem material, não incidindo assim questões como amor, afeto e carinho, não sendo assim estes institutos tutelados pelo direito.

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR ABANDONO AFETIVO - ATO ILÍCITO - AUSÊNCIA - DANO MORAL - INEXISTÊNCIA - DEVER DE INDENIZAR - INOCORRÊNCIA - SENTENÇA MANTIDA.- O Direito se limita a impor aos pais deveres de ordem material. Amor, afeto e carinho não são bens jurídicos tutelados pelo Direito, não se podendo impor aos pais uma "obrigação de amar" os seus filhos, embora o abandono moral possa ser moralmente reprovável.- A omissão do pai quanto à assistência afetiva pretendida pelo filho não se reveste de ato ilícito por absoluta falta de previsão legal, daí porque ninguém é obrigado a amar, desamar, ou a dedicar amor a outrem. (Apelação nº:1.0628.13.001301-2/001 – 29/04/2015).

Na mesma linha de raciocínio o conspícuo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul proferiu recente decisão negando seguimento ao recurso, mantendo, assim, a decisão de primeira instância, negando à autora o direito de indenização por responsabilidade civil por abandono. A 8ª Câmara Cível da referida côrte entendeu que somente é passível o dano moral na esfera civil quando o motivo ensejador se trate de ilícito o que não é o caso da situação de abandono afetivo.

APELAÇÃO CÍVEL. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL EM RAZÃO DE ABANDONO AFETIVO À FILHA. DESCABIMENTO. No Direito de Família, o dano moral é, em tese, admissível. No entanto, imprescindível que haja a configuração do ato ilícito. O distanciamento do varão em relação à filha não... Ver íntegra da ementa constitui motivo para fundamentar a indenização por dano moral, sendo tal fato um acontecimento bastante recorrente, um fato da vida, apesar de lamentável. Embora seja plausível que a autora tenha sofrido pela ausência do pai, essa situação não pode ser atribuída ao genitor somente, a ponto de levar à obrigação de indenizar. Ademais, em que pese reprovável, a conduta do demandado não se enquadra no conceito jurídico de ato ilícito, que gera o dever de indenizar. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70066058405, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 19/11/2015).

Desta forma, entendem ambas as decisões que dentro do direito civil é sempre possível o direito a indenização por dano moral, reconhecendo assim a responsabilidade e gerando o dever de indenizar. Contudo, para que a obrigação de indenizar recaia sobre o gerador do dano é necessário que a conduta deste esteja eivada de ilícito, o que atualmente em nosso ordenamento jurídico não incide no caso de abandono afetivo, por não ter este caráter de ilícito civil ou penal.

Em contraposição a opinião acima exposta, os civilistas Rolf Madaleno e Maria Berenice Dias defendem a reparação pela ausência de afeto parental, uma vez que a indenização em sua essência não tem o viés de restabelecer o amor não estabelecido, mas sim reparar o irreversível dano causado ao filho que sofreu pela ausência de um pai ou uma mãe.

Assim, os adeptos a vertente de cabimento da indenização civil pelo abandono afetivo defendem que, comprovado o comprometimento da saúde física e psicológica em razão do eventual fracasso da relação entre genitores e filhos, é possível falar em indenização por abandono afetivo. A indenização se justifica pelo embasamento constitucional e infraconstitucional do ordenamento jurídico do direito ao ressarcimento pelos danos causados à outrem, na medida em que o próprio Código Civil reproduz através de seus artigos 186 e 187 o dever do causador do dano ressarcir a pessoa lesada.

Esta corrente, que entende sobre a possibilidade jurídica de se aplicar a responsabilização civil pelo abandono afetivo dos pais, tem ganhado força na doutrina e na jurisprudência superior. O Superior Tribunal de Justiça, em decisão célebre em sede de Recurso Especial em 2012, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, entendeu pela configuração de danos extrapatrimoniais decorrentes do abandono afetivo dos filhos. Nesse sentido, in verbis:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE.1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família.2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88.3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia - de cuidado - importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico.4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social.5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial.6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada.7. Recurso especial parcialmente provido.(REsp 1159242/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012)

Seguindo a referida decisão, ao Superior Tribunal de Justiça editou o Informativo nº. 496, consolidando seu posicionamento acerca do tema:

Informativo nº 0496

Terceira Turma DANOS MORAIS. ABANDONO AFETIVO. DEVER DE CUIDADO. O abandono afetivo decorrente da omissão do genitor no dever de cuidar da prole constitui elemento suficiente para caracterizar dano moral compensável. Isso porque o non facere que atinge um bem juridicamente tutelado, no caso, o necessário dever de cuidado (dever de criação, educação e companhia), importa em vulneração da imposição legal, gerando a possibilidade de pleitear compensação por danos morais por abandono afetivo. Consignou-se que não há restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e ao consequente dever de indenizar no Direito de Família e que o cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento pátrio não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas concepções, como se vê no art. 227 da CF. O descumprimento comprovado da imposição legal de cuidar da prole acarreta o reconhecimento da ocorrência de ilicitude civil sob a forma de omissão. É que, tanto pela concepção quanto pela adoção, os pais assumem obrigações jurídicas em relação à sua prole que ultrapassam aquelas chamadas necessarium vitae. É consabido que, além do básico para a sua manutenção (alimento, abrigo e saúde), o ser humano precisa de outros elementos imateriais, igualmente necessários para a formação adequada (educação, lazer, regras de conduta etc.). O cuidado, vislumbrado em suas diversas manifestações psicológicas, é um fator indispensável à criação e à formação de um adulto que tenha integridade física e psicológica, capaz de conviver em sociedade, respeitando seus limites, buscando seus direitos, exercendo plenamente sua cidadania. A Min. Relatora salientou que, na hipótese, não se discute o amar - que é uma faculdade - mas sim a imposição biológica e constitucional de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerar ou adotar filhos. Ressaltou que os sentimentos de mágoa e tristeza causados pela negligência paterna e o tratamento como filha de segunda classe, que a recorrida levará ad perpetuam, é perfeitamente apreensível e exsurgem das omissões do pai (recorrente) no exercício de seu dever de cuidado em relação à filha e também de suas ações que privilegiaram parte de sua prole em detrimento dela, caracterizando o dano in re ipsa e traduzindo-se, assim, em causa eficiente à compensação. Com essas e outras considerações, a Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, deu parcial provimento ao recurso apenas para reduzir o valor da compensação por danos morais de R$ 415 mil para R$ 200 mil, corrigido desde a data do julgamento realizado pelo tribunal de origem. (REsp 1.159.242-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 24/4/2012).

Sendo assim, a jurisprudência tem passado a demonstrar posicionamento favorável e acertado no que tange tal responsabilidade. O voto da ministra Nancy Andrighi configura em verdadeira aula de Direito das Famílias Moderno. Como muito bem dito, não há que se falar em se discutir o amar ou torna-lo obrigatório, visto ser uma faculdade. O que se espera dos pais, em verdade, tem base biológica e jurídica, ligado ao dever constitucional de cuidar da prole, garantindo-lhe sua dignidade.

O ordenamento jurídico concede às pessoas o arbítrio, a liberdade em gerar e adotar filhos, mas tal escolha não pode ser descabida. Mais do que embrião, feto, corpo físico, tem-se uma vida em jogo e a omissão de cuidado pode gerar danos de dimensão significativa, tornando deficiente o desenvolvimento da criança e do adolescente.Evidentemente, assim como em qualquer outra ocasião, a responsabilidade civil deve ser nítida, palpável, fortemente demonstrada em juízo. A mera ausência dos pais do convívio do filho não deve gerar, por si só, a possibilidade de responsabilização civil por abandono afetivo. O nexo de causalidade entre a omissão de cuidado dos pais pelo afastamento da vida da criança e do adolescente deve ser demonstrado, devendo ser este abandono o verdadeiro causador dos danos de natureza psicológica, mental, física ou emocional do filho. É nesse sentido que recente decisão do Superior Tribunal de Justiça se posiciona:

CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ABANDONO AFETIVO. OFENSA AO ART. 535 DO CPC. INOCORRÊNCIA. ALEGADA OCORRÊNCIA DO DESCUMPRIMENTO DO DEVER DE CUIDADO. NÃO OCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DA CONFIGURAÇÃO DO NEXO CAUSAL. APLICAÇÃO DA TEORIA DO DANO DIRETO E IMEDIATO. PREQUESTIONAMENTO INEXISTENTE NO QUE TANGE AOS ACORDOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS. INCIDÊNCIA DAS SÚMULAS Nº.s 282 E 235 DO STF. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO CARACTERIZADO. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO.[...] 2. Considerando a complexidade dos temas que envolvem as relações familiares e que a configuração de dano moral em hipóteses de tal natureza é situação excepcionalíssima, que somente deve ser admitida em ocasião de efetivo excesso nas relações familiares, recomenda-se uma análise responsável e prudente pelo magistrado dos requisitos autorizadores da responsabilidade civil, principalmente no caso de alegação de abandono afetivo de filho, fazendo-se necessário examinar as circunstâncias do caso concreto, a fim de se verificar se houve a quebra do dever jurídico de convivência familiar, de modo a evitar que o Poder Judiciário seja transformado numa indústria indenizatória. (grifo nosso)3. Para que se configure a responsabilidade civil, no caso, subjetiva, deve ficar devidamente comprovada a conduta omissiva ou comissiva do pai em relação ao dever jurídico de convivência com o filho (ato ilícito), o trauma psicológico sofrido (dano a personalidade), e, sobretudo, o nexo causal entre o ato ilícito e o dano, nos termos do art. 186 do CC/2002. Considerando a dificuldade de se visualizar a forma como se caracteriza o ato ilícito passível de indenização, notadamente na hipótese de abandono afetivo, todos os elementos devem estar claro e conectados. (grifo nosso)4. Os elementos e as peculiaridades dos autos indicam que o Tribunal a quo decidiu com prudência e razoabilidade quando adotou um critério para afastar a responsabilidade por abandono afetivo, qual seja, o de que o descumprimento do dever de cuidado somente ocorre se houver um descaso, uma rejeição ou um desprezo total pela pessoa da filha por parte do genitor, o que absolutamente não ocorreu.5. A ausência do indispensável estudo psicossocial para se estabelecer não só a existência do dano mas a sua causa, dificulta, sobremaneira, a configuração do nexo causal. Este elemento da responsabilidade civil, no caso, não ficou configurado porque não houve comprovação de que a conduta atribuída ao recorrido foi a que necessariamente causou o alegado dano à recorrente. Adoção da teoria do dano direto e imediato.[...] (REsp 1557978/DF, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/11/2015, DJe 17/11/2015)

Portanto, em consonância do que foi demonstrado como entendimento doutrinário e jurisprudencial, principalmente da Côrte Superior, é inegável a possibilidade de responsabilizar pais pelo abandono afetivo de sua prole. Mas, em contrapartida, não se pode tornar tal medida descabida de razoabilidade. Para sua verdadeira e justa configuração, será imprescindível a demonstração do nexo de causalidade entre a conduta do genitor e os danos ao filho “abandonado”.


7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todo tratamento teórico realizado no decorrer do trabalho, apresentando conceitos doutrinários, posicionamentos variados acerca do tema basilar, fundamentações jurídicas e entendimentos jurisprudenciais, foi possível verificar pontos importantes e essenciais no estudo da responsabilidade civil por abandono afetivo.

O Direito das Famílias, mais do que diversos ramos da seara jurídica, contempla a característica de estar em constante mutação, acompanhando o contexto social em que é aplicado e, sobretudo, almejando a cada dia mais a proteção dessa instituição que é a base de qualquer sociedade, qual seja a família.

O ordenamento jurídico brasileiro confere ao indivíduo liberdade de escolha entre gerar um filho ou adotá-lo, sendo característica do Direito das Famílias justamente a intervenção mínima do Estado na gestão da família. Ocorre que ao optar por ser pai ou mãe, o indivíduo é incumbido legalmente por diversas obrigações, seja de cunho constitucional ou infraconstitucional.

São essas obrigações, também denominados de deveres jurídicos, que servem de base à responsabilidade do genitor por abandono afetivo. Como muito bem demonstrado alhures, o sujeito de direitos e obrigações não pode ser obrigado a amar, gostar ou ter apreço e carinho por alguém por vontade estatal, pois isto restaria em verdadeira violação à sua liberdade de escolhas. Isso não seria diferente em relação aos filhos.

Contudo, no momento em que o sistema jurídico pátrio preceitua e impõe obrigações a serem respeitadas pelos genitores nos mais variados diplomas normativos (Constituição Federal, Código Civil, Estatuto da Criança e do Adolescente), a violação a esses deveres jurídicos, seja por ação ou omissão, configura em verdadeiro ato ilícito. E, sem dúvidas, todo ato ilícito, ao causar danos ou prejuízos a outrem, será suscetível de reparação, inclusive de natureza extrapatrimonial.

É nesse sentido que a senhora ministra do Superior Tribunal de Justiça Nancy Andrighi fundamentou seu célebre voto pela possibilidade de responsabilizar o genitor por danos morais oriundos do abandono afetivo. Permitir que o “estado jurídico” de pai ou mãe seja dotado apenas de natureza patrimonial ou que possam os genitores simplesmente se ausentarem de seus deveres jurídicos de forma descabida, seria uma afronta absoluta à dignidade dos filhos, prejudicando seu devido desenvolvimento e gerando danos significativos que carregarão por toda a vida.

Portanto, sendo possível vislumbrar os requisitos da responsabilidade civil (ação ou omissão, dano e nexo de causalidade), os genitores devem se sujeitarem ao pagamento de indenização por danos morais decorrentes da omissão do dever de cuidado e amparo aos seus filhos, omissão essa também denominada de abandono afetivo.

Evidentemente, a comprovação dos requisitos deve ser sólida e precisa, principalmente no nexo de causalidade que comprove que o abandono afetivo foi o verdadeiro causador dos danos ao filho. Isto porque permitir que filhos, principalmente os representados, ingressem com ações judiciais apenas pelo desejo de vingança contra o genitor ou, ainda, pelo anseio patrimonial, seria abrir as portas para oportunistas que em nada se atentam ao fim em que essa tese jurídica se propõe, que é o amparo da dignidade da pessoa humana destes filhos afetivamente abandonados.


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