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A proteção da pessoa portadora de deficiência pelo Estado brasileiro

A proteção da pessoa portadora de deficiência pelo Estado brasileiro

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SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1.NOÇÕES GERAIS SOBRE ESTADO; 2.A DEFINIÇÃO DE ESTADO E ALGUMAS CONSIDERAÇÕES; 3.ENTENDENDO O ESTADO LIBERAL E O NEOLIBERAL; 4.A POLÍTICA SOCIAL E O ESTADO MODERNO (NEOLIBERAL); 5.A PROTEÇÃO DA PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA PELO ESTADO BRASILEIRO; CONCLUSÃO; BIBLIOGRAFIA


INTRODUÇÃO

É sabido que os direitos fundamentais apresentam como pressupostos a existência de uma esfera individual de atuação frente ao Poder Público, a existência de uma comunidade política integrada e de uma Constituição que a regulamente, tanto no âmbito da estrutura do Estado como no âmbito do reconhecimento dos direitos fundamentais.

Uma analise dos direitos fundamentais na atualidade, por mais superficial que possa ser, exige também um breve estudo sobre o Estado moderno, suas características sócio-político-econômica e jurídica – o que despretenciosamente nos dispomos a fazer neste trabalho.

Concentrando forças nos direitos sociais fundamentais, especificamente no tocante aos direitos da pessoa portadora de deficiência, buscamos a verificação, em face do modelo econômico e político-jurídico de Estado adotado pelo Brasil, da existência de uma política social voltada para essas pessoas e suas necessidades especiais, sem questionar de sua eficácia.

O grande questionamento a ser respondido é se a política econômica adotada pelo Brasil permite que se pratiquem políticas sociais que possibilitem o efetivo exercício dos direitos fundamentais de seus indivíduos, tanto direitos de cunho individual como de cunho social; residindo mais especificamente na preocupação com os direitos sociais das pessoas portadoras de deficiência.

A resposta a essa indagação não é tão simples quanto possa parecer, se consideradas as peculiaridades de um país como o Brasil, cuja educação básica ainda não é acessível a todos, tal como a educação qualificada, a moradia, a alimentação, o trabalho, a saúde. E perpassa por um olhar sobre as disposições do ordenamento jurídico, especificamente sobre a previsão Constitucional de proteção dos direitos sociais fundamentais, frente ao Estado e mesmo aos interesses particulares.


1.NOÇÕES GERAIS SOBRE ESTADO

Vulgarmente utiliza-se a expressão de que o Estado é "a nação politicamente organizada" [1]; o que vem significar que a nação sai de seu estado natural, formado pela simples reunião e convivência dos homens em sociedade, e entre em estágio em que se estabelecem, além daquele vínculo social, vínculos políticos e jurídicos.

A essência desse Estado reside na soberania, ou seja, no seu poder de criar, executar e fazer com que sejam executadas leis que garantam a harmonia social, sem subordinar-se a nenhum outro órgão superior – o que de certa forma vem sendo questionado face à nova ordem mundial em que se estabelecem órgãos supranacionais para atender e intermediar os interesses comuns de Estados distintos. Há, porém, quem defenda que a existência desses órgãos deriva diretamente desse poder soberano que cada Estado possui e através do qual delega atribuições, competências para que aquele órgão possa atuar submetendo-o, na realidade, aos seus próprios interesses; donde não se justificaria questionar se sua soberania persiste ou não como elemento constitutivo daquele Estado.

Essa concepção de um Estado organizado não tem origem precisa, mas historicamente o que se sabe é que as comunidades primitivas não atendiam a esses elementos, sendo na sua maioria guiadas pelos costumes, e não por leis, onde a justiça era privada, numa noção absolutamente oposta a atual.

A origem teria sido determinada por uma série de fatores que vão do desenvolvimento da agricultura, ao crescimento e complexidade sociais, que exigiram medidas de controle social às quais os indivíduos estariam obrigados a se submeter, para o quê precisou criar-se uma entidade cuja autoridade fosse reconhecida como sendo a que regula a conduta social e exige a submissão daquela sociedade à lei: o Estado.

Apesar da organização de Roma e da Grécia, referenciais históricos do direito e da teoria geral do Estado, nos moldes característicos do Estado, essa designação só passou a ser utilizada por Ulpiano, quando definia Direito Público. E a institucionalização do poder, que passou a ser visto independentemente de quem o exercia, serviu grandemente ao seu fortalecimento.

Há, porém, uma concepção teleológica, segundo a qual o Estado tem origem divina; concepções contratualistas, segundo as quais o Estado é oriundo da vontade humana; além dessa concepção social, de origem histórico-evolutiva.

Dizer que o Estado estabelece vínculos políticos, é dizer que há relações entre o Estado e seus indivíduos no que toca à nacionalidade, ao poder de participar na escolha do governante, etc. E que estabelece vínculos jurídicos é dizer que as relações estabelecidas entre os particulares e entre eles e o Estado produzem efeitos jurídicos, tendo caráter coercitivo, quando celebradas de acordo com o ordenamento jurídico.

O Estado funciona ao mesmo tempo como fonte institucionalizadora de regras jurídicas, por ser ele que detém o poder de legislar, de criar o direito positivo, e como ente que garante a eficácia desse direito, assegurando a submissão social da regra, por meio de instrumentos de coerção, dos quais o particular não dispões diretamente, mas somente por sua intervenção.


2.A

DEFINIÇÃO DE ESTADO E ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Faz-se necessário compreender, então, qual a concepção que a denominação Estado tem. E é Pedro Salvetti Netto apud Filomeno [2] que oferece o seguinte conceito:

Estado é a sociedade necessária em que se observa o exercício de um governo dotado de soberania a exercer seu poder sobre uma população, num determinado território, onde cria, executa e aplica seu ordenamento jurídico, visando ao bem comum.

Filomeno concorda com essa concepção e acentua que o Estado possui como elementos constitutivos: o material, o formal e o teleológico, exatamente como referencia o autor por ele citado, no trecho supra.

Essa, porém, não é uma concepção aceita pela totalidade dos publicistas; posto que o conceito varia conforme seja enfatizado o aspecto político, jurídico ou sociológico. Apesar de o mais correto ser definí-lo com base em todos os aspectos e não a partir de um ou outro exclusivamente.

Ilustrando a diversidade de conceitos referida, José Hermílio Ribeiro Serpa [3] cita alguns autores que valem a pena mencionar:

O Estado é uma "ordenação jurídica na qual um complexo de normas gerais e coercitivas regulam os órgãos e os poderes do próprio Estado, bem como a relação dos cidadãos entre si e deles com o próprio Estado" (Groppalli, apud Aderson Menezes, Teoria Geral do Estado, 1984).

"É uma comunidade de homens fixada sobre um território próprio e que possui uma organização da qual resulta para o grupo considerado em suas relações com seus membros, uma potestade superior de ação, de mando e coerção" (Malberg, apud Menezes, Aderson, Teoria Geral do Estado, 1984)

É uma sociedade permanente de homens, que habitam um território fixo e determinado e tem um governo soberano. (Azambuja, 1973, Ed. Globo)

É uma associação política de base territorial, com capacidade jurídica interna e externa, cujo governo é dotado de poder originário, de sanção direta e incondicionada, bem como da atribuição de conferir a pessoas e bens a condição de nacionalidade, que os distingue na órbita internacional. (Sampaio, Nelson de Souza. Forense, 1960)

O próprio Serpa afirma que o Estado é "a força a serviço da efetivação e realização de um conjunto de valores dominantes, num espaço geográfico dado, regulado por um conjunto coerente de normas jurídicas que, hodiernamente, denomina-se sistema jurídico" [4].

Desde Roma e Grécia, passando pela Idade Média, pelo Estado Absolutista, até o advento do Estado Liberal, a verdade é que havia grande confusão entre o monarca e a soberania e não havia direitos individuais definidos, declarados, alguns apenas eram conhecidos por meio de pactos. Mas, com a independência das colônias americanas, institucionalizou-se um Estado Constitucional, submetido a uma Lei Fundamental que passou a assegurar aqueles direitos individuais, limitando o poder do próprio Estado. E, com a Revolução Francesa, admitiram-se os chamados direitos naturais do ser humano, intronizando-se o Estado de Direito.

Esse novo Estado está comprometido com a liberdade absoluta, como primado, e tem nos princípios da subsidiariedade, do Estado mínimo e da neutralidade, seu pilar; que em resumo significam que a intervenção do Estado na vida do particular é restrita a interesse público, conforme os limites estabelecidos na Constituição que o regula, estabelecendo-o, conferindo-lhe poderes de um soberano, mas impondo-lhe restrições quanto ao uso desses poderes sobre aquilo que deve resguardar, proteger, assegurar, respeitar.

Ao final da Primeira Guerra Mundial, as Constituições de Weimar e a Mexicana instituiram o Estado de Direito Social, também denominado Estado Social Democrata ou Estado Precidência, como forma de mediar as pretensões da burguesia e do proletariado, de modo que o Estado intervém na relação de produção garantindo direitos tais como: aposentadoria, férias, duração da jornada de trabalho, etc.

Esse Estado tem suas características apontadas por Serpa [5]:

a)princípio de compromisso conformador, cabendo ao Estado intervir na sociedade para melhor assegurar as formas de existência social;

b)princípio da democratização da sociedade que obriga as intervenções de caráter econômico e social tendente à prossecução do princípio da igualdade;

c)princípio do Estado de Direito formal, racionalizadores e limitadores das medidas intervencionistas.

Porém, o próprio liberalismo, hoje conhecido como Neoliberalismo vem atacar esse Estado, no dizer de Norberto Bobbio apud Serpa [6]: um ataque puro e simples à democracia ao "grande compromisso histórico precedente entre o trabalho organizado, do qual nasce direta ou indiretamente a democracia moderna (através do sufrágio universal, da formação dos partidos de massa)" (Bobbio, in Futuro da Democracia, 1986, p. 127)

É até incoerente esse ataque neoliberal à democracia, vez que parece haver uma relação de interdependência entre liberalismo e democracia. Porém, Liberal é o Estado cujos poderes e funções são limitados, contrapondo-se tanto ao Estado Absoluto, como dito alhures, quanto ao Estado Social. Enquanto que a Democracia é uma forma de governo plural, pelo qual não apenas um, como na monarquia, ou alguns, como na oligarquia, detêm o poder; mas o poder é conferido por uma maioria aos seus representantes eleitos.

Bobbio explica que:

Um Estado Liberal não é necessariamente democrático: ao contrário, realiza-se historicamente em sociedades nas quais a participação no governo é bastante restrita, limitada às classes possuidoras. Um governo democrático não dá vida necessariamente a um Estado Liberal: ao contrário, o Estado Liberal clássico foi posto em crise pelo progressivo processo de democratização produzido pela gradual ampliação do sufrágio até o sufrágio universal. [7]

Mas, então, como justificar o uso da expressão liberal-democracia? Explica o autor:

Não só o liberalismo é compatível com a democracia, mas a democracia pode ser considerada como natural desenvolvimento do Estado Liberal apenas se tomada não pelo lado de seu ideal igualitário, mas pelo lado da sua fórmula política, que é, como se viu, a soberania popular. [8]

Essa soberania popular é expressada pelo sufrágio universal, cuja extensão em nada contraria o Estado de Direito ou o Estado Mínimo. De tal forma, que já não se pode conceber um Estado Liberal não-democrático, nem Estados Democráticos que não sejam liberais, pelo simples fato de que a democracia se faz necessária à salvaguarda dos direitos fundamentais, instituídos por uma Constituição que determina as premissas sobre as quais o Estado vai se pautar. Desse modo, o liberalismo parte de uma teoria econômica, que defende a economia de mercado e da livre iniciativa econômica, enquanto a democracia parte de uma teoria política.

Citando Friederich von Hayek, Bobbio adverte que o liberalismo e a democracia respondem a problemas diversos do Estado: "o liberalismo aos problemas das funções do governo e em particular à limitação de seu poderes; a democracia ao problema de quem deve governar e com quais procedimentos." [9]

Por fim, Bobbio faz uma afirmativa contundente, segundo a qual:

Hoje apenas os Estados nascidos das revoluções liberais são democráticos e apenas os Estados democráticos protegem os direitos do homem: todos os Estados autoritários do mundo são ao mesmo tempo antiliberais e antidemocráticos. [10]


3. ENTENDENDO O ESTADO LIBERAL E O NEOLIBERAL

Tomando a última afirmativa de Norberto Bobbio, citada ao final do tópico anterior, de que Estados autoritários são antiliberais e antidemocráticos, vamos melhor compreender o que é o Estado Liberal; já que a democracia parece de mais fácil compreensão, enquanto uma forma de governo, antiga, oriunda do pensamento político grego, que garante o governo do povo, de muitos em substituição ao governo de apenas um ou de alguns poucos.

A única variante dessa forma de governo ao longo do fator tempo é a forma como esse governo do povo deve ser exercido, outrora diretamente pelo povo, atualmente por meio de representantes eleitos pelo povo, em face do crescimento populacional e de tudo o mais da vida moderna, que inviabilizaria o exercício direto do poder.

A forma democrática de governo é pautada modernamente em uma Constituição que a institui e determina como será aferida essa representação popular, sistematizando seu exercício, conforme o interesse geral, em garantia da soberania popular.

Quanto ao Liberalismo, José Geraldo Brito Filomeno afirma ser o oposto do autoritarismo e do absolutismo, presumindo-se haver uma "descentralização" do poder político, de modo a confundi-lo com a própria noção de democracia. Mas o distingue daquela por afirmar que aqui há uma concepção pessoal, e não política, cujo sentido é de "liberdade-autonomia", a faculdade de exercer liberdades individuais, como: ir, vir e permanecer.

Para Enrique de La Garza Toledo, "o Estado liberal caracteriza-se, principalmente pela separação entre Estado e economia e pela tentativa de reduzir a política a chamada sociedade política, isto é, por tentar despolitizar as relações econômicas e sociais" [11]

Quanto ao liberalismo econômico, trata-se de um regime econômico que postula a "livre iniciativa e a livre concorrência, em princípio sem qualquer interferência do Estado" [12], afastando o Estado como um concorrente na exploração da atividade econômica.

Essa limitação ao poderio do Estado é imposta pela Constituição, como já se disse, separando o campo privado do campo de atuação do poder público; impondo também limites ao exercício das atividades dos particulares, garantindo a harmonia social e jurídica.

Na realidade, quando se vislumbram controles necessários à manutenção da ordem para que sejam evitados abusos pelos particulares, já se está falando em Neoliberalismo e não mais em liberalismo, como afirma Filomeno, ao comentar o art. 170 [13] da vigente Constituição Federal Brasileira, que estabelece um liberalismo formal e enumera como princípios, além da existência digna de todos e da justiça social, a soberania nacional, a propriedade privada, e etc.

Claus Off apud Filomeno [14] afirma que "o neoliberalismo quer um Estado que interfira quase nada na economia e, se possível, cobre pouco imposto"; e adverte que "o excesso de poder do mercado afeta a confiança na democracia. Um Estado fraco começa a fazer o que as empresas quiserem...".

Nesse sentido Miguel Reale apud Filomeno [15] defende que o Estado não pode ser destituído de poder normativo para que possa garantir a subsistência de sua nacionalidade frente à globalização, de modo que o social-liberalismo se apresenta como a melhor solução política.

Mas a Constituição Brasileira, como dito alhures, impõe limites para que seja preservada a ordem social, jurídica e, por que não, econômica, fixando limites para que não se cometam abusos por parte dos particulares, nem por parte do Estado, que intervém no interesse social, obedecendo aos limites constitucionalmente impostos, adotando uma política neoliberal, e não liberal formal, como se infere da leitura dos dispositivos infra:

"Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

...

§ 4º A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros

§ 5º A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular"

Inegavelmente o caput do art. 173 da Constituição Federal adota a política econômica neoliberal, ao passo que os parágrafos terceiro e quarto estabelecem os limites constitucionais a que nos referimos.

Nesse diapasão, Filomeno conclui que:

a)o neoliberalismo pressupõe, em princípio, a ampla liberdade de iniciativa e o exercício de atividade ou profissão;

b)referida liberdade, porém, não pode comprometer a justiça social, um dos pressupostos do próprio bem comum do Estado;

c)dessa forma, impõem-se-lhe limites, com a regulação do mercado, quer através do exercício da própria atividade econômica pelo Estado, ou, então pela permissão ou concessão de atividades reputadas essenciais e, por fim, pela repressão dos desvios ou abusos verificados" [16]

Voltando à questão do liberalismo, urge esclarecer, que seu fracasso em manter o crescimento econômico sem grandes crises e manter a ordem social com a pouca intervenção do Estado foi determinante para sua transposição, ladeado pelo movimento socialista ascendente e a derrocada do assistencialismo cristão; e a alternativa encontrada foi o Estado Social, surgido por volta dos anos 20 e mantido até os anos 70 do século passado.

O Estado Social, na concepção de La Garza Toledo, "é, em parte, investidor econômico, em parte regulador da economia e dos conflitos, mas também Estado benfeitor que procura conciliar crescimento econômico com legitimidade da ordem social" [17]; com a intervenção do Estado na economia, transcendência da democracia parlamentar oportunizando a participação direta da sociedade organizada através de pactos corporativos.

Esse Estado Social capitalista, que teve uma vida curta, pois durou aproximadamente quarenta anos, representou alto índice de crescimento, ordenamento social e permitiu a concretização de algum socialismo.

Fato é que também esse modelo de Estado entrou em crise, cujas causas são inúmeras, havendo talvez uma sucessão de pequenas crises (crise fiscal, crise da acumulação, crise de produtividade...) que determinou seu abandono e substituição por um novo modelo, o Estado Neoliberal, ainda em consolidação.

O Estado Neoliberal tem como característica o empirismo de mercado, pois é o mercado livre que determina as ações a serem tomadas pelo Estado; é o mercado quem tem o domínio e promove o dirigismo do Estado, da própria ordem social. Numa real inversão de papéis, em que não será mais o Estado a traçar os caminhos de sua economia; mas, esta é que o fará, que determinará os rumos que esse Estado e todo seu ordenamento político-sócio-jurídico praticamente irá tomar. Isso oferece um sem número de consequências e perigos que adiante trataremos.

São apontadas como suas características: a superioridade do livre comércio, o individualismo metodológico (liberdade, privatização e menor incidência na previdência social), as contradições entre liberdade e igualdade, desregulação estatal e privatizações (expressão abstrata de liberdade).

Especificamente quanto às contradições entre liberdade e igualdade Hayek apud La Garza Toledo [18] diz que a desigualdade não é justa ou injusta já que o mercado não é voluntário, o que depõe contra a justiça social, retirando os benefícios sociais da esfera de atuação do Estado.

Continuando em sua análise, La Garza Toledo aponta, porém, algumas contradições do Estado Neoliberal e afirma que o neoliberalismo não existe sob a forma de nenhuma de suas doutrinas puras, razão pela qual despontam novos conceitos como o de liberalismo social, no caso do Estado Neoliberal Autoritário Mexicano.

São contradições desse modelo neoliberal:

1.Possibilidade de crescimento limitada da economia ou a redução da inflação às custas da polarização produtiva social. A desregulamentação e a privatização cumprem a promessa de igualdade no mercado, mas descuida dos monopólios que potencializam seu poder com as políticas adotadas por esse modelo.

2.A liberalização do mercado reflete no bolso do assalariado que não tem compensações pela política de redução dos salários reais.

3.A substituição do "ator internacional otimizador" pelos "magos das finanças" e seu conhecimento privilegiado do mercado e da política estatal.

Quanto ao liberalismo social adotado pelo México, em 05/03/1992, pelo Presidente C. Salinas de Gortari, caracteriza-se pela regulamentação estatal do mercado em favor do grande capital (transnacional); pela privatização acelerada; abertura ao mercado externo, etc., cujas consequências do crescimento são muito temidas por aquele autor.

O que de fato parece acontecer em países como o Brasil e o México é ainda uma transição do Estado de Direito Social para o Estado Neoliberal, por suas peculiaridades internas, ou talvez um Estado Neoliberal Social, um Estado híbrido, que concilia as pretensões capitalistas do neoliberalismo com a pretensão de bem-estar social, como forma de minimizar as consequências da política neoliberal.


4. A POLÍTICA SOCIAL E O ESTADO MODERNO (NEOLIBERAL)

É uma decorrência necessária do avanço do capitalismo, hoje no estágio neoliberal, a complexidade e intensificação das questões sociais, especialmente por ser o salário o ponto central da sobrevivência do indivíduo, que sai em busca da garantia estatal de suas necessidades individuais e sociais mais básicas, como: alimentação, moradia, educação, saúde.

Daí decorrem as políticas sociais em prol do bem-estar social, que deverão ser criadas e consolidadas pelo Estado – mesmo que em colaboração com a sociedade organizada, atendendo aos anseios sociais, mínimos à sobrevivência digna da população.

Então, Esping-Andersen apud Asa Cristina Laurell agrupa as políticas sociais desenvolvidas pelos países capitalistas em três grupos distintos:

"1) O social-democrata, exemplificado pelos países escandinavos, e que se caracteriza pelo universalismo e por uma importante redução do papel do mercado na âmbito do bem-estar social; 2) O conservador-corporativo, exemplificado pela Alemanha e pela Itália, que se baseia nos direitos sociais, mas que perpetua uma diferenciação social importante, e que envolve efeitos redistributivos mínimos; e 3) O liberal, exemplificado pelos EUA, Canadá e Inglaterra, que é dominado pela lógica de mercado" [19]

Desse modo o Estado Liberal não admite que seja seu ônus garantir os direitos sociais e não compartilha do entendimento de que o simples fato do sujeito ser membro da sociedade o faça ser merecedor daqueles direitos. Então, deixa ao setor particular ocupar-se daqueles bens sociais (saúde, educação, etc.), submetendo-os à lógica do lucro. Isso gera profundas desigualdades sociais, no que toca à qualidade e quantidade de acesso a esses serviços, bem como a qualidade do trabalho. Os EUA são, por excelência, exemplo dessa política.

Na América Latina, a maioria dos Estados é de bem-estar por terem em sua legislação o reconhecimento dos direitos sociais, optando pela seguridade social pública, na garantia da saúde pública, aposentadoria, programas de habitação, etc. O fato é que antes da aplicação de políticas neoliberais a cobertura desses direitos era deficiente, não abrangendo grande parte da população carente; hoje encontra algumas limitações de ordem capitalista que restringem esse Estado de bem-estar liberal e conservador ao contrário do Estado de bem-estar social-democrata que tem no universalismo, na igualdade de benefícios, no caráter público, na produção dos serviços e na supressão de parte do mercado a garantia de seu Estado de bem-estar completo, irrestrito. [20]

A compreensão do discurso neoliberal requer que se busque o contexto de seu surgimento, ou seja, o final da década de 70, assolado por uma crise econômica cuja origem estaria no intervencionismo estatal no setor econômico, provocado pelos obstáculos impostos ao mercado, gerando efeitos danosos não só para a economia, mas também para a liberdade individual e para o bem-estar da sociedade.

O capitalismo liberal, então, aponta como solução à crise a reconstrução do mercado autônomo, independente, livre da intervenção do Estado, por meio das privatizações e da desregulamentação das atividades econômicas; a despaternalização estatal em garantia da competição e do individualismo, pela redução de políticas de bem-estar social, pela flexibilização da relação trabalhista com a eliminação de direitos adquiridos e a desativação de mecanismos de negociação coletiva; e o combate ao igualitarismo, pois a desigualdade estimula a competição no mercado.

Assim o mercado neoliberal precisa ser forte para oferecer as condições necessárias à expansão do mercado; porém, tem um mínimo de intervenção sobre a vida do particular. E, mesmo quanto às políticas sociais, só deverá e poderá intervir minimamente quando o particular não queira ou não possa e sem que tenha que obedecer às regras de universalidade, igualdade e gratuidade desses serviços – que bem podem ser mercantilizados, já que o que se busca é a extensão dos investimentos particulares para toda e qualquer atividade rentável.

Como se vê, o "calcanhar de Aquíles" dessa nova forma de Estado capitalista é exatamente a política social, que tem garantido a permanência do Estado de bem-estar justamente em função da controvérsia política que gira em torno de ser ou não dever do Estado garantir os direitos sociais – o que tem grande repercussão no momento do exercício da democracia, quando da escolha dos representantes da vontade popular, em que fica claro que aquele que defende ser essa política dever do Estado, apesar dos interesses econômicos desse Estado, fica em situação de vantagem e predileção.

A consequência da aplicação dessa política neoliberal é o aumento da pobreza e da exclusão social (desemprego, achatamento salarial, subemprego, descaptalização do empregado) – o que se tem notado com mais gravidade nos países latino-americanos que nos países capitalistas avançados, desenvolvidos. Por isso, a política neoliberal deve ser aplicada de forma seletiva nestes países, dosando o interesse econômico com o interesse eminentemente social, minimizando o estrago social que esse sistema de economia acelerada e globalizada costuma fazer, instaurando e agravando crises sociais. É o que aconselha Asa Cristina Laurel. [21]

As convulsões sociais provocadas por essas políticas neoliberais têm levado à implantação de programas estatais de amenização da pobreza, programas político-sociais de "compensação", levados a efeito por organismos internacionais, que só demonstram o quanto esse processo é cruel e individualista, relegando a plano inferior o bem-estar da sociedade, em detrimento dos direitos fundamentais.

Ernest-Wolfganf Böckenförde faz uma análise elucidativa das teorias acerca dos direitos fundamentais, em sua obra Escritos sobre Derechos Fundamentales (Editora Nomos,, 1993), a partir da página 170, que assim pode ser resumida:

a)Teoria Liberal – que defende a liberdade individual e social do indivíduo frente ao estado, que oferece um risco em potencial de invadir a esfera de autonomia exclusivamente privada. Por outro lado, é o próprio Estado que tem a atribuição de resguardar e defender a liberdade tanto do indivíduo como da sociedade de modo geral, devendo proteger juridicamente os direitos fundamentais e reprimir o indivíduo que violar esses direitos. Essa liberdade própria do direitos fundamentais antecede o Estado; não sendo ele que a constitui, embora assim possa parecer. Os limites fixados pelo Estado visam à compatibilização jurídica da liberdade de todos.

Desse modo, essa teoria apresenta as seguintes características: os direitos fundamentais estão frente ao Estado; utiliza o princípio da distribuição (separando Estado/Sociedade); proibi o Estado de invadir a esfera individual; o conteúdo dos direitos fundamentais é pré–existente, o que limita o legislador; criação de institutos que reforçam a liberdade dos direitos fundamentais; não tem preocupação com pressupostos sociais; a liberdade é "sem mais", ou seja, não tem função objetiva. Conforme preceito do art. 5º, inciso X da Constituição Federal atual.

b)Teoria Institucional - os direitos fundamentais têm caráter objetivo, posto que é o legislador que determina seu conteúdo, por meio das regulamentações normativas do tipo institucional, reguladas pela idéia ordenadora dos direitos fundamentais e como tais ajudam as circunstâncias vitais nas quais se aplicam assumindo-os e conferindo-lhes relevância normativa. A garantia dos direitos fundamentais só é possível a partir da declaração da liberdade jurídica. A liberdade individual requer as circunstâncias vitais garantidas institucionalmente ao lado dos direitos fundamentais, também institucionalizados, bem como quer a liberdade nos complexos normativos que os enriquece e lhes dá direção e medida, seguridade e amparo, conteúdo e função. Essa teoria parte da liberdade como instituto que se põe de forma objetiva, como algo dado e configurado, tendo como características: os princípios objetivos de ordenação, a liberdade objetiva.

c)Teoria Axiológica - os direitos fundamentais se apresentam como fatores constitutivos determinantes do processo de integração de uma comunidade de valores, de culturas e de vivências, portanto, como elementos e meios da concretização do Estado. Assim como a anterior, esta teoria tem caráter de normas objetivas e não de pretensões subjetivas. Esse conteúdo objetivo dos direitos fundamentais emana de fundamentos axiológicos da comunidade estatal e como expressão de uma decisão axiológica que esta comunidade opta por si mesma.

d)Teoria Democrática Social - os direitos fundamentais alcançam seu sentido e seu principal significado como fatores constitutivos de um livre processo de produção de democracia do Estado e de um processo democrático de formação política. A garantia da liberdade tende proteger e facilitar estes processos, embora não signifique conferir ao cidadão a liberdade de dispor livremente de seus direitos fundamentais, muito embora assegure primeiramente a esfera individual. Assim, a legitimidade dos direitos fundamentais e determinação de seu conteúdo é função pública e democrática constitutiva. Aqui a garantia da liberdade se converte em um meio para facilitar e assegurar o processo democrático, não tendo o caráter objetivo das teorias enunciadas anteriormente.

e)Teoria dos Direitos Fundamentais do Estado Social - esta teoria resultou tanto das conseqüências da teoria liberal como da substituição da autarquia individual pela autarquia social de relações e prestações sociais efetivas. Tendo em vista que esses fatores a garantias da liberdade delimitativa se mostram insuficiente para assegurar a liberdade dos direitos fundamentais como uma liberdade também real, surge essa teoria, para a qual os direitos fundamentais além do caráter delimitador negativo, também têm o caráter facilitador das pretensões de prestações sociais frente ao Estado. Assim, garante não só a liberdade jurídica abstrata, mas a real, o que resulta: a) na obrigação do Estado de procurar os pressupostos sociais necessários para a realização da liberdade dos direitos fundamentais; b) participação em instituições estatais ou procuradas pelo Estado que sirvam à realização da liberdade dos direitos fundamentais.

Ao que parece não devem essas teorias ser adotadas isoladamente umas das outras, mas a partir do equilíbrio entre elas, conforme a importância conferida aos direitos fundamentais pelo Estado de direito em questão.

Especificamente no Brasil, Marcílio Marques Moreira [22], afirma que há três transições em andamento: 1ª) Transformação política de um regime ditatorial para um regime democrático, desde meados dos anos 70 (O país esta aprendendo a fazer democracia); 2ª) Transformação econômica, saindo de um modelo importador para um modelo que garanta sua inserção mundial; 3ª) Valorização e incentivo aos avanços sociais em substituição à noção de que esses avanços seriam em decorrência do desenvolvimento econômico.

Essa terceira transformação privilegia as necessidades básicas da população, como: saúde, alimentação, moradia, educação, transporte, etc., ainda que de forma deficitária, não sistemática e pouco eficaz, em prol do bem-estar social. Isso tudo, em consequência do fato de que o Brasil não pode trabalhar sua política externa, descuidando da interna, fundamental para o sucesso daquela; do contrário, a inviabilizaria, representando-lhe um fardo tão pesado que não a deixaria avançar. Esse avanço requer a integração nacional com equilíbrio entre as regiões e sub-regiões que o país comporta.

Então, o Brasil precisa equilibrar a globalização do sistema financeiro mundial e os desequilíbrios sociais que ela provoca; e despertar para o fato de que a "educação básica e universal" – termo usado por Marcílio Marques Moreira, é de fundamental importância para o desenvolvimento e inserção no mundo moderno e globalizado. Há uma busca constante do aperfeiçoamento dos recursos humanos.

Na concepção de Amélia Cohn [23], as políticas de ajuste estrutural no Brasil não assumiram o perfil neoliberal, tendo mesmo experimentado um avanço com a institucionalização, pela Constituição Federal de 1988, da universalidade do direito à saúde, por exemplo.


5.

A PROTEÇÃO DA PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA PELO ESTADO BRASILEIRO

Na obra "Teoria de Los Derechos Fundamentales", Robert Alexy ocupa-se do conceito e estrutura dos Direitos Sociais Fundamentais, às páginas 482 a 485, onde afirma que "os direitos a prestações em sentido estrito são direitos do indivíduo frente ao Estado"; o direito à alimentação, trabalho, moradia e educação.

Esclarece que esses direitos podem constar expressamente ou não da Constituição. No último caso, podem ser percebidos por meio da interpretação daquela Constituição, de seus dispositivos.

Por sua vez, Ingo Wolfgang Sarlet esclarece que a concepção clássica de direitos fundamentais é que eles constituem "direitos de defesa do indivíduo contra as ingerências do Estado em sua liberdade pessoa, e propriedade" [24]; e que essa defesa tanto é necessária num regime autoritário, como num regime democrático, como no Brasil, tolhindo "as tentações do abuso do poder", freando o arbítrio dos representantes do povo, da soberania popular. Assim, esses direitos impõem-se ao poder estatal como limites, e garantem ao indivíduo autonomia pessoal – cujo Estado está obrigado a respeitar por força da Constituição.

Os direitos sociais integram esses direitos fundamentais, como resultado da primeira dimensão desses direitos: os princípios da igualdade e da liberdade. E, conforme, disposto nos arts. 7º a 11, da Constituição Federal de 1988, implicam em legítimos direitos de defesa, e não meramente prestacionais, exigindo tanto uma conduta passiva como ativa do Estado, como adiante se verá.

Tal como os direitos sociais, também os direitos individuais e coletivos, constantes do art. 5º da atual Constituição, são direitos fundamentais, estes inerentes ao "homem-indivíduo" e aqueles ao "homem-membro de uma coletividade". Esses direitos figuram no ordenamento jurídico brasileiro como direitos de defesa individuais, autênticos direitos de liberdade, desde a Constituição de 1824.

Contrariamente ao que possa parecer, Sarlet esclarece que os direitos sociais são direitos conferidos ao homem enquanto indivíduo que integra uma sociedade, sendo também expressão do direito de liberdade.

É fato, porém, que o Estado, além de sofrer limitações constitucionais de respeito aos direitos fundamentais, tem também a incumbência de efetivamente desenvolver políticas que assegurem o exercício das liberdades individuais, de forma que tanto se subordina aos direitos fundamentais enquanto direitos de defesa como aos direitos fundamentais enquanto direitos a prestações; ora assumindo postura passiva, abstendo-se de abusar do poder, ora assumindo postura ativa, criando condições fáticas para que as liberdades individuais se mantenham.

Bastante elucidativa a observação de Sarlet, segundo a qual:

Os direitos fundamentais a prestações enquadram-se, como já visto, no âmbito dos direitos da segunda dimensão, correspondendo à evolução do Estado de Direito, de matriz liberal-burguesa, para o Estado democrático e social de direito, incorporando-se à maior parte das Constituições do segundo pós-guerra... [25]

Apesar desses direitos constarem em nosso ordenamento desde a Constituição de 1824, como dito alhures, foram, num primeiro momento a Constituição de 1934, e mais efetivamente, a atual Constituição que lhe deram a importância devida, dedicando-lhe, esta, capítulo específico aos direitos sociais, incurso nos direitos e garantias fundamentais.

Há pouco falou-se da imprescindibilidade do desenvolvimento de políticas sociais paralelas às políticas mercantilistas neoliberais para países como o Brasil; demonstrou-se que a Constituição brasileira tanto contempla os direitos fundamentais de defesa como os direitos prestacionais. Então, desejamos saber: as pessoas portadoras de deficiência estão contempladas pelas políticas sociais brasileiras?

Primeiro busquemos dentre os direitos e garantias fundamentais o reconhecimento dessa categoria de indivíduos.

O direito da pessoa portadora de deficiência não consta expressamente previsto em nenhum dos incisos do art. 5º, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, apesar de implicita e genericamente constar do caput daquele dispositivo que institui que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza", igualando-se homens e mulheres em direitos e obrigações. Está sim, elencado entre os direitos sociais, também direitos fundamentais, novamente implícita e genericamente no caput do art. 6º [26], e especificamente no art. 7º, XXXI [27].

Além de constar do elenco dos direitos sociais, a Constituição também cuida especificamente dos portadores de deficiências nos arts. 23, II [28], 24, XIV [29], 37, VIII [30], 203, IV e V [31], 208, III [32] e 227, §§ 1º, inciso II e 2º [33], de modo a assegurar a integração social dessas pessoas.

Regulamentando referidos dispositivos Constitucionais foram publicados a Lei nº 7853, de 24 de outubro de 1989, que dispõe sobre a política nacional de integração da pessoa portadora de deficiência, e o Decreto nº3298, de 20 de dezembro de 1999, que a regulamenta e consolida normas de proteção, entre outras providências; a Lei nº 8899, de 29 de junho de 1994, que concede passe livre no sistema de transporte coletivo interestadual às pessoas portadoras de deficiência; a Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que fixa normas e critérios básicos para a promoção de acessibilidade de pessoas que tenham mobilidade reduzida; a Lei nº 10.784, de 16 de abril de 2001, de São Paulo, que regula o acesso de cães-guia a locais públicos e privados; a Lei nº 10.216, de 06, de abril de 2001, que fixa a proteção da pessoa com transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental; a Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência: Decreto nº 3956, de 08 de outubro de 2001; a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002 (LIBRAS – Lei Brasileira de Sinais); entre outros.

Todo esse apanhado de legislação expedida em prol do interesse da pessoa portadora de deficiência não deixa dúvidas de que o ordenamento jurídico nacional tem o respaldo teórico do qual precisaria para fomentar uma política social eficiente; parecendo nem mesmo tratar-se de um país com política econômica neoliberal, tamanha a densidade com que aborda aqueles interesses. Tal afirmativa ganha ainda mais respaldo quando conhecemos o Programa Nacional de Direitos Humanos (1996) [34], que trás dentre as propostas de ações governamentais a conscientização e mobilização pelos direitos humanos, que a curto prazo cuidaria de orientar os programas de informação, educação e treinamento de profissionais para o aumento da capacidade de proteção e promoção dos direitos humanos na sociedade brasileira, na valorização da moderna concepção dos direitos humanos segundo a qual o respeito à igualdade supõe também a tolerância com as diferenças e peculiaridades de cada indivíduo. E traça um plano de proteção do tratamento igualitário perante a lei das pessoas portadoras de deficiência que:

a)a curto prazo, implica em "formular políticas de atenção às pessoas portadoras de deficiência, para a implementação de uma estratégia nacional de integração das ações governamentais e não-governamentais, com vistas ao efetivo cumprimento do Decreto nº 914, de 06 de setembro de 1993" (que institui a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, e dá outras providências); "propor normas relativas ao acesso do portador de deficiência ao mercado de trabalho e no serviço público, nos termos do art. 37, VIII da Constituição Federal; adotar medidas que possibilitem o acesso das pessoas portadoras de deficiências às informações veiculadas pelos meios de comunicação"

b)a médio prazo, implica em "formular programa de educação para pessoas portadoras de deficiência; implementar o programa de remoção de barreiras físicas que impedem ou dificultam a locomoção das pessoas portadoras de deficiência, ampliando o acesso às cidades históricas, turísticas, estâncias hidro-minerais e grandes centros urbanos, como vistos no projeto Cidade para Todos"

c)a longo prazo, implica em "conceber sistemas de informações com a definição de bases de dados relativamente a pessoas portadores de deficiência, à legislação, ajudas técnicas, bibliografia e capacitação na área de reabilitação e atendimento."

Não resta dúvida, então, de que há uma política social de proteção à pessoa portadora de deficiência pelo Estado Brasileiro, que se mostra alerta às consequências nocivas da política econômica neoliberal que adota, para um país como o nosso: agravamento das desigualdades sociais, regionais e sub-regionais, pelo desemprego e descaptalização do trabalhador que determinariam o travamento e quiçá o declínio desse sistema neoliberal, determinando sua falência, se não houvesse o socorro aos hipossuficientes. De outro lado, tais políticas tornam mais aceitáveis todas as concessões que se têm que fazer em prol dos interesses desse sistema capitalista acelerado (privatizações, desregulação, Estado mínimo), como forma de compensação.

É bom pensar, porém, que a adoção de políticas sociais, como essa política nacional de integração da pessoa portadora de deficiência, têm um cunho altamente humanístico, de reconhecimento, defesa e proteção dos direitos sociais fundamentais, que tomando o homem como integrante de uma comunidade reconhece-lhe direitos e oferece condições para que os exerça.


CONCLUSÃO

É de há muito que vem sendo anunciada a complexidade do Estado moderno, a partir daquele momento em que já deixou de ser possível que o povo se reunisse em praça pública para decidir os caminhos que deveria seguir e passasse a eleger representantes, para por ele e segundo sua vontade e seus interesses, fazer as opções necessárias a governabilidade.

Desde então as nações vêm tentando criar a melhor forma de governo e de Estado, e cada qual, com suas peculiaridades e justificativas toma a defesa de uma ou de outra, quase não havendo consenso, ainda que algumas se imponham por maioria.

A democracia, como forma de governo plural e representativo da soberania popular desponta na preferência, como a melhor forma de garantia dos direitos fundamentais; posto que o povo ao eleger um representante deve assegurar-se de que suas propostas de atuação vão ao encontro de seus anseios, na defesa de seus interesses, tanto individuais, como coletivos e também sociais.

Ao lado da democracia, o modelo Neoliberal de Estado vem se fortalecendo, embasado numa teoria econômica capitalista que oferece como premissas a economia de mercado, a livre iniciativa econômica e a mínima intervenção estatal na economia e nos interesses particulares de um modo geral, levada a efeito pela desregulação estatal, privatizações, mercantilização dos serviços sociais, etc., cujos efeitos tanto são positivos, com a promoção da aceleração da economia em atendimento à demanda do mundo globalizado, como negativos, como o surgimento e agravamento de crises e desigualdades sociais, o desemprego, a miséria, a fome, etc.

Essa mercantilização dos serviços sociais afastaria a incidência do Estado de bem-estar, inibindo ou mesmo impedindo políticas sociais que assegurassem o mínimo de sobrevivência digna aos hipossuficientes, às vítimas do sistema, conferindo-lhes moradia, educação, saúde, trabalho, etc., sob a égide da igualdade.

Tudo isso dentro de um contexto em que o Estado está submetido a uma Lei Fundamental que estabelece suas diretrizes de atuação, ampliando ou restringindo seus poderes e seu campo de atuação. E os direitos e garantias fundamentais se apresentam exatamente como limites a essa atuação, assegurando um mínimo de bem-estar dentro de um sistema neoliberal.

O Estado Democrático de Direito brasileiro, objetivando a preservação da ordem social e o exercício dos direitos sociais e individuais de uma sociedade livre, justa e solidária, e promover o bem de todos, adota a política neoliberal e fixa limites tanto ao próprio Estado como aos particulares, que, de acordo com os preceitos constitucionais, sempre intervém no interesse social, conciliando os interesses econômico e social.

Nesse intuito, relativamente às pessoas portadoras de deficiência, adota o Brasil uma política social bem delineada, a partir do reconhecimento constitucional do direito do portador de deficiência ao trabalho, saúde, assistência pública, educação, etc., corroborado por um grande aparato legislativo, um programa nacional de direitos humanos e uma política nacional de integração dos portadores de deficiência, que objetiva inserí-los como participantes ativos da vida do Estado, no efetivo exercício de seus direitos individuais e sociais.

O Brasil demonstra, dessa forma, estar de acordo com a concepção esposada por Asa Cristina Laurell, referida linhas atrás, de que na América Latina não se pode adotar uma política neoliberal pura, descuidando do social, ou transferindo-o ao particular. Os direitos fundamentais são uma garantia da qual não se pode abrir mão nem frente a uma apetitosa barganha capitalista.


NOTAS

01. FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual da Teoria Geral do Estado e Ciência Política. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. P. 55.

02. Op. cit. P. 63

03. SERPA, José Hermílio Ribeiro. A política, o Estado, a Constituição e os Direitos Fundamentais: um reexame fenomenológico. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p. 42-43.

04. Op. cit. P. 42.

05. Op. cit. P. 68.

06. Op. cit. P. 67.

07. BOBBIO, Norberto. Libealismo e Democracia; trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 7-8.

08. Op. cit. P. 42-43.

09. Op. cit. P. 88.

10. Op. Cit. P. 44.

11. TOLEDO, Enrique de La Garza. Neoliberalismo e Estado in Estado e Políticas sociais no neoliberalismo. Asa Cristina Laurell (org.); ver. téc. Amélia Cohn; trad. Rodrigo Lear Contrera. 2 ed...São Paulo: Cortez, 1997. P. 72.

12. FILOMENO, José Geraldo Brito. Op. cit. P. 151.

13. Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguinte princípios:

I – soberania nacional;

II – propriedade privada;

III – função social da propriedade;

IV - livre concorrência;

V – defesa do consumidor;

VI – defesa do meio ambiente;

VII – redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII – busca do pleno emprego;

IX – tratamento favorecido para empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

14. Op. cit. P. 152-153.

15. Op. cit. P. 153.

16. Op. cit. P. 155.

17. Op. cit. P. 75.

18. Op. cit. P. 80.

19. LAURELL, Asa Cristina. Avançando em direção ao passado: a política social do neoliberalismo in Estado e Políticas sociais no neoliberalismo. Asa Cristina Laurell (org.); ver. téc. Amélia Cohn; trad. Rodrigo Lear Contrera. 2 ed...São Paulo: Cortez, 1997. P.154.

20. LAURELL, Asa Cristina. Op. cit. P. 160.

21. Op. cit. P. 167.

22. MOREIRA, Marcílio Marques. O Brasil no contexto internacional do século XX in O futuro do Brasil: A América e o fim da guerra fria. Org. José Álvaro Moisés. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. P. 114-115.

23. COHN, Amélia. Mudanças econômicas e políticas de saúdes no Brasil in O futuro do Brasil: A América e o fim da guerra fria. Org. José Álvaro Moisés. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. P. 225.

24. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. P. 170.

25. Op. Cit. P. 189

26. Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

27. Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem melhoria de sua condição social:

...

XXXI – proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência;

28. Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

...

II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

29. Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

...

XIV – proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência;

30. Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

...

VIII – a lei reservará percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão;

31. Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

...

IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover sua própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei;

32. Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

...

III – atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;

33. Art. 227...

§ 1º. O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais e obedecendo os seguintes preceitos:

...

II – criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos.

§ 2º. A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência.

34. https://www.planalto.gov.br/publi_04/CLECAO/PRODH2.HTM, capturado em 06/07/2003.


BIBLIOGRAFIA

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https://www.planalto.gov.br/publi_04/CLECAO/PRODH2.HTM, capturado em 06/07/2003.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RÊGO, Márcia Cristina dos Santos. A proteção da pessoa portadora de deficiência pelo Estado brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 224, 17 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4834. Acesso em: 25 abr. 2024.