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Desdemocratização da democracia x Regulação autoritária do mercado

Desdemocratização da democracia x Regulação autoritária do mercado

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É preciso pensar a crise brasileira dentro da crise maior que está afetando todo Ocidente e ameaçando levar o mundo a uma nova guerra mundial.

A crise em andamento no Brasil é o desdobramento de uma crise mais profunda que afeta a Europa e os EUA. No centro dela está o conflito entre o “povo do mercado” (comunidade internacional de interesses privados que exige a predominância da justiça de mercado contra as interferências da justiça social) e os “povos dos Estados” endividados (cujas soberanias têm sido mais e mais limitadas em razão da predominância da ganância econômica privada sobre as políticas públicas redistributivas).

China e Rússia não foram afetados por esta crise por uma razão muito simples. A ausência ou deficiência da democracia nestes dois países permite aos seus governos liberdade de ação política para limitar a ambição do mercado. O ódio que os analistas do mercado devotam a Putin e ao Partido Comunista Chinês também tem, portanto, origem no conflito que está rasgando o tecido social no Brasil.

O mundo chegou, enfim, a um novo ponto de não retorno. Dois modelos distintos estão se opondo: de um lado o Estado autoritário pretende regular o mercado para proteger seus povos; do outro o mercado que pretende “desdemocratizar” as democracias ocidentais para obter mais lucro sacrificando as populações estatais. A grande questão é saber se a nova síntese deste conflito dialético-histórico será obtida com ou sem violência em larga escala.

No Brasil, o cenário é nebuloso. A vitória do golpe não é previsível, tampouco é certa a continuidade do governo Dilma Rousseff. A violência não pode ser inteiramente descartada, pois qualquer solução (exceto a convocação imediata de eleições gerais) poderá alimentar o rancor genocida dos derrotados, sejam eles golpistas ou petistas.

A grande imprensa brasileira culpa Dilma Rousseff e o PT em razão de um suposto excesso em gastos sociais. O assustador aumento das despesas da União com o Judiciário promovido recentemente por Eduardo Cunha não é objeto de questionamento. A hipocrisia da imprensa é evidente, inclusive porque ela retira outra questão do debate:

“...a crise financeira do Estado não se deve ao facto de a massa da população induzida por um excesso de democracia, ter retirado demasiado para si dos cofres públicos; pelo contrário, os maiores beneficiários da economia capitalista pagaram demasiado pouco, aliás, cada vez menos, aos cofres públicos. Se houve uma ‘inflação de reivindicações’ que levou a um défice estrutural das finanças públicas, esta registrou-se nas classes altas, cujos rendimentos e patrimônio aumentaram rapidamente nos últimos anos, sobretudo também devido às descidas de impostos a seu favor, enquanto os salários e prestações sociais nos estratos mais baixos da sociedade estagnavam ou até baixavam – uma evolução que, tal como referido, foi dissimulada através da inflação, do endividamento do Estado e do ‘capitalismo de crédito’, ou, pelo menos, legitimada temporariamente.” (Tempo Comprado, Wolfgang Streeck, editora Actual, Lisboa-Portugal, 2013, p. 120).

A toxidade do conflito no caso do Brasil está se tornando insuportável principalmente em razão da grande imprensa aprofundar a crise ao se colocar claramente em favor do “povo do mercado” e contra o povo brasileiro que elegeu Dilma Rousseff por maioria. Não existe a menor possibilidade de paz social quando a própria imprensa trabalha para destruir o espaço político onde a mesma existe.

Os EUA parecem apostar na vitória do golpe de estado no Brasil. O silêncio da Casa Branca neste caso é tão revelador quanto a embaixadora que foi nomeada para o nosso país depois de conduzir o golpe no Paraguai. Rússia e China observam, mas tudo indica que Pequim e Moscou não aprovam inteiramente a destruição da democracia brasileira, pois foi justamente ela que permitiu o crescimento das relações diplomáticas e comerciais entre o Brasil e aqueles dois países.

A construção do BRICS parece incomodar os EUA, principalmente depois que o novo bloco criou um banco que rivaliza com o FMI. Em razão de sua arquitetura este novo banco não pode ser controlado pelos EUA nem utilizado para impor políticas em favor do “povo do mercado”. Se o golpe de estado parlamentar-midiático-jurídico for bem sucedido, a missão atribuída a José Serra pelo Tio Sam será, segundo tem se dito, destruir este novo banco. O papel do Brasil dentro dos BRICS está sendo superestimado pelos golpistas e subestimado pelo governo?

Se o Brasil for retirado do novo bloco em razão da vitória do “povo do mercado”, o povo brasileiro será empobrecido, mas não sentirá imediatamente os efeitos da destruição do novo banco. De qualquer maneira, os demais países que compõe o bloco continuarão RICS e seus povos da Rússia, Índia, China e África do Sul (mais da metade da população mundial) não ficarão mais desprotegidos diante da ganância privada que vai “desdemocratizando” as democracias ocidentais em favor da tirania do mercado.

A China é credora dos EUA. O Kremlin rivaliza em poder militar com a Casa Branca. A interferência dos EUA no Brasil pode e deve ser contrabalançada, pelo menos até a normalização da situação política, mediante a tributação dos ricos e a destruição dos monopólios jornalísticos que se colocaram a favor do “povo do mercado” e contra o povo brasileiro. O PT vai exigir dos BRICS garantias maiores ao governo Dilma Rousseff? Como disse a Emir Sader pelo Twitter há alguns dias. Se eu for obrigado a escolher entre duas tiranias rejeitarei enfaticamente a ditadura mercado. Não faço parte de nenhuma comunidade financeira de interesses privados, mas nasci e continuarei sendo brasileiro. 



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