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Enem, OAB, aprovação em concurso público e crise econômica:a meritocracia e a dignidade humana

Enem, OAB, aprovação em concurso público e crise econômica:a meritocracia e a dignidade humana

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A meritocracia serve muito bem para retirar a responsabilidade do Estado, e dos próprios gestores públicos, quando não age, eficientemente [EC nº 19/1988], para garantir o Estado Social.

Retornando ao campo ideológico da meritocracia, vejo muito o endeusamento da meritocracia pelo ângulo errado. Geralmente a mídia fixa a meritocracia como um esforço próprio para se lograr algum motivo. Porém, temos que diferenciar a real meritocracia.

Dois estudantes. Não importando sexualidade, gênero, religião, etnia, convicção política. Chamarei um 'A' e outro de 'B'.

'A' tem tempo de sobre para estudar. Pode frequentar cursinho preparatório pago, percorrer várias bibliotecas públicas ou privadas, ou até as virtuais em seu computador, smartphone etc. Não há preocupação quanto ao que comerá, vestirá, pois tudo está disposto a qualquer momento. A família 'A', sem muitos esforços, ou com alguns esforços — cortar despesas como cinema, alguns alimentos industrializados — proporciona tranquilidade ao filho estudante. 'A' não precisa carregar lanche ou marmita, pois tem dinheiro para almoçar em restaurante.

'B' tem que trabalhar, pois a sua família não consegue, mesmo cortando despesas familiares, custear todas as necessidades de que necessita 'B'. A localidade do trabalho é longe e o serviço de transporte público existe, mas fica a 500m (quinhentos metros). 'B' trabalha 8h por dia e 44h semanais. No horário de almoço, 'B' estuda um pouco. Aliás, estuda também no percurso entre sua residência e o local de trabalho, e vice-versa. O cursinho que frequenta é gratuito. 'B' não tinha computador, mas agora tem. Porém não tem acesso à Rede Mundial de Computadores, já que não tem dinheiro para contratar plano de internet.

Quantos aprovados no Enem, na OAB ou em qualquer concurso público são parecidos com 'A' ou 'B'? Na maioria das vezes, vemos pessoas que tiveram todos, ou quase todos, os desfrutes de 'A'. Digo que 'B' é mais meritocrático do que 'A', pois àquele o maior esforço para superar a si mesmo, como desânimo pelo cansaço do itinerante, das exigências do ato laboral — responsabilidade, pontualidade, cordialidade, controle emocional para lhe dar com os clientes, o patrão ou superiores. Há maior desgaste em 'B' quando além do mental há o físico (locomover-se continuamente, permanecer em pé na maioria das vezes etc.). A preocupação de 'A' são seus estudos, as preocupações de 'B' são os estudos e o emprego.

Irei mais além. O nepotismo. Concurso público é um princípio da meritocracia. Todos têm a oportunidade de ocupar cargos públicos com os próprios esforços (estudar e ser aprovado). O nepotismo permite que indivíduo ingresse sem concurso público, por apenas parente (sejam por vínculo da consanguinidade ou da afinidade). Mesmo que a pessoa escolhida pelo gestor tenha todos os atributos técnicos para ocupar o cargo, ainda assim é antimeritocrático. A escolha do gestor é subjetiva, e este não teve a capacidade de avaliar demais cidadãos (não parentes) quanto à possibilidade de serem melhor do que a pessoa escolhida, por ser parente. Ou seja, querendo ou não, o que prevalece são os vínculos de parentesco nas relações de trabalho ou emprego.

STF — Súmula Vinculante 13

A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.

Dignidade humana e cargos público

Seria uma desigualdade aberrante exigir que um cadeirante, para ser policial, na área administrativa, fosse obrigado a correr a pé, como os não cadeirante, para aquele poder ocupar o cargo.

Dignidade humana e holofotes midiático

‘A’, ‘B’ e cadeirante, quem é mais meritocrático? O cadeirante, por lei, teve a possibilidade de não correr a pé, o que seria absurdamente desumano, para poder ocupar o cargo. Não houve uma diminuição da meritocracia, muito menos um "privilégio" ao cadeirante. Respeitou-se a dignidade humana e as circunstâncias reais de cada concorrente para o cargo. Na área administrativa não se exige o mesmo esforço físico dos policiais que estão nas vias públicas: correm, pulam muros etc. Logo há meritocracia por equidade nas condições exigidas pelo cargo.

‘A’ e ‘B’. A situação muda. Na inscrição, não irá contar se um o candidato trabalha ou não, se sustenta sua família ou não, se é de família bastada ou não, quanto tempo livre teve para estudar, se o local que reside é de difícil acesso ou não, tem luz ou não, se tem confrontos contumazes entre traficantes e policiais, se tem acesso a internet, por quanto tempo houve greve no estabelecimento educacional etc.

Diante disso tudo, ‘A’ estaria sendo agraciado pela sua condição, como acontece no nepotismo. Alguns leitores podem perguntar:

"Quem tem mais meritocracia, engenheiro civil ou pedreiro?"

Se admitirmos que sem a força física dos pedreiros o prédio não se ergueria, então são os pedreiros. Mas se admitirmos que sem o engenheiro a construção de um prédio de mais de 50 andares fatalmente desabaria, muito menos disto, já que pedreiro não tem qualificação aos cálculos estruturais, o engenheiro merecer todos os créditos. Todavia, ambos, engenheiro e pedreiro, não possuem todas as capacidades para edificarem. Cada qual necessita do outro. Mesmo o engenheiro, o qual possa usar alguma máquina para fazer tudo numa obra de pequeno porte, ainda assim precisou de alguém para criar o chip que controla a máquina. Ambos exercem funções diferentes, mas para um mesmo propósito: edificar.

‘A’ e ‘B’ têm os mesmo propósitos: serem aprovados. Todavia, as condições para alcançarem o sucesso são desiguais. Cada qual, diante do querer unilateral está pensando em si mesmo, em ser aprovado. Engenheiro e pedreiro necessitam estar comprometidos para um fim específico, a edificação. Se o pedreiro não tem a ferramenta adequada, o engenheiro fará de tudo para que aquele a tenha. ‘A’ e ‘B’ possuem os mesmos objetivos, mas cada qual não necessita — imposição da circunstância — colaborar, providenciar qualquer ajuda. Mesmo que há vários indivíduos, como ‘B’, solidariedade, ainda assim estarão em desvantagens em relação ao grupo que possui a mesma condição de ‘A’.

Então se devem dar mais glórias (meritocracia) aos que encontram obstáculos maiores? Por exemplo, morador de rua que conquistou cargo público. Com todas as dificuldades, logrou êxito. Pela perspectiva abordada, sim. Entretanto, devemos engrandecer o fato de ele ser morador de rua e ter conquistado (meritocracia) cargo público? Admitindo isso, estaremos justificando uma desigualdade social, imposta (utilitarismo) e, ao mesmo tempo, perpetuando a desigualdade, pois só é vitorioso quem luta pelo que quer. Se assim for, todos os cidadãos que ficaram desempregados, pelo desemprego em massa, em circunstância de crimes da PPPI (Parceria Público-Privada Ímproba), a qual a Lava Jato está agindo, todos os que perderam empregos são fracassados? Uma pessoa que tem depressão é fracassada?

É NECESSÁRIO REPENSAR SOBRE MERITOCRACIA

Há mentalidade de que com garra se conquista, e que somente os fracos de espírito sucumbem aos desafios da vida. A essência dessa mentalidade é justificável quando o ser humano vive isolado. Ele deve ser autossuficiente, em todos os aspectos. O que é impossível. Por isso, o ser humano é coletivo. Sabe que não sobrevive pelas próprias forças. Não podendo fazer ou estar em todos os locais, necessita de outra pessoa. Do convívio resultam regras sociais. As regras sociais dirão — pelo tipo de compreensão do que seja a vida, a qualidade de cada pessoa — quem tem mais direito ou não, ou até quem deve existir.

Justificou-se, assim a escravidão, o genocídio. Para justificar a não escravidão (autonomia da vontade), trabalho e o salário. Ora, trabalho análogo ao escravo não é escravo, quando se paga pelos serviços. Não há escravidão quando o ser humano é livre para escolher se quer ou não trabalhar em determinado local. O trabalhador é livre. Se há único local que paga muito bem, mas as condições de trabalho são desumanas (sem equipamento de proteção individual, por exemplo; ou horas extenuante, ou até mesmo o homem sendo uma extensão da máquina — Tempos Modernos, de Charlie Chaplin), mesmo assim não há coação ao trabalhador, já que existem outros locais próximos — apesar de pagarem muito pouco, o trabalhador não tem vida existencial digna (mínimo existencial): superendividamento ou vida a crédito. Como fica a meritocracia nestas questões? O labutar exaustivo, como ocorre, por exemplo, com os japoneses na “morte por excesso de trabalho” (Karoshi), deve ser palco de imenso show midiático consagrando a meritocracia?

Meritocracia versus dignidade humana (mínimo ético existencial). Podemos dizer que os servidores públicos, os quais encontram-se endividados, pelo atraso no pagamento, e a condição de endividados, tais servidores foram 'irresponsáveis' pelo não controle, e 'previsibilidade', desde as eleições de 2014, sobre o que gastaram além de suas necessidades? O crédito consignado criou uma 'zona de conforto' aos servidores — dinheiro no final do mês depositado pelo Estado —, e, assim, tais servidores não devem ser considerados meritocráticos? Ou seja, meritocracia também é saber controlar o orçamento familiar.

Eis as questões.


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