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Direito e argumentação.

Análise sobre a natureza argumentativa do direito

Direito e argumentação. Análise sobre a natureza argumentativa do direito

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Que a argumentação é fundamental para o Direito, isso não se discute. A argumentação é atividade inerente à compreensão do fenômeno jurídico, sem a qual o Direito não evolui e não responde às expectativas geradas pelos conflitos sociais. Mas até onde vai esse liame de interdependência entre ambos?

O Direito, tomado no seu sentido epistemológico, é linguagem.

Assim, todo o sistema jurídico se estrutura pelo poder e pela força da palavra.

A maneira pela qual, no Direito, a palavra é aplicada, traduz um sentido todo ele peculiar.

Nesse contexto, o modo assertivo com que direciona, orienta, constrange, ordena, conforma, coaduna e – acima de tudo – convence, persuade e dissuade, bem como os termos linguísticos com que são colocados, indicam a natureza impositiva do Direito.

De fato, cabe asseverar, entretanto, que esta característica não é privilégio apenas do Direito, diga-se. Moral e religião, por exemplo, carregam consigo elementos linguísticos muito próximos aos do Direito.

Todavia, quando se entende o Direito na qualidade de fenômeno ordenador da sociedade, o aspecto argumentativo da linguagem apresenta-se-nos ainda mais pungente. Por quê? Tendo em vista a natureza democrática que permeia a vida política e social do Estado, é natural que esse fenômeno deve informar o pensamento jurídico em voga.

Tomemos por fundamento a lei em sentido amplo, fonte primordial do Direito, mas que com ele obviamente não se confunde.

A estrutura linguística das construções textuais da lei implica o enquadramento a uma conduta ali idealmente descrita. O famigerado “dever-ser” neokantiano e kelseniano.

Naturalmente que este “dever-ser” hipotetizado pela lei não redunda, inexoravelmente, no “ser”. Em outros termos, se a ordem emitida na lei não for rigorosamente observada pelos destinatários, no caso, todo e qualquer indivíduo, em relação a um certo contexto fático na norma prevista, resultará em uma consequência negativamente jurídica contra quem não lhe respeitou os termos impostos, a fim de colocar as coisas no seu devido lugar.

Assim, a reboque da violação, entrarão em cena o poder político soberano do Estado e a questão do monopólio da força.

Neste ponto, porém, vislumbra-se o fato de que o Direito é ordem, concebida esta tanto no sentido de organizador, quanto no de mandamento, para cuja manutenção emprega-se, em última análise, caso disso se necessite, o uso da força.

Difícil não resgatar, ilustrativamente, a figura mítica do centauro, mencionada por Maquiavel, no capítulo XVIII, de “O Príncipe”, no qual, para ele, a justiça do governante deve ser metade humana (a cabeça pensante, razão) e metade cavalo (a força bruta).

O Estado seria, então, o agente racionalizador, justificador e, por conseguinte, legitimador da violência oficial, física e psíquica (coerção), na elaboração da ordem social.

Além disso, dentro da sistemática filosófica de Thomas Hobbes e, em certa medida, de August Comte, a noção de justiça coincidiria com a de ordem, o que explicaria e justificaria todas as posturas adotadas pelo poder soberano de plantão (monarca, tirano, povo).

Sem embargo, o entendimento acerca do conteúdo normativo dos textos legais (não olvidando, logicamente, a tese de que há diferença entre texto normativo e norma) demanda uma dose considerável de esforço interpretativo para se chegar ao seu sentido e alcance, máxime se levar em conta a notória complexidade fática e a realidade constitucional que se abrem ao intérprete quando da aplicação do Direito, o que leva à conclusão de que interpretar não é tarefa fácil e enganosamente óbvia.

Em razão disso, a articulação intelectual, racional e reflexiva do jurista sobre os textos normativos, a cargo da hermenêutica jurídica, no exercício do Direito, é missão instransponível, cujas ferramentas darão os parâmetros necessários à fixação do melhor entendimento a ser dali retirado.

Assim, sob tal perspectiva, não se deve jamais olvidar, então, a questão fática envolvida nas relações jurídicas e seus contornos específicos que realmente interessam ao mundo do Direito, até porque ela exige também uma leitura interpretativa dos elementos que a constituem.

Em suma, os fenômenos fáticos carecem de um recorte, de uma delimitação e de uma conceituação jurídicos, à luz das formas e dos conteúdos da norma posta e pressuposta.

Além do mais, a análise dos preceitos normativos e fáticos se eleva e se destaca na complexidade do exercício argumentativo realizado pelo jurista, incluindo principalmente a atividade desenvolvida no âmbito processual, no qual se o enfretamento pelo bem da vida pleiteado, de maneira que, nesse passo, a argumentação é prática constante, melhor dizendo, é exercício vital, dos que se envolvem na discussão de temas jurídicos.

Ao resgatar-lhe a etimologia, nota-se que argumentar significa esclarecer, clarear, iluminar, ou seja, traduz a ideia de lançar luz sobre o que é obscuro, oculto e nebuloso, desatando o nó górdio de uma controvérsia.

Neste sentido, Direito é argumentação, na medida em que a razão ficará do lado de quem, em face dos ditames da norma e dos elementos de fato, tiver a habilidade de melhor compor a linguagem com o objetivo de levar clareza, luz e iluminação ao caminho pelo qual julgador deve percorrer.

Argumentação seriam, a rigor, competências de articular expressões linguísticas convincentes, de modo preciso, conciso, claro e objetivo, com o intuito de bem expor os fundamentos da tese daquele que discursa.

Vale lembrar, nesta senda, que argumentar requer pacto fiel à simplicidade de estilo. Parafraseando Ortega y Gasset, a clareza é a cortesia do jurista. Com efeito, a maneira empolada de se expressar é uma armadilha na qual o jurista insiste em cair, conquanto tenha consciência de que é pecado mortal para o convencimento.

Arthur Schopenhauer, célebre filósofo do Dezenove, na seminal obra “A Arte de Escrever”, cujos capítulos foram retirados de seu “Parerga e Paralipomena”, alertava e repudiava para o fato de quem muito escrevia e pouco dizia, com o infeliz e estéreo anseio de demonstrar uma falsa erudição.

Ser simples, no entanto, é complexo, na medida em que a arte de se fazer entender, invariavelmente, cobra do jurista refinamento e maturidade intelectual, cuja consecução se obtém com anos de estudo, preparação, disciplina e dedicação.

Ademais, a narrativa que postula um determinado ponto de vista deve ser formal e materialmente concatenada com os interesses do articulador da ideia defendida, com a cautela de não haver contradições, redundâncias e termos pedantes, que têm o condão de sabotar o que se quer sustentar. São eles inimigos do discurso argumentativo.

No Direito, esses desvios são fatais, de modo que, mesmo estando com a situação amplamente favorável, o argumento mal empregado e o uso indevido da linguagem sucumbe à argumentação sabiamente aplicada.

O viés dialético do Direito induz à inexorabilidade da argumentação e da contra-argumentação, de sorte que a justiça possível, a perfectibilidade da justiça, acontece na submissão irrenunciável ao contraditório e na reverência à argumentação mais plausível e eficiente do discurso propugnado.

Irrefutável, porém, a circunstância de que só o conhecimento jurídico estrito não basta ao exercício argumentativo. É bom que se faça esta advertência.

O arcabouço intelectual de quem discursa argumentativamente tem um peso muito grande. Aportes teóricos de outros saberes são altamente eficazes e imprescindíveis para formar uma excelente estratégia argumentativa no campo jurídico.

O conhecimento e a noção de Lógica, Filosofia, Sociologia, Psicologia e, por que não, Teologia servem ao aperfeiçoamento do Direito, do raciocínio e da argumentação jurídicos, como, por exemplo, no preenchimento valorativo de elementos normativos ditos abertos ou vagos, verdadeiras cláusulas gerais, cujo conteúdo, sentido e alcance, em última instância, se submetem ao crivo do intérprete.

É compreensível, contudo, que a atividade valorativa, fruto dos processos interpretativo e argumentativo, não é ilimitada. Aliás, o próprio Direito, neste particular, em face da Constituição, delineia o papel do jurista, impondo contornos conceituais e principiológicos cujas fronteiras não podem ser ultrapassadas, sob pena de inadequação semântica, vale dizer, sob pena de inconstitucionalidade frente aos referencias lá determinados.

Desse modo, procurou-se contribuir, no presente ensaio, com a posição de que a argumentação é atividade inerente à compreensão do fenômeno jurídico, sem a qual o Direito não evolui e não responde às expectativas geradas pelos conflitos sociais.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Marcos Antônio da. Direito e argumentação. Análise sobre a natureza argumentativa do direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5266, 1 dez. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57868. Acesso em: 26 abr. 2024.