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Consumismo: do idealismo ilusório ao superendividamento do consumidor

Consumismo: do idealismo ilusório ao superendividamento do consumidor

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Surge a ideia de uma legislação que tutele as situações de superendividamento, a fim de prevenir a potencialização de seus reflexos mais danosos.

“Um manual de moda influente, muito lido e respeitado, editado para a temporada outono -inverno por um jornal prestigioso, ofereceu “meia dúzia de visuais-chave para os próximos meses, ... que vão colocar você à frente da tendência do estilo”. Essa promessa foi adequada e calculada com habilidade para chamar atenção. Com muita habilidade, na verdade, pois com uma frase curta e ágil conseguiu abordar todas, ou quase todas, as preocupações e os estímulos alimentados pela sociedade de consumidores e nascidos com a vida de consumo”.

Zygmunt Bauman.

RESUMO: O presente trabalho faz uma análise acerca do consumismo e da facilidade para ter acesso a bens ou serviços a partir da expansão do crédito. As pessoas passaram a viver tão somente para consumir, perdendo o controle sobre essa atividade em função das incitações estratégicas dos fornecedores, o que as levam à situação de endividamento. Nesse sentido, o primeiro capítulo desse trabalho irá analisar sobre o consumismo versus consumo, a cultura consumista, os avanços tecnológicos e o induzimento ao consumo por parte das empresas e as estratégias mercadológicas de consumo. No segundo capítulo, serão analisadas as causas e hipóteses de regulação para a prevenção do superendividamento, abordando especialmente o Projeto de Lei do Senado Federal nº 283 de 2012 e também será feita uma reflexão acerca do consumo consciente e sustentável.

Palavras-chave: Consumismo. Sociedade de Consumidores. Superendividamento.

SUMÁRIO:INTRODUÇÃO..1 A PÓS-MODERNIDADE E A ERA TECNOLÓGICA.. 1.1 Consumismo versus consumo. 1.2 Cultura consumista. 1.3 Os avanços tecnológicos e o induzimento ao consumo por parte das empresas. 1.4 Estratégias mercadológicas de consumo. 2 A SOCIEDADE DO CRÉDITO AO CONSUMO E O DESAFIO GLOBAL DO SUPERENDIVIDAMENTO.. 2.1 O contexto sobre as causas do superendividamento. 2.2 Hipóteses de regulação para prevenir o superendividamento. 2.3 O Superendividamento e o Projeto de Lei do Senado Federal nº283/2012.2.4 O consumo consciente e sustentável ..2.5 O direito de recomeçar. CONCLUSÃO.. REFERÊNCIAS. 


INTRODUÇÃO

O presente trabalho apresenta um estudo acerca do consumo e a sua presença em nosso cotidiano. Consumir é uma atividade essencial para nossa sobrevivência, que possibilita satisfazermos nossas necessidades básicas e garantirmos o mínimo existencial de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana.

Com a expansão do crédito e a inovação da tecnologia ficou muito mais fácil ter acesso a bens e serviços. No entanto, o problema surge quando as pessoas passam a viver somente para consumir, fato resultante da publicidade agressiva por utilizar de estratégias que induzem o consumidor a comprar exageradamente.

Inicialmente, o primeiro capítulo deste trabalho irá tentar conceituar o significado de consumismo, quais seus efeitos perante a sociedade de consumidores, identificar os indivíduos que mais são afetados e uma explicação do porquê são alvos dessa prática, com a finalidade de um momento posterior analisar as consequências desse consumo exagerado.

No segundo capítulo, é analisada a amplificação do acesso ao crédito que permitiu aos consumidores obter mais facilmente bens e serviços, porém atingindo uma parcela da população o fenômeno do superendividamento, causado pela vulnerabilidade financeira e a falta de informações, o que acarreta a exclusão social do indivíduo, pois passa a fazer parte do cadastro de devedores inadimplentes.

A partir desse estudo, verifica-se que é necessária a criação de alternativas de proteção ao consumidor para que esteja sempre inserido na sociedade, como também a obtenção de estratégias de prevenção ao consumo exagerado e a criação de uma lei específica que tutele diretamente sobre os direitos do consumidor pessoa física de boa-fé, que se encontra em estado de superendividamento. Dessa forma, o Projeto de Lei nº 283 do Senado Federal tem papel importante nessa situação, uma vez que tem como objetivo principal a acabar com a exclusão social do consumidor superendividado, como também reinserir o mesmo no mercado de consumo e educa-lo financeiramente.

Para a realização deste trabalho, foram efetuadas pesquisas bibliográficas e por meio eletrônico, analisando também as propostas legislativas em andamento, a fim de enriquecer a coleta de informações e permitir um aprofundamento no estudo referente ao consumismo e as causas do superendividamento, revelar a importância da criação de uma lei que tutele sobre a prevenção do superendividamento e um sistema de recuperação financeira para o consumidor pessoa física.


1 A PÓS-MODERNIDADE E A ERA TECNOLÓGICA

O consumo é algo tão corriqueiro, por fazer parte de todos os nossos dias, que no mais das vezes não percebemos tal ato pelo fato de ser algo tão simples. Realmente, para sobreviver é preciso consumir, pois somente satisfazemos as necessidades essenciais para viver com o mínimo existencial, no que tange a subsistência do ser humano.

A palavra “consumo” está interligada ao dinheiro, e não há discussão quanto a isso, pois a partir da criação de uma moeda de troca ficou muito mais fácil ter acesso a produtos e serviços para a subsistência humana. A atividade de consumir é facilmente exercida, não existindo mais situações em que o homem necessita do esforço físico e mental para obter um bem existencial, basta ter um emprego e, consequentemente, perceber salário, e tudo que o nosso poder econômico permite pode ser comprado.

Relação de consumo nada mais é do que uma transação de troca de interesses, situação na qual existem dois sujeitos que irão constituir essa relação. De um lado, está a pessoa que deseja obter um produto ou serviço, assim chamado de consumidor, o qual irá adquirir ou utilizar produto ou serviço como destinatário final, e de outro, a pessoa que irá corresponder a esse anseio, qual seja, o fornecedor.

No entanto, o problema atual nas relações de consumo está na situação das pessoas terem passado para o estado de “viver para consumir”, de forma que, não por vontade consciente e própria, começam a perder o controle sobre a atividade de consumir, em função do fato do fornecedor, utilizar estratégias que induzem o consumidor a comprar bens e serviços de forma cada vez mais quantitativa.

Feitas essas primeiras considerações, esclarece-se que o presente capítulo tem o propósito buscar o significado de consumismo e seus possíveis efeitos, identificar o grupo de pessoas que são alvos dessa prática e quais os motivos que lhes remetem ao mesmo, a fim de possibilitar a posterior análise sobre as consequências de consumir exageradamente, e especialmente o superendividamento do consumidor pessoa física.

1.1 Consumismo versus consumo

Consumir é atividade constante, rotineira e ininterrupta, que surge desde a nossa mínima existência e se estende até o último momento de nossa vida. A arte de consumir tem, num primeiro momento, o objetivo único e exclusivo de obter produtos ou serviços que alcancem as necessidades básicas de um indivíduo, para que possa viver de forma digna. No entanto, existe também aquele consumo que excede essa necessidade existencial, embasado no desejo e anseio de obter bens que nos propiciem maior conforto e identidade. É fundamental realizar uma análise critica quanto ao consumismo para que possamos compreender a sociedade em que vivemos e porque tantas “necessidades” são criadas rotineira nos indivíduos.

Zygmunt Bauman (2008, p. 41) nos exemplifica claramente o que vem a ser o consumismo:

Pode-se dizer que o “consumismo” é um tipo de arranjo social resultante da reciclagem de vontades, desejos e anseios humanos rotineiros, permanentes e, por assim dizer, “neutros quanto ao regime”, transformando-os na principal força propulsora e operativa da sociedade, uma força que coordena a reprodução sistêmica, a integração e a estratificação sociais, além da formação de indivíduos humanos, desempenhando ao mesmo tempo um papel importante nos processos de autoidentificação individual e de grupo, assim como na seleção e execução de políticas de vida individuais.

O consumismo, atividade distinta do consumo, pode ser considerado uma das características do ser humano, porém não de impulso natural, mas uma atribuição desenvolvida pela sociedade de consumidores. Para que uma determinada sociedade seja atribuída pelo status de consumista, é necessário que o homem, de forma subjetiva, tenha em mente o desejo, grande vontade e o almejo da obtenção de bens de forma célere (BAUMAN, 2008).

Na sociedade moderna ou pós-moderna em que vivemos, o curso e as consequências do consumismo passaram por grandes modificações, de forma que é equivocado ainda pensar que os indivíduos, ao consumirem, estão se apropriando e acumulando bens somente para atender as suas necessidades básicas de conforto e bem-estar. Até pode ser que essa busca de conforto seja um dos principais valores, porém isso somente ocorreria “na sociedade de produtores, um tipo de sociedade comprometida com a causa da segurança estável e da estabilidade segura, que baseia seus padrões de reprodução a longo prazo em comportamentos individuais criados para seguir essas motivações” (BAUMAN, 2008, p. 42).

O modelo de sociedade de produtores é distinto daquela de consumidores, uma vez que a primeira objetivava a posse de um grande número de bens para que pudessem ter maior segurança diante de um futuro próximo e os mesmos eram conservados para que pudessem ter longa duração de uso. Já na sociedade de consumidores, prioriza-se a obtenção de grande quantidade de bens, porém de maior valor, os quais são descartados em um lapso de tempo bem menor.

Isto posto, Bauman (2008) ao fazer referência ao modelo de sociedade de produtores, entendida como ideal, porque “Sendo a segurança a longo prazo o principal propósito e o maior valor, os bens adquiridos não se destinavam ao consumo imediato – pelo contrário, deviam ser protegidos da depreciação ou dispersão e permanecer intactos” (BAUMAN, 2008, p. 42).

Na sociedade de produtores sólido-moderna, priorizava-se a satisfação pela segurança em um longo lapso temporal, e não no consumo imediato e descartável de bens. Não obstante, esse desejo humano não se enquadra em nossa sociedade de consumidores, uma vez que não existe estabilidade no que diz respeito aos anseios de consumo, pois o mundo está sempre em transformação e o objetivo dos indivíduos dessa sociedade é de sempre permanecer atualizados. Dito isso, Bauman (2008, p. 44) afirma que não há outra maneira de permanecer na estabilidade:

Dificilmente poderia ser de outro jeito, já que o consumismo, em aguda oposição às formas de vida precedentes, associa a felicidade não tanto à satisfação de necessidades (como suas “versões oficiais” tendem a deixar implícito), mas a um volume e uma intensidade de desejos sempre crescentes, o que por sua vez implica o uso imediato e a rápida substituição dos objetos destinados a satisfazê-la.

 Os desejos instáveis e as necessidades insaciáveis resultam um consumo fugaz, fazendo com que os bens sejam descartados de forma imediata. Essa era líquido-moderna não comporta o armazenamento de bens em longo prazo, ela adia toda e qualquer satisfação, onde os bens vão perdendo valor cada vez mais rápido e, ao se tornarem produtos que não são adequados ao momento, logo são descartados, muitas vezes nem sequer utilizados. Os produtos em grande quantidade tornam-se objetos que atrapalham nossos cômodos e, consequentemente, inúteis.

O mercado direcionado para o consumo é o principal fato desencadeador e formador de indivíduos consumistas. As empresas visam, cada vez mais, obter o lucro com a venda de seus produtos aos consumidores e, a partir do marketing são usadas estratégias que induzem o consumidor a desejar produtos ou serviços de forma constante, seguindo um ciclo de apropriação de bens e, logo em seguida, a sua remoção. A economia consumista se mante dessa forma, quanto mais movimentação de dinheiro, mais ela cresce.

Nesse sentido, Bauman (2008, p. 53) criou um ciclo de funcionamento da economia consumista, características que evidenciamos na modernidade:

Na economia consumista, a regra é que primeiro os produtos apareçam (sendo inventados, descobertos por acaso ou planejados pelas agências de pesquisa e desenvolvimento), para só depois encontrar suas aplicações. Muitos deles, talvez a maioria, viajam com rapidez para o depósito de lixo, não conseguindo encontrar clientes interessados, ou até antes de começarem a tentar. Mas mesmo os poucos felizardos que conseguem encontrar ou invocar uma necessidade, desejo ou vontade cuja satisfação possam demonstrar ser relevante (ou ter a possibilidade de) logo tendem a sucumbir às pressões de outros produtos “novos e aperfeiçoados” (ou seja, que prometem fazer tudo que os outros podiam fazer, só que melhor e mais rápido – com o bônus extra de fazer algumas coisas que nenhum consumidor havia até então imaginado necessitar ou adquirir) muito antes de sua capacidade de funcionamento ter chegado ao seu predeterminado fim.

No modelo de desenvolvimento vigente, é perceptível que o mundo vai estar sempre em transformação e as empresas sempre vão tentar criar produtos que superem as necessidades de um anterior, com melhores qualidades, para que o ciclo de consumo continue crescendo e as pessoas não deixem de comprar. Essas estratégias mercadológicas contribuem para de que forma um tanto negativa a sociedade não deixe de consumir.

De acordo com Bauman (2001, p. 96), o consumismo:

[...] não diz mais respeito à satisfação das necessidades – nem mesmo as mais sublimes, distantes (alguns diriam, não muito corretamente, “artificiais”, “inventadas”, “derivativas”) necessidades de identificação ou a autossegurança quanto à adequação. [...] o spiritus movens da atividade consumista não é mais o conjunto mensurável de necessidades articuladas, mas o desejo – entidade muito mais volátil e efêmera, evasiva e caprichosa, e essencialmente não referencial que as “necessidades”, um motivo autogerado e autopropelido que não precisa de outra justificação ou “causa”. A despeito de suas sucessivas e sempre pouco duráveis reificações, o desejo tem a si mesmo como objeto constante, e por essa razão está fadado a permanecer insaciável qualquer que seja a altura atingida pela pilha dos outros objetos (físicos ou psíquicos) que marcam seu passado.  

A pergunta sobre o que é felicidade para indivíduos de uma sociedade de consumidores já deve estar clara, qual seja, consumir. No entanto, o consumo não pode significar felicidade, muito menos ser sinônimo. A atividade de consumir, como já citado, é somente para obter satisfação das necessidades básicas de um ser humano, porém, para muitos indivíduos, pode ser único fator de autorrealização e busca pela felicidade. O consumismo, além de ser algo orientado na propensão ao consumo, muitas vezes supérfluos, também é um desperdício econômico e que pode gerar o superendividamento, assunto que será tratado em um momento posterior.

1.2 Cultura consumista

O ser humano sempre foi consumidor, desde o tempo mais remoto até os dias atuais. Faz parte da natureza humana o ato de consumir, especialmente porque é imprescindível para a sobrevivência digna, tais como a obtenção de alimentos, higiene pessoal e vestuário. No entanto, essa necessidade de consumo tornou-se mais frequente e acelerada na pós-modernidade, uma vez que os bens que nos propiciam o mínimo de conforto foram sendo aprimorados e desenvolvidos, de modo que essa evolução trouxe como consequência o consumismo desenfreado, onde o ato de consumir confunde-se com o significado de identidade humana.

O consumismo exagerado faz com que a identidade humana perca credibilidade, de modo que:

[...] a mudança de foco da posse para o descarte e a alienação de coisas se encaixa perfeitamente na lógica de uma economia orientada para o consumo. As pessoas que se apegam a roupas, computadores e celulares de ontem significam a catástrofe para uma economia cuja principal preocupação, e cuja condição sine qua non de sobrevivência, é o descarte rápido, e cada vez mais abundante, na lata de lixo, dos bens comprados e adquiridos; uma economia cuja coluna vertebral é a remoção do lixo. (BAUMAN, p. 28, 2013).

A identidade é um conjunto de caracterização do ser humano, sujeito de direitos e deveres, que irá determinar as crenças, objetivos e finalidades que um indivíduo tem e deseja ter em sua vida, ou seja, visa criar uma sociedade onde todos tenham a capacidade de raciocinar e refletir, de forma lógica, sobre todos os seus atos. Ressalta-se que essa identidade é que irá formar toda e qualquer convicção sobre decisões e atitudes a serem tomadas no decorrer da sobrevivência de indivíduo.

A sociedade de consumidores não é somada pela quantidade de consumidores, até porque a atividade de consumir é algo individual e solitário, mas refere-se a uma sociedade observadora, que julga e faz avaliações sobre as capacidades e condições que os seus membros possuem para poder consumir, principalmente no que tange a economia.

Os vínculos entre os membros de uma sociedade de consumidores são conduzidos e mediados praticamente pelo mercado de consumo, sempre na busca de novidades e tendências mercadológicas que as empresas têm a oferecer. As pessoas têm o pensamento de que necessitam da autoidentificação, e para alcançar isso, precisam estar um passo a frente nas tendências de estilo, procurando adquirir produtos de maior valor, muito bem vistos ante os outros membros dessa sociedade. De acordo com o autor Bauman, ““Estar à frente” indica uma chance de segurança, certeza e de certeza da segurança – exatamente os tipos de experiências de que a vida de consumo sente falta, de modo conspícuo e doloroso, embora seja guiada pelo desejo de adquiri-la” (BAUMAN, 2008, p. 108).

O consumidor consciente, aquele que consome apenas para suprir as necessidades básicas, sabe e tem conhecimento de que todo e qualquer produto tem prazo de validade, portanto, o mesmo irá desfrutar e utilizar do produto até o seu perecimento. Nessa situação, esse consumidor não precisa do status de “estar à frente” para ser reconhecido na sociedade, ele apenas consome aquilo que realmente é necessário, muito pelo contrário do consumidor impulsivo e irracional.

Na modernidade líquida o processo lento de consumo é considerado “morte social”, pois os membros da sociedade de consumidores estão sempre em movimento e, aquele que simplesmente parar, será excluído. A cultura consumista – ou síndrome cultural consumista – consiste “na negação enfática da virtude da procrastinação e da possível vantagem de se retardar a satisfação – esses dois pilares axiológicos da sociedade de produtores governada pela síndrome produtivista” (BAUMAN, 2008, p. 111).

Escolha e liberdade são palavras assim consideradas sinônimas em uma cultura consumista, uma vez que o individuo somente poderá desconsiderar a sua escolha se em seguida não submeter à prática de sua liberdade. Na cultura consumista, estão envolvidos os aspectos de “velocidade, excesso e desperdício” (BAUMAN, 2008, p. 111). Neste sentido, o lapso de tempo entre o desejo e a satisfação é encurtado de forma radical, da mesma forma como ocorre entre a satisfação e o descarte do produto.

Os consumidores plenos, aqueles considerados impulsivos e irracionais, são adeptos ao escopo da aceitação de que todo e qualquer produto tem curta duração e de que seu descarte já está predeterminado. Portanto, a sociedade de consumo é caracterizada pelo excesso, a extravagância e o desperdício, sendo consistida em uma experimentação contínua de bens, onde os seus membros estarão sempre em situações de cometimento de tentativas e erros.

O consumo é uma atividade de busca de necessidades, porém pode servir como um ato de aprendizagem, ou seja, refletir sobre as consequências que esse ato pode desencadear quando não praticado de forma consciente. Deste modo, temos que ter em mente que o principal objetivo de consumir é permitir que os indivíduos satisfaçam suas necessidades, de forma planejada, sempre dentro de suas possibilidades e não como uma tarefa constante e exacerbada, ela deve ser controlada e muito bem refletida, por mais que faça parte de nossa rotina e seja algo simples.

A atividade de consumir significa estar em movimento, e não simplesmente à aquisição e posse de bens. As pessoas devem aceitar a satisfação como um sentimento e experiência momentânea, nunca para sempre, até porque se fosse de forma duradora seria totalmente desagradável. É nesse sentido que o autor Bauman (2008, p. 127) procura buscar respostas a partir de perguntas que poderão se encaixar em algum tipo de infelicidade, e que podem ser refletidas por algumas pessoas:

Não resta nada a ser desejado? Nada a perseguir? Nada com que sonhar na esperança de que se concretize ao acordarmos? Será que alguém está inclinado a se conformar de uma vez por todas com o que tem (e assim, por substituição, com o que é?) Nada mais de novo e extraordinário para abrir caminho até o palco da atenção, e nada nesse palco que se possa usar e depois descartar? Tal situação – de curta duração, pelo que se espera – só pode receber um nome: “tédio”. Os pesadelos que assombram o Homo consumens são coisas, animadas ou inanimadas, ou as sombras delas – que ameaçam ficar por mais tempo do que deveriam, espelhando-se pelo palco de forma desordenada.

A criação de novas necessidades não é a principal preocupação da sociedade de consumidores, mas sim o desprezo sobre os bens adquiridos anteriormente ao novo desejo. Uma vez alcançada à finalidade do produto, vem o surgimento de um novo, e o velho passa a não ter utilidade, não tendo mais qualquer funcionalidade e, consequentemente, será depreciado e descartado, ficando para trás da tendência.

Uma sociedade de consumidores possui grande diversificação social, no sentido de que existem camadas que separam todas as pessoas em níveis sociais, destacando-se principalmente os ricos dos pobres, pelo motivo da grande desigualdade em relação a situação financeira que reflete nas condições de vida, principalmente no que se refere as necessidades básicas. O fato é que os pobres podem até estarem separados dos ricos, porém ambos vivem na mesma cultura, os pobres não estão longe de serem atingidos pelo consumismo, muito pelo contrário, são o público alvo do superendividamento, pois não possuem rentabilidade econômica suficiente para satisfazer tudo aquilo que almejam, pelo motivo de serem pessoas ainda mais vulneráveis. Nesse sentido:

Numa sociedade sinóptica de viciados em comprar/assistir, os pobres não podem desviar os olhos; não há mais para onde olhar. Quanto maior a liberdade na tela e quanto mais sedutoras as tentações que emanam das vitrines, e mais profundo o sentido da realidade empobrecida, tanto mais irresistível se torna o desejo de experimentar, ainda que por um momento fugaz, o êxtase da escolha. Quanto mais escolha parecem ter os ricos, tanto mais a vida sem escolha parece insuportável para todos (BAUMANN, 2001, p. 113).

A cultura consumista é constituída por um grupo de pessoas que se submetem a satisfazer suas necessidades com aqueles produtos que acreditam necessitar, deixando de lado a busca por novas necessidades que possam de alguma maneira despertar um desejo agradável à satisfação. Essa prática de abrir mão da liberdade de escolha é uma das características da sociedade de consumidores, pois é somente diante dessa condição que um individuo pode permanecer nela. O medo de serem excluídas da sociedade de consumidores faz com que os membros se contentem com aquilo que é considerado correto aos olhos de outros.

1.3 Os avanços tecnológicos e o induzimento ao consumo por parte das empresas

O mercado de consumo é aquele que fornece produtos e serviços de forma ilimitada para todo e qualquer cidadão, basta ser atraído pelas propagandas publicitárias com a finalidade de oferecer e prometer cumprir com determinados resultados, para poder entrar no ciclo de consumidores. Em uma sociedade capitalista, centrada principalmente na movimentação financeira, o desenvolvimento da atividade empresarial tenda a possuir as mesmas regras: a) a mercadoria à venda deve ser comprada por consumidores; b) os consumidores apenas irão comprar para satisfazer algum desejo; e c) o consumidor está preparado financeiramente para consumir aquilo que lhe trará satisfação, porém isso dependerá muito da questão da promessa e a intensidade de seus desejos (BAUMAN, 2008, p. 18).

A tecnologia vem avançando de uma forma tão acelerada que os olhos de um ser humano não são capazes de acompanhar. Tecnologia, aqui, refere-se principalmente a um conjunto de meios eletrônicos com acesso à internet. O consumidor tornou-se muito mais instigado a consumir com a criação de páginas na web para a escolha de produtos e a contratação de serviços. A facilidade de acesso passa a ser uma atividade rotineira e viciante, pelo fato de que as empresas lançam cada vez mais propagandas de vendas com a intenção de chamar a atenção dos consumidores e essas pessoas começam a dar maior credibilidade para esse tipo de informação publicitária.

Com a facilidade de acesso, junto com ela vem o consumismo. Antes de qualquer coisa, é importante salientar que qualquer pessoa pode ser vitima do consumo exagerado, não importa a idade, situação financeira, estilo de vida ou personalidade, pois todo ser humano é um individuo possuidor de vulnerabilidades e sempre está em corrente risco de tal situação. O que realmente acontece é que a demanda imensa de publicidade e marketing das empresas fazem com que os indivíduos se deixam levar pelo induzimento ao consumo achando que isso poderá suprir a falta de determinados sentimentos, deixando-as menos tristes e ansiosas, porém mais impulsivas.

 A tendência de entrar na web e escolher um produto ou serviço tornou-se uma atividade conveniente e econômica para os consumidores, porém de forma parcial. As pessoas optam pela internet pelo fato de que é muito mais reconfortante não ter de usar de suas habilidades sociais para poder comprar alguma coisa, pois assim não precisam se deslocar até uma loja e usar o diálogo com um vendedor para conseguir buscar e encontrar o objeto de seu agrado e interesse, não estando sujeitos a qualquer tipo de compromisso. É neste sentido que a web:

[...] está se transformando rapidamente no hábitat natural dos membros, atuais e aspirantes, das classes instruídas, não admira muito que alguns poucos acadêmicos tendam também a saudar a internet e a rede mundial de computadores como alternativa ou substituta promissora e bem-vinda das instituições ortodoxas da democracia política, definhantes e moribundas, conhecidas hoje em dia por atraírem cada vez menos interesse, e ainda menos compromisso, da parte dos cidadãos.

A tecnologia possibilita a produção de forma acelerada, porém o seu exagerado crescimento gerou uma sociedade na qual as necessidades se inverteram. Consumir de forma responsável já não faz parte da sociedade de consumidores, as necessidades tornaram-se algo sem valor digno. Os significados de responsabilidade e escolha responsável passaram por algumas modificações, onde o primeiro é relacionado somente a atitudes individualistas, preocupando-se em dever algo somente consigo mesmo, e o segundo são atos que apenas irão satisfazer interesses e desejos de si próprio (BAUMAN, 2011, P. 59).

Vivemos em um mundo globalizado e em constante desenvolvimento tecnológico, isso é evidente, no entanto, até que ponto os avanços da tecnologia vem a ser um benefício para a população? Em geral, proporciona conforto. No entanto, as consequências dessa celeridade tecnológica importam em perda da autonomia, da liberdade de escolha individual, trazendo impacto nas relações sociais que afetam o comportamento e o desenvolvimento econômico. O consumidor, na visão da legislação consumerista, é parte vulnerável da relação de consumo e, assim sendo, corre o risco de sujeitar-se a aceitação de imposições perante a tecnologia. “Pressões são mais difíceis de resistir, combater e repelir quando não recorrem á coerção explícita e não ameaçam com a violência” (BAUMAN, 2011, p. 141).

Na sociedade em geral, onde estão presentes as relações sociais entre pessoas, troca de ideias e opiniões, compartilhamento de sentimentos, são situações que afetam diretamente todas as partes envolvidas e, diante disso, em algum momento, esses vínculos podem ser cortados, em virtude do surgimento de “imprevistos” indesejados. Assim também é uma relação de consumo, pois uma vez concretizada, afetará ambas as partes e, surgindo um “problema” nesse vínculo, consequentemente os dois lados envolvidos também serão atingidos. Nessa premissa, é possível entender o porquê os consumidores preferem utilizar a internet como ferramenta da obtenção de bens do mercado de consumo, uma vez que a rede é uma espécie de “dispositivo de segurança” que possibilita:

[...] a desconexão instantânea, livre de problemas e (presume-se) indolor de cortar a comunicação de uma forma que deixaria partes da rede desatendidas e as privaria de relevância, assim como de seu poder de ser uma perturbação. [...] é o ato de se livrar do indesejado, muito mais do que o de agarrar o que se deseja, que é o significado da liberdade individual. (BAUMAN, 2008, p. 137).

Na atualidade, ser consumidor é uma tarefa difícil, pois o mercado de consumo é crescente e está sempre buscando vender mais bens e serviços. A quantidade de informações que nos deparamos diariamente é imensa, portanto, faz-se necessário, na posição de cidadão consumidor, ter cautela quanto ao proveito dessas propagandas comerciais, se o produto ou serviço em destaque de alguma serão úteis ou necessários, para que não ocorra a prática do consumismo.

1.4 Estratégias mercadológicas de consumo

A sociedade, atualmente norteada por princípios capitalistas, visando apenas ao lucro pessoal e privado, é classificada a partir da renda financeira de cada pessoa e, mesmo que ainda observemos uma enorme desigualdade social, a população passou a participar de forma mais ativa na economia e, consequentemente, mais apta a consumir. Durante muito tempo foram criados diversos meios de fazer com que os indivíduos consumissem menos, porém sem sucesso significativo.

A ascensão da mídia, cada vez mais presente em nossos dias, fez com que o consumo fosse cada vez mais acentuado e desenfreado, espalhando-se pelo mundo todo, e isso se deu principalmente pela possibilidade da criação de estratégias que inovaram a sociedade contemporânea, determinando novos conceitos sociais, por meio de mecanismos influenciadores. Como já mencionado, o sistema econômico de nosso país é o capitalismo, de forma que a mídia tem grande influência na vida dos indivíduos. Desta forma, as empresas de consumo investem excessivamente em suas propagandas publicitárias, o marketing, para que tenham um maior número de vendas, usando de boas estratégias para atingir todas as classes sociais.

O marketing, transmissor de tantas informações sobre bens materiais e imateriais, está passando para os consumidores o que é ter estilo de vida. Nesse sentido, as marcas de grifes começam a influenciar os consumidores mostrando que somente os produtos de sua marca são detentores de nobreza e reputam maior luxo, ou seja, o produto não é mais aquele que dá identidade a marca. “Elas vendem performance, status, personalidade, desempenho e glamour” (SILVA, 2014, p. 31).

No pensamento da autora Silva (2014), se em todas as relações de consumo fossemos usar o raciocínio lógico, é óbvio que somente compraríamos aquilo que fosse necessário. No entanto, ao realizarmos uma compra, o nosso cérebro é influenciado pelo marketing, a partir de percepções e sentimentos em nosso inconsciente. O marketing também faz uso da analogia para nos influenciar, de forma que começamos a lembrar de determinadas situações que já foram vivenciadas de forma prazerosa.

As estratégias do marketing para atingir os consumidores de forma plena também estão relacionadas a algum tipo de sentimento, poder, beleza ou conexão com a infância. Hoje, ainda é mais fácil divulgar esses produtos, pois temos acesso à internet, e nela podemos desfrutar de diversos mecanismos, principalmente através das redes sociais. Dessa forma, temos de ter em mente que “[...] o objetivo final de toda estratégia de marketing é aumentar as vendas de determinado produto” (SILVA, 2014, p. 126).

As empresas estão sempre em grande competição no que se refere a produtos que prometem substituir outros ou que venham a ter melhores qualidades. O objetivo de uma empresa está relacionado à escolha de um grupo de indivíduos que venham a adquirir o seu produto, pois nem toda a sociedade é detentora do mesmo poder financeiro. O crescimento do número de clientes pode ser mudado através de alterações na essência do produto ou na inovação do marketing.

É nesse sentido que o marketing é ferramenta crucial para as empresas obter maior número de vendas:

Ao saber como aprendemos e tomamos decisões, fica mais fácil entender por que certos produtos anunciados em diversos veículos de comunicação (em especial a televisão) se transformam tão rapidamente em um sucesso de vendas. Primeiramente, temos que saber que todo produto ou serviço vendido vem associado a várias características, da mesma maneira que os objetos são armazenados na memória. Tudo tem alguma conotação sentimental, e é por esse meio que o marketing tenta nos fisgar. Ele não vende só o produto, mas tudo o que supostamente está associado a ele. (SILVA, 2014, p. 117).

Outra ferramenta usada pelo marketing é a utilização da neurociência, uma forma de descobrir quais são os sentimentos das pessoas em relação a determinados produtos e de que forma eles podem ser divulgados. O verdadeiro marketing visa saber o que produzir e para quem produzir, devendo ser desenvolvido para se adaptar as necessidades público alvo e estar sempre à frente das estratégias das outras empresas.

A estratégia de marketing está baseada na identificação dos possíveis clientes e de forma organizada posicionar a empresa no mercado de consumo, apresentando os seus potenciais produtos e serviços, quais são seus objetivos de venda e onde podem ser localizados. O marketing, portanto, tem a função de identificar a necessidade e o desejo do consumidor, para que assim possa passar para a empresa um método de organizar e adequar seus produtos para o lançamento futuro no mercado de consumo.

 A partir dessa análise, fica claro que o marketing só tende a ser cada vez mais eficiente e despercebido, no sentido de que as pessoas serão influenciadas automaticamente, sem mínima percepção. As propagandas publicitárias, antes de lançadas na mídia, são organizadas e testadas para alcançar os seus futuros consumidores, que também são analisados, ou seja, elas são detentoras de um poder influenciador, que induzem as pessoas, pois antecipadamente capacitadas e preparadas para chegarem ao seu objetivo final, qual seja simplesmente vender o produto ou serviço.

Feitas essas considerações, o segundo capítulo irá tratar diretamente sobre as causas e as formas de prevenção do superendividamento do consumidor pessoa física.


2 A SOCIEDADE DO CRÉDITO AO CONSUMO E O DESAFIO GLOBAL DO SUPERENDIVIDAMENTO

As estratégias mercadológicas são, por natureza, passíveis de grandes modificações em um lapso de tempo bastante veloz. O legislador precisa sempre estar em constante movimento, de forma que esteja sempre acompanhando as mudanças que ocorrem na sociedade para que possam estar devidamente atualizados a respeito dessas transformações na esfera global do consumo. Essas atualizações referem-se à popularização de acesso à internet e suas diversas informações, a constante inovação do marketing, a democratização do crédito, a evolução das classes sociais com a inclusão na sociedade de consumidores de pessoas com maior vulnerabilidade de informação e conhecimento, tais como idosos, analfabetos, crianças e jovens.

Nessa nova realidade social, o Direito do Consumidor, seja em qualquer país do mundo, desenvolvido ou não, ganha relevância nunca antes imaginada, pois serve de instrumento a garantir que os consumidores, ao menos teoricamente, sejam protegidos quando tiverem seus direitos violados. É necessário proteger os consumidores em qualquer tipo de sociedade, principalmente naquelas em que os ricos tendem a ficar mais ricos e os pobres muito mais pobres.

A amplificação do acesso ao crédito permitiu que os consumidores adquirissem mais bens e serviços, permitindo que as classes sociais menos favorecidas economicamente passassem a ter poder de compra de bens de consumo que lhes garante melhor qualidade de vida, além de ter condições de usufruir de serviços que hoje são muito mais acessíveis que outrora, como de lazer e turismo.

No entanto, a outra face desse novo estilo de vida facilitado pela obtenção do crédito, é, no mais das vezes, nefasto na vida dos consumidores, ocorrendo justamente quando este não tem condições de cumprir com as obrigações assumidas. A ilusão termina, e a realidade que se impõe é dura. O consumismo cria falsas ilusões no imaginário do consumidor, o qual, no momento da contratação, tem a expectativa ou tem predeterminado que no decorrer da obrigação terá condições financeiras de adimplir com a dívida, quando efetivamente não tem, o que o leva, obviamente, a situação de inadimplente, e, pior, a um estado de superendividamento.

Os devedores que não cumprem com suas obrigações, acabam por serem inclusos em cadastros de inadimplentes, tais como SPC e SERASA. A partir disso, esses indivíduos passam a ter dificuldades de reinserção na sociedade, como também no mercado de trabalho, pois muitas empresas levam em consideração que o empregado precisa estar com todas suas obrigações adimplidas, resultando numa verdadeira exclusão social deste indivíduo. 

Os consumidores precisam estar sempre ligados e atentos a qualquer tipo de informação, inclusive a categoria de pessoas elencadas no art. 39, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor, que trata das práticas abusivas sobre o fornecimento de produtos ou serviços, uma vez que a publicidade é brutal no sentido de estimular essas pessoas na obtenção de crédito irrestrito, podendo trazer como consequência o superendividamento.

Se faz mister criar alternativas de proteção ao consumidor para que consiga estar inserido na sociedade de consumidores, ou seja, obter estratégias de prevenção ao superendividamento da pessoa física e de boa-fé. Neste sentido é a doutrina atual brasileira, que utilizando-se do direito comparado, entende que as situações de endividamento necessitam ser amparadas pelo Judiciário, a fim de permitir, por um lado, que o consumidor não seja excluído do mercado, e, por outro lado, que o desenvolvimento econômico não sofra entraves. Neste sentido, é de suma importância o Projeto de Lei no 283 do Senado Federal, cujo objetivo é combater a exclusão social do consumidor superendividado, com sua reinserção no mercado de consumo, mas, muito além disso, educá-lo para o consumo consciente.

2.1 O contexto sobre as causas do superendividamento

A democratização do crédito para a sociedade de consumidores, a qual viabiliza a ampliação do consumo e o incremento da atividade econômica, trouxe como consequência a elevação do endividamento do consumidor, a tal ponto que atualmente fala-se de “superendividamento”. A situação de superendividamento significa a “impossibilidade do devedor de pagar todas as suas dívidas, atuais e futuras, com seu patrimônio e seu rendimento” (LIMA, 2014, p. 34).

O superendividamento, também chamado de falência ou insolvência do devedor, não foi conceituado pelo legislador em nenhum instrumento legal, no entanto, o Decreto-Lei nº 54/2004, o qual cria o Código de Insolvência e Recuperação de Empresa (CIRE), conceitua o consumidor insolvente: “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas” (art. 3º, 1). Nesse sentido, destaca-se que o superendividamento é fenômeno que pode atingir qualquer pessoa física, independente da sua condição financeira.

Na sociedade de consumidores existem diversas situações, ou causas, que levam os indivíduos ao superendividamento. Existem consumidores que, de alguma forma, não contribuíram ativamente para a sua insolvência, ou seja, tinham a real expectativa de que iriam honrar com as suas obrigações, porém em razão de situações inesperadas acabaram por não adimplir. No entanto, também existem aqueles consumidores que abusam do crédito e acabam consumindo muito além do que podem pagar, ou seja, não medem as consequências futuras advindos do consumo além da sua capacidade de pagamento.

O excesso de crédito disponível, a sua concessão irresponsável, somado as diferentes abusividades cometidas na ocasião da contratação, como não informar de forma prévia sobre as condições da contratação e todos os seus riscos, são fatores determinantes ao superendividamento. Os fornecedores de crédito estão sempre em busca do lucro e de ampliação do mesmo, aproveitando-se daqueles consumidores que carecem de educação financeira e são muito mal informados a respeito da contratação de crédito, uma vez que tais situações dificultam a compreensão no momento em que será feito o contrato do crédito, o qual deveria ser feito de forma racional e reflexiva.

Os idosos também são alvos de situações de superendividamento, pelo fato de que no mais das vezes, em função da desinformação e do baixo grau de instrução, são presas fáceis para os fornecedores de crédito, os oferecem aos mesmos empréstimos consignados, não explicando ao consumidor idoso sobre taxa de juros, número de parcelas tampouco o valor da prestação mensal. Assim sendo, os fornecedores de crédito abusam da omissão de informações sobre os riscos da contratação de crédito, uma vez que “a racionalidade individual é restrita por limitações cognitivas, pela informação disponível e pelo tempo que o indivíduo tem para fazer sua decisão” (PORTO; BUTELLI, 2015, p. 172).

Há também de se ter em mente que existem aqueles consumidores que a atividade de consumir é algo meramente impulsivo, em razão de que não possuem um planejamento racional sobre o futuro pós-compra, pois somente visam suprir alguma necessidade momentânea, muitas vezes sem utilidade prolongada. A impulsividade faz com que o consumidor tome decisões de forma arriscada, levando-o a pensar que no futuro conseguirá honrar com suas dívidas, cuja tendência é consumir cada vez mais.

Outro fator alarmante do superendividamento é a expansão do cartão de crédito, objeto este cada vez mais desejado pelos consumidores, pois o prazer de consumir e não precisar fazer o pagamento no ato da compra é característica incentivadora para o consumo incompatível com a renda do consumidor, fazendo com que as agências de crédito se beneficiem demasiadamente com os juros dessa ferramenta.

É nesse sentido que Lima (2014, p. 37) vem contribuir com o seu conhecimento:

O cartão de crédito aumenta o risco de superendividamento em razão de suas características muito peculiares em relação às tradicionais formas de crédito. A decisão de contratar a crédito é diferente, quando se trata do cartão de crédito, porque o crédito continua a ser concedido pelo fornecedor, após a assinatura do contrato de adesão, sem informações atualizadas sobre a situação financeira do devedor. Frequentemente ainda são oferecidos aumentos no limite do cartão sem solicitação prévia, e o pagamento mínimo aumenta os juros dificultando a quitação da dívida.

A popularização da internet e os mecanismos de facilidade de acesso a diversos meios de interação podem contribuir também com a exploração do uso de crédito. Os fornecedores de crédito inovaram e deixaram mais exequível as formas de contratação desses serviços, por meio de acesso na web ou aplicativos no próprio smartphone ou tablet. Os contratos de crédito firmados por meio eletrônico, através da internet, asseguram rapidez e comodidade, porém acabam por colocar os consumidores em posição de altíssima vulnerabilidade.

A publicidade é uma atividade profissional cujo objetivo principal é apresentar produtos e serviços de diversas empresas mercadológicas, no intuito de convencer o indivíduo a obter o que lhe está sendo apresentado. No entanto, a publicidade vem sendo bastante agressiva quanto as novas formas de adquirir crédito, o que incita ao consumo exagerado e atinge aqueles consumidores mais vulneráveis. O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 4º, inciso I, reconhece a vulnerabilidade dos consumidores, de forma que:

A noção de vulnerabilidade, apropriada pelo Direito, decorre da fraqueza ou debilidade de um dos sujeitos da relação jurídica, em razão de suas condições e qualidades inerentes, ou ante uma posição de força e superioridade do outro sujeito da relação. (OLIVEIRA, 2015, p. 196).

As crianças, que são indivíduos em condição de desenvolvimento, são mais suscetíveis aos estímulos de consumo, uma vez que estão em constante criação de desejos que não alcançam as necessidades reais. Há também aqueles devedores que acabaram de sair da insolvência, de modo que se encontram em situação de fragilidade econômica. 

As mudanças imprevistas no decorrer da vida podem ser uma das principais causas do superendividamento, pois são situações em que podem não existir outros mecanismos de ajuda financeira para o consumidor cumprir com suas obrigações a não ser a contratação de crédito, situação em que a vulnerabilidade é ainda maior.

Desta forma, Oliveira (2015, p. 201) deixa claro que:

Quando o crédito é a única alternativa para o acesso a bens e serviços essenciais, a vulnerabilidade do consumidor é agravada pela necessidade, que restringe sua possibilidade de escolha, afeta a liberdade negocial, reduzindo a autonomia da vontade e a própria capacidade de decidir pela utilização ou não do crédito.

Esse impasse de inadimplemento pode configurar situações de estresse para o devedor, o que gera insegurança econômica, principalmente para aqueles em que a renda financeira é muito baixa.

Tudo isso poderia ser evitado se a expansão do consumo pela via do crédito levasse em conta que a função social da economia deve ser respeitada e estar de acordo com aquilo que a lei prevê, sendo conduzida também à luz dos princípios sociais do direito do consumidor.  As empresas e instituições de crédito possuem o dever de permitir que os direitos fundamentais do consumidor sejam concretizados efetivamente, de forma que tenham suas liberdades individuais garantidas. Os fornecedores deveriam agir com lealdade e transparência perante os seus devedores, pois assim evitar-se-ia o endividamento excessivo dos consumidores, o que ao fim e ao cabo seria bom para todas as partes, isto é, para o consumidor que honraria com suas dívidas, para o empresário que manteria a venda no mesmo nível e para o Estado que manteria o desenvolvimento econômico.

2.2 Hipóteses de regulação para prevenir o superendividamento

Para analisar teses de regulação do superendividamento, primeiramente se faz mister circunscrever as características que perfazem essa situação, indagando quais elementos devem estar presentes para caracterização desse fenômeno, ou seja, quem deve ser considerado em estado de superendividado, cabendo então o questionamento sobre a possibilidade de tratamento diferenciado desse indivíduo pelo ordenamento jurídico. Esses elementos investigativos podem ser difíceis de serem alcançados, ou, em parte, de serem afirmados como consequência absoluta do fenômeno do superendividamento.

A Model Law on Family Insolvency for Latin Amercia and The Caribean (2011, p. 07), do escritório regional para América Latina e Caribe, é um modelo de lei que trata sobre os problemas causados pelo superendividamento, que tem como objetivo principal proteger o consumidor. No artigo 6º dessa mesma lei, encontra-se uma lista sobre as possíveis causas de insolvência ou falência do consumidor:

a) A perda de emprego em consequência de demissão direta e/ou indireta;

b) Emprego precário ou não registado;

c) Invalidez temporária ou permanente;

d) Doença grave ou crônica, resultando em excesso de gastos em tratamento e/ou medicamentos;

e) A separação, divórcio ou dissolução de união estável;

f) A morte de um cônjuge ou parceiro de união estável;

g) A constituição de despesas imprevistas devido a circunstâncias especiais.

Os “acidentes de vida” citados, assim chamados pelo fato de que ocorrem sem uma previsão, não podem ser desconsiderados como uma das causas principais do superendividamento, isto porque, nesses casos, não é possível impedir a insolvência por meio da informação ou aconselhamentos ao indivíduo. Esses fatores contribuem com o superendividamento pelo fato do surgimento de:

[...] fenômenos supervenientes e não antecipados (imprevisíveis ao indivíduo médio) no momento em que as dívidas foram contraídas, tais como desemprego, divórcio, doenças, morte na família e outros gastos inesperados na família. Dentre esses imprevistos apontam-se problemas relacionados a desemprego como o mais comumente associado ao surgimento de uma situação de superendividamento, por estar diretamente relacionado à condição econômica do indivíduo. (PORTO, 2015, p. 443).

A regulamentação em proteção e defesa do consumidor (art. 5, XXXII, CF/88) deve sempre respeitar os princípios fundamentais do Direito do Consumidor, quais sejam: vulnerabilidade; proteção mais favorável ao consumidor; justiça contratual; crédito responsável; participação dos grupos e associações de consumidores. Esses princípios, uma vez aplicados efetivamente, previne o excesso de consumo, evitando o aumento de custos e um consequente futuro processo de insolvência.

De acordo com a explicação de Lima (2014, p. 51), os princípios de regulação ao consumo ainda assim não são observados na sua totalidade, principalmente no que se refere ao oferecimento de crédito:

Na atual sociedade de crédito, contudo, a regulação do crédito baseada na informação e transparência nem sempre consegue evitar situações de superendividamento, porque têm como pressuposto um modelo de consumidor que se comporta racionalmente, ou seja, maximizando os benefícios e minimizando os custos. No entanto, estudos do comportamento econômico comprovam que nem sempre isso acontece, mormente no contexto em que os consumidores são incentivados e pressionados a contratar a crédito.

A insuficiência de dados esclarecedores por parte dos fornecedores de crédito, juntamente com a deficiência de educação financeira, pode acarretar uma compreensão infundada ao consumidor referente as informações prestadas. Assim sendo, o indivíduo não está apto para analisar racionalmente sobre os custos e riscos que está obtendo mediante a contratação do crédito.

O principal objetivo de prevenção do superendividamento é por meio da prestação de informações, uma vez que o consumidor precisa ser capaz de lidar com a resistência da publicidade e tenha conhecimento sobre os recursos e possíveis riscos que podem estar implícitos na propaganda de consumo. Atualmente, inúmeras formas de crédito são criadas para atrair e estimular os consumidores, de forma que muitos indivíduos isolados da cena econômica e social, em virtude de baixa renda, são atingidos por estas informações e acabam por contratar crédito sem ter compreensão sobre os termos estipulados no contrato e dos riscos que estão ligados ao mesmo.

Com o aumento do crédito ao consumo, junto está o aumento de pessoas endividadas. Marques (2000, p. 303) nos ensina que:

A dimensão do problema depende de muitas variáveis: da extensão e do tipo de endividamento, da variação nas taxas de juros, do grau de esforço das famílias e da sua educação financeira, do mercado de trabalho, da estabilidade familiar, da saúde ou da doença, da vida ou da morte. Mas como se provou em diferentes países, ao alargar o endividamento potenciamos sempre o sobreendividamento. Ele cresce nos diferentes ciclos e, mais do que um problema econômico, é sobretudo um problema social.

Na economia moderna, o crédito está inserido de uma forma tão árdua que é impossível esquecê-lo. O crédito é considerado um mecanismo propulsor do consumo e muito importante para o Estado, no sentido de combater o consumo insuficiente e a desaceleração econômica, passando a ser fonte geradora de desenvolvimento do país. Deste modo, é necessário considerar que uma pessoa somente entra no estado de endividado quando tenha tido acesso ao crédito e fora estimulado a consumir em abundância, em virtude das incitações e agressividades técnicas decorrentes da publicidade relacionada ao oferecimento de diversos meios de crédito.

Assim sendo, Lima (2010, p. 30) nos afirma que “a emergência de uma nova cultura do endividamento fez do crédito um elemento normal e aceito na vida dos particulares, sendo visto até mesmo como uma manifestação de liberdade e autonomia do lar”. A legitimação de um conjunto de princípios e regras favoráveis aos consumidores superendividados, depende de uma nova estratégia referente a autonomia da vontade, pois o sistema contratual individualista não tem capacidade para regularizar e resolver os problemas que decorrem das relações de consumo, principalmente da oferta abundante do crédito.

O contrato de consumo está interligado aos princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória dos contratos, os quais são fundamentais, pois se não estarem presentes não teremos uma relação obrigacional. O devedor, assumindo as obrigações do contrato, deverá cumpri-lo até o seu término, por livre e espontânea vontade, caso contrário poderá ser constrangido a fazê-lo por seu credor. No entanto, essa autonomia de vontade nem sempre está presente nas relações de consumo, ou seja, não se verifica a presença de igualdade de forças e a liberdade de discussão entre as partes.

Existe um desequilíbrio na relação de consumo, no que tange principalmente ao contrato de crédito, uma vez que está presente a desigualdade de conhecimento técnico no processo de decisão dos consumidores e dos fornecedores de crédito. É nesse sentido que temos uma nova definição de autonomia de vontade:

[...] o consumidor de crédito está ainda mais sujeito à pressão na medida em que pretende satisfazer suas necessidades e desejos sem ter os meios imediatos, ou seja, é consumidor a duplo título: consumidor em geral e consumidor de crédito. Duas pressões paralelas se exercem e se cumulam para diminuir a autonomia de sua vontade, uma para a venda de um bem e outra para o crédito. (LIMA, 2010, p. 41).

Essa nova autonomia de vontade é representada pelo desejo e a necessidade, fontes que influenciam diretamente na conduta do consumidor e na sua liberdade de escolha. O principal exemplo dessa teoria está implícito na publicidade, pois tem forte pressão ante a sociedade de consumidores, de forma que atribui uma característica de necessidade em um determinado bem ou serviço e, além disso, divulga de forma estratégica os meios financeiros que podem ser contratados para satisfazer a relação de consumo principal.

A exploração do oferecimento de crédito abundante e a facilidade de acesso ao mesmo, faz com que os consumidores tenham sua liberdade de escolha comprometida, onde o desejo e a necessidade tem por objetivo alcançar o prazer e não a razão. A partir desses pressupostos, podemos afirmar que o conceito clássico de autonomia da vontade é inadequado, o qual deveria ser baseado na livre e espontânea vontade de ambas as partes de uma relação contratual.

No que se refere ao sistema de falência, Lima (2014, p. 56) nos explica:

Reabilitar financeiramente o consumidor pode revigorar o seu potencial produtivo, eliminando a necessidade de benefícios sociais como o seguro-desemprego, utilizado por muitos consumidores com dificuldades financeiras, que prejudica sua inserção no mercado do trabalho. Pode, igualmente, eliminar as despesas com tratamento de doenças relacionadas aos problemas financeiros. A reabilitação financeira encoraja os consumidores a se engajar em atividades produtivas e empreendedoras que movimentam a economia e geram benefícios para a sociedade com a arrecadação de impostos.

Não existe uma forma única e absoluta para a regularização do fenômeno do superendividamento, pelo fato de tratar-se de um problema social, político e cultural, que não permitem fazer uma discussão análoga. Diferentes ideias podem fazer com que seja criado um sistema de falência que venha a ter implicações no mercado de crédito: proteger a privacidade do consumidor no que tange a seus dados pessoais; alcançar uma sociedade livre, justa e solidária, por meio de um conjunto de instrumentos e ações sociais; educação financeira para compreender adequadamente o que é uma relação de consumo saudável.

2.3 O Superendividamento e o Projeto de Lei do Senado Federal nº283/2012

O fenômeno do superendividamento é um fato grave que deve ser tratado com cautela pelo poder público, criando um conjunto de regras e deveres que buscam a boa-fé, o conhecimento e o entendimento sobre como evitar que inúmeros consumidores venham a ser excluídos da sociedade.

Existem diversos modelos de falência que podem auxiliar o consumidor a reabilitar-se financeiramente, porém não existe um consenso quanto ao modelo ideal. Com a democratização do crédito, deve existir uma saída para que os consumidores venham a sair da situação de endividamento excessivo.

A democratização do crédito ao consumo surgiu após a criação do Código de Defesa do Consumidor de 1990, de tal forma que antes desse período o superendividamento não era tratado com importância e preocupação, ou pior ainda, era praticamente um fenômeno desconhecido nacionalmente. Com a liberalização do crédito, muitas pessoas foram atingidas, principalmente aquelas que não possuem qualquer tipo de escolaridade ou educação financeira. Deste modo, deve ser feita uma discussão acerca da prevenção e o tratamento do superendividamento de forma que seja permitido reorganizar a vida financeira do devedor.

O Senado Federal, por meio de uma Comissão de Juristas, apresentou o Projeto de Lei 283/2012, com o objetivo de aperfeiçoar o oferecimento de crédito ao consumidor e dispor de normas de regulação e prevenção do superendividamento. De acordo com a Ementa do Projeto de Lei 283 do Senado Federal, o mesmo não criou um sistema próprio de falência, porém procura proteger o consumidor pessoa física, garantindo o mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana.

No ordenamento jurídico brasileiro ainda existem lacunas quanto as possíveis soluções para o superendividamento. No entanto, importante reconhecer que as causas do superendividamento nem sempre são aquelas decorrentes de cláusulas abusivas ou ainda a cobrança de juros altíssimos. O consumidor endividado também pode estar em situação de impossibilidade de adimplir com suas dívidas na forma e tempo previsto em decorrência de situações que acabam por se fazerem presentes, porém indesejadas.

Diante do exposto, Lima (2014, p. 137) nos apresenta o seguinte:

Uma das finalidades principais do tratamento do superendividamento é reabilitar economicamente o consumidor, encorajando-o a tornar-se produtivo, a participar do mercado de consumo, contraindo novos créditos, desde que adequados a sua capacidade de reembolso. A melhor distribuição dos pagamentos aos credores é uma consequência, mas não costuma ser o primeiro objetivo da falência das pessoas físicas que se relaciona mais com a preocupação humana de aliviar os problemas financeiros e sociais decorrentes do endividamento excessivo.

Para evitar o abuso do sistema de falência, necessário ter presente o requisito da boa-fé do consumidor, ou seja, a falência deverá ajudar somente aqueles devedores que são característicos de honestidade e/ou são atingidos pelo fracasso. As dificuldades financeiras podem ocorrer por diversas situações, principalmente quando existem circunstâncias em que os consumidores estão impossibilitados de fazerem uma avaliação correta sobre a sua capacidade de pagamento de certa quantia devida e pela contratação de crédito de forma abusiva. Assim sendo, não estaria errado afirmar que tais situações também encaixam esses devedores como pessoas de boa-fé, ou seja, consumidores que acreditam agir com lealdade e sem qualquer intenção desonesta.

É nesse sentido que Lima (2014, p. 145) explica o que é um devedor alvo do mercado de crédito:

A ideia do devedor irresponsável ignora as causas externas do problema e a realidade do mercado de crédito atual, em que a indústria oferece instrumentos de crédito por meio de poderoso marketing, tendo como alvo consumidores idosos, consumidores de baixa renda e, inclusive os que já estão negativados, ou seja, cadastrados em banco de dados por inadimplemento de dívidas que não conseguiram quitar.

A realidade desses consumidores alvos do mercado de crédito revela-se pelo fato de que são pressionados pela necessidade de aumentar a rentabilidade, mesmo que de forma momentânea, e pelo incentivo, por meio da publicidade, de contratarem empréstimos que acabam por comprometer o equilíbrio financeiro, ao contrário de auxiliar no âmbito econômico familiar. Os analfabetos, pessoas que também não são capazes de analisar os riscos que da contratação do crédito e incapazes de compreender as obrigações de um contrato, acabam sendo pressionadas pela sociedade a consumir de forma imediata e pagar pelo consumo depois de certo tempo, se caso vier a ter renda suficiente para cumprir com a obrigação.

Consumir produtos e serviços, necessários ou supérfluos, faz parte da vida dos consumidores e é causa que pode resultar um futuro endividamento, não tem como negar. A democratização do crédito trouxe consigo a concessão irresponsável de crédito, tais como empréstimos e financiamentos, fazendo com que muitos consumidores fiquem em situações de dificuldades de conseguir adimplir com essas obrigações em virtude da grande demanda. É necessário buscar e desenvolver métodos urgentes, por meio de políticas públicas, que venham a prevenir o superendividamento.

O Projeto de Lei 283/2012 pode ser um dos caminhos a seguir para o auxílio da regulação do superendividamento, pois visa alterar o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) e o art. 96 do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03), para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento.

A educação financeira e ambiental dos consumidores está inserida no art. 4º, inciso IX, do CDC, tendo como função o aprendizado sobre o sistema financeiro pessoal, uma vez que tais princípios são poucos habituais para a sociedade. A necessidade dessas políticas públicas fará com que os cidadãos aprendam a ter conhecimento sobre os custos do crédito e discutir sobre sua escolha diante de uma situação como essa.

No art. 5º do CDC foram inseridos dois incisos (VI e VII) que pretendem instituir de “mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de proteção do consumidor pessoal natural” por meio da criação de “núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento”. Sobre os direitos básicos do consumidor, de que trata o art. 6º, foram acrescidos três incisos, os quais garantem o crédito responsável, a educação financeira, prevenção e tratamento do superendividamento, visando sempre preservar o mínimo existencial, como ainda, informações sobre o preço dos produtos por unidade de medida.

O art. 37, § 2º, incisos I e II, do mesmo projeto, veda a publicidade abusiva, caracterizando as condutas proibidas no que tange ao assunto, como aquelas que incitam algum tipo de sentimento ou que invocam de forma imperativa ao consumo, protegendo principalmente a criança e o adolescente. Essas disposições são necessárias uma vez que é evidente que os fornecedores usam de estratégias de induzimento ao consumo, que afetam principalmente aquelas pessoas em extremo estado de vulnerabilidade, tal como dispõe o art. 54, inciso IV, o qual afirma de forma expressa a vedação do assédio ou pressionamento do consumidor para contratar algum tipo de produto ou serviço, por qualquer meio de informação, principalmente ao se tratar de pessoas em estado de vulnerabilidade agravada.

O mesmo dispositivo amplia sobre as nulidades contratuais em seu art. 51, tais como limitar o acesso ao Poder Judiciário, embaraçam a impenhorabilidade de bem de família do consumidor ou do fiador, estabelecimento de prazos de carência em caso de descumprimento do pagamento de prestações, considerar o silêncio do consumidor como aceitação de valores cobrados e, regula também sobre a aplicação da lei estrangeira ao consumidor domiciliado no Brasil.

Os artigos 54-A ao 54-G do projeto de lei trata sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento de pessoa física, disponibilizando sobre o crédito responsável e a educação financeira do consumidor. No § 1º do art. 54-A temos o conceito do que é superendividamento, sendo “a impossibilidade manifesta de o consumidor, pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação”.

O projeto também acresce os artigos 104-A ao 104-C, os quais são dedicados a regular sobre a conciliação no superendividamento, onde a requerimento do consumidor superendividado, poderá o juiz instaurar um processo de repactuação de dívidas, visando alcançar uma decisão conciliatória. No caso de inexitosa, o juiz, a pedido do consumidor, poderá instaurar processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas. A fase conciliatória e preventiva do processo de repactuação de dívidas será de competência concorrente dos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.

A prevenção e o tratamento do superendividamento é uma questão de extrema relevância, de tal forma que o aprimoramento do Código de Defesa do Consumidor é importante no que tange ao consumidor superendividado, pois o ordenamento jurídico atual não possui um tratamento especial para a proteção específica dessa parte da população.  Este projeto de lei poderá ser um grande avanço acerca da regulação do superendividamento, porém não é a solução para todas as mazelas. Com a finalidade de garantir o mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana, o projeto elenca deveres de limitação aos fornecedores de crédito, institui mecanismos de prevenção e tratamento do superendividamento e, ainda, a inclusão da conciliação dos conflitos decorrentes desse fenômeno para que venha a ocorrer a repactuação das dívidas.

Além do exposto, é necessário que o fornecedor também mude o hábito de oferecer bens e serviços de forma irresponsável, conscientizando-se de que o lucro não deve prejudicar as pessoas, muito pelo contrário, beneficiar ambas as partes. A mudança dessa realidade, somente será possível se houver a contribuição do fornecedor em querer reverter tais situações, uma vez que é a figura principal da relação de consumo, pois tem contato diretamente com o consumidor no momento de oferecimento do bem ou serviço, cabendo-lhe o papel de induzir o consumidor, ou não, a obtenção do produto.

2.4 O consumo consciente e sustentável

O consumo é realmente uma atividade que faz parte da rotina de toda população, é algo constante e contínuo, porém necessário para a sobrevivência do ser humano, isso já ficou clarividente por meio de disposições mencionadas anteriormente. No entanto, a sociedade de consumo é praticamente baseada nos valores do verbo “ter”, que acaba por caracterizar pessoas irresponsáveis, impulsivas e que não compreendem a importância de um consumo consciente, para que assim as consequências negativas não venham a ocorrer, seja na esfera ambiental ou social, mas especialmente no âmbito pessoal, em função das consequências nefastas que o endividamento pode provocar para o indivíduo e sua família.

Na atualidade, infelizmente, vivemos em uma sociedade em que a posição do “ter” é muito mais importante do que “ser”. O ser significa a posse de objetos pertencentes a nós mesmos, já o ter significa a posse de objetos materiais que nos traz sentimentos egocêntricos. Deste modo, sendo o ter a posição de uma sociedade de consumo, vivemos em uma realidade onde as relações sociais são pouco valorizadas e os produtos oferecidos no mercado de consumo acabam por ser uma das principais prioridades.

As pessoas estão sendo levadas a pensar que o fato de consumir é algo que irá satisfaze-las por completo e que o único sentido de viver está na situação de apenas possuir bens materiais e imateriais para que possamos ter uma vida repleta de realizações, esquecendo-se das relações interpessoais. É nesse sentido que a autora Ana Beatriz Barbosa Silva (2014, p. 18) tem a finalidade de contribuir sobre a principal finalidade de uma sociedade de consumo:

Nesse contexto social, é necessário possuir tudo que seja capaz de gerar prazer de forma intensa e imediata. Outra característica que pode tornar um produto bem mais valorizado no mercado é o seu grau de exclusividade. Quanto menos compartilhado for um objeto (e/ou uma experiência), mais valor ele terá e mais status dará a quem o possuir.

A partir do conceito do que é consumir, as pessoas devem ter em mente que essa atividade é para suprir as necessidades básicas de um indivíduo para que possa viver com dignidade. No entanto, algumas pessoas acabam por confundir que o ato de consumo é uma prática de obter tudo aquilo que for conveniente para satisfazer um desejo ou minimizar uma ansiedade, de forma quase desnecessária.

Nas palavras de Bauman (2008, p. 28), estamos vivendo:

[...] num mundo em que uma novidade tentadora corre atrás da outra a uma velocidade de tirar o fôlego, num mundo de incessantes novos começos, viajar esperançoso parece mais seguro e muito mais encantador do que a perspectiva da chegada: a alegria está toda nas compras, enquanto a aquisição em si, com a perspectiva de ficar sobrecarregado com seus efeitos diretos e colaterais possivelmente incômodos e inconvenientes, apresenta uma alta probabilidade de frustração, dor e remorso. E como as lojas da internet permanecem abertas o tempo todo, pode-se esticar à vontade o tempo de satisfação não contaminada por qualquer preocupação com frustrações futuras. Uma escapada para fazer compras não precisa ser uma excursão muito planejada – pode ser fragmentada numa série de agradáveis momentos de excitação, profusamente borrifados sobre todas as outras atividades existenciais, acrescentando cores brilhantes aos recantos mais sombrios ou monótonos.

O consumismo, como observamos, é uma prática que vem atingindo milhares de pessoas em todo o mundo, é uma realidade, que em primeiro momento, pode ser difícil de solucionar. No entanto, para reverter essa situação, é necessário que a sociedade faça uma reflexão diante de tudo àquilo que consome, partindo dos pressupostos de como determinado produto vai lhe beneficiar, se ele realmente lhe trará benefícios enquanto ser humano, e se realmente é importante investir em certos bens, sendo que a sua necessidade, enquanto consumidor, já está suprida. As pessoas precisam voltar a pensar, racionalizar, ponderar e, consequentemente, sopesar todos os fatores, positivos e negativos, advindos do ato de consumir, de forma que seja exigido de toda a população o investimento em conscientização. Neste sentido, Ana Beatriz Barbosa Silva (2014, p. 183) acrescenta que:

[...] o consumo excessivo e descontrolado se constitui no retrato fidedigno de uma sociedade onde quase tudo já está à venda. E, se continuarmos cegos, indiferentes ou envoltos nos delírios consumistas, viveremos em um mundo ainda mais inóspito, marcado pela desigualdade abissal entre seus semelhantes e pela corrupção que tenderá a estabelecer preços para as coisas que o dinheiro não pode comprar.

As relações interpessoais devem ser uma prioridade perante a sociedade, pois é somente assim que as pessoas irão se desenvolver como indivíduos e espécie. O ser humano é uma espécie que está no topo de qualquer outro ser biológico, uma vez que é detentor de inúmeras habilidades sociais, ligadas ao senso ético e moral e por praticar atos solidários. Assim sendo, nenhum ser humano tem a habilidade de realizar qualquer atividade de forma isolada ou solitária (SILVA, 2014, p. 21).

A sociedade de consumidores está sempre em processo de produção de estímulos de carência e desejos que desejam despertar nas pessoas, uma vez que os membros dessa sociedade são julgados por tudo aquilo que estão consumindo. Essas pessoas consomem apenas com olhares e emoções voltados para eles mesmos, de forma individual e egoísta, não se preocupando com as consequências que podem vir à tona em decorrer do consumo exagerado. O consumo refere-se a um conjunto de decisões políticas e morais e, é uma atividade que está sempre afetando de forma direta o meio ambiente, uma vez que é a própria natureza que fornece a matéria para que os bens sejam produzidos.

A população está em um processo de consumo que vai além da capacidade que a natureza pode oferecer de recursos naturais. Se a situação continuar descontrolada, mantendo o índice de consumo e produção no mesmo nível, o planeta pode não conseguir atender a demanda das necessidades mais básicas que um ser humano necessita.

O ser humano, por meio de suas habilidades psíquicas, físicas e sociais, é capaz de consumir de forma consciente, partindo do comprometimento da responsabilidade e o respectivo controle sobre os seus atos no momento em que for consumir. O consumidor consciente precisa estar apto para escolher produtos ou serviços que de alguma foram venham a contribuir para uma condição de vida ambientalmente sustentável e socialmente justa. Essa forma de consumo significa dizer que os indivíduos precisam escolher produtos que, durante a fase de produção, muito pouco foram utilizados de recursos naturais e, consequentemente, poderão ser reaproveitados ou reciclados.

2.5 O direito de recomeçar

Em um primeiro momento, devemos analisar os pressupostos psicológicos do perdão do consumidor inadimplente. Na sociedade de consumidores existem muitos consumidores impulsivos, que agem em desfavor ao seu próprio futuro, optando por consumir para obter gratificações momentâneas e imediatas. Para tanto, é necessário a criação de uma lei que auxilie o consumidor a controlar seus impulsos, utilizando de mecanismos que diminuam a frequência desse risco. São muitos os consumidores que não conseguem reconhecer e admitir o endividamento como causa decorrente do consumo excessivo de bens sem utilidade funcional e acreditam na ilusão de que estão consumindo apenas o necessário para o mínimo existencial, ou seja, para sua sobrevivência digna.

O reconhecimento do próprio comportamento como pessoa consumista é um desafio muito grande, principalmente quando esse vício é confundido como algo totalmente normal. Os consumistas sempre procuram esconder esse comportamento em silêncio por um longo período, uma vez que tem a consciência de que seus atos fogem um pouco da realidade, do padrão, e até mesmo sabem das consequências e os problemas que geram a partir dessas atitudes descontroladas.

O aceitamento já é uma tarefa bem mais complicada, uma vez que o indivíduo precisa admitir o fato de que é consumista e deverá suportar todas as consequências, pois o acordo contratual obriga por escrito a cumpri-lo, mesmo contra a vontade do devedor. O comprometimento da aceitação é a sinceridade de querer ajuda frente ao comportamento consumista, quando tudo já saiu fora do controle e, ainda, ser humilde para iniciar um novo caminho em descoberta de algo melhor para sua vida.

O tratamento do consumismo pode ser feito através do uso de medicamentos, grupos de ajuda, tratamento psicológico e psiquiátrico, utilizar de mecanismos estratégicos de como prevenir o descontrole e a impulsividade pelas compras. No entanto, é evidente que sempre irão surgir desafios e dificuldades que poderão desviar a atenção pela busca do controle comportamental do consumismo, de tal forma que essas incitações deverão ser enfrentadas pelo indivíduo.

Na sociedade de consumidores atual, evidencia-se ainda muitos indivíduos em situação de extrema vulnerabilidade, situação gravíssima que compromete a socialização e o acesso a economia, de tal forma que os mesmos viabilizam como única saída a força do trabalho como fonte exclusiva para pagamento de suas dívidas, sacrificando a própria dignidade humana. Isso ocorre pelo motivo de que o ordenamento jurídico não dispõe de um tratamento especial para pessoas físicas superendividadas, abrangendo somente as pessoas jurídicas o gozo do benefício do sistema de falência.

O autor Paiva (2013, p. 119) corrobora com o seguinte:

No campo do direito do consumidor, a “hipervulnerabilidade” seria a situação fática e objectiva de agravamento da vulnerabilidade da pessoa física consumidora, por circunstâncias pessoais, aparentes ou conhecidas do fornecedor. Poder se temporária (prodigalidade, incapacidade, necessidades físicas ou mentais especiais) ou permanente (doença, gravidez, analfabetismo, idade). Em relação às pessoas com necessidades especiais, pessoas com idade avançada, crianças e adolescentes, a hipervulnerabilidade tem garantia constitucional (ver, por exemplo, os arts. 226 a 230 da CF/1988), mas como se trata de um estado subjetivo pluriforme e multidimensional, outros grupos de pessoas especialmente fragilizadas podem estar abrangidos.

O princípio pacta sunt servanda, segundo o qual estabelece que as partes de um contrato estão obrigadas entre si nos limites da lei, pode não ser defendido diante da situação do perdão das dívidas, uma vez que são totalmente contraditórios, pois o credor concede ao devedor a extinção de uma obrigação. Para a criação de uma lei de falência para pessoas físicas se faz mister criar um modelo econômico que permita a recuperação financeira do devedor e também assegure ao credor o reembolso dessas dívidas.

No ordenamento jurídico brasileiro, o tratamento do inadimplemento procura “[...] acertar e definir o estado patrimonial do devedor e declarar quais são os credores que participarão do resultado da execução coletiva” (BERTONCELLO, 2010, p. 220). Isto posto, é possível identificar que inexiste uma tutela jurídica que vise prevenir o superendividamento, bem como investigar as possíveis causas que são geradoras desse comportamento. A revisão judicial é um instrumento processual restrita a individualidade dos contratos, ao passo que a elaboração de uma lei para disciplinar sobre o superendividamento seria uma solução mais eficaz, pois permitiria obter uma visão de todas as obrigações que estão em situação de pendência e inadimplidas pelo consumidor.

O descumprimento da obrigação de consumo, no tempo e modo devido, pode resultar na exclusão social do devedor, mesmo que cumprida num momento posterior, de forma que inexiste um instituto que regule a extinção da obrigação, sem que seja aplicado uma forma de sanção ao consumidor em virtude do inadimplemento. A solução para o superendividamento não deve servir de base exclusivamente do perdão das dívidas, pois nem todos os consumidores são merecedores desse fenômeno de recuperação financeira.

O perdão das dívidas pode auxiliar no restabelecimento de acesso a economia de crédito, estimulando o devedor a usar de tais meios não somente para honrar com seus credores, mas também para seu próprio benefício e de sua família. A honestidade também é característica importante para um devedor, pois uma vez que age com empreendedorismo tem o direito de recomeçar em caso de falhas, não estando sujeito a trabalhar para seus credores durante um período longo tão somente para adimplir com as suas dívidas. A inserção da renegociação das dívidas pode ser um elemento que beneficie os consumidores no que tange a exclusão social decorrente do superendividamento e a consequente inadimplência de dívidas.

Nesse sentido, a autora Bertoncello (2010, p. 223), nos ensina que:

[..] o reconhecimento do dever implícito de renegociação poderá oferecer elementos de análise tanto sobre a conduta do fornecedor de crédito em cooperar com a minoração dos danos resultantes do inadimplemento do consumidor superendividado, como sobre a atuação do devedor de boa-fé em buscar meios de efetiva quitação das dívidas, dentre elas a renegociação, afastando, assim, a recorrente arguição das instituições financeiras sobre a indústria das ações revisionais e o pretenso rolamento das dívidas por elas provocado. Da mesma forma, o dever de renegociação dos contratos atenuaria a avassaladora procura do Poder Judiciário para o ajuizamento de ações revisionais e a consequente incerteza quanto ao resultado do provimento jurisdicional.

O Código Civil Brasileiro, em seu artigo 480, dispõe sobre o dever de renegociação, a partir do pressuposto legal de que quando houver onerosidade excessiva, poderá uma das partes pleitear sobre a redução da prestação ou então a alteração do modo de executá-la. No entanto, o dever de renegociar precisa ser decorrente do princípio da boa-fé, de ambas as partes coobrigadas, em que o credor deve ser responsável quanto a concessão ou oferecimento de bens e serviços e o devedor detentor da vontade de extinguir com a obrigação da melhor maneira possível.

Em primeiro lugar, é pertinente que a renegociação se faça voluntariamente pelas partes contratantes e, caso não havendo êxito na conciliação, é pertinente que as mesmas devam procurar o Poder Judiciário para readequar a obrigação e todas as suas disposições contratuais. A pretensão judicial deve estar fundamentada e justificada para uma renegociação positiva ou negativa, sempre respeitando o princípio constitucional da preservação da dignidade da pessoa humana e a proteção do consumidor. No entanto, como já citado anteriormente, é ainda mais benéfico se existisse uma legislação que tutelasse sobre as situações de superendividamento, bem como as medidas de prevenção e resolução desse fenômeno resultante do consumismo excessivo.


CONCLUSÃO

Na sociedade de consumidores, a ideia de felicidade está entrelaçada com a atividade de consumir. No entanto, o consumo não deve ser algo que apenas lhe traz sensações prazerosas, mas deve ser considerada uma atividade onde é possível obter a satisfação das necessidades básicas de um indivíduo. Os consumistas são aqueles que buscam satisfazer suas necessidades com o consumo de bens ou serviços que acreditam ser realmente importantes para a sua sobrevivência e alcançar o bem-estar social.

O mercado de consumo está cada vez mais crescente e em constante movimento na produção e venda de bens ou serviços, de tal forma que ser consumidor já não é mais uma tarefa tão fácil. Os consumidores precisam estar atentos a qualquer tipo de publicidade de consumo, uma vez que é imensa a quantidade de propagandas comerciais que induzem o indivíduo a consumir cada vez mais, muitas vezes produtos ou serviços que são inúteis para o proveito do consumidor.

O marketing, no sentido de influenciar as pessoas, começou a ser uma atividade bastante eficaz e passou a ser pouco percebida, sendo o único objetivo alcançar futuros consumidores. As propagandas são, anteriormente, organizadas e analisadas para que possam atingir de forma influenciadora um determinado perfil de indivíduos, de tal forma que venham a obter, sem mais delongas, o bem ou serviço em destaque.

A função social da economia deve sempre estar de acordo com a lei, respeitando todos os princípios sociais do Direito do Consumidor. Os fornecedores de crédito devem observar os direitos fundamentais do consumidor, para que sejam aplicados de forma eficaz, de forma que não comprometa a liberdade de escolha dos consumidores. Os credores, agindo com lealdade e transparência, podem evitar o superendividamento dos consumidores, pois assim os devedores poderão adimplir com suas dívidas.

O superendividamento, considerado um problema social, não possui uma forma específica para regularizar essa situação, uma vez que não permite uma discussão uniforme acerca do problema. Ressalta-se que é de extrema importância a criação de um sistema de falências para o consumidor pessoa física, pois o ordenamento jurídico brasileiro não possui um tratamento específico para a regulação e a prevenção do superendividamento. O Projeto de Lei do Senado Federal nº 283 de 2012 é um grande avanço para a solução, parcial, das lacunas no que diz respeito ao superendividamento, pois tem como finalidade garantir o mínimo existencial e a dignidade da pessoa huamana, como também abrange diversos institutos de prevenção, tratamento e conciliação de conflitos referente a esse fenômeno. O fornecedor também precisa mudar a sua cultura para que ocorra mudanças nessa realidade, não pensando somente no lucro expansivo, mas que seja responsável quanto ao oferecimento de bens e serviços.

A renegociação de dívidas é um ponto importante para resolver o superendividamento, partindo, primeiramente, do pressuposto da conciliação entre as partes e, em últimos casos, procurar o judiciário para resolver o litígio que envolve o inadimplemento. No entanto, ainda é pertinente que seja criada uma legislação que tutele sobre as situações de superendividamento, bem como elencar quais as possíveis medidas a serem tomadas como meio de prevenção e resolução desse fenômeno resultante do consumismo excessivo que afeta grande parte da população.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Matheus dos. Consumismo: do idealismo ilusório ao superendividamento do consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5209, 5 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58682. Acesso em: 25 abr. 2024.