Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/59
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A teoria da separação de poderes na concepção kelseniana

A teoria da separação de poderes na concepção kelseniana

Publicado em . Elaborado em .

"Se é sempre outono o rir das primaveras,
Castelos, um a um, deixa-os cair...
Que a vida é um constante derruir
De palácios do Reino das Quimeras!

E deixa sobre as ruínas crescer heras,
Deixa-as beijar as pedras e florir!
Que a vida é um contínuo destruir
De palácios do Reino das Quimeras!

Deixa tombar meus rútilos castelos!
Tenho ainda mais sonhos para erguê-los
Mais alto do que as águias pelo ar!

Sonhos que tombam! Derrocada louca!
São como os beijos duma linda boca!
Sonhos!... Deixa-os tombar... deixa-os tombar..."

(Florbela Espanca, RUINAS)
 


 

INTRODUÇÃO

O tema da separação de poderes foi objeto de considerações dos maiores vultos do pensamento na história. Já em Platão tem-se uma primeira alusão à divisão de funções na sua Pólis perfeita, quando menciona os afazeres dos que devem proteger a cidade, dos que devem governá-la e daqueles que devem produzir e comerciar os bens. (1) Em Aristóteles, vê-se mais nitidamente uma concepção da tripartição das funções, que são, segundo ele, as três partes constitutivas do "Estado", designadas pelo nome de "dos corpos deliberativos", "dos magistrados" e "dos juízes". (2) Contudo, o grande sistematizador da teoria da separação de poderes foi Montesquieu, que, em célebre obra, no capítulo dedicado a análise da Constituição inglesa, desenvolve a doutrina de que quando numa só pessoa, ou num mesmo corpo, reúnem-se mais de um dos três poderes (funções) do Estado, a liberdade estaria ameaçada, em face da concentração de poder. (3) A história é a mais fiel testemunha da repercussão da sobredita doutrina, que granjeou foros de princípio insofismável do constitucionalismo ocidental, merecendo a detida atenção de todos que militam no campo da teoria do Estado. (4)

Ao falar-se em gênios do pensamento humano, a figura de Hans Kelsen não poderia ficar de fora dessa categoria. Ele que, indisputavelmente, é o maior jurista, na restritíssima acepção da palavra, deste século; verdadeiro "divisor de águas" no estudo do Direito. Kelsen enfrentou o tema da separação de poderes com a acuidade do rigoroso cientista, dando-lhe uma luz própria, que só iluminados como ele poderiam fazer.

A produção jurídica de Kelsen é para muitos um claustro. Tratam-no como se fosse um sábio hermético, de quem se fala bastante, no entanto poucos lêem-no. O mergulho na profunda e ao mesmo tempo transparente obra kelseniana requer, além de disposição e fôlego, bastante humildade, posto que para entendê-la, e, se for o caso, combatê-la, deve-se aceitar as premissas iniciais do seu pensamento, que é exaustivamente lógico. (5)

Neste trabalho, dividiu-se em duas partes (O Estado e A Separação de Poderes) a descrição das idéias kelsenianas em torno do tema supracitado, sendo que na primeira - o Estado - optou-se por crítica alguma, posto que era o assentamento das premissas de seu pensamento sobre o Estado e seus órgãos, indispensável para a compreensão de suas idéias sobre o tema sob exame. Já na segunda parte - a Separação de Poderes - fez-se, arriscadamente, algumas críticas à doutrina kelseniana. Diz-se arriscadamente, porque é bastante perigoso atacar o rigoroso e científico pensamento de Kelsen, pois se até mesmo no sol tem manchas, então no gênio brilhante de Kelsen elas poderiam surgir também.

Espera-se, com esta breve e despretensiosa análise, contribuir para uma melhor compreensão do magnífico pensamento kelseniano, demonstrando seu posicionamento frente a um dos mais palpitantes temas da teoria do Estado, que até hoje desafia a argúcia dos cientistas sociais.


I. O ESTADO

1. ENTIDADE JURÍDICA

Logo no início de sua abordagem, Kelsen chama a atenção para a dificuldade em definir o "Estado", sobretudo em face do caráter polissêmico da palavra, usada em vários sentidos (ora para designar a "sociedade", num sentido amplo, ora para designar um órgão particular da sociedade: o governo, os sujeitos do governo, uma "nação", ou o território habitado, num sentido mais restrito), seja por diversos autores ou muitas vezes pelo mesmo autor, de modo inconsciente. Criando uma situação insatisfatória na teoria política, que é essencialmente uma teoria do Estado. (6)

Contudo, para Kelsen, a situação se torna mais simples quando a discussão é a partir de um ponto de vista puramente (grifo nosso) jurídico. Ou seja, no momento em que o Estado é tomado em consideração apenas como um fenômeno jurídico, como uma pessoa jurídica, uma corporação. (7) A corporação, para ele, é a representação típica de pessoa jurídica (num sentido técnico, mais restrito), cuja definição usual é a de um grupo de indivíduos tratados pelo Direito como uma unidade, ou seja, como uma pessoa que tem direitos e deveres distintos dos indivíduos que a compõem. (8)

Uma corporação, continua o autor, é considerada uma pessoa porque nela a ordem jurídica estipula certos direitos e deveres jurídicos que dizem respeito aos interesses dos membros da corporação, mas que não parecem ser direitos e deveres dos membros e são, portanto, interpretados como direitos e deveres da própria corporação. Tais direitos e deveres são, em particular, criados por atos dos órgãos da corporação. (9)

A diferença entre o Estado e as demais corporações reside na ordem normativa que constitui a corporação do Estado. O Estado é a comunidade criada por uma ordem jurídica nacional (distinguindo-se da internacional). O Estado como pessoa jurídica é uma personificação dessa comunidade ou a ordem jurídica nacional que constitui essa comunidade. Daí porque, o problema do Estado, na idiossincrasia jurídica kelseniana, surge como um problema da ordem jurídica nacional. (10)

O significado da expressão ordem normativa, para o autor, requer o conhecimento do que seja a "norma" e o que é a "ordem". O termo norma, para Kelsen, designa um mandamento, uma prescrição, uma ordem. Contudo, mandamento não é a única função de uma norma, eis que conferir poderes, permitir, derrogar são funções de normas. (11) Quanto à "ordem", para ele, é um sistema de normas cuja unidade é constituída pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade. E o fundamento de validade de uma ordem normativa é, para o autor, uma norma fundamental da qual se retira a validade de todas as normas pertencentes a essa ordem. (12)

A norma fundamental, cujo significado gerou e ainda gera algumas polêmicas, é definida de um modo diferente por Kelsen em sua obra póstuma(13).

Para Kelsen, a norma fundamental de uma ordem jurídica não é positiva, mas meramente pensada, e isto significa uma norma fictícia, não no sentido de um real ato de vontade, mas sim de um ato meramente pensado. Como tal, ela é uma pura ou "verdadeira" ficção no sentido da vaihingeriana Filosofia do Como-Se, que é caracterizada pelo fato de que ela não somente contradiz a realidade, como também é contraditória em sim mesma. Por conseguinte, continua o autor, é de se observar que a norma fundamental, no sentido da vaihingeriana Filosofia do Como-Se não é hipótese - como eu mesmo, acidentalmente a qualifiquei -, diz ele, e sim uma ficção que se distingue de uma hipótese pelo fato de que é acompanhada pela consciência ou então, deve ser acompanhada, porque ela não corresponde a realidade. (14)

O autor explica o significado das expressões tomadas de empréstimo de Hans Vaihinger, quando diz que, segundo este, uma ficção é um recurso do pensamento, do qual se serve se não se pode alcançar o fim do pensamento com o material existente. Ademais, expõe-se outra passagem da filosofia do autor supracitado, quando diz que "como funções verdadeiras, no mais rigoroso sentido da palavra, obtêm-se tais formas de representação, que apenas não contradizem a realidade, como também são contraditórias em si mesma. Delas devem-se diferenciar tais formas de representação que só contradizem em si mesma... Podem-se indicar as últimas como pseudo-ficções, semificções". (15)

Feitas essas digressões explicativas, retornemos ao objeto sob exame, qual seja, o Estado como ordem e como comunidade constituída pela ordem. (16)

Diz o autor que, segundo a teoria tradicional, não é possível compreender a essência de uma ordem jurídica nacional, o seu principium individuationis, a menos que o Estado seja pressuposto como uma realidade social subjacente. Só há o que se falar em sistema de normas, unitário e indivisível, denominado de ordem jurídica nacional, porque está relacionado a um Estado como fato social concreto, por ser criado por um Estado ou válido para um Estado. Por conseguinte, considera-se que, v. g., o Direito francês se baseia na existência de um Estado francês como uma entidade social, não-jurídica. Utiliza-se a relação entre o Direito e o Estado como análoga à existente entre o Direito e o indivíduo. Ou seja, que o Direito, não obstante criado pelo Estado, regula a conduta deste, concebido como um tipo de homem ou supra-homem, assim como o Direito regula a conduta do homem. E, assim como existe o conceito jurídico de pessoa e o biofisiológico de homem, acredita-se que existe um conceito sociológico de Estado ao lado de seu conceito jurídico, enfatizando-se que aquele seja lógica e historicamente anterior a este. (17)

Segundo essa concepção, diz Kelsen, o Estado como realidade social está incluído na categoria de sociedade; ele é uma comunidade. O Direito está incluído na categoria de normas; ele é um sistema de normas, uma ordem normativa. Assim posto, Estado e Direito são dois objetos diferentes. (18)

Esse dualismo, para Kelsen, é teoricamente indefensável. Uma vez que o Estado como comunidade jurídica não é algo separado de sua ordem jurídica, não mais do que a corporação é distinta de sua ordem constitutiva. O termo comunidade designa o fato de que a conduta recíproca de certos indivíduos é regulamentada por uma ordem normativa. Assim sendo, não há motivos para supor que existam duas ordens normativas, a ordem do Estado e a sua ordem jurídica, deve-se admitir que a comunidade chamada de "Estado" é a sua "ordem jurídica". (19)

Desse modo, ao se distinguir determinado Direito positivo, v. g., o Direito francês de outro Direito positivo, v. g., o Direito suíço, não é necessário recorrer à hipótese de que um Estado francês ou suíço existam como realidades sociais independentes. (20)

O Estado, segundo este autor, como comunidade em sua relação com o Direito não é uma realidade natural, ou uma realidade social análoga a uma natural, tal como o homem é em relação ao Direito. Se existe uma realidade social relacionada ao fenômeno que chamamos de "Estado" e, portanto, um conceito sociológico distinto do conceito jurídico, então a prioridade pertence a este. O conceito sociológico pressupõe o conceito jurídico. (21)

A idéia de Estado como unidade sociológica, distinta e independente de sua ordem jurídica, impõe uma busca de razões fundamentadoras para tal asserção, passível de comprovação se se demonstrar que os indivíduos que pertencem ao mesmo Estado forma uma unidade e que essa unidade não é forjada pela ordem jurídica, mas por um elemento estranho ao Direito. Contudo, para Kelsen, tal elemento que constitui o "uno entre os muitos" não pode ser encontrado. (22)

As teorias ensejadoras de uma unidade sociológica que foram analisadas por Kelsen, não são suficientes para cumprir com os seus desideratos. Ele expôs quatro fundamentos. O primeiro é o da unidade (corpo) social constituída por interação. De acordo com essa idéia, a interação que, presume-se, tem lugar entre indivíduos pertencentes ao mesmo Estado foi declarada como sendo tal elemento sociológico, independente do Direito, que constitui a unidade dos indivíduos pertencentes a um mesmo Estado e que, portanto, constitui o Estado como uma realidade social. (23)

Assim, um número de pessoas forma uma unidade real quando um influencia o outro e é, por sua, vez por ele influenciado. Kelsen aponta para a obviedade desta concepção, uma vez que todos os seres humanos e todos e quaisquer fenômenos interagem de tal modo. Sendo de natureza psicológica, a interação não se restringe a pessoas que vivem juntas no mesmo espaço. Tal concepção é destruída em face da realidade mundial, sobretudo devido ao desenvolvimento dos meios de comunicação. Não há como se demonstrar que indivíduos ou grupos que mesmo separados por fronteiras jurídicas não se interagem muito mais do que com os que estão no mesmo espaço. Dizer que a interação entre os que estão dentro do mesmo Estado é superior aos que não estão, é uma ficção política, segundo Kelsen. (24)

A segunda abordagem é da unidade (corpo) social constituída por vontade ou interesse comum. Fala-se, segundo Kelsen, num "sentimento coletivo", numa "alma coletiva", numa "consciência coletiva". Estes termos, segundo o autor, podem significar, apenas, que vários indivíduos querem, sentem ou pensam de uma certa maneira e estão unidos por sua consciência desse querer, sentir e pensar comuns. Dessorte que, uma unidade real existe, então, apenas entre os que efetivamente têm um estado mental idêntico e apenas nos momentos em que essa identificação de fato prevalece. Outrossim, com arrimo nesta concepção, diz-se que o Estado é ou tem um vontade coletiva, acima e além das vontades de seus sujeitos, (25) o que para Kelsen é uma visão fictícia, sendo válida apenas no sentido figurado de robustecer a força normativa da ordem jurídica sobre os indivíduos. (26)

Assim, segundo Kelsen, declarar a vontade do Estado como uma realidade psicológica ou sociológica é hipostatizar uma abstração em força real, atribuindo caráter substancial ou pessoal a uma relação normativa entre indivíduos, típico do pensamento primitivo, bastante comum no pensamento político. (27)

O fundo eminentemente ideológico desta concepção é claramente percebido, posto que o Estado é constituído de uma população dividida em vários grupos de interesses mais ou menos opostos entre si. Portanto, afirma Kelsen, a ideologia de um interesse coletivo de Estado é usada para ocultar esse inevitável conflito de interesses. Mesmo que a ordem jurídica fosse realmente a expressão dos interesses comuns de todos, em completa harmonia com os desejos de todos os indivíduos sujeitos à ordem, então essa ordem poderia contar com a obediência voluntária de todos os seus sujeitos, dispensando a coercibilidade, sendo completamente "justa", não precisaria nem mesmo ter o caráter de Direito, assinala Kelsen. (28)

A terceira das concepções em torno do problema suscitado, é aquela segundo a qual o Estado é um organismo natural. Com essa teoria, a sociologia do Estado torna-se uma biologia social. Conquanto pudesse ser rejeitada de imediato, por ser absurda, tem uma enorme importância política, segundo Kelsen. Para este, o objetivo real da teoria orgânica, desconhecido por muitos de seus expositores, não é explicar cientificamente o fenômeno do Estado, mas resguardar o valor do Estado como instituição, ou de algum Estado particular, confirmar a autoridade dos órgãos do Estado e aumentar a obediência dos cidadãos. (29)

Extraindo das lições de Otto Gierke, um dos eminentes expoentes dessa doutrina, Kelsen aponta a sua significação ética, quando se diz que o discernimento do caráter orgânico do Estado é a única fonte para a idéia de que a comunidade é algo valioso em si mesmo. E apenas do valor superior do todo em relação às suas partes é que se pode originar a obrigação do cidadão de viver e, se necessário, de morrer pelo todo. A obrigação moral e jurídica de um indivíduo, sob certas circunstâncias, de dar sua própria vida é indubitável. Mas, contrapõe Kelsen, no mesmo grau, não é, indubitavelmente, tarefa da ciência assegurar o cumprimento desta ou daquela obrigação - muito menos modelando uma teoria cuja única justificativa residiria no fato de que as pessoas cumprirão melhor seus deveres para com o Estado se forem induzidas a acreditar na teoria. (30)

A quarta concepção, que Kelsen diz ter sido a tentativa melhor sucedida, é que tem o Estado ou a interpretação da realidade social em termos de "dominação". Para essa teoria, o Estado é definido como um relacionamento em que alguns comandam e governam e outros obedecem e são governados. Essa teoria é forjada pelo fato de um indivíduo expressar sua vontade de que outro indivíduo se conduza de certo modo e essa expressão de sua vontade motivar o outro indivíduo a se conduzir do modo correspondente. Contudo, demonstra Kelsen, na vida social concreta, verifica-se uma infinidade de tais relações de motivação, inclusive no sentimento denominado de amor, já que mesmo nesse caso sempre há alguém que domina e outrem que é dominado. Tomando em consideração um governo tirânico, Kelsen demonstra que mesmo nesse Estado há vários "tiranos", que impõem sua vontade aos demais. No entanto, somente uma é essencial para a existência do Estado, qual seja a daquele que governa tiranicamente, a do tirano. Portanto, distingue-se os comandos do Estado daqueles que não o são através da ordem jurídica. Comandos "em nome do Estado", diz Kelsen, são aqueles emitidos em conformidade com uma ordem cuja validade o sociólogo deve pressupor quando distingue comandos que são atos do Estado e comandos que não têm esse caráter. (31)

De mais a mais, leciona Kelsen, que a descrição sociológica do Estado como um fenômeno de dominação não é completa se for estabelecido apenas o fato de que homens forçam outros homens a certa conduta. Mesmo o sociólogo, segundo este autor, reconhece a diferença entre um Estado e uma quadrilha de ladrões. Portanto, a dominação que caracteriza o Estado tem a pretensão de ser legítima e deve ser efetivamente considerada como tal por governantes e governados. Considera-se a dominação legítima, de acordo com Kelsen, apenas se ocorrer em concordância com uma ordem jurídica cuja validade é pressuposta pelos indivíduos atuantes; e essa ordem é a ordem jurídica da comunidade cujo órgão é o "governante do Estado". (32)

Para dar o conceito jurídico do Estado, Kelsen faz concomitantemente uma análise da sociologia jurídica, tecendo considerações em torno das palavras de Max Weber. (33) Combatendo as idéias deste no concernente ao objeto da sociologia jurídica, que é o Estado sociológico, que tem na interpretação do "processo de conduta social efetiva", um complexo de ações orientadas a uma ordem normativa, a jurídica. O Estado, para Kelsen, é aquela ordem da conduta humana que chamamos de ordem jurídica, a ordem à qual se ajustam as ações humanas, a idéia à qual os indivíduos adaptam sua conduta. Existe apenas, assevera Kelsen, um conceito jurídico de Estado: o Estado como ordem jurídica centralizada. (34) Kelsen não nega nem ignora os fatos que a terminologia pré-científica designa pela palavra "Estado". Tais fatos não são desnaturados caso se afirme que sua qualidade de "Estado" nada mais é que o resultado de uma interpretação. Esses fatos são ações de seres humanos, que são atos do Estado apenas na medida em que sejam interpretadas de acordo com uma ordem normativa cuja validade tem de ser pressuposta. (35)

A unidade entre Estado e ordem jurídica, que para Kelsen é óbvia, é reforçada mesmo por aqueles - os sociólogos - que caracterizam o Estado como uma "sociedade politicamente organizada". Organizada implica ordenada. O jaez político é a coercibilidade. Portanto, conclui Kelsen, o Estado é uma organização política por ser uma ordem que regula o uso da força, porque ela monopoliza o uso da força. Tais caracteres também são comuns ao Direito, daí dizer-se que a ordem coercitiva que constitui o Estado é o Direito. (36)

2. OS ÓRGÃOS DO ESTADO

O Estado não é um corpo visível ou tangível. Inclusive os adeptos da teoria orgânica reconhecem que o Estado não é um objeto apreensível pelos sentidos, leciona Kelsen. Como então se manifesta na vida social esse ser invisível e intangível? Pergunta Kelsen, que responde dizendo que certas ações de seres humanos são consideradas como ações do Estado. De que modo então distingue-se ações humanas que são ações do Estado daquelas que não o são? Novamente interroga este autor. A solução, segundo o mesmo, é que o julgamento por meio do qual atribuímos uma ação humana ao Estado, com a pessoa invisível, significa uma imputação de uma ação humana ao Estado. O problema do Estado, continua o autor, é um problema de imputação. O Estado é, por assim dizer, um ponto comum no qual se projetam ações humanas, um ponto comum de imputação de diferentes ações humanas. Os indivíduos cujas ações são consideradas atos do Estado, cujas ações são imputadas ao Estado, são designados órgãos do Estado, finaliza o autor. (37)

A questão que conduz à essência do Estado, segundo Kelsen, é saber qual o critério dessa imputação. A imputação de uma ação humana ao Estado é possível apenas sob a condição de que essa ação seja determinada de um modo específico por uma ordem jurídica pressuposta. Assim, continua o autor, imputar uma ação humana ao Estado, como uma pessoa invisível, é relacionar uma ação humana como ação de um órgão do Estado à unidade da ordem que estipula essa ação. O Estado como pessoa nada mais é que a personificação dessa unidade. Isto posto, assinala Kelsen, um órgão do Estado eqüivale a um órgão do Direito. (38)

Por órgão do Estado, entende Kelsen, é qualquer um que cumpra uma função determinada pela ordem jurídica. Nessa linha, um órgão é um indivíduo que cumpre uma função específica, seja uma função criadora ou aplicadora do Direito, ocupando uma posição jurídica específica, que lhe dá o caráter de órgão, sendo em regra designado de "funcionário público". Entretanto, ressalta Kelsen, nem todo aquele que funciona como órgão do Estado ocupa a posição de funcionário público, no sentido estrito (o indivíduo que exerce uma função pública profissionalmente, recebendo inclusive numerário oriundo do Erário). Tome-se em consideração, v. g., o cidadão que vota para a eleição do parlamento, não obstante executar uma função pública de criação do órgão legislativo, ele não pode ser considerado como um órgão do Estado, no sentido restrito de funcionário público. (39)

Kelsen também aborda a questão da criação do órgão do Estado, uma vez que, o Estado atua apenas através de seus órgãos. Isto quer significar que a ordem jurídica pode ser criada e aplicada apenas por indivíduos designados pela própria ordem, não bastando que ela declare em linhas gerais quais são os indivíduos qualificados para executar essas funções. Requer-se que a ordem estabeleça um procedimento por meio do qual o indivíduo particular seja tornado um órgão. (40)

De acordo com Kelsen, um órgão pode ser "criado" por nomeação, eleição ou por sorte. Distingue-se a nomeação da eleição pelo caráter e posição jurídica do órgão criador. Um órgão é nomeado, segundo o autor, por um órgão individual superior. É eleito por um órgão colegiado, composto de indivíduos juridicamente subordinados ao órgão eleito. Diz-se que um órgão é superior a outro se for capaz de criar normas obrigando o segundo. A nomeação e a eleição, tal como descritas, são, para Kelsen, tipos ideais, entre os quais existem tipos mistos para os quais inexiste terminologia especial. (41)

Conforme a função seja executada por um ato de um único indivíduo ou pelos atos convergentes de vários indivíduos, os órgãos podem ser divididos, segundo Kelsen, em simples e compostos. Assim, o indivíduo cujo ato, em conjunto com os atos de outros indivíduos, constitui a função total é um órgão parcial. Daí que a função total é composta de funções parciais, que podem ser atuar de dois modos diferentes, tendo ou não o mesmo conteúdo. Vários são os exemplos dados por Kelsen, dentre eles tomemos a função legislativa de um parlamento composto de duas casas, na qual cada uma dessas casas exerce uma função de idêntico conteúdo ao da outra. Para demonstrar a função composta de atos de conteúdos diferentes, Kelsen utiliza o exemplo do processo legislativo em uma monarquia constitucional, cujos estágios típicos, segundo ele são (1) a moção inicial apresentada pelo governo ou pelos membros do parlamento; (2) duas decisões coincidentes das duas casas; (3) aprovação pelo monarca; (4) promulgação, o que significa que o chefe de Estado ou o governo determinam que a decisão do parlamento foi tomada de acordo com a constituição; e, finalmente, (5) publicação da decisão, tal como aprovada pelo monarca, do modo prescrito pela constituição. (42)

Adverte Kelsen, quando uma função é composta de vários atos parciais, torna-se necessário regular a fusão desses atos na sua resultante, daí falar-se em processo ou procedimento. Do acima exposto, extrai-se o caráter altamente relativo da distinção entre ato parcial e total, posto que, na lição de Kelsen, qualquer ato de qualquer órgão pode ser considerado como meramente parcial, já que é apenas em virtude de sua conexão sistemática com outros atos que ele contribui para com aquela função que, sozinha, merece o nome de função total, a saber: a função total do Estado como ordem jurídica. Desse modo, conclui Kelsen, percebemos que todos os órgãos são apenas partes de um único órgão que, nesse sentido, é um "organismo": o Estado. (43)


II. A SEPARAÇÃO DE PODERES.

1. NOÇÃO.

Convém iniciar este tópico com o significado do que é o "poder" para Kelsen, sobretudo, o que é o poder do Estado, que a doutrina tradicional o classifica como o terceiro elemento do Estado. (44)

Ao analisar as concepções sociológicas do Estado, Kelsen menciona a teoria de que o Estado é uma "sociedade politicamente organizada". O caráter político surge em função de ser a organização, ou a ordem, coerciva. Daí porque o Estado é uma organização por ser uma ordem que regula o usa da força, porque ela monopoliza o uso da força. Com isto, descreve-se o Estado como o poder por detrás do Direito, que o impõe. A existência de tal poder é a demonstração de eficácia do próprio Direito, na medida em que as condutas são conformadas aos ditames das normas jurídicas. (45)

O poder individual, ainda sob a análise de Kelsen, é manifestado pela capacidade de um indivíduo em induzir as condutas que lhe são desejadas de outros indivíduos. Mas para que tal poder seja revestido do caráter de social ou político, é necessário a estruturação dentro de uma ordem normativa regulando a conduta humana, que implica, conseqüentemente, numa autoridade e numa relação de superior e de inferior. O poder social, nessa linha, só é possível dentro da organização social. Logo, o poder do Estado é o poder organizado pelo Direito positivo - é o poder do Direito, ou seja a eficácia do mesmo. De modo que, ao se falar em poder do Estado, não se deve considerar apenas os instrumentos materiais de atuação (armas, prisões, etc.), posto que tais objetos são, repete-se, apenas instrumentos que servem para a concretização material dos comandos jurídicos. O que fenomenaliza o poder político, preceitua Kelsen, é manifestado no fato de as normas que regulam o uso desses instrumentos se tornarem eficazes, por conseguinte, o poder político é a eficácia da ordem jurídica. (46)

Conquanto se diga que a unidade do poder é característica essencial, tal qual a unidade dos outros elementos (povo e território), pensa-se, não obstante, que seja possível distinguir três diferentes poderes componentes do Estado: o poder legislativo, o poder executivo e o poder judiciário. A Unidade daqueles elementos (povo e território) resulta do poder do Estado, que, como já dito, nada mais é do que a validade e a eficácia da ordem jurídica. Assim, quando se fala dos três poderes do Estado, o poder é compreendido como função, sendo distinguidas três funções do Estado. (47)

2. A SEPARAÇÃO DO LEGISLATIVO DO EXECUTIVO.

Para Kelsen, a base da tripartição do poder reside numa dicotomia: legislação e execução. Legislar, segundo ele, é criar normas gerais. Executar é aplicar estas normas gerais. Contudo, adverte o autor, toda criação de Direito é ao mesmo tempo sua aplicação, assim como toda aplicação dele é também sua criação. (48)

Neste tópico, versaremos acerca da distinção entre os denominados poder legislativo e poder executivo, propriamente dito.

Quanto ao primeiro, ou seja, o poder legislativo, é assim denominado por ter a faculdade de criar as "leis", através do processo legislativo. As leis que são as normas gerais, pelo menos, segundo Kelsen, naqueles ordenamentos que desconhecem a via consuetudinária, como uma outra via de criação de normas gerais. Assim, chama-se de poder legislativo o órgão do Estado que é a fonte de todas as normas gerais, em parte diretamente e em parte indiretamente, através dos órgãos aos quais delega competência legislativa, assinala Kelsen. Isto porque, a função legislativa, que é a capacidade de criar normas gerais, conquanto em tese, segundo a teoria da separação dos poderes, caiba somente ao órgão denominado de poder legislativo, também pode, em algumas circunstâncias extraordinárias, ser exercida por outros órgãos, mormente o poder executivo e o poder judiciário, mediante autorização da própria constituição e sob o crivo do órgão legislativo ordinário, através das delegações legislativas. (49)

Se as normas gerais oriundas do poder legislativo são denominadas de leis ou "estatutos", na terminologia adotada por Kelsen, as que advém do poder executivo são, em regra, diz o autor, denominadas de "decretos-lei". O dado importante a ser gizado, é que o ato criador de normas gerais pelo executivo não é função executiva, é função legislativa, exercida pelo executivo, como se fosse o órgão legislativo. Entretanto, ressalta Kelsen, que tal função atípica do executivo só é exercida em circunstâncias extraordinárias, em nome da segurança e estabilidade da comunidade. Portanto, conclui ele, na prática, o que importa é apenas uma organização da função legislativa segundo a qual todas as normas gerais têm de ser criadas ou pelo órgão chamado legislativo ou por outros órgãos, classificados como órgãos do poder executivo ou judiciário, com base em uma autorização da parte daquele órgão. (50)

Se, em casos excepcionais, é facultado ao poder executivo a edição de "decretos-lei", com características semelhantes às das leis, e, fora de toda a dúvida, é uma função legislativa exercida pelo poder executivo, geralmente através de seu chefe, não se pode olvidar que, em regra, o chefe do poder executivo exerce uma função legislativa quando, por intermédio do veto, pode impedir que as normas pronunciadas pelo órgão legislativo se tornem leis, ou que sua chancela seja condição sem a qual venham a constituir leis. Outrossim, continua Kelsen, o chefe do poder executivo exerce uma função legislativa quando dá o impulso no processo legislativo, com a iniciativa de leis, se lhe é permitida. (51) Essa função legislativa, através da iniciativa no processo legislativo, em algumas constituições, também é compartilhada por outros órgãos ou mesmo pelos indivíduos que não representam órgão algum, quando lhes é lícito instar o pronunciamento do legislativo acerca de projetos advindos de fora dos quadros deste órgão, ou seja, daqueles que não são membros do poder legislativo. (52)

Merece destaque, a análise de Kelsen em torno da função legislativa do órgão judiciário ou do poder judiciário. É-lhe, também, como anteriormente dito, facultado a participação no processo de criação de normas gerais, mediante a "delegação legislativa", semelhantemente ao ocorrido com o poder executivo. Além desse modo de exercício da função legislativa, Kelsen aponta duas outras maneiras de atuação do poder judiciário na função legiferante, quais sejam os precedentes judiciais e o controle judicial das leis. (53)

Quanto à primeira, é um princípio de economia processual e segurança jurídica, quando a decisão do judiciário, sobretudo da corte máxima, em um caso concreto, se torna um precedente, ou seja, vinculativa às demais questões de casos concretos semelhantes ao julgado. Desse modo, segundo Kelsen, o tribunal com tal competência cria, por meio da sua decisão, uma norma geral que se encontra no mesmo nível dos estatutos criados pelo chamado órgão legislativo. (54) Contudo, ressaltamos, essa norma está no mesmo nível num sentido de obrigatoriedade somente para aqueles que demandarem em casos semelhantes, e que, acaso o órgão legislativo decida editar uma nova lei forjando uma interpretação diferente à dada pelo tribunal, que culminou no precedente, é o órgão judiciário obrigado a rever sua posição, vindo a criar, então um novo precedente. Ou seja, as decisões dos tribunais não têm o mesmo nível das decisões legislativas, posto que estas são, em verdade, as normas gerais propriamente ditas.

A outra atividade do órgão judiciário que Kelsen designa como legislativa, é a do controle de constitucionalidade das leis feito por órgãos judiciários. Antes, é de bom alvitre dizer que, para Kelsen, a constituição significa, num plano inicial, a base da ordem jurídica nacional ou sua "lei fundamental", e que, sua função precípua é ser o fundamento de validade desta ordem jurídica. Portanto, na trilha do pensamento kelseniano, seria a constituição a representação material daquela norma fundamental, anteriormente exposta. (55) Mas, além disso, a constituição desenvolve outro papel relevante, o de regular a produção de normas gerais, podendo também determinar o conteúdo das futuras leis. (56) Isto posto, em síntese, é da alçada da constituição instituir os órgãos criadores e aplicadores do Direito, regulando-lhes a criação e aplicação das normas jurídicas.

Dessa sorte, para Kelsen, uma vez que a competência para a criação das normas gerais, as leis, que é a aplicação da constituição feita pelo órgão legislativo, pode ser obstada pelo órgão judiciário, este estaria exercendo uma função legislativa, só que negativa. (57) Entretanto, arriscamos discordar do jurista maior, assim não nos parece. Ou seja, quando o tribunal inquina de inconstitucional uma lei, espancando-a para fora do mundo jurídico, ele não exerce uma função legislativa, exerce, em toda sua plenitude uma função jurisdicional, posto que é dever seu, conforme o próprio texto constitucional, dizer o direito, ou dizer o que não é direito. Assim, dizer que um ato emanado do legislativo é inconstitucional é dizer que ele não está adstrito ao Direito, que exige conformidade com a constituição para receber a qualidade de norma jurídica. Desse modo, não vemos como legislador negativo ou exercendo função legislativa o órgão judiciário, vemo-lo exercer sua mais nobre função: de garantir a conformidade das normas jurídicas com a constituição, ou seja, velar pela supremacia desta.

3. A SEPARAÇÃO DO JUDICIÁRIO DO EXECUTIVO.

Ao tratar sobre os poderes judiciário e executivo, Kelsen, como soe acontecer, relembra que é apenas como exceção que os órgãos do poder executivo e do judiciário podem criar normas gerais. Sua tarefa típica, continua o mestre, é criar normas individuais com base nas normas gerais criadas por legislação e costume, e levar a efeito as sanções estipuladas por essas normas gerais e individuais. (58)

Dessa assertiva resulta que, segundo Kelsen, a execução ou aplicação das leis é uma função inerente ao poder executivo e ao poder judiciário, daí porque este poder não é distinguível do poder executivo pelo fato de que apenas os órgãos do executivo "executam" as normas, como acontece com a distinção entre estes e o poder legislativo. Por esse ângulo, vê-se que a função de ambos é a mesma. A diferença, continua Kelsen, é, simplesmente, que num caso, a execução das normas gerais é confiada aos tribunais, e no outro, aos chamados órgãos "executivos" ou administrativos. De modo que, conclui ele, a segunda função (execução), no sentido mais restrito, está subdivida em função jurídica e função executiva. (59)

Considerando que os dois poderes desenvolvem atividade típicas semelhantes, ou seja, a aplicação das leis, uma separação estrita deles, assinala Kelsen, é impossível, posto que suas funções não são essencialmente distintas. Resta elucidar, então, qual a característica diferençadora da função executiva da função judiciária. Para Kelsen, a resposta está contida nas funções típicas dos tribunais civis e criminais. A função judiciária, continua o mestre, consiste em dois atos: em cada caso concreto, (1) o tribunal estabelece a presença do fato qualificado como delito civil ou criminal por uma norma geral a ser aplicada ao caso dado; e (2) o tribunal ordena uma sanção civil ou criminal concreta estipulada de modo geral na norma a ser aplicada. Para se chegar a essa operação dos tribunais, mister se faz que exista uma controvérsia entre duas partes, que exigem do judiciário a sua manifestação para dirimir o conflito de interesses entre elas. Portanto, a decisão judiciária é a decisão de uma controvérsia. (60)

Para Kelsen, do ponto de vista da norma geral que tem de executada pela função judiciária, o caráter de controvérsia é secundário, não passa de uma mera formalidade. Mas, pensamos, aí é que reside o ponto fulcral da distinção entre o judiciário do executivo, posto que este aplica a lei de ofício, conforme sintética e lapidar asserção de Miguel Seabra Fagundes, em clássica obra (61), ou seja, independentemente de manifestação de quaisquer outros órgãos ou indivíduos, enquanto que o judiciário só pode aplicar a lei quando instado por uma parte, que tem interesse na resolução de uma controvérsia.

Kelsen chama a atenção para um fato da maior importância, que é a aplicação de normas administrativas que têm um caráter de sanção em face da conduta do indivíduo e em face daquelas que independem da conduta individual. No primeiro caso, leciona Kelsen, que os órgãos do poder executivo, ou administrativo, freqüentemente exercem a mesma função dos tribunais, baseada no Direito Administrativo. Quando os funcionários públicos executam algumas normas jurídicas de conteúdo administrativo, como a aplicação de multas por descumprimento de ordens administrativas (v. g., venda de bebida alcóolica sem autorização da autoridade competente), nesse caso, a função administrativa se confunde com a judiciária, desde que, evidentemente, esteja autorizada pela constituição, posto que em alguns sistemas jurídicos, desconhecem-se o contencioso administrativo, toda controvérsia, mesmo envolvendo os órgãos administrativos, pode ser objeto de apreciação por parte do poder judiciário. (62)

As incursões dos órgãos administrativos no patrimônio ou na liberdade individual, independentemente da conduta deste, é assegurada, segundo Kelsen, pela maioria das ordens jurídicas, inclusive aquelas que adotam o princípio da separação de poderes. Essa interferência dos órgãos administrativos, de modo sumário, tem como desiderato prevenir com rapidez danos à segurança pública, como, v. g., a evacuação à força de moradores de casas que ameaçam desabar, ou demolir casas para interromper o avanço de incêndios, ou sacrificar animais infectados por certas doenças. Tais atividades, predica Kelsen, não são menos importantes para os indivíduos interessados do que as sanções executadas num processo judiciário ou os atos coercitivos preparatórios de tais sanções como, diz ele, a prisão de indivíduos acusados ou suspeitos de crimes. (63)

Esses atos coercitivos da administração pública, leciona Kelsen, diferem das sanções e dos atos coercitivos preparatórios de sanções pelo fato de não ser condicionados por certa conduta humana contra a qual é dirigido, como sanção, um ato coercitivo. São eles condicionados por outras circunstâncias, ou seja, por exemplo, o fato de uma edificação estar prestes a desabar, e não a conduta do seu dono ou moradores, é a condição para a remoção forçada destes. Se uma sanção é condicionada por uma determinada conduta humana, elas podem ser evitadas por uma conduta contrária. Nesses atos coercitivos da administração, a condicionante não é a conduta humana, portanto não há o que se falar em conduta oposta para lhes evitar, se o fizerem, incorrem em conduta passível de sanção. Assim, dessume Kelsen, que ao autorizar órgãos administrativos a executar esses atos coercitivos que não são sanções, a ordem jurídica abre uma exceção à regra segundo a qual as medidas coercitivas são permitidas apenas como sanções. (64)

4. SIGNIFICADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES.

Em sua análise, Kelsen combateu juridicamente a separação tricotômica de poderes, com o rigor científico que lhe era peculiar, ao concluir que, em termos jurídicos, o sobredito princípio é a doutrina dos diferentes estágios da criação e da aplicação da ordem jurídica nacional, (65) posto que, repisa, como vimos, não há três, mas duas funções básicas do Estado: a criação e a aplicação do Direito. De sorte que, continua ele, é impossível atribuir a criação de Direito a um órgão e a sua aplicação (execução) a outro, de modo tão exclusivo que nenhum órgão venha a cumprir simultaneamente ambas as funções. (66)

Reforça o ataque à separação de poderes, quando diz que este princípio, compreendido literalmente ou interpretado como um princípio de divisão de poderes, não é essencialmente democrático, uma vez que na idéia de democracia todo o poder deve estar concentrado no povo, e onde não é possível a democracia direta (inexistente nos Estados contemporâneos), todo o poder deve ser exercido por um órgão colegiado cujos membros serão eleitos pelo povo e juridicamente responsáveis perante ele, posto que é o órgão legislativo que tem o maior interesse em ver suas normas rigorosamente executadas. Portanto, arremata, a democracia exige que ao órgão legislativo seja dado controle sobre os órgãos administrativos e judiciários. (67) Daí porque, segundo Kelsen, a revisão judicial da legislação é uma transgressão evidente deste princípio, que em muitas constituições é considerado como um elemento específico da democracia. (68)

Essas conclusões acima expostas, devem ser recebidas com algumas cautelas, sobretudo em face da pureza lógica do pensamento kelseniano, para quem no parlamento (o órgão colegiado supramencionado) estariam contidas as representações legítimas da sociedade, e qualquer mecanismo de controle externo, feito por órgãos distintos, seria uma afronta aos mandamentos da própria sociedade, expedidos através das decisões legislativas, ou das leis. Entretanto, a realidade dos fatos demonstra que nem sempre as decisões parlamentares têm levado em consideração a vontade da sociedade, pelo menos da maioria dos seus membros, inda mais quando atentam contra os dispositivos do texto constitucional, que, ao serem feridos, espargem, sobre o tecido jurídico-social, nódoas indeléveis de maléficas conseqüências. Dessorte que, não vemos, como Kelsen, que o princípio da separação de poderes seja um atentado à democracia, pois se o for, então o próprio Estado também o é, já que a este cabe a criação e aplicação do Direito a ser (im)posto na comunidade.

Mas, não obstante esse rigoroso combate, Kelsen reconhece o significado mais notável deste princípio, levando em consideração a historicidade dele, que encontra-se precisamente no fato de que ele opera antes contra uma concentração que a favor de uma separação de poderes. (69) Doutrina que, quando sistematizada, era fruto das idéias contrárias aos governos absolutistas, nos quais os indivíduos estavam escarmentados com as dolorosas experiências de um "homem só ser o próprio Estado". (70)


CONCLUSÃO

Ante todo o exposto, da doutrina kelseniana, pode-se concluir que:

O Estado deve ser juridicamente analisado, a fim de que possível encontrar a solução dos seus múltiplos problemas, visto que, ele - o Estado - nada mais é do que uma corporação, ou seja, uma pessoa jurídica, cujos direitos e obrigações são distintos dos seus membros.

Enquanto corporação, o Estado distingue-se das demais em face do modo que é constituído, posto que ele é a comunidade criada por uma ordem jurídica nacional (distinguindo-se da internacional).

O Estado como pessoa jurídica é uma personificação dessa comunidade ou a ordem jurídica que nacional que constitui essa comunidade.

O fundamento de validade dessa ordem jurídica é a norma fundamental, que é materialmente representada pela constituição do Estado.

O Estado é inseparável de sua ordem normativa, inexistindo o dualismo Direito e Estado, pois o Estado é a sua ordem jurídica.

Em sendo intangível e impessoal, o Estado age através de seus órgãos, que são titularizados por seres humanos.

O órgão do Estado é um órgão do Direito.

Órgão é todo aquele que cumpre uma função estatal adredemente autorizada pelo Direito.

Os múltiplos órgãos do Estado, que cumprem funções parciais, têm como fim último fazer valer a atuação total do "organismo" único chamado Estado: criação e aplicação do Direito.

O poder do Estado é capacidade de fazer eficaz a sua ordem jurídica. O poder é uma função do Estado, que é distribuída, geralmente, em três órgãos (poder legislativo, poder executivo e poder judiciário).

A tripartição dos poderes reside, em verdade, numa bipartição de funções: criar e executar o Direito.

A função típica do poder legislativo é criar leis, ou seja, as normas jurídicas gerais. Essa função pode ser, positivamente, exercida pelos outros dois poderes, de maneira atípica e excepcional.

Os poderes executivo e judiciário têm a função típica de aplicar as leis, sendo que este só o fará quando instado por uma parte para dirimir uma controvérsia em um caso concreto. A função executiva (aplicadora) divide-se em função administrativa e judicial.

Podem os poderes executivo e judiciário exercer a função legislativa, negativamente, com os institutos do veto (executivo) e do controle jurisdicional de legalidade, segundo Kelsen.

A separação de poderes ofende a Democracia, posto que todo o poder deveria residir no povo ou naqueles que formam um colegiado eleito e juridicamente responsável perante o povo, predica Kelsen.

A principal justificativa da separação de poderes reside na história, posto que é um mecanismo político que opera antes contra uma concentração do que a favor de uma separação de poderes.


NOTAS

1. Cf. Platão. Diálogos III - A República. Tradução de Leonel Vallandro. Rio de Janeiro, Ediouro, p. 39 e ss.
2. Cf. Aristóteles. A Política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. Rio de Janeiro, Tecnoprint, Livro Sexto.
3. Cf. Do Espírito das Leis. Título original: De l’Esprit des Lois. Tradução de Gabriela de Andrade Dias Barbosa. Rio de Janeiro, Ediouro, Livro Décimo Primeiro, Capítulo VI.
4. Cf. Nuno Piçarra. A Separação dos Poderes como Doutrina e Princípio Constitucional - um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra, Coimbra Editora, 1989.
5. Cf. Elza Maria Miranda Afonso. O Positivismo na Epistemologia Jurídica de Hans Kelsen. Belo Horizonte, Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, 1984.; Cf. José Florentino Duarte, na apresentação da obra de Hans Kelsen, Teoria Geral das Normas, por ele traduzida.
6. Cf. Hans Kelsen. Teoria Geral do Direito e do Estado. Título original: General Theory of Law and State. Tradução de Luís Carlos Borges. 2ª edição. São Paulo, Martins Fontes, 1992, p. 183.
7. Idem.
8. Ibidem, p. 100.
9. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p 100.
10. Idem, p. 183.
11. Cf. Teoria Geral das Normas. Título original: Allgemeine Theorie der Normen. Tradução de José Florentino Duarte. Porto Alegre, Sérgio Fabris, 1986, p. 01.
12. Cf. Teoria Pura do Direito. Título original: Reine Rechtslehre. Tradução: João Baptista Machado. 4ª edição. São Paulo, Martins Fontes, 1994, p. 33.
13. Cf. Teoria Geral das Normas, op. cit.
14. Cf. Teoria Geral das Normas, op. cit., p. 328 e s.
15. Idem.
16. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 184 e ss.
17. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 184.
18. Idem.
19. Ibidem.
20. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 185.
21. Idem.
22. Ibidem.
23. Ibidem.
24. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 186.
25. Cf. Jean-Jacques Rousseau. O Contrato Social. Título original: "Du Contrat Social". Tradução de Antônio de P. Machado. 13ª edição. Rio de Janeiro, Ediouro S. A.
26. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 187.
27. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 187.
28. Idem.
29. Ibidem.
30. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 187 e s.
31. Idem, p. 188.
32. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 189.
33. Idem, p. 190.
34. Ibidem.
35. Ibidem.
36. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 191.
37. Idem, p. 192 e s.
38. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 193.
39. Idem, p. 194.
40. Ibidem, p. 195 e s.
41. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 196.
42. Idem, p. 196 e s.
43. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 197.
44. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 249.
45. Idem, p. 191 e s.
46. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 191 e s.
47. Idem, p. 250.
48. Cf. Teoria Pura do Direito, op. cit., p. 260 e ss.
49. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 251 e s. e p. 264 e ss.
50. Idem, p 264 e ss.
51. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 265.
52. Cf. Constituição da República Federativa do Brasil, Art. 61.
53. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 261 e p. 266
54. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 266.
55. Cf. Teoria Geral das Normas, op. cit., p. 326 e ss.; Cf. Elza Maria Miranda Afonso, op. cit., p. 241 e ss.
56. Cf. Teoria Pura do Direito, op. cit., p. 249.
57. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 261.
58. Idem, p. 252.
59. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 250.
60. Idem, p. 266 e s.
61. Cf. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, 6ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1984.
62. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p.267 e ss.; Cf., também, Constituição da República Federativa do Brasil, Art. 5º, inciso XXXV.
63. Idem, p. 271 e s.
64. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 271 e s.
65. Idem, p. 252.
66. Ibidem, p. 263 e s.
67. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 275.
68. Idem, p. 263.
69. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, op. cit., p. 274.
70. Cf. Montesquieu, op. cit., p. 131 e ss.


BIBLIOGRAFIA

ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. Rio de Janeiro, Tecnoprint.

KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Título original: General Theory of Law and State. Tradução de Luís Carlos Borges. 2ª edição. São Paulo, Martins Fontes, 1992.

-------------------. Teoria Pura do Direito. Título original: Reine Rechtslehre. Tradução de João Baptista Machado. 4ª edição. São Paulo, Martins Fontes, 1994.

-------------------. Teoria Geral das Normas. Título original: Allgemeine Theorie der Normen. Tradução de José Florentino Duarte. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1986.

MIRANDA AFONSO, Elza Maria. O Positivismo na Epistemologia Jurídica de Hans Kelsen. Belo Horizonte, Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, 1984.

MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. Título original: De l’Esprit des Lois. Tradução de Gabriela de Andrade Dias Barbosa. Rio de Janeiro, Ediouro.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social (princípios de direito político). Título original: Du Contract Social. Tradução de Antônio P. Machado. Rio de Janeiro, Ediouro.

SEABRA FAGUNDES, Miguel. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, 6ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1984.

PIÇARRA, Nuno. A Separação dos Poderes como Doutrina e Princípio Constitucional (um contributo para o estudo das suas origens e evolução). Coimbra, Coimbra Editora, 1989.

PLATÃO. Diálogos III - A República. Tradução de Leonel Vallandro. Rio de Janeiro, Ediouro.


Autor

  • Luís Carlos Martins Alves Jr.

    Luís Carlos Martins Alves Jr.

    Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional, Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA e do Centro Universitário de Brasília - CEUB. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; "Lições de Direito Constitucional - Lição 1 A Constituição da República Federativa do Brasil" e "Lições de Direito Constitucional - Lição 2 os princípios fundamentais e os direitos fundamentais" .

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor

    Site(s):

Informações sobre o texto

Monografia referente à conclusão da disciplina Filosofia do Direito II, ministrada pelo Profª. Drª. Elza Maria Miranda Afonso, no segundo semestre de 1996, nos cursos de Pós-Graduação (Mestrado/Doutorado), Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. A teoria da separação de poderes na concepção kelseniana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. 18, 24 ago. 1997. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59. Acesso em: 19 abr. 2024.