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Análise do voto do Min. Luís Roberto Barroso sobre a constitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil Brasileiro

Análise do voto do Min. Luís Roberto Barroso sobre a constitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil Brasileiro

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O presente artigo tem por finalidade precípua analisar o posicionamento do iminente Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, ante a sua atuação na relatoria do RE nº 878.694 – MG, o qual discute a constitucionalidade do artigo 1.760 CC/02.

I - INTRODUÇÃO

O presente trabalho acadêmico tem por finalidade precípua analisar, de maneira genérica e sem a menor pretensão de esgotar o assunto, o posicionamento do iminente professor Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal, ante a sua atuação na relatoria do Recurso Extraordinário nº 878.694 – Minas Gerais, o qual discute a constitucionalidade do artigo 1.760 do Código Civil Brasileiro de 2002.

Há de se destacar que a controvérsia sobre a aplicabilidade do aludido dispositivo orbita em torno da legitimidade ou não do tratamento diferenciado facultado a cônjuges e companheiros, em sede de direito de sucessões. O tema teve sua repercussão geral anuída pela Corte Suprema no mês de abril de 2015.

Vale ressaltar que o instituto da repercussão geral foi introduzido no ordenamento jurídico pátrio através da Emenda Constitucional de nº 45, a qual incorporou o parágrafo 3º ao artigo 102 da Constituição Federal de 1988, com vistas a diminuir a demanda recursal por intermédio de um “filtro qualitativo” [1], in verbis:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

[...]

§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.

Partindo desta premissa, observa-se que a intenção do constituinte derivado era, no âmbito da reforma do judiciário, a partir da inserção do novo requisito de admissibilidade, possibilitar ao STF analisar apenas as questões que apresentassem um grau de relevância para a ordem constitucional, não incidindo tão somente na análise do interesse subjetivo das partes, mas, ao dirimir a lide, fazê-lo uma única vez, dispensando-se de emitir pronúncia em casos de matéria semelhante.

Posto isto, no dia 31 de agosto de 2016, o recurso foi levado à análise do pleno do STF, quando, investido dos atributos da relatoria do caso, o Ministro Barroso proferiu seu voto a favor do reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 1.760 do CC/02, tendo por base a premissa de que a CF/88 oferece tratamento de modo paritário aos institutos da união estável e do casamento, no que concerne a sucessão, não suportando a diferenciação estatuída no dispositivo legal entre os institutos.

Entrementes, imperioso se faz ressalvar que, muito embora os ministros Edson Fachin, Teori Zavascki (in memoriam), Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia tenham acompanhado o voto da relatoria, o julgamento foi suspenso por causa do pedido de vistas postulado pelo Ministro Dias Toffoli, condição esta na qual o referido processo se encontra atualmente.

Posto isto, buscaremos, então, explanar de modo sucinto os questionamentos elaborados pelo relator, bem como as principais teses defendidas pelo mesmo em sede de sustentação da posição adotada, no que tange à resolução da lide em questão. Por fim, traçaremos breves comentários críticos acerca da decisão.


II – DESENVOLVIMENTO

2.1 – O caso concreto

Para melhor entendermos a discussão aqui delineada, faz-se necessário, preliminarmente, tomar notas sobre o caso concreto que motivou o STF a se pronunciar em relação à constitucionalidade ou não do art. 1.760, CC/02, no qual temos uma decisão de Juízo Singular que reconheceu à companheira de um homem falecido o direito de figurar como herdeira universal dos bens do casal, patrocinando tratamento paritário aos institutos da união estável e do casamento.

Em sede de Segunda Instância, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais optou por reformar tal decisão, garantindo à mulher o direito a apenas um terço dos bens adquiridos de forma onerosa pelo casal, determinando que o restante fosse dividido entre os três irmãos do de cujus, reconhecendo, dessa forma, a constitucionalidade do artigo 1.790.

Diante disso, a defesa da viúva apresentou recurso extraordinário à nossa Corte Suprema, em que contestava a decisão proferida pelo TJ/MG, fundada no argumento de que a CF/88 concedeu tratamento igual às famílias constituídas por união estável e aquelas estabelecidas por meio de casamento.

2.2 – O voto

Ao adentrarmos no estudo do voto proferido pela relatoria no caso em análise percebemos a preocupação em se delimitar um questionamento acerca do tema tratado. Dessa feita, com o intuito de poder formular uma resposta adequada para a lide constitucional, foi elaborada a seguinte controvérsia: “[...] é legítima a distinção, para fins sucessórios, entre a família proveniente do casamento e a proveniente de união estável?”.

Partindo da pergunta engendrada, o ministro relator começa, então, a estabelecer parâmetros comparativos entre a norma estatuída no art. 1.790 Código Civil Brasileiro, diante dos princípios gerais e constitucionais que devem reger todo o ordenamento jurídico pátrio.

Assim, temos no voto a menção à evolução histórica do conceito de família adotado no Brasil, com o seu desaguar na quebra de paradigmas sedimentada na Carta Constitucional de 1988, que trouxe uma compreensão mais ampla em detrimento do modelo patriarcal estático, estabelecido no Código Civil de 1916, que determinava que a família tão somente era formada a partir do casamento.

Isto posto, e fundando-se no entendimento de que o direito sucessório tem por finalidade maior oferecer à família a expectação de continuidade patrimonial, a qual carrega o viés de permitir a tutela da coesão e da perpetuidade da mesma, expressa pelo instituto da herança legítima[2], e que a formação familiar foi expandida, dentre outros, pelo princípio da dignidade da pessoa humana e princípio da afetividade, seria inaceitável oferecer tratamentos distintos quando da sucessão patrimonial. Senão vejamos:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

[...]

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Destarte, a nítida evolução social e constitucional do conceito de entidade familiar, traduzidos principalmente na CF/88 e nas Leis nº 8.971, de 29.12.1994 e nº 9.278, de 10.02.1996, o Código Civil de 2002 não conseguiu acompanhar tal aperfeiçoamento no que tange ao regime sucessório de bens, pelo contrário, reduziu à infeliz distinção quando se trata de casamento e união estável.

O artigo 1.845, CC/02, introduziu o cônjuge no rol dos herdeiros necessários, o que representa significativo avanço em relação ao CC/1916, pois visa promover a proteção a continuidade da família, intuito este mais nítido ainda quando se busca tutelar o direito real de habitação ao cônjuge disposto no art. 1.831, CC/02.

Ainda nesta seara, tratou o legislador de dar maior proteção ao cônjuge no âmbito da sucessão patrimonial, entretanto, o mesmo tratamento não foi dado ao companheiro, como resta claro na análise comparativa dos seguintes artigos:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III - ao cônjuge sobrevivente;

IV - aos colaterais.

Constatada tal discrepância, válido se faz ressaltar a assertiva da iminente professora Giselda Hironaka[3], a qual leciona que:

O artigo 1.790 é de feição extremamente retrógrada e preconceituosa, e a vigorosa maioria dos pensadores, juristas e aplicadores do direito tem registrado com todas as letras que o dispositivo é inconstitucional, exatamente porque trata desigualmente situações familiares que foram equalizadas pela ordem constitucional, como é o caso das entidades familiares oriundas do casamento e da união estável.

Em seu voto, o Ministro Barroso destaca duas grandes diferenças no que tange a aplicação do direito de sucessões às entidades familiares advindas da união estável e aquelas provenientes do casamento. Uma versa sobre “[...] a participação hereditária do companheiro aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, em relação aos quais o companheiro já possuía meação.”. Já a segunda discrepância se dá “[...]quando o companheiro tem direito à sucessão, seu quinhão é muito inferior ao que lhe seria conferido caso fosse casado com o falecido.”.


3 – CONCLUSÃO

A importante temática desenvolvida a partir da análise do caso concreto é substancial para que possa vislumbrar a correção desta distorção que fere os próprios preceitos estabelecidos na Carta Magna Brasileira. A continuidade da validação do art. 1.790, CC/02, tem se tornado um verdadeiro empecilho para a substancialização de direitos já amparados pela Ordem Constitucional vigente.

Desta forma, faz muito bem o relator ao se manifestar em favor da inconstitucionalidade do dispositivo em voga, ante ao entendimento da afronta causada inclusive ao princípio da igualdade, haja vista a evolução do conceito de entidade familiar que hoje engloba vários arranjos e combinações diferentes daquela tida como clássica.

Assim, imperioso se faz ressaltar a lição do professor Zeno Veloso[4], que, ao ocupar-se desta temática, asseverou que o “[...] art. 1.790 merece censura e crítica severa porque é deficiente e falho, em substância. Significa um retrocesso evidente, representa um verdadeiro equívoco". E ainda,

"[...] a discrepância entre a posição sucessória do cônjuge supérstite e a do companheiro sobrevivente, além de contrariar o sentimento e as aspirações sociais, fere e maltrata, na letra e no espírito, os fundamentos constitucionais”.

Desta feita, em face da repercussão geral dada ao caso, a decisão do STF afetará todos os casos assemelhados que estão por serem decididos, sendo, então, extremamente relevante para a coletividade que o bom senso dos julgadores sobressaia-se e possibilite a materialização deste importante direito.


Notas

[1] A exigência da demonstração da repercussão geral é um “filtro qualitativo”, na medida em que estabelece um sistema de avaliação de admissibilidade de recursos a partir de um ‘juízo valorativo de importância’. Cf. BRAGHITTONI, R. Ives. Recurso Extraordinário: uma análise do acesso do Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Editora Atlas, 2007, p. 1-2.

[2] A legítima, também denominada reserva, é a porção dos bens deixados pelo "de cujus" que a lei assegura aos herdeiros necessários, que são os descendentes, ascendentes e o cônjuge/companheiro. A legítima corresponde a 1/4 do patrimônio do casal, ou à metade da meação do testador. GONÇALVES, Carlos Roberto. Sinopses Jurídicas - Direito das Sucessões. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

[3] Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka. Direito sucessório brasileiro: ontem, hoje e amanhã. In: Revista Brasileira de Direito de Família, ano III, nº 12, p. 68, jan.-mar./2002. 

[4] VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In. Direito de família e o novo Código Civil. Coordenação: Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Del Rey, 2006.


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