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A inconstitucionalidade da cisão dos julgamentos dos processos penais em crimes dolosos contra a vida cometidos em concursos de agentes

A inconstitucionalidade da cisão dos julgamentos dos processos penais em crimes dolosos contra a vida cometidos em concursos de agentes

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O trabalho visa discutir a inconstitucionalidade da separação dos processos penais nos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida cometidos em concurso de agentes, em que um dos coautores goze de foro privilegiado.

1 INTRODUÇÃO 

O presente artigo visa discutir a inconstitucionalidade da separação de processos penais nos crimes dolosos contra a vida cometidos em concursos de agentes, em que um dos agentes possua foro privilegiado, através da análise dos diversos manuais de processo penal e da jurisprudência.

O objeto do presente trabalho é causa de assíduas discussões doutrinárias e jurisprudenciais entre aqueles que defendem a cisão dos processos, em razão da garantia do Tribunal do Júri possuir respaldo constitucional e a lei que estabelece a conexão e continência ser uma norma infraconstitucional, razão pela qual não poderia prevalecer.

Por outro lado, outros juristas entendem que não deve haver a cisão dos processos em razão da regra da continência e conexão. A presente monografia pretende aumentar o campo de discussão através de uma análise mais pormenorizada do assunto com enfoque principalmente na garantia do Tribunal do Júri, no princípio do Juiz Natural, da Isonomia, da Uniformidade das Decisões Judiciais e o princípio hermenêutico da ponderação.


2 PRINCÍPIOS E REGRAS DO PROCESSO PENAL         

O artigo irá discutir a inconstitucionalidade ou constitucionalidade da cisão dos julgamentos dos processos penais dos crimes cometidos em concurso de agentes, em que um dos participantes goze de foro por prerrogativa de função.

Antes de adentrarmos a discussão propriamente dita, delimitaremos alguns pontos indispensáveis ao deslinde da questão como os princípios do Juiz Natural, da Isonomia e da Uniformidade das Decisões Judiciais, a garantia do Tribunal do Júri, as definições de competência, conexão e continência, além de regras de interpretação da Constituição em caso de conflitos de princípios constitucionais.

Um dos princípios que norteiam o devido processo penal é o Princípio do Juiz Natural que consiste segundo Eugênio Pacelli, em duas vertentes fundamentais, a da vedação do tribunal de exceção e a do juiz cuja competência seja definida anteriormente á prática do fato de modo a garantir a imparcialidade do magistrado.

O Princípio do Juiz Natural é uma garantia individual de todo aquele que sofre uma persecução penal de ter um julgador previamente constituído e imparcial, sendo tal princípio assegurado constitucionalmente e definido pelo STF nos seguintes termos:

O postulado do juiz natural representa garantia constitucional indisponível, assegurada a qualquer réu, em sede de persecução penal, mesmo quando instaurada perante a Justiça Militar da União. (...). O postulado do juiz natural, em sua projeção político-jurídica, reveste-se de dupla função instrumental, pois, enquanto garantia indisponível, tem, por titular, qualquer pessoa exposta, em juízo criminal, à ação persecutória do Estado, e, enquanto limitação insuperável, representa fator de restrição que incide sobre os órgãos do poder estatal incumbidos de promover, judicialmente, a repressão criminal (HC 81.963, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 28/10/2004). No mesmo sentido: HC 79.865, DJ 06/04/2001.(BRASIL, 2004a)

No que concerne ainda ao princípio do juiz natural a súmula 704 do STF, explicitou o entendimento, segundo o qual, não existe afronta a garantia do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou por conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de uns dos acusados.

A delimitação de qual órgão detém a competência na esfera penal é de extrema importância para garantir que não existam entre nós os chamados tribunais de exceção, que não passavam de meras encenações aptas a legitimar uma decisão preexistente.

Como meio de efetivação do Princípio do Juiz Natural o poder judiciário foi objeto de repartição de competência. A competência é definida pela doutrina como a delimitação da medida da jurisdição, assim sendo, a competência se consubstancia na distribuição de parcelas da jurisdição de modo a garantir a existência de um órgão investido de jurisdição prévio e imparcial para o julgamento do fato, efetivando assim o direito fundamental ao devido processo legal reunido sob a proteção de que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente." (art.5°, LIII, CF) (BRASIL, 2016). Vicente Greco Filho em seu livro apresenta um conceito de competência, nos seguintes termos:

É o poder de fazer atuar a jurisdição que tem um órgão jurisdicional diante de um caso concreto. Decorre esse poder de uma delimitação prévia, constitucional e legal, estabelecida segundo critérios de especialização da justiça, distribuição territorial e divisão de serviço. A exigência dessa distribuição decorre da evidente impossibilidade de um juiz único decidir toda a massa de lides existente no universo e, também, da necessidade de que as lides sejam decididas pelo órgão jurisdicional adequado, mais apto a melhor resolvê-las. (GRECO, 2012, p. 157)

O jurista Aury Lopes Júnior ensina que a competência além de limitar o poder garante a efetivação do devido processo legal sendo, portanto, indispensável à efetivação da garantia da jurisdição. Veja:

A competência, ao mesmo tempo em que limita o poder, cria condições de eficácia para a garantia da jurisdição (juiz natural e imparcial). Como explica TAORMINA, a disciplina da competência deriva do fato de que a jurisdição penal ordinária se articula em uma multiplicidade de órgãos, devendo se verificar a repartição das tarefas judiciárias. Resultaria extremamente perigoso se não fossem previstos rígidos mecanismos de identificação prévia do juiz competente, pois, antes de tudo, está a garantia da precostituzione per legge del giudice que deverá ser prima del fatto commesso. A competência impõe severos limites ao poder jurisdicional (es la medida de la jurisdicción, sintetiza LEONE e, por sua vez, está estreitamente disciplinada por regras que, em última análise, asseguram a própria qualidade e legitimidade da jurisdição. Ao final de tudo, está a garantia de ter um juiz natural, imparcial e cuja competência está claramente definida por lei anterior ao fato criminoso. (LOPES JÚNIOR, 2016, p. 258)

No que concerne à competência por prerrogativa de função trata-se de um foro especial concedido pela Constituição a certas pessoas em função do exercício de certos cargos, sendo previsto no Brasil desde a primeira Constituição brasileira em 1824.

O foro privilegiado, embora seja conhecido por esse nome não é um privilégio concedido a determinadas pessoas, o que violaria o princípio da Isonomia, mas uma garantia, para que essas pessoas que ocupam certas funções sejam julgadas por órgãos menos sujeitos a pressões externas. Veja a lição de Tourinho Filho:

Não se trata (...) de um privilégio, o que seria odioso, mas de uma garantia, de elementar cautela, para amparar, a um só tempo, o responsável e a Justiça, evitando, por exemplo, a subversão da hierarquia, e para cercar o seu processo e julgamento de especiais garantias, protegendo-os contra eventuais pressões que os supostos responsáveis pudessem exercer sobre os órgãos jurisdicionais inferiores. (TOURINHO FILHO, 2013, p. 180)

O referido doutrinador ressalta ainda que a garantia do foro por prerrogativa de função não é concedido à pessoa, mas em atenção à importância ou relevância do cargo ou função que exerça e enquanto perdurar o exercício de tal função, que uma vez cessada, acaba o foro por prerrogativa de função devendo os autos retornarem ao juiz competente. Veja:

Não é concedido à pessoa, mas lhe é dispensado em atenção à importância do cargo ou função que exerça. (TOURINHO FILHO, 2013, p. 180)

Com o foro por prerrogativa de função busca-se garantir que as pessoas ocupantes de certas funções de relevância nacional possam, quando acusadas da pratica de alguma infração penal, ter o devido processo penal, atribuindo os julgamentos de tais pessoas a órgãos sujeitos a menos pressões externas e cujas decisões são passíveis de um maior controle de sua legalidade, pois em todos os casos de foro privilegiado haverá o julgamento pelos tribunais onde vigora o princípio do Livre Convencimento Motivado. Veja a lição de Eugênio Pacelli:

Tendo em vista a relevância de determinados cargos ou funções públicas, cuidou o constituinte brasileiro de fixar foros privativos para o processo e julgamento de infrações penais praticadas pelos seus ocupantes, atentando-se para as graves implicações políticas que poderiam resultar das respectivas decisões judiciais. (PACELLI, 2015, p. 203-204)

As regras de conexão e continência, por sua vez, não são critérios de fixação de competência, mas sim de alteração de competência. A conexão de crimes ocorre quando dois ou mais delitos estiverem ligados por um vínculo que aconselhe a união dos processos, tudo para que o julgador possua uma perfeita visão do quadro probatório, como modo de evitar decisões conflitantes e de economia processual. Veja o ensinamento de Paulo Rangel:

O importante é saber que tanto em uma hipótese como em outra (conexão ou continência) haverá um só processo e julgamento, pois por economia processual e diante da possibilidade de julgamentos conflitantes o efeito primordial da conexão e da continência é a unidade de processo e julgamento (cf. art. 79 do CPP). (RANGEL, 2016, p. 372)

O artigo 77, I do CPP por sua vez estabelece que a continência ocorre quando duas ou mais pessoas forem acusadas pela mesma infração. (BRASIL, 2016, p. 619).

Porém há outros casos como o concurso formal de crimes art. 70 do CP, a aberractio ictus do art. 73 do CP e a aberratio criminis do art. 74 do CP (BRASIL, 2106, p. 534-535), conforme o disposto no art. 77, II do CPP. (BRASIL, 2016, p. 619)

Enfrentadas as questões preliminares necessárias à compreensão das questões aqui colocadas, adentraremos à questão principal do presente trabalho, qual seja, a inconstitucionalidade da separação de processos nos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida, quando um dos coautores goze de foro privilegiado.


3  A DISCUSSÃO SOBRE A CISÃO DE PROCESSOS PENAIS

No HC 69.325/GO surgiu uma discussão sobre a separação obrigatória de processos penais, nos crimes dolosos contra a vida cometidos em concursos de pessoas, em que um dos coautores possua foro privilegiado e, em que ambos são acusados de um único e mesmo fato.

A discussão em comento surgiu em virtude do suposto cometimento do crime de homicídio qualificado por João Felipe, a época Conselheiro do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás, em coautoria com seu filho, pois a Corte Especial do STJ afirmou sua competência para processar e julgar o filho do conselheiro por força da regra da continência.

O acusado impretou habeas corpus ao STF, sustentando, em suma, que o STJ ao estender sua competência ao corréu, violou dispositivos constitucionais dentre os quais a Garantia do Tribunal do Júri e o Princípio do Devido Processo Legal.

O STF decidiu no presente caso, HC 69325/GO (BRASIL, 1992a), pela separação obrigatória de processos em razão da regra constitucional que instituiu como garantia individual o julgamento pelo Tribunal do Júri nos crimes dolosos contra a vida, o que segundo esse acórdão do STF deve prevalecer sobre a regra instrumental que institui as regras de conexão e continência previstas na lei ordinária. Veja o referido acórdão:

Competência - crime doloso contra a vida - co-autoria - prerrogativa de foro de um dos acusados - inexistência de atração - prevalência do juiz natural - tribunal do júri - separação dos processos.1. A competência do tribunal do júri não e absoluta. Afasta-a a própria constituição federal, no que prevê, em face da dignidade de certos cargos e da relevância destes para o estado, a competência de tribunais - artigos 29, inciso viii; 96, inciso iii; 108, inciso i, alínea a; 105, inciso i, alínea a e 102, inciso i, alínea b e c. 2. A conexão e a continência - artigos 76 e 77 do código de processo penal - não consubstanciam formas de fixação da competência, mas de alteração, sendo que nem sempre resultam na unidade de julgamentos - artigos 79, incisos i, ii e parágrafos 1. E 2. E 80 do código de processo penal. 3. O envolvimento de co-réus em crime doloso contra a vida, havendo em relação a um deles a prerrogativa de foro como tal definida constitucionalmente, não afasta, quanto ao outro, o juiz natural revelado pela alínea d do inciso xxxviii do artigo 5. Da carta federal. A continência, porque disciplinada mediante normas de índole instrumental comum, não e conducente, no caso, a reunião dos processos. A atuação de órgãos diversos integrantes do judiciário, com duplicidade de julgamento, decorre do próprio texto constitucional, isto por não se lhe poder sobrepor preceito de natureza estritamente legal. 4. Envolvidos em crime doloso contra a vida conselheiro de tribunal de contas de município e cidadão comum, biparte-se a competência, processando e julgando o primeiro o superior tribunal de justiça e o segundo o tribunal do júri. Conflito aparente entre as normas dos artigos 5., inciso xxxviii, alínea d,105,inciso i, alínea a da lei básica federal e 76, 77 e 78do Código de Processo Penal. 5. A avocação do processo relativo ao co-réu despojado da prerrogativa de foro, elidindo o crivo do juiz natural que lhe e assegurado, implica constrangimento ilegal, corrigível na via do habeas-corpus. (Habeas Corpus 69325/GO, julgamento em 17 de junho de 1992, publicado no DJ em 04 de dezembro de 1992, BRASIL, 1992b)

Todavia não se trata de uma questão pacífica, pois o mesmo STF já decidiu em momento posterior, ao acórdão acima referido, que haveria a atração dos processos por força do princípio da conexão. Veja o HC 83.583/PE:

COMPETÊNCIA. CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA. ATRAÇÃO POR CONEXÃO DO CORRÉU AO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. 1. Tendo em vista que um dos denunciados por crime doloso contra a vida é desembargador, detentor de foro por prerrogativa de função (CF, art. 105, I, a), todos os demais coautores serão processados e julgados perante o Superior Tribunal de Justiça, por força do princípio da conexão. Incidência da Súmula 704/STF. A competência do Tribunal do Júri é mitigada pela própria Carta da República. Precedentes. 2. HC indeferido. (Habeas Corpus 83.583/PE, julgamento em 20 de abril de 2004, publicado no DJ em 07 de maio de 2004, BRASIL, 2004c)

Nesse contexto, Eugênio Pacelli diz concordar com a decisão do STF proferida no HC 69325/GO, mas que a fundamentação merece maior extensão e profundidade, pois segundo ele a jurisdição exercida pelo Conselho de Sentença é uma jurisdição popular em que o agente é julgado pelos seus pares e por essa razão deve prevalecer a cisão de processos. Veja:

A solução, a nosso aviso, passa pelo reconhecimento de uma jurisdição absolutamente singular, que é exercida pelo Tribunal do Júri. Ao contrário das demais, eminentemente técnicas, pode-se afirmar que a jurisdição exercida pelo Conselho de Sentença é, na realidade, uma jurisdição popular, em que um homem é julgado pelos seus pares. Por essa razão preponderante, e não por uma necessidade de afirmação da prevalência do juiz natural, é que entendemos conveniente e mesmo necessária a separação dos processos, ainda que haja prejuízo para a unidade e coerência das decisões judiciais. (PACELLI, 2015, p. 228).

No mesmo sentido Fernando da Costa Tourinho Filho defende a cisão obrigatória de processos, pois não há na Constituição permissivo legal para que os tribunais julguem outras pessoas além da enumeradas em seus artigos, não podendo a lei ordinária alterar a competência constitucionalmente outorgada, embora ressalte que a decisão talvez não seja a mais justa diante dos possíveis inconvenientes. Veja a posição do ilustre jurista:

E se houver conexão ou continência envolvendo pessoas que devam ser processadas e julgadas pelo STF, ou STJ, ou Tribunal Regional Federal, e outras não elencadas nos arts. 102, 105 e 108 da CF? A competência desses Tribunais vem fixada na Lei Maior. Como nesta não existe nenhuma regra explícita, ou implícita, permitindo-lhes o julgamento de outras pessoas além daquelas ali elencadas, e não podendo a lei ordinária alterar-lhes a competência, segue-se deva haver a disjunção dos processos. Na verdade, se a Constituição não permite a esses Tribunais o julgamento de outras pessoas, como poderia ocorrer o simultaneus processus? Não se pode alterar a competência por prerrogativa de foro fixada na Constituição a não ser por meio de emenda constitucional. É possível que a Supremo Tribunal Federal solução não seja justa, em face das inconveniências resultantes da cisão dos processos; contudo é legal, e, além do mais, parece-nos um não senso dar ao texto constitucional interpretação extensiva... Malgrado a observação o STF decidiu em sentido contrário (cf. RTJ, 84/713). Assim também no inquérito n. 184-8/DF, envolvendo um Deputado Federal e outra pessoa sem foro privativo. Vejam-se, ainda, as v. decisões publicadas na RTJ, 51/1, 112/964, 114/1022, 102/1; RDA, 162/159; RTFR, 102/361, 102/295; DJU, 23-6-1981, p. 6128; DJU, 27-8-1981, p. 8188; DJU, 14-10-1982, p. 10359; Inquérito n. 11/RJ, DJU, 25—9-1986. E tantas forma suas decisões nesse sentido que se cristalizaram na Súmula 704: “Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”. Se assim procedeu a Suprema Corte, fê-lo por entender que a disjunção dos processos poderia acarretar decisões antagônicas com reflexos bem acentuados na seriedade da Justiça. (TOURINHO FILHO, 2013, p. 271-272).

O jurista Aury Lopes também concorda com a decisão proferida pelo STF no HC 69325/GO, pois segundo ele a regra de conexão é prevista em lei ordinária não podendo prevalecer sobre a competência constitucional do Júri, embora reconheça que a questão não se encontra pacificada. Veja:

O STF, no HC 69325-3/GO, decidiu que se um particular praticar um crime de competência do Tribunal do Júri, juntamente com alguém que tenha prerrogativa de foro, haverá́ uma cisão processual. Por exemplo: se um particular comete um crime doloso contra a vida, a mando de um juiz de direito, haverá́ uma continência, nos termos do art. 77, I, do CPP. A prerrogativa do juiz de ser julgado pelo Tribunal de Justiça do seu estado é constitucional, como também o é a do Júri. Contudo, havendo essa igualdade de tratamento constitucional, prevalece a competência do TJ por ser o Tribunal um órgão de jurisdição superior (art. 78, III, do CPP). Então, o juiz será́ julgado no TJ. E o particular? Haverá́ uma cisão, sendo ele julgado pelo Tribunal do Júri. Isso porque a regra da conexão decorre de lei ordinária, que não pode prevalecer sobre a competência do Júri, que é constitucional. Mas a matéria não é pacifica, e o STF também já decidiu que valem as regras da conexão mesmo em se tratando de crime de competência do Júri, e que todos os agentes devem ser julgados no tribunal daquele que ostenta a prerrogativa de foro. (LOPES JÚNIOR, 2016, p.304)

Em sentido contrário, a decisão proferida pelo STF, Fernando Capez defende que deveria haver a reunião de processos penais com a prevalência do órgão de maior jurisdição o que não ofenderia o princípio do Juiz Natural, conforme a súmula 704 do STF. Veja um excerto retirado da obra do referido autor:

Na hipótese de crime cometido por juiz de direito em concurso com outros agentes que não gozam de foro privilegiado, ao Tribunal de Justiça com competência para julgar o magistrado, nos termos do art. 98, III, da CF, incumbirá julgar os demais acusados, tendo em vista os princípios da conexão e da continência e em razão da jurisdição de maior graduação, ante o disposto no art. 78, III, do CPP (STF, HC 74.573-RJ, 2a Turma, rel. Min. Carlos Velloso). Tal entendimento está consubstanciado na Súmula 704 do STF, segundo a qual: “Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”. (CAPEZ, 2015, p. 115-116).

O doutrinador Paulo Rangel também é contrário à cisão do julgamento dos processos penais sob o fundamento que poderia haver decisões conflitantes e nesse caso acarretaria a perda da credibilidade do Poder Judiciário.

O referido autor acrescenta que não convence a tese que o Tribunal do Júri tem previsão constitucional e por isso deve haver a separação dos processos, pois segundo ele, tanto a competência do Tribunal do Júri quanto a do Tribunal de Justiça são constitucionais, porém a do Tribunal de Justiça é de maior grau de jurisdição, aplicando a regra processual do art. 78, III, do CPP. Veja a lição de Paulo Rangel:

Pode acontecer, ainda, de um magistrado cometer um crime doloso contra a vida em concurso com uma pessoa, digamos Tício, que não tenha prerrogativa de função. Nesse caso, a regra seria o magistrado ser julgado pelo Tribunal de Justiça e Tício ser julgado pelo Tribunal do Júri. Porém, como há continência (cf. art. 77, I, do CPP), ou seja, o magistrado e Tício serão acusados pela mesma infração, e o efeito da continência é a unidade de processo e julgamento (cf. art. 79 do CPP), prevalecerá a competência do Tribunal de Justiça, por força do art. 78, III, do CPP. Não se diga que a competência do Tribunal do Júri é constitucional e por isso devesse haver separação do processo. Não. Ambas são constitucionais, porém a do Tribunal de Justiça é de maior grau de jurisdição, aplicando-se a regra, processual, do art. 78, III, do CPP. Assim, evitaremos decisões conflitantes, pois pode acontecer de o juiz ser absolvido e Tício condenado, ou vice-versa, e, nesse caso, a sociedade ficaria desacreditada. Nada impede que no julgamento pelo Tribunal de Justiça isso possa acontecer, porém será pelo mesmo órgão jurisdicional. Deve-se levar em linha de conta, ainda, que o principal efeito da continência é a unidade de processo e julgamento. O mestre Frederico Marques ensina, quanto à conexão, que: É que a conexão, além de contribuir para a economia processual, evita decisões divergentes ou contraditórias, e, por possibilitar uma visão mais completa dos fatos e da causa, constitui fator de melhor aplicação jurisdicional do direito (MARQUES, Frederico. Da competência em matéria penal. São Paulo: Millennium, 2000. p. 363). Há quem defenda que o júri é direito e garantia individual que não pode ser negado a Tício, e, portanto, a separação do processo seria inevitável. Discordamos dessa tese. Para nós, ambos devem ser levados ao Tribunal de Justiça. (RANGEL, 2011, p. 382)

Ante o exposto, verifica-se que a matéria ainda se encontra controvertida com posições doutrinárias e jurisprudências contrárias e favoráveis a referida cisão no julgamento dos processos penais, sobretudo pelo conflito de princípios de envergadura constitucional, prevalecendo a tese da cisão obrigatória dos processos penais, embora os defensores de tal tese reconheçam os inconvenientes da referida separação dos julgamentos dos processos.


4  COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

A decisão do STF e os entendimentos dos juristas, Eugênio Pacelli, Tourinho Filho e Aury Lopes, contém alguns inconvenientes, dentre as quais o sacrifício do princípio da Isonomia e da Uniformidade das Decisões Judiciais, devendo ser analisada pelo princípio hermenêutico da proporcionalidade.

O princípio da proporcionalidade busca a efetivação de direitos fundamentais quando estamos diante de conflitos de princípios através do sopesamento para verificar qual princípio deva prevalecer no caso concreto sem, contudo, aniquilar o outro princípio.

A doutrina tradicionalmente costuma apontar três dimensões para o princípio da proporcionalidade, que seriam a adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

Pela dimensão da adequação deve se verificar se a medida adotada é a que melhor atende aos fins constitucionais, ou seja, se medida escolhida, dentre aquelas que no caso concreto poderiam ter sido aplicadas, foi a que melhor atendeu aos imperativos de um Estado Democrático de Direito.

A necessidade impõe ao jurista que se adote no caso de conflitos de direitos fundamentais a medida, dentre as aptas a atender aos fins do Estado, que cause o menor prejuízo a coletividade, ou seja, radica em saber se a medida adotada é efetivamente necessária.

A dimensão da proporcionalidade em sentido estrito se efetiva através da ponderação entre as vantagens e desvantagens em prevalecer um ou outro direito fundamental, ou seja, verificar se de a medida adotada não sacrificou direitos fundamentais mais importantes do que aquela que se buscou preservar. A ponderação consiste segundo Barros, em dar a esse procedimento de escolha um caráter mais racional e, portanto, controlável. Veja:

A questão da ponderação radica na necessidade de dar a esse procedimento (colisão de direitos fundamentais) um caráter racional e, portanto, controlável. Quando o intérprete pondera bens em caso de conflitos de direitos fundamentais, ele estabelece uma precedência de um sobre o outro, isto e, atribui um peso maior a um deles. Se pode estabelecer uma fundamentação para esse resultado, elimina-se o irracionalismo subjetivo e passa-se para o racionalismo objetivo. (BARROS, 1996, p. 169).

A decisão do STF que determinou a separação obrigatória de processos talvez não seja a mais adequada do ponto de vista da ponderação de direitos fundamentais, pois com a devida vênia, acabou por violar dois princípios importantes no Estado Democrático de Direito, quais sejam, o Princípio da Isonomia e da Uniformidade de Decisões, fazendo prevalecer com ditames de absoluto a garantia do Tribunal do Júri, sendo que segundo o princípio hermenêutico da concordância prática ou harmonização deve-se evitar o sacrifício total de um bem jurídico em conflito com outros.

 O princípio da concordância prática ou harmonização, segundo José Gomes Canotilho, traz subjacente à idéia que não existe hierarquia entre direitos fundamentais, o que obsta que prevaleça com ditames de absoluto um princípio aniquilando outro princípio igualmente fundamental, o ilustre jurista assim preceitua o campo de atuação de tal princípio:

O campo de eleição do princípio da concordância prática tem sido até agora o dos direitos fundamentais (colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens jurídicos constitucionalmente protegidos). Subjacente a este princípio está a idéia do igual valor dos bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre bens. (CANOTILHO, 2012, p. 228).

O caso, em análise, envolve o conflito do Princípio da Isonomia e da Uniformidade das Decisões Judiciais de um lado e, do outro, a garantia do Tribunal do Júri, sendo que, tanto os referidos princípios quanto a garantia do Tribunal do Júri são igualmente previstos na Constituição.

Quanto ao princípio do Juiz Natural a súmula 704 do STF, pacificou o entendimento, segundo o qual, não existe afronta a garantia do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou por conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de uns dos acusados, razão pela qual não será objeto de discussão do presente trabalho.


5 ANÁLISE DAS HIPÓTESES DE CONEXÃO

No caso concreto a questão demanda maiores elucubrações, pois uma norma não pode ser analisada sem buscar o sentido de sua edição, para isso o trabalho dividirá a análise em dois grandes grupos, no primeiro serão tratadas as regras de conexão e no segundo das regras de continência e, a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da separação de processos em cada caso.

No caso da conexão existem ao menos três modalidades, cada uma com sua particularidade e sua razão de ser, razão pela qual iremos delimitar cada uma delas.

5.1 Conexão intersubjetiva

A primeira modalidade de conexão é a intersubjetiva prevista no art. 76, I do CPP, sendo que se divide em ao menos três sub modalidades. (BRASIL, 2016, p. 619)

5.1.1 Conexão intersubjetiva por simultaneidade

A primeira delas é a conexão intersubjetiva por simultaneidade, em que duas ou mais infrações são praticadas por duas ou mais pessoas reunidas, sem a existência de acordo de vontades entre elas, como nos casos dos crimes cometidos sob a influência de multidão em tumulto. Assim define essa conexão José Frederico Marques:

Conexão intersubjetiva por simultaneidade (também denominada subjetivo-objetiva ou meramente ocasional). Ocorre quando duas ou mais infrações são praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas ocasionalmente. O que se exige é a unidade temporal do acontecimento complexo, e não a unidade jurídica dos atos (MARQUES, 2000, p. 365)           

No caso da conexão intersubjetiva por simultaneidade deve haver a cisão de processos nos crimes dolosos contra a vida, pois embora os crimes tenham sido cometidos na mesma circunstância de tempo e lugar, não há qualquer liame subjetivo entre as partes para a prática de tais infrações, não havendo ofensa ao princípio da Isonomia e Uniformidade de Decisões Judiciais, pois os agentes são acusados de infrações diversas e sem prévio ajuste de vontades entre eles.

Assim sendo, a regra instrumental que determina a conexão no presente caso é para facilitar o processo e julgamento, sendo meramente para conveniência da instrução criminal, não havendo qualquer violação a princípios constitucionais os julgamentos das infrações em separado e, não existindo regra de conexão expressa na Constituição deve prevalecer à competência do Tribunal do Júri no caso concreto.

5.1.2 Conexão Intersubjetiva concursal

O art. 76, I do CPP prevê ainda a conexão intersubjetiva concursal, quando duas ou mais pessoas praticam dois ou mais crimes em concurso, ou seja, em comum acordo os agentes decidem praticar determinadas infrações. (BRASIL, 2016, p. 619)

O concurso de pessoas para que se concretize é imprescindível a presença de alguns elementos de natureza objetiva e subjetiva que são: pluralidade de participantes e de condutas, relevância causal de cada conduta, vínculo subjetivo entre os participantes e identidade de infração penal. Vejamos cada um desses requisitos.

 A pluralidade de agentes é inerente ao próprio concurso de pessoas, ou seja, é necessário que concorram mais de uma pessoa para que se possa falar em concurso e, a pluralidade de condutas, pois cada um dos agentes contribui de uma forma diferente na empreitada criminosa, seja praticando o núcleo do tipo penal ou praticando uma conduta acessória que dê causa ao sucesso da empreitada criminosa e cuja punição se dará em virtude de uma norma de extensão.

Sobre a pluralidade de condutas e diversas formas de atuação é importante salientar a teoria do domínio do fato utilizada no Brasil e em grande parte do mundo para distinguir a coautoria da cumplicidade, por essa teoria seria autor aquele que detém o domínio do fato, ou seja, que decide se, como e quando será realizada a empreitada criminosa. Veja a lição do professor de Coimbra Jorge Figueiredo Dias sobre a teoria do domínio do fato:

Nesta via se tornou hoje largamente dominante – na doutrina alemã, mas também na portuguesa, na espanhola, na de diversos países da América Latina, na coreana, na japonesa – a teoria do domínio do facto. Autor é, segundo esta concepção e de forma sintética e conclusiva, quem domina o facto, quem dele é “senhor”, quem toma a execução “nas suas próprias mãos” de tal modo que dele depende decisivamente o se e o como da realização típica; nesta precisa acepção se podendo afirmar que o autor é a figura central do acontecimento. Assim se revela e concretiza a procurada síntese, que faz surgir o facto como unidade de sentido objectiva-subjectiva: ele aparece, numa vertente como obra de uma vontade que dirige o acontecimento, noutra vertente como fruto de uma contribuição para o acontecimento dotada de um determinado peso e significado objetivo. (DIAS, 2012, p. 765-766)

A relevância causal por sua vez se caracteriza no nexo de causalidade entre a conduta praticada pelo agente e a ocorrência do resultado. Veja a definição de Cezar Roberto Bitencourt:

A conduta típica ou atípica de cada participante deve integrar-se à corrente causal determinante do resultado. Nem todo comportamento constitui “participação”, pois precisa ter “eficácia causal”, provocando facilitando ou ao menos estimulando a realização da conduta principal. (BITENCOURT, 2012, p. 544)

Por fim, para que se possa falar em concurso eventual de pessoas é imprescindível o vínculo subjetivo entre elas, ou seja, o comum acordo para juntas praticarem uma mesma infração penal.

O Código de Processo Penal atribui uma regra de processo e julgamento própria para os crimes que envolvam o concurso de pessoas a denominada conexão intersubjetiva concursal que impõe a reunião dos processos, com o intuito de evitar decisões conflitantes sobre o mesmo fato e, por motivos de economia processual. Veja a lição de Renato Marcão sobre a referida conexão:

Se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas em concurso, embora diversos o tempo e o lugar (segunda parte do inc. II do art. 76). Os elementos que identificam essa modalidade são os seguintes: pluralidade de infrações penais; e pluralidade de infratores em concurso de agentes. De igual maneira que a anterior, é denominada intersubjetiva por envolver duas ou mais pessoas; concursal, por agirem elas em concurso; com unidade de desígnios (CP, art. 29). (MARCÃO, 2016, p. 297)

No caso da conexão intersubjetiva concursal a decisão do STF que determina a cisão do julgamento dos processos nos crimes dolosos contra a vida cometido em concurso de agentes, analisada sob a ótica da ponderação de princípios constitucionais não parece a mais adequada por não aplicar o princípio da Isonomia e da Uniformidade das Decisões Judiciais, pois dois ou mais indivíduos, um deles gozando de foro por prerrogativa de função decidiram em comum acordo cometerem infrações penais.

Existindo o comum acordo entre os agentes, todos eles deveriam ter os mesmos meios de defesa (recursos) e serem julgados por um mesmo julgador evitando decisões diversas, tendo em vista a adoção, em regra, pelo ordenamento jurídico brasileiro da teoria unitária do concurso de pessoas, em que todos os agentes respondem por um único e mesmo crime na medida da sua culpabilidade.

A referida cisão dos julgamentos dos processos criminais imporia o julgamento de um dos agentes pelo Tribunal do Júri, que é composto por sete pessoas comuns do povo que formam o denominado Conselho de Sentença, a quem competem, nos termos do art. 5º, inciso XXXVIII da CF, processar e julgar os crimes dolosos contra a vida (BRASIL. 2016, p. 8). O jurista Guilherme de Souza Nucci delimita a competência do referido tribunal, nos seguintes termos:

Houve época em que se debateu, vigorosamente, no Brasil, o alcance da competência do Tribunal do Júri, visando-se a incluir na sua pauta todos os crimes que envolvessem a vida humana. Não vingou tal entendimento, pois o conceito adotado pelo texto constitucional foi técnico, isto é, são os crimes previstos no Capítulo I (Dos crimes contra a vida), do Título I (Dos crimes contra a pessoa), da Parte Especial do Código Penal. Incluem-se na competência do Tribunal Popular, originariamente, os seguintes delitos: homicídio simples (art. 121, caput); privilegiado (art. 121, § 1.º), qualificado (art. 121, § 2.º), induzimento, instigação e auxílio ao suicídio (art. 122), infanticídio (art. 123) e as várias formas de aborto (arts. 124, 125, 126 e 127). Além deles, naturalmente, vinculam-se os delitos conexos, aqueles que, por força da atração exercida pelo júri (arts. 76, 77 e 78, I, CPP), devem ser julgados, também, pelo Tribunal Popular. Por fim, acrescentem-se as formas do genocídio, que equivalem a delitos dolosos contra a vida (art. 1.º, a, c e d, Lei 2.889/56). (NUCCI, 2016, p. 917)

A cisão dos julgamentos acima referida acarretaria no julgamento de alguns dos agentes pelo Tribunal do Júri, onde vigora o princípio da convicção íntima, em que um indivíduo é condenado ou absolvido muito mais pelo clamor da defesa ou acusação do que por questões técnicas propriamente ditas e, o outro agente por um tribunal onde vigora o princípio do “livre” convencimento motivado em que um acusado é condenado ou inocentado por questões técnicas.

Ante o exposto, a separação dos julgamentos dos processos penais nos casos de conexão intersubjetiva concursal por atribuir tratamentos diversos a pessoas acusadas de uma mesma infração penal cometida em concurso de agentes, talvez não seja a mais correta do ponto de vista da ponderação de princípios, conforme será analisado nos tópicos seguintes.

5.1.3 Conexão intersubjetiva por reciprocidade           

O art. 76, I do CPP, traz a conexão intersubjetiva por reciprocidade que ocorre quando dois ou mais indivíduos praticam várias infrações uns contra os outros. (BRASIL, 2016, p. 619). Aury Lopes assim define tal modalidade:

Intersubjetiva por reciprocidade: quando duas ou mais infrações forem praticadas por várias pessoas, umas contra as outras. Não se pode esquecer que a conexão exige duas ou mais infrações, devendo ser afastada desde logo a idéia do crime de rixa (pois é um crime só). Aqui os crimes (plural) são praticados por várias pessoas umas contra as outras, existe uma reciprocidade das agressões. Exemplo: briga entre torcidas de futebol na saída do estádio (vários crimes de lesões corporais leves, algumas graves e até gravíssimas, ameaças etc.) ou, ainda, entre diferentes gangs de jovens. (LOPES JÚNIOR, 2015, p. 308)

Na conexão intersubjetiva por reciprocidade deve ser aplicado a decisão do Supremo Tribunal Federal pela cisão de julgamento dos crimes dolosos contra a vida cometidos em concurso de agentes, já que nesse caso os agentes são acusados por crimes diversos, sem que entre eles exista prévio acordo não se configurando concurso de agentes, sendo que somente seria possível a tentativa de algum crime doloso contra a vida, já que se porventura consumado alguns dos crimes ou ambos não restaria mais qualquer discussão.

Não há no presente caso ofensa ao princípio da Isonomia e da Uniformidade das Decisões Judiciais e não havendo previsão constitucional expressa da conexão, sendo está prevista somente na lei infraconstitucional, deve prevalecer à garantia do Tribunal do Júri que possui respaldo constitucional.

5.2 Conexão objetiva ou teleológica

O art. 76, II, do CPP (BRASIL, 2016, p. 619) prevê a denominada conexão objetiva ou teleológica abandonando a idéia de intersubjetividade já que nesse caso o crime pode ser praticado por uma única pessoa, nessa conexão um crime é praticado para facilitar ou ocultar outro (s) ou para conseguir a vantagem ou impunidade em relação a ele (s).  Veja as palavras de Paulo Rangel:

O inciso II prevê a chamada conexão objetiva ou lógica, em que uma infração é praticada para facilitar ou ocultar a outra; ou ainda, quando uma é praticada para obter a impunidade ou vantagem em relação a outra. Exemplo de facilitar. Tício para cometer o estupro contra Etevilna, tranca o marido desta dentro de um quarto por várias horas. O crime de constrangimento ilegal foi praticado para facilitar a prática do estupro[...]. (RANGEL, 2016, p. 373)           

No caso da conexão objetiva ou teleológica a decisão do STF que determinou a cisão de julgamentos deve ser aplicada, pois ou o crime é praticado por um único sujeito não restando qualquer discussão, ou os crimes são praticados em concurso de agentes, o que se enquadraria na conexão intersubjetiva concursal, devendo ser aplicado o mesmo raciocínio acima exposto para essa modalidade de conexão.

5.3 Conexão instrumental

Por fim, o art. 76, III do CPP (BRASIL, 2016, p. 619), traz a denominada conexão instrumental, pois existe uma conexão de natureza probatória entre os crimes onde a prova de um crime influi em outro ou de prejudicialidade quando a existência de um crime depende da existência prévia de outro. Veja o excerto retirado do livro de Aury Lopes:

No inciso III, existe um vínculo probatório ou instrumental entre as duas ou mais infrações. Importa aqui essa relação de natureza probatória (a prova de um crime influi na prova do outro) ou de prejudicialidade (quando a existência de um crime depende da existência prévia de outro). Isso pode ocorrer entre os crimes de furto e de receptação, mas também entre o crime antecedente (cujo rol está no art. 1o da Lei n. 9.613)39 e a lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores. Essa é, sem dúvida, a conexão mais ampla, pois o interesse probatório vai muito além de qualquer relação de prejudicialidade penal. Importa aqui a relação probatória, em que uma mesma prova pode servir para o esclarecimento de ambos os crimes. Demonstrado esse interesse probatório, deve-se relativizar a questão da prejudicialidade, e reunir tudo para julgamento (e instrução) único. (LOPES JÚNIOR, 2015, p. 309)

Na conexão instrumental não existe qualquer discussão, pois ou os crimes são praticados por uma única pessoa, ou são cometidos em concurso de agentes e se amoldaria a conexão intersubjetiva concursal, devendo ser aplicado o entendimento ali exposto.

5.4 Continência

O art. 77 do CPP prevê a continência que se subdivide em duas modalidades a primeira prevista no inciso I do art. 77 do CPP que ocorre quando dois agentes são acusados de uma mesma infração, não há pluralidades de crimes, mas de pessoas. (BRASIL, 2016, p. 619)

Nesse caso partindo de uma análise sob a ótica do princípio hermenêutico da ponderação de direitos fundamentais o entendimento pela cisão dos processos, no caso da conexão intersubjetiva concursal e da continência, não seria o mais adequado do ponto de vista constitucional, pois embora as regras de conexão e continência não estejam expressamente previstas na Constituição, tais regras são a efetivação do princípio da Isonomia e da Uniformidade das Decisões Judiciais.

No caso da conexão, resta fazer uma observação quanto à autoria colateral e o concurso de pessoas, quanto a este último existe o prévio acordo dos agentes para praticar a mesma infração penal, devendo ser observado o princípio da Isonomia e da Uniformidade das Decisões Judiciais.

A autoria colateral ocorre quando dois ou mais agentes isoladamente e sem prévio acordo de vontades, praticam condutas visando o cometimento da mesma infração e nas mesmas circunstâncias. Veja o excerto retirado do manual de direito penal do professor da Universidade de Coimbra Jorge Figueiredo Dias sobre autoria colateral que em Portugal é conhecida como autoria paralela:

Fala-se de autoria paralela quando vários participantes no facto, independentemente uns dos outros (e não sendo, por conseguinte, co-autores), actuam em vista da mesma realização típica ou produzem, com a sua actuação, o mesmo resultado. Verdadeiramente, portanto, não se trata de uma forma de “comparticipação”, nem sequer de uma forma autónoma de autoria. Se A e B, sem saberem um do outro e de forma independente, corrompem o funcionário C porque ambos estão interessados na mesma autorização, está claramente dado um caso de autoria paralela. Como também se B sabe do acto de A e, independentemente deste, actua em relação ao mesmo resultado. (DIAS, 2012, p. 817)

Na autoria colateral é preciso uma análise diferenciada, pois não existe o prévio acordo de vontades entre as partes, embora exista um único crime, cometido nas mesmas circunstâncias fáticas, imputado aos agentes, assim sendo não existindo o vínculo subjetivo entre os agentes, não há ofensa ao princípio da Isonomia ou Uniformidade das Decisões Judiciais e não há na Constituição regra expressa de continência, razão pela qual deve prevalecer a garantia constitucional do Tribunal do Júri.

No inciso II do art. 77, do CPP (BRASIL, 2016, p. 619), há a previsão de mais algumas hipóteses de continência nos casos em que existe uma unidade delitiva por ficção normativa, como no concurso formal previsto no art. 70 do CP, erro na execução art. 73 do CP e resultado diverso do pretendido art. 74 do CP (BRASIL, 2016, p. 534-535), porém tais casos não envolvem pluralidade de pessoas, razão pela qual não iremos nos estender em tal inciso. 


6 ANÁLISE TEÓRICA DA DECISÃO DO STF NO HC 69325/GO

No caso da conexão intersubjetiva concursal e da continência é preciso uma análise crítica da decisão do Supremo Tribunal Federal no HC 69325/GO e do entendimento doutrinário dominante, diante do conflito de direitos fundamentais entre o Princípio da Isonomia e Uniformidade de Decisões Judiciais e a garantia do Tribunal do Júri, pois ambos os princípios são materialmente constitucionais e indispensáveis em um Estado Democrático de Direito e, a garantia do Tribunal do Júri, embora formalmente constitucional, não o é materialmente, consubstanciando apenas numa opção legislativa.

A distinção de normas formalmente constitucionais e materialmente constitucionais é trazida pelo jurista Pedro Lenza que descreve um trecho do livro de José Afonso da Silva dissertando sobre o pensamento de Carl Schmitt afirmando que esse distinguia Constituição de lei constitucional, seria Constituição somente o que se refere à decisão política fundamental (estrutura e órgãos do Estado, direitos individuais, vida democrática etc), ou seja, são as normas que são materialmente constitucionais, assim sendo as que possuem conteúdo constitucional. Leis constitucionais seriam os demais artigos das Constituição, mas que não contêm matéria de decisão política fundamental. Veja:

Na lição de Carl Schimitt, encontramos o sentido político, que distingue Constituição de lei constitucional. Constituição, conforme pondera José Afonso da Silva ao apresentar o pensamento de Schmitt, “...só se refere à decisão política fundamental (estrutura e órgãos do Estado, direitos individuais, vida democrática etc.); as leis constitucionais seriam os demais dispositivos inseridos no texto do documento constitucional, mas não contém matéria de decisão política fundamental”. (LENZA, 2012, p. 73)

Afora a questão acima delineada, a alegação de que a Constituição não trata da conexão e que em razão disso deva prevalecer a garantia constitucional do Tribunal do Júri não é suficiente, pois embora a Carta Magna realmente nada disponha sobre a conexão ou continência não caberia a ela dispor sobre essa matéria.

A Constituição deve tratar das matérias fundamentais em um Estado Democrático de Direito assim, não cabe a Carta Maior dispor sobre regras processuais de conexão e continência e, o simples fato de não constar do texto constitucional tais regras, não impõe por via de consequência a sua vedação.

A afirmação do jurista Tourinho Filho de que cabe a Constituição dispor sobre regras de conexão e continência, sob o fundamento de que a Constituição de 1946, no seu art. 119, VII, e a Emenda Constitucional no 1/69, no seu art. 137, VII, diziam competir à Justiça Eleitoral o processo e julgamento dos crimes eleitorais e dos comuns que lhe fossem conexos, embora verdadeiras do ponto de vista histórico não nos parece a mais correta do ponto de vista jurídico, pois por via de consequência teria de se entender que, de fato, caberia a Constituição dispor que o Colégio Pedro II seria mantido na órbita federal, ou seja, o simples fato de Constituições anteriores disporem sobre regras de conexão não impõe por via de consequência que caberia a Constituição dispor de tais regras.

As regras processuais de definição da competência por conexão ou continência possuem respaldo constitucional em dois grandes princípios da Isonomia e o da Uniformidade das Decisões Judiciais e tais regras são meios de efetivação de tais princípios. Assim também entende o jurista Eugênio Pacelli, embora em outro ponto de sua obra concorde com a decisão do STF no HC 69325/GO. Veja:

Na hipótese do art. 77, I, a reunião de processos para unificação do julgamento é absolutamente indispensável, como meio de impedir a divergência judicial sobre um único e mesmo fato criminoso, funcionando, então como meio estratégia de controle da efetividade e eficácia da jurisdição penal. Nesse passo, o expediente da unidade de processo e de julgamento assume dimensão não só jurisdicional, mas até de política criminal, sem falar no princípio geral da igualdade com que devem ser tratados todos os cidadãos. (PACELLI, 2015, p. 286)

O Princípio da Uniformidade das Decisões Judiciais é um princípio implícito da Constituição Federal de 1988, que pode ser extraído do princípio da Isonomia, na atualidade com o novo Código de Processo Civil o referido princípio teve respaldo legal no art. 926 do referido código que impõe que os tribunais zelem pela uniformidade das suas decisões.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos no seu art. 10, também consagrou expressamente o direito à plena igualdade aos acusados no processo penal. Veja:

Art. 10. Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. (art.10º, Declaração Universal dos Direitos Humanos)

As regras de conexão e continência são um dos meios de efetivação do Princípio da Uniformidade das Decisões, evitando a existência de juízos contraditórios sobre um mesmo fato, proferidos por magistrados diversos, assim já entendia Francesco Carnelutti, veja um excerto retirado da sua obra:

Não só se obtém uma economia, enquanto as mesmas provas e as mesmas razões servem para a declaração de certeza de cada delito conexo evitando inúteis repetições, mas também, e o que importa mais, o beneficio se estende à certeza, enquanto se evita também o perigo, que de outra maneira poderia produzir, de juízos contraditórios; prejudicaria, verdadeiramente, à justiça penal que sobre os delitos conexos diversos juízes pronunciariam juízos que se encontram em contraste lógico um com o outro. (CARNELUTTI apud MELENDO, p. 324, tradução nossa[1]).

A hermenêutica constitucional impõe que se dê a máxima efetividade aos direitos fundamentais sendo, portanto, uma imposição constitucional que se dê interpretação extensiva aos dispositivos ali previstos, especialmente quando garantidores dos direitos fundamentais da Isonomia e da Uniformidade das Decisões Judiciais. Assim define José Gomes Canotilho o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais:

É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da atualidade das normas programáticas (THOMA), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferi-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais. (CANOTILHO, 1993, p. 227)           

A leitura desenvolvida pela jurisprudência e doutrina dominante analisou a questão de um prisma diverso, porém a análise ora desenvolvida se pautará por uma solução que considere o ordenamento jurídico como um sistema e analisando as razões pelas quais foram instituídas as regras da conexão e continência que na essência possuem respaldo constitucional.

Cabe acrescentar que não existe qualquer vedação que se utilize da interpretação extensiva em matéria processual penal, pois o art. 3º do CPP admite expressamente a interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais do direito.

A interpretação extensiva consiste em uma interpretação ampliativa do conteúdo da lei por parte do aplicador do direito, quando a norma diz menos do que deveria dizer para obter o sentido que melhor efetive os princípios constitucionais, pouco importando se para beneficiar ou prejudicar o réu. Veja a lição de Guilherme de Souza Nucci, sobre a matéria:

O Código de Processo Penal admite, expressamente, que haja interpretação extensiva, pouco importando se para beneficiar ou prejudicar o réu, o mesmo valendo no tocante à analogia. Pode-se, pois, concluir que, admitido o mais – que é a analogia –, cabe também a aplicação da interpretação analógica, que é o menos. Interpretação é o processo lógico para estabelecer o sentido e a vontade da lei. A interpretação extensiva é a ampliação do conteúdo da lei, efetivada pelo aplicador do direito, quando a norma disse menos do que deveria. Tem por fim dar-lhe sentido razoável, conforme os motivos para os quais foi criada. (NUCCI, 2016, p. 42)

Assim sendo, no presente caso a interpretação extensiva da competência por prerrogativa de função a aqueles agentes que em concurso de pessoas hajam praticados crimes dolosos contra a vida, nos casos de continência e conexão intersubjetiva concursal é necessária para a garantia dos Princípios da Isonomia e da Uniformidade das Decisões Judiciais.

No Estado Democrático de Direito é inconcebível que duas pessoas acusadas da prática de uma mesma infração penal possam ser tratadas desigualmente nos que concerne aos seus meios de defesa.

A cisão dos processos nos casos de continência e conexão intersubjetiva concursal imporia a uns dos agentes o julgamento por um conselho de sentença formado por leigos em que o acusado é condenado ou absolvido, em regra, por discursos apaixonados, onde não se busca dos jurados um conhecimento técnico do direito e, que vigora o princípio da íntima convicção, de duvidosa constitucionalidade.

Em contrapartida, ao agente que possua foro por prerrogativa de função se imporia um julgamento extremamente técnico, sendo julgado por tribunais onde vigora o princípio do livre convencimento motivado. Em caso de continência, respeitado o princípio da isonomia, como um Estado Democrático de Direito pode admitir tamanha disparidade de tratamento?

Afora a questão acima exposta, existe outra que diz respeito à ofensa no princípio da Isonomia, consagrado expressamente no art. 10 da Declaração Universal dos Direitos Humanos que garante a plena igualdade entre os acusados no processo penal, pois o indivíduo que fosse submetido ao julgamento pelo Tribunal do Júri teria, ao menos em tese, possibilidade de utilização do recurso em sentido estrito, apelação, recurso especial e extraordinário, ou seja, um rol de recursos muito mais amplo do que aquele julgado pelos tribunais superiores.

A tese de que foi a própria Constituição que definiu um tratamento desigual aos detentores de certos cargos não parte de uma premissa verdadeira, pois esse tratamento fora estabelecido como um modo de preservar o exercício da função independentemente do agente que a exerça, visando atribuir a essas autoridades que possuam foro privilegiado maior autonomia no exercício das suas funções, ou seja, em benefício de tais agentes, então não existem fundamentos para que tais pessoas possam ter um rol de meios de defesas processuais inferiores aos dos que possuem os outros agentes acusados da prática da mesma infração penal. Veja o ensinamento de Eugênio Pacelli: 

Tendo em vista a relevância de determinados cargos ou funções públicas, cuidou o constituinte brasileiro de fixar foros privativos para o processo e julgamento de infrações penais praticadas pelos seus ocupantes, atentando-se para as graves implicações políticas que poderiam resultar das respectivas decisões judiciais. (PACELLI, 2015, p. 203-204) 

Ante todo o exposto, um Estado que se denomine democrático de direito deve respeitar o princípio fundamental da Uniformidade das Decisões Judiciais, sendo inconcebível que dois indivíduos acusados pelo mesmo fato, possam ter proferido contra si decisões divergentes e, conforme relatado acima, devido às inúmeras particularidades nos julgamentos no procedimento do Tribunal do Júri e o de um tribunal singular, existe grande probabilidade de decisões conflitantes, sobre um único e mesmo fato, acabando por violar tão importante princípio.

Há ainda uma importante questão: se, por exemplo, o agente que goze de foro privilegiado fosse julgado primeiramente e condenado, alguém em sã consciência diria que os jurados ousariam discordar sobre a existência do fato?

Assim sendo, a defesa do agente, submetido ao julgamento pelo Tribunal do Júri, apenas restaria provar que o seu cliente não participou da empreitada criminosa para buscar a absolvição do mesmo e, tal situação acabaria por violar dois direitos fundamentais o da ampla defesa, inerente a todo e qualquer processo judicial e administrativo e, o da plenitude da defesa específico do procedimento do Tribunal do Júri.


7 CONCLUSÃO

Diante de todo exposto, a partir de uma análise da discussão sob a ótica da ponderação de direitos fundamentais e após uma análise pormenorizada de cada regra de conexão e continência em relação aos fundamentos de suas existências, filiamos a Paulo Rangel, Fernando Capez e a última decisão proferida pelo STF no HC 83.583/PE, pois nos parece que tal entendimento melhor atende aos imperativos constitucionais, especialmente aos princípios da Isonomia e Uniformidade das Decisões Judiciais, entendemos, portanto inconstitucional, por ofensa aos referidos princípios, a cisão do julgamento dos crimes dolosos contra a vida, quando um dos agentes goze de foro privilegiado ao menos no que concerne a conexão intersubjetiva concursal e a continência.

Nos casos da conexão intersubjetiva concursal e da continência existe um comum acordo entre os agentes para a prática da mesma infração penal que é um requisito necessário para configurar o concurso de pessoas, existindo esse liame subjetivo acrescido ainda da adoção, como regra, pelo Código Penal da Teoria Unitária do concurso de pessoas, entendemos a partir de uma ponderação de direitos fundamentais, mais adequada a reunião para o julgamento dos processos penais, ainda que mitigada a garantia do Tribunal do Júri, pois a cisão do julgamento imporia uma ofensa aos princípios da Isonomia e da Uniformidade das Decisões Judiciais que são norteadores do Poder Judiciário.

Acrescente-se ainda que o simples fato de não existir regras de conexão e continência previstas expressamente na Constituição não é fundamento suficiente para a cisão dos julgamentos, quando tal separação ofende a dois princípios basilares do Estado Democrático de Direito.

Um Estado que almeja ser de direito não pode conviver com decisões conflitantes, sob pena de ofensa a segurança jurídica e perda de credibilidade do poder judiciário. O cidadão ainda vê no judiciário um ideal de justiça em que cada um receberá o que lhe é devido e abrir a possibilidade de decisões conflitantes abriria um perigoso precedente e aniquilaria o respeito pelo poder judiciário.

No caso entendemos que deva prevalecer o tribunal singular em detrimento do Tribunal do Júri, pois os casos de foro por prerrogativa de função envolvem, normalmente, crimes de grandes repercussões sujeitando, portanto, seus julgamentos a maiores pressões externas e, como no Tribunal do Júri vigora o princípio da convicção íntima, tais decisões seriam mais difíceis de um controle de legalidade e constitucionalidade.

Cabe acrescentar, que os membros do tribunal singular não estão imunes as pressões externas, mas como nesse tribunal vigora o princípio do "livre" convencimento motivado, tais decisões seriam mais suscetíveis de um controle de constitucionalidade e legalidade.

Assim sendo, a partir de uma análise sob a ótica do princípio hermenêutico da ponderação de direitos fundamentais do conflito entre o princípio da Uniformidade das Decisões Judiciais e da Isonomia frente à garantia do Tribunal do Júri, com a devida vênia a doutrina e jurisprudência contrária, acreditamos que melhor atende aos imperativos constitucionais a corrente que entende errada a cisão dos julgamentos nos crimes dolosos contra a vida cometidos em concurso de agentes em que um goze de foro por prerrogativa de função, ao menos no que concerne a conexão intersubjetiva concursal e continência, pois está respaldada constitucionalmente em dois princípios basilares do Estado Democrático de Direito: os princípios da Isonomia e Uniformidade das Decisões Judiciais. 


REFERÊNCIAS

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS. Pró-Reitoria de Graduação. Sistema Integrado de Bibliotecas. Orientações para elaboração de trabalhos científicos: projeto de pesquisas, tese, dissertações, monografias, relatório entre outros trabalhos acadêmicos, conforme a Associação Brasileira de Normas Técnicas(ABNT). 2.ed. Belo Horizonte: PUC Minas, 2016. Disponível em: <www.pucminas.br/biblioteca>. Acesso em: 26 mai. 2016.

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Nota 

_2 No sólo se obtiene una economía, en cuanto las mismas pruebas y las mismas razones sirven para la declaración de certeza de cada delito conexo evitando inútiles repeticiones, sino, lo que importa más, el beneficio se extiende a la certeza en cuanto se evita también el peligro, que de otra manera podría producirse, de juicios contradictorios; perjudiciaría, verdaderamente, a la justicia penal el que sobre los delitos conexos diversos jueces pronunciariam juicios que se encontraran en contraste lógico el uno con el otro” (Lecciones sobre el proceso penal, tradução de Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, Bosch y Cia., 1950, v. II, p. 324).


Autor

  • Sanges Morais

    Advogado militante; Graduado em Direito pela PUC MINAS; Pós-graduando em Direito Penal pela Faculdade Internacional Signorelli; Pós-graduando em Direito Processual pela PUC MINAS; Destaque Acadêmico PUC MINAS curso de Direito 2º semestre 2012; Destaque Acadêmico PUC MINAS curso de Direito 1º semestre 2013; Destaque Acadêmico PUC MINAS curso de Direito 1º semestre 2014; Destaque Acadêmico PUC MINAS curso de Direito 2º semestre 2014; Estagiário na Turma Recursal dos Juizados Especial Federal.

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