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A comoção nacional no caso Ana Hickmann e o Estado democrático de direito

A comoção nacional no caso Ana Hickmann e o Estado democrático de direito

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Gustavo Henrique Bello Corrêa está sendo acusado de homicídio simples (art. 121, do CP). Segundo o promotor Francisco Santiago, do II Tribunal do Júri da capital, houve desproporcionalidade. 

Segundo informações contantes em documento da Superintendência de Comunicação Integrada do Ministério Público do Estado de Minas Gerais:

  • Arma no local do crime — calibre 38, numeração identificadora raspada;
  • Munição escolhida por Rodrigo Augusto de Pádua — munição 38, chamada SLP+, com maior força de entrada e saída expansiva;
  • Condição psíquica de Rodrigo — "De acordo com o delegado, o fã não tinha consumido bebida alcoólica nem droga, e a família disse que ele não tinha passado por nenhum tratamento";
  • Segundo o promotor Francisco de Assis Santiago — Gustavo Henrique Bello Corrêa excedeu ao atirar 3 (três) vezes contra Rodrigo. Corrêa poderia ter contido Rodrigo sem o uso da arma de fogo;
  • Primeiro disparo — segundo perícia, durante o primeiro disparo ambos (Rodrigo e Corrêa) estavam lutando;
  • Gustavo Henrique Bello Corrêa em depoimento à polícia — Durante a briga com Rodrigo, Corrêa deu um tiro em Rodrigo. Ao pegar a arma, por impulso, Corrêa deu mais dois tiros em Rodrigo. Transcrevo: "Em seu depoimento formal à polícia, Corrêa disse que na ocasião tomou o revólver de Pádua quando ele deixou cair no chão durante briga entre eles. Alega que decidiu reagir e lutar após a concunhada e assessora de Ana, Giovana de Oliveira, ser baleada duas vezes ao pular em frente dos disparos feitos em direção à cabeça da apresentadora. Corrêa é casado com Giovana. O cunhado afirmou ainda que um dos disparos que atingiram o atirador aconteceu durante a briga. E que atirou mais duas vezes ao pegar a arma por impulso. Pádua morreu na hora. Imagens das câmeras do hotel mostram Corrêa levando a arma à recepção do hotel após o ocorrido." ;
  • Gustavo Henrique Bello Corrêa, cunhado da apresentadora Ana Hickmann, disparou três vezes contra Rodrigo — "Rodrigo foi atingido por três tiros em um intervalo de cerca três segundos. No primeiro disparo, os dois ainda estavam em luta. Segundo o delegado, foi possível comprovar isso pela posição das lesões. Na sequência, Gustavo fez os outros dois disparos" ;
  • Delegado — segundo o delegado Flávio Grossi, Rodrigo “tinha clara intenção de matar Ana”;
  • Família de Rodrigo Augusto de Pádua — Hélisson, irmão de Rodrigo: “Nosso lado vai ser visto, porque só o lado da Ana Hickmann tinha sido visto até agora. ", “Nosso sentimento nada mais é do que a falta do meu irmão. O que importa agora é que ele tenha paz e que minha família também tenha um pouco de paz. Agora é com a justiça dos homens.".

Segundo informação no  site MSN Notícias, se condenado, cunhado de Ana Hickmann pode pegar até 20 anos de prisão por morte de fã.

Ana Hickmann quase foi morta por um fã (Rodrigo de Pádua). Ao Domingo Espetacular, a apresentadora concedeu entrevista sobre o acontecimento que comoveu o Brasil.

Gustavo Henrique Bello Corrêa está sendo acusado de homicídio simples (art. 121, do CP). Segundo o promotor Francisco Santiago, do II Tribunal do Júri da capital, "A pessoa (Rodrigo de Pádua) já havia sido dominada e levou três tiros na nuca.", ou seja, houve desproporcionalidade na ação de Gustavo.

CÓDIGO PENAL

Homicídio simples

Art. 121. Matar alguem:

Pena - reclusão, de seis a vinte anos.

Caso de diminuição de pena

§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. (grifo do autor)

No inconsciente coletivo, Gustavo não cometeu crime; agiu 'por motivo de relevante valor social ou moral', matou um bandido. Ou seja, 'bandido bom, bandido morto'.

Valorada lição do doutrinador Victor Eduardo Rios Gonçalves:

Motivo de relevante valor social

Essa primeira hipótese de privilégio está ligada à motivação do agente, no sentido de imaginar que, com a morte da vítima, estará beneficiando a coletividade. Fora das hipóteses em que o sujeito age acobertado por excludente de ilicitude, a morte de alguém é sempre ato considerado contrário aos interesses sociais. Daí por que ser o homicídio considerado crime. A lei, todavia, permite que os Jurados, representando a coletividade, condenem o réu, por considerar o ato criminoso, mas permitam a redução de sua pena porque ele, ao matar, imaginava estar beneficiando o corpo social. O exemplo clássico é o do homicídio do traidor da nação.

• Motivo de relevante valor moral

Diz respeito a sentimentos pessoais do agente aprovados pela moral média, como piedade, compaixão etc. No dizer de Heleno Cláudio Fragoso, são os motivos tidos como nobres ou altruístas. A própria exposição de motivos do Código Penal cita a eutanásia como exemplo de homicídio cometido por motivo de relevante valor moral. (LENZA, 2011, p. 85)

Domínio de violenta emoção

O texto legal é bastante exigente, já que, para o reconhecimento do benefício, não basta a violenta emoção, sendo necessário que o agente fique sob o domínio desta. Exige-se, portanto, uma fortíssima alteração no ânimo do agente, isto é, que fique irado, revoltado, perturbado em decorrência do ato provocativo. Trata-se de situação em que o sujeito fica tão intensamente alterado que acaba fazendo uma bobagem, que não faria se estivesse calmo. Daí a razão da diminuição da pena, tendo em vista que tal estado emocional foi causado por provocação da vítima.

O art. 28 do Código Penal dispõe que a emoção não exclui o crime, mas, na hipótese em análise, se acompanhada de outros requisitos, gera a redução da pena, em razão do disposto no art. 121, § 1º, do Código Penal. (LENZA, 2011, p. 87)

Leciona Andreucci:

A legítima defesa requer, para sua configuração, a ocorrência dos seguintes elementos:

a) Agressão injusta, atual ou iminente: a agressão pode ser definida como o ato humano que causa lesão ou coloca em perigo um bem jurídico. A agressão é injusta quando viola a lei, sem justificação (sine jure). Agressão atual é aquela que está ocorrendo. Agressão iminente é aquela que está prestes a ocorrer.

b) Direito próprio ou de terceiro: significa que o agente pode repelir injusta agressão a direito seu (legítima defesa própria) ou de outrem (legítima defesa de terceiro), não sendo necessária qualquer relação entre eles.

c) Utilização dos meios necessários: significa que o agente somente se encontra em legítima defesa quando utiliza os meios necessários a repelir a agressão, os quais devem ser entendidos como aqueles que se encontrem à sua disposição. Deve o agente sempre optar, se possível, pela escolha do meio menos lesivo.

d) Utilização moderada de tais meios: significa que o agente deve agir sem excesso, ou seja, deve utilizar os meios necessários moderadamente, interrompendo a reação quando cessar a agressão injusta.

e) Conhecimento da situação de fato justificante: significa que a legítima defesa requer do agente o conhecimento da situação de agressão injusta e da necessidade de repulsa (animus defendendi). (ANDREUCCI, 2014 , p. 113)

Legítima defesa subjetiva

É aquela em que ocorre o excesso por erro de tipo escusável. O agente, inicialmente em legítima defesa, já tendo repelido a injusta agressão, supõe, por erro, que a ofensa ainda não cessou, excedendo-se nos meios necessários. Exemplo largamente difundido na doutrina é o do agente que, em face de injusta agressão, desfere golpe de faca no agressor, que vem a cair. Pretendendo fugir, o agressor tenta levantar-se; pensando o agente que aquele opressor intenta perpetrar-lhe nova agressão, desfere-lhe novas facadas, matando-o. Neste caso, com a queda do agressor em virtude da primeira facada, já havia cessado a agressão injusta. O agente, entretanto, por erro de tipo escusável, supõe que o agressor pretende levantar-se para novamente atacá-lo, razão pela qual, agindo com excesso, mata-o com novas facadas.

O erro de tipo escusável exclui o dolo e a culpa, conforme já foi mencionado em capítulo próprio. (ANDREUCCI, 2014, p. 114)

“Commodus discessus”

A lei não pode impor a covardia como obrigação jurídica ou moral. Daí por que não se pode exigir daquele que sofre a injusta agressão o commodus discessus, ou seja, a saída mais cômoda, a fuga do local, retirando-se ileso do palco dos acontecimentos, evitando empregar a repulsa legítima.

Assim, mesmo que o sujeito, na iminência de ser injustamente agredido, tenha condições de se retirar ileso do local, mas opte por ficar a repelir a injusta agressão, estará acobertado pela legítima defesa. (ANDREUCCI, 2014, p. 115)

Machado Costa:

(...) "emprego moderado dos meios necessários à defesa”, indica que a reação daquele que se defende de agressão injusta deve ser a esta proporcional. “Meios necessários” são aqueles eficazes e suficientes para repelir a agressão. Sob esse aspecto, não se deve considerar somente a abstrata potencialidade lesiva do meio utilizado por quem se defende; fundamental é a análise dos meios que se encontravam, na situação, à disposição do agredido. Assim, por exemplo, se o agente estava na iminência de ser lesionado mediante golpe de faca, ou mesmo a socos por alguém mais forte, e dispara a arma de fogo que portava, não se deve ter por excluída, de antemão, a legítima defesa, caso não houvesse, na concreta situação, outro meio disponível, menos lesivo.

Exige-se, ainda, o uso moderado dos meios necessários à repulsa. Assim, no caso da pessoa franzina que dispara arma de fogo contra o robusto agressor, torna-se perfeitamente possível o reconhecimento da excludente, caso aquele efetue disparos contra regiões não letais do corpo do agressor, ou mesmo um único disparo contra regiões letais, ainda que lhe cause a morte. Diferente, porém, se o agredido descarregar a arma contra a cabeça do agressor ou continuar a disparar mesmo depois de cessada a agressão, em evidente excesso. Ressalte-se que a moderação exigida não deve ser analisada com régua, milimetricamente, em balança de farmácia (nas palavras de Nélson Hungria), como se fosse possível a alguém agredido, no momento mesmo da agressão ou na iminência desta, em meio ao torvelinho de emoções que então se agigantam, sopesar, como químico em laboratório, a exata medida da repulsa necessária. O requisito da moderação, portanto, exige de quem se defende que, nas circunstâncias, reaja de forma a aproximar-se, tanto quanto possível, do estritamente necessário a fazer cessar a agressão.

(...)

O agente que utiliza meio além do necessário para fazer cessar a agressão, ou a ela imprime força excessiva, poderá ser punido pelo excesso. Haverá excesso, portanto, caso, por exemplo, o agente desfira um tiro para defender-se de um tapa ou, então, continue a disparar mesmo após ter sido a agressão interrompida após o primeiro disparo. Se o agente exceder-se de maneira consciente e voluntária, responderá pelo resultado típico a título de dolo, sendo beneficiado pela circunstância atenuante prevista no art. 65, III, c, ou, em caso de homicídio, pela circunstância prevista no § 1º do art. 121 (homicídio privilegiado). Se o agente, porém, exceder-se em razão de imprudência ou imperícia na realização da repulsa (falta de cuidado objetivo), causando ao agressor um mal além do necessário e do desejado para fazer cessar a agressão, responderá pelo resultado típico a título de culpa (caso haja tipo culposo previsto, na espécie).

Refere-se a doutrina, ainda, ao excesso que não é punido, o excesso de legítima defesa exculpante, nos casos em que o agente, por medo, susto ou perturbação dos sentidos decorrentes da agressão injusta, acaba por exceder-se na repulsa, em situação, contudo, em que inexigível conduta diversa. ( MACHADO, 2017 ,p. 49-50)

No entanto, foram três disparos na nuca. Intencional ou não, os três tiros, para o juiz, não condizem com o princípio constitucional dignidade humana.

Renomados doutrinadores já fizeram diferenciações sobre dignidade humana e direitos humanos. Atualmente, não há distinções.

As raízes filosóficas dos direitos humanos remontam ao Humanismo – corrente de pensamento fundada sobre a afirmação da dignidade humana, considerando que todo ser humano é possuidor de uma dignidade ontológica pelo mero fato de sê-lo, independentemente de qualquer outra circunstância. (NUCCI, 2016, p.23)

Vale lembrar Boaventura de Sousa Santos: “a hegemonia dos direitos humanos como linguagem de dignidade humana é hoje incontestável. No entanto, esta hegemonia convive com uma realidade perturbadora. A grande maioria da população mundial não é sujeito de direitos humanos. É objeto de discursos de direitos humanos”. Nas palavras de Flávia Piovesan, “o valor da dignidade humana impõe-se como núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado em 1988. A dignidade humana e os direitos e garantias fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico ao sistema jurídico brasileiro. Os direitos e garantias fundamentais passam a ser dotados de uma especial força expansiva, projetando-se por todo o universo constitucional e servindo como critério interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico nacional”.

Incluída em tratados e constituições, a dignidade da pessoa humana tornou-se um princípio regente e, como tal, de complexa definição. (NUCCI, 2016. p. 39-40)

Kant afirma: “o homem – e, de uma maneira geral, todo o ser racional – existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Em todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas direcionadas a ele mesmo como nas que o são a outros seres racionais, deve ser ele sempre considerado simultaneamente como fim”.

Apontando o ser humano como um fim em si mesmo, extrai-se a possibilidade de ser tratado com desdém pelo Estado. Ele possui uma individualidade ontológica, que nada ou ninguém lhe pode retirar.

Para Ana Paula Barcellos, seria a dignidade ontológica. “Interessantemente, e nada obstante os vários retrocessos históricos, a concepção kantiana de homem continua a valer como axioma no mundo ocidental, ainda que a ela se tenham agregado novas preocupações, como a tutela coletiva dos interesses individuais e a verificação da existência de condições materiais indispensáveis para o exercício da liberdade”.

Os críticos dessa visão metafísica dos valores humanos, hoje positivados por meio dos direitos humanos fundamentais, preferem algo mais sólido, como o positivismo ou correntes filosóficas similares, mas olvidam constituir o ser humano algo único e, somente por isso, carrega consigo a dignidade inerente ao seu simples status de ser racional vivente.

Comparato indica que “o princípio primeiro de toda a ética é o de que ‘o ser humano e, de modo geral, todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio do qual esta ou aquela vontade possa servir-se a seu talante’”. A dignidade da pessoa “resulta também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita”. Daí disse Kant: “todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas”. (NUCCI, 2016, p. 46)

Os direitos humanos têm como base o direito natural, o que, por si só, demonstra dificuldade inicial em nosso País, de cultura jurídica positivista. A ideia dos direitos humanos é de proteção à espécie humana, bem como àquilo que a cerca. Essa proteção não nasce e “cresce” de uma vez. Trata-se de uma longa jornada: às vezes, tal proteção é herdada; outras tantas, conquistada em suas mais variadas formas. ( , , p. 29)

As características tratam daquilo que é comum ao assunto. A doutrina diverge um pouco, mas apenas na quantidade de características. São elas:

a) inerência: os direitos humanos são inerentes ao ser humano, ou seja, pertencer à família humana (conforme expressão prevista na Declaração Universal dos Direitos Humanos) é suficiente para tornar o indivíduo protegido pelos direitos humanos;

b) universalidade: não importa a raça, a cor, o sexo, a origem, a condição social, a condição política, a língua, a religião ou a sexualidade: o ser humano será destinatário da proteção dos direitos humanos;

c) transnacionalidade: não importa o local em que esteja o ser humano, deverá sempre ser alcançado pelos direitos humanos;

d) indivisibilidade: um direito humano não se divide, não se reparte, não há “meio direito humano”. A questão aqui se torna interessante também sob o aspecto hierárquico, ou seja, não há divisão hierárquica entre os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais em virtude da separação artificial ocorrida em 1966 com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

e) interdependência: muitas vezes, para o exercício de determinado direito, passa-se anteriormente pelo exercício de outro direito, com a ideia de dependência. Por exemplo: para o exercício de determinado direito político, anteriormente exerceu-se um direito civil;

f) historicidade: os direitos humanos são formados ao longo dos tempos, conforme já mencionado, “não nascem todos de uma vez”, é uma lenta e longa formação;

g) indisponibilidade: o ser humano não pode dispor de um direito humano, até porque é inerente a ele;

h) inalienabilidade: o ser humano não pode vender um direito humano;

i) imprescritibilidade: o ser humano não perde um direito humano por decurso de tempo;

j) irretroatividade: conforme mencionado no conceito, um direito humano alcançado, teoricamente, não pode retroagir. (AFONSO, 2014, p. 32-34)

Não importa se assaltante ou não, todos têm dignidade. Se as escolhas são certas ou não, independentemente da condição social, mental, física, étnica, religiosa, nacionalidade, o sujeito de direito, inalienável, imprescritível e irrenunciável, possui dignidade. Por que este princípio constitucional não é compreendido pela maioria do povo brasileiro? Darwinismo social, eugenia e criminologia positiva foram alicerces da consciência brasileira. Sendo cada brasileiro dotado de dignidade, ninguém pode terminar com a vida de ninguém, a não ser em caso de legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito:

CP

Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

I - em estado de necessidade; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

II - em legítima defesa;(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Excesso punível (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Parágrafo único - O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

O aborto, em caso de risco para gestante, é possível, pois há exercício regular de direito.

O DIREITO NATURAL

Pelo Direito Natural, ninguém pode tirar a vida de ninguém, somente em casos, por exemplo, descritos na norma do art. 25, do CP. O estado tomou para si o direito de julgar e aplicar condenações. Retirou-se, assim, a vingança de sangue), muito comum em alguns países. John Locke dizia que somente Deus poderia retirar a vida, nenhum ser humano poderia. Isso não quer dizer que, então, quem é ameaçado, imediatamente, deve ficar passivo. Se pensarmos que o corpo físico é uma propriedade privada, qualquer ser humano, pela Lei Natural, deve proteger sua propriedade corpo. Isso representa que a ninguém é dado o direito de matar, suicidar-se, persuadir outra pessoa para se apoderar do corpo, dos órgãos. A legítima defesa e o estado de necessidade, então de acordo com a Lei Natural. Porém, filosoficamente falando, matar alguém sob o manto do excesso não representa legítima defesa, estado de necessidade e muito menos estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de direito. Todo direito não é absoluto. Dessa premissa, excessos são condenáveis.

Para se evitar Estado de Guerra, comum ao Homo Sapiens Sapiens Conflictus, ainda na visão de Locke, um governo deveria existir para regular o convívio humano. Sendo cada ser humano detentor de direitos — deambulatório, liberdade de expressão etc. —, e sendo cada ser humano internamente conflituoso, é necessário um governo. E esse deve agir para que o contrato seja respeitado por todos. Punir por punir, distancio o ser humano da razão. Matar por matar, ou matar pela certeza de motivo de relevante valor social ou moral, não condizem com a razão. Se pensarmos no motivo de relevante valor social ou moral, os homicídios praticados por maridos à mulher, no início do século XIX, no Brasil, por defender 'a honra masculina', é motivo de relevante valor social ou moral.

Retornando ao caso em tela. O juiz entendeu que houve desproporcionalidade. Pela lógica social, três tiros liquidaram um bandido, não um ser humano. O juiz não legisla, cumpre o ordenamento jurídico pátrio. A legislação brasileira, como de qualquer outra democracia, baseia no texto constitucional cujos princípios são os direitos humanos. Se for considerado que o algoz de Ana Hickmann mereceu ter morrido, por querer tirar a vida dela — violar a propriedade privada de Ana, o seu corpo e sua vida —, deslocando tal fato para as vias públicas abertas à circulação, quando usuário motorista de automotor, principalmente embriagado, já que é de conhecimento de todos que álcool afeta coordenação motora, atenção e percepção, matar outro usuário, pedestre, é de se considerar que o motivo de relevante valor social ou moral de matar o algoz é justificável. Falha mecânica? Não importa, matou. Falha mecânica e alcoolizado, não importa, não há atenuante, é matar pelo motivo de relevante valor social ou moral. Se isso parece injusto, principalmente quando o algoz alcoolizado é considerado, positivamente na sociedade, como sendo profissional altamente capacitado, pela lógica, é irracional admitir que o algoz de Ana Hickmann seja morto, instantaneamente, por motivo de relevante valor social ou moral. Dois pesos e duas medidas é diminuir a dignidade de um e aumentar a dignidade de outro.

Por isso, o juiz, atrelado ao ordenamento jurídico, considerou que houve excesso, desproporcionalidade. Não por único tiro, mas por mais dois no mesmo local, a nuca do algoz de Ana Hickmann. Se admitirmos que 'bandido bom é bandido morto', quantos bandidos serão mortos, causados por motoristas irresponsáveis, instantaneamente, no Brasil? Pela dignidade humana que cada qual possui, cada qual merece o devido processo isento de paixão. Se assim não fosse, cada qual aplicaria a pena que acha ser 'justa'.

Por exemplo, na Guerra Civil norte-americana, o governo sulista mandava que os soldados pegassem milhões das fazendas dos próprios sulistas. Sendo os milhões importantes para a vida dos fazendeiros e de suas famílias, o governo estava condenando os fazendeiros a morte. Seria justo os fazendeiros matarem os soldados? Trazendo o exemplo para o Brasil. Certo administrador público quer se vingar de ex-prefeito. Usando o 'interesse público' desapropria o terreno de seu desafeto. Partindo da lógica de 'ação e reação', instantâneas, o ex-prefeito poderia sacar sua arma e sair matando os servidores que fosse atentar contra sua propriedade. Justo?

Digamos que o algoz de Ana Hickmann tenha problemas psiquiátricos, ou estava sob efeito de droga. Admite-se 'bandido bom é bandido morto'? Se assim for, quantos 'bandidos' devem ser mortos por dirigirem alcoolizados? Não importa se houve ou não homicídio, é condutor potencialmente perigoso para a incolumidade dos demais usuários.

Admitindo que os militares brasileiros (1964 a 1985) mataram para defender a democracia, os guerrilheiros comunistas também agiram em defesa da democracia. Cada qual com sua ideologia. Fácil constatar isso quando vemos contemporaneamente os casos de mortes por ideologias conflitantes: os homens que matam mulheres (feminicídio); os heterossexuais que matam os LGBTs (homofobia). E se as mulheres começarem a matar os homens agressores, os LGBTs iniciarem levantes com armas contra os heterossexuais homofóbicos?

Se não houvesse Estado juiz, os jurisdicionados agiriam conforme suas ideologias, seus ânimos. No fomento por justiça, vários crimes foram cometidos atingindo quem não era, realmente, criminoso, como aconteceu na Revolução Francesa. Matar não é proibido, mas é crime. Não importa se é ou não é em legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Para isso, o ordenamento jurídico, o Estado juiz. O que as leis, em matéria penal, dizem é que se a pessoa agir, sua conduta irá ser avaliada. Sendo tipificada como crime, será condenada; conduta atípica, não será condenada.

Se pelo apelo emocional do povo Gustavo é único culpado, não há necessidade de Tribunais, de advogados criminalistas. Cada qual, achando-se no devido Direito Natural de proteger sua propriedade — corpo físico, terreno, automóvel etc. —, fará sua própria justiça.

Que fique solar, não quero dizer que Gustavo é o algoz, enquanto o fã é a vítima. Ambos, mesmo que a atitude do fã seja desprezível, tanto ele quanto Ana e Gustavo possuem dignidade humana.

Leciona Nucci:

A cautela na verificação das posições de agressor e vítima: há, sem dúvida, uma tendência por parte de alguns operadores do direito, particularmente quanto a juízes e membros do Ministério Público, em visualizar a vítima de uma agressão como inocente, enquanto aquele que agride é considerado culpado. Em outras palavras, utilizando um exemplo, se A mata B, como regra, a vítima fatal seria a parte perdedora, “presumindo-se” a sua inculpabilidade, enquanto o sobrevivente passaria a ter o ônus de demonstrar o contrário. Muito embora se deva ter cuidado em aceitar a legítima defesa como justificativa para a “resolução pessoal de conflitos”, pois seria possível incentivar a vingança privada, não é menos correto lembrar que há um nítido cenário de necessidade quando alguém, agredido, vê-se desprovido do amparo estatal. Cremos que não deve existir qualquer tipo de presunção para a análise equilibrada e justa de uma situação de conflito entre pessoas, com resultado danoso para um ou mais dos envolvidos. Não é o sobrevivente (ou o menos lesado) aquele que detém o ônus da prova. Desde a investigação policial, urge buscar elementos para verificar, minuciosamente, quem deu início ao embate, em que termos e quais seriam as opções para os envolvidos. Portanto, não é suficiente considerar que, na ilustração supra, se A matou B, cabe-lhe demonstrar tê-lo feito em legítima defesa. Nesse sentido, convém registrar o alerta de AMÉRICO DE CARVALHO: “Esta tendência a converter em exclusivamente vítima aquele que, muitas vezes, não foi senão um agressor (que só a si deverá imputar os danos que sofreu), ou que, no caso de ter havido excesso, é, simultaneamente, agressor (infrator) e vítima, é uma tendência que, para além de injusta e de juridicamente reprovada, é socialmente perigosa, ao neutralizar, na prática, a legítima e necessária dinâmica social preventivo-geral da legítima defesa” (NUCCI, 2014, p. 245)

JURISPRUDÊNCIAS

“Inocorrente a legítima defesa. Inexistiu a moderação dos meios necessários, elemento integrante da excludente de criminalidade. Acerca desse elemento discorre Guilherme de Souza Nucci: Moderação: é razoável proporção entre a defesa empreendida e o ataque sofrido, que merece ser apreciada no caso concreto, de modo relativo, consistindo na medida dos meios necessários. Ora, ainda que a vítima tenha desferido uma paulada no réu, não há como admitir que fosse necessário desferir-lhe uma facada, como efetivamente o fez, para repelir dita agressão, que, aliás, de acordo com a versão da vítima, só ocorreu porque antes o acusado já havia lhe agredido. Assim, como se denota da prova, a autoria e materialidade delitivas restaram comprovadas, inexistindo excludentes de criminalidade ou de antijuridicidade. Apelo improvido” (Ap. 70029987195-RS, 1.a C.C., rel. Marco Antônio Ribeiro de Oliveira, 05.08.2009)

“Age em legítima defesa o sujeito que, ao ser agredido com uma garrafa na cabeça lançada pela vítima, utiliza-se do único meio à sua disposição (uma pequena faca trazida consigo) para repelir a investida homicida e, com isso, salvar-se do ataque repentino. Cenário que legitima o reconhecimento da excludente de legítima defesa e autoriza, por conseguinte, a absolvição sumária, nos termos do art. 415, inc. IV, do CPP” (RSE 30902/2015-MT, 1.a C. Crim., rel. Rondon Bassil Dower Filho, 30.06.2015, v.u.)

“Com efeito, demonstrado restou que a ré agiu em legítima defesa ao atingir a vítima com uma facada na região do peito. Extraem-se dos autos que, após uma discussão, a vítima partiu para cima da ré a fim de agredi-la com um cano de ferro, momento em que, utilizando-se da faca com a qual preparava a refeição noturna, protegeu-se, acabando por ferir seu agressor. O laudo necroscópico (fls. 25/v.), ao constatar a existência de apenas um ferimento perfuroinciso, permite o reconhecimento de que a ré utilizou-se moderadamente do meio de que dispunha para repelir injusta agressão por parte da vítima, que, segundo a prova oral, chegou a desferir um golpe com o cano de ferro atingindo as costas da ré” (RSE 260.454-3/0, Suzano, 4.a C., rel. Passos de Freitas, 04.03.1999, v.u., grifos nossos).

“E, ao que tudo indica, o revólver utilizado na reação empreendida pela valente mulher, de 45 anos de idade, contra um forte rapaz, com a metade de sua idade, pertencia ao último, que, no dizer da ré, chegou a acioná-lo duas vezes (o auto de apreensão – fls. 13 – refere a existência de duas cápsulas picotadas, mas não deflagradas). Numa disputa corporal violenta, como a que envolveu as personagens principais do delito, é difícil, senão impossível, reconhecer-se excesso doloso na reação empreendida, no caso, por parte de uma mulher, idosa, em presumível desvantagem física com o experimentado assaltante, que a acometera ou uma de suas clientes (a recorrida era dona de uma barraca de ambulante)” (RSE 175.799-3/9-SP, 4.a C., rel. Augusto Marin, 12.07.1995, v.u.).

“Eventual excesso veio corretamente afastado pela r. decisão recorrida sob a assertiva de que o ‘caso presente retrata uma briga dentro de uma prisão, onde as coisas naturalmente são violentas e rudes’, sendo ‘difícil argumentar que o réu, ameaçado pelo ofendido, um perigoso marginal e homicida, quando em luta corporal com ele, tivesse noção do número de golpes que estava dando na vítima’. Flagrante, então, a legítima defesa na ação do réu, e, tal como reconhecido pela r. decisão recorrida, a absolvição sumária era a solução que se impunha” (RSE 185.848-3/1, São Paulo, 5.a C., rel. Christiano Kuntz, 18.07.1995, v.u., embora antigo, o caso é peculiar)

REFERÊNCIAS:

AFONSO, Frederico. Como se preparar para o exame de ordem, 1ª fase : Direitos Humanos / 3.ª ed. rev., atual. e ampl. / Frederico Afonso. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014.

Código Penal interpretado: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo / Costa Machado, organizador; David Teixeira de Azevedo, coordenador. - 7. ed. - Barucri, SP: Manolc, 2017.

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