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Comunicação simplificada de fato: uma alternativa ao registro não criminal de preservação de direitos

Comunicação simplificada de fato: uma alternativa ao registro não criminal de preservação de direitos

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O autor, com a experiência trazida dos plantões policiais, discorre sobre a polêmica figura da "preservação de direitos", sugerindo um mecanismo eletrônico alternativo a ela, mais célere e mais prático.

1. Introdução                       

Tema controverso e corrente nas lidas policiais diárias, o chamado registro de “preservação de direitos” tem gerado inúmeras discussões acadêmicas, pois, na prática, a sua aplicabilidade e cabimento no mundo jurídico é questionável.

A origem dessa figura é desconhecida, mas acredita-se que possa ter ocorrido na antiga Portaria Degran n° 1/73, que em seu art. 240 previa o registro de ocorrências que não dissessem respeito a atividade essencialmente preventiva ou repressiva da Polícia, mas sobre as quais fossem adotadas quaisquer providências.

Em épocas passadas, sabia-se que a natureza dos boletins de ocorrência ficava a critério dos Delegados de Polícia (os formulários eram datilografados) e, em razão disso, não seria forçoso acreditarmos que o tal título possa ter sido subliminarmente inspirado na antiga expressão “conservação e ressalva de direitos”, outrora prevista no já alterado Código de Processo Civil.

Seja como for, a grande verdade é que a “preservação de direitos” ganhou força consuetudinária, chegando ao ponto de, inclusive, ser tacitamente “exigida” junto aos plantões, como se obrigação policial e direito subjetivo do requerente fosse. Mas por não possuir expressa previsão legal, ela deve ser vista apenas como uma liberalidade da Polícia, e não como dever dela.

Entretanto, muitos apontam o papel “social” desses registros e, em se tratando de requerente humilde, isso até parece coerente. Por outro lado, conquanto a Polícia possa exercer esse múnus, melhor seria se, na prática, existisse um meio termo entre o factível e o útil, de modo a não embaraçar o andamento do plantão policial e ainda assim atender aquele que, por vezes de maneira desavisada, procura a Delegacia de Polícia para auferir uma orientação ou até mesmo um encaminhamento.

Algumas vozes falam em sumariamente vedar tais boletins de ocorrência pela Polícia Civil, tal qual fez a congênere de Goiás através da Resolução n° 123/06, que proibiu os registros de ocorrências de fatos atípicos, exceto os que tivessem respaldo em lei específica, como o extravio de arma de fogo e a exigência ao recebimento de seguro obrigatório de DPVAT.

Outros defendem que a parte, ao invés de ir a uma Delegacia de Polícia, vá a um Cartório de Registro de Títulos e Documentos e requeira, após recolher custas, o registro de uma “ata notarial”. Por ser um documento público de eficácia probatória, a ata notarial, conforme o art. 384 do Código de Processo Civil, pode ser empregada, a critério do interessado, como prova em demandas judiciais. Mas por ser paga e ter um custo elevado, ela geralmente não é utilizada por pessoas de baixo poder aquisitivo, as quais compõe a maioria da massa populacional brasileira. A grande diferença da ata notarial com o registro “não criminal” da Polícia é que o tabelião pode provar a existência de determinado fato ou situação “in loco”, ao passo que o boletim de ocorrência (ou o que o valha), apenas retrata uma declaração unilateral sem qualquer lastro probatório. Ou seja, as naturezas jurídicas são diversas.

Contudo, ao invés de adotarmos uma medida que poderia ser considerada antipática (principalmente pela população carente), poderíamos suscitar, ao invés do boletim de ocorrência, um aplicativo alternativo onde fosse buscado um consenso entre o interesse policial (o não desvio de finalidade) e o interesse do usuário (a emissão rápida de um documento) na busca pelos direitos inerentes à sua cidadania, já que, como se vê, acredita-se ser a Polícia o portal primário de acesso a eles.

Mas antes de entrarmos nessa seara, vejamos o que as normas administrativas da Polícia dizem a respeito dos registros não criminais, até para que o leitor se convença de que a “preservação de direitos”, independente da forma pela qual seja registrada (boletim ou documento menos burocrático), não enverga previsão legal, mas sim, e tão somente, tradição.


2. Normas administrativas sobre o tema

Tendo em vista que nos dias de hoje as naturezas não podem mais ser livremente escritas no sistema, é fato que o boletim de “preservação de direitos” não pode ser registrado tal qual se requer, não com esse título. E quando o é, geralmente recebe a máxima de “Outros Não Criminal”. Mas o que estabelecem, no Estado de São Paulo, as normas policiais a respeito dos indiferentes penais?

Em termos institucionais, a Delegacia Geral de Polícia recomenda às autoridades policiais que, quando solicitadas, não se abstenham, injustificadamente (o grifo é nosso), de registrar em boletim de ocorrência o fato narrado ou o direito declarado pelo interessado, devendo-se levar em conta a potencial utilidade desses documentos na defesa de direitos relevantes para o cidadão, ainda que consubstanciando indiferentes penais desprovidos, portanto de interesse à investigação policial (Recomendação DGP-7/03). Tal ato, frise-se, foi reforçado pela mensagem DGP-779/10, de idêntico teor.

Em 4 de março de 2015, a Delegacia Geral emitiu uma nova Recomendação, a de n° 2, a qual diz que os Diretores de Departamento dos órgãos de Execução devem dar ampla divulgação aos termos da Recomendação DGP-7/03 (acima descrita), em face de sua pertinência e aplicabilidade, e que ocorrências sem qualquer relevância jurídica não deverão ser objeto de registro (o grifo é nosso). Já as com relevância não poderão conter termos jocosos, atécnicos e impropriedades vernaculares, exceto quando imprescindíveis à narrativa ou à demonstração do fato.

Em razão das ressalvas previstas nas Recomendações DGP-7/03 (expressão “injustificadamente”) e 2/15 (ocorrência sem qualquer “relevância jurídica”), fica patente que o Delegado de Polícia não está condicionado a registrar qualquer evento, à exceção daqueles que, embora não revestidos de caráter delituoso, demandem, por direito declarado ou imposição administrativa[1], tal providência.

Nesses termos, seguido as normas ordinárias da Polícia, o registro “justificado” de indiferentes penais dotados de interesse particular deve ficar ao prudente alvedrio do Delegado de Polícia, o qual, independentemente da providência adotada, não deverá, sem motivo justo, deixar de orientar, ainda que indiretamente, o interessado para a correta aferição das suas garantias na seara adequada, principalmente nas hipóteses de pessoa humilde, premida pelas circunstâncias ou urgentemente necessitada. Isso decorre de um princípio de educação em servir o público, e não de mera obrigação funcional. 

Quanto a vedação de registros sem qualquer relevância jurídica, a Delegacia Geral, em boa hora e de maneira prudente, quis reforçar a tese de que não é qualquer fato adverso que pode ser objeto de boletim de ocorrência, sob pena do documento desvirtuar-se. Por vezes, a crônica policial tem demonstrado situações pouco convencionais que a rigor não deveriam ser registradas pela Polícia, não apenas pela aparente insensatez do seu objeto, mas principalmente pela ausência de qualquer relevância jurídica.

Nos parece, assim, que a própria administração reconhece que tais boletins não são de obrigatória emissão, devendo o Delegado de Polícia, como árbitro dos fatos sociais, filtrar, com prudência, o que deve ou não ser registrado. O grande problema é que, no calor dos fatos e no dia a dia dos plantões policiais, é muito difícil convencer o interessado de que a Delegacia não é o lugar adequado para auferir aquele direito que ele tenciona “preservar”. Embora normas existam, o cidadão, por vezes mal orientado, acaba se indispondo com os agentes de plantão, causando, assim, dissabores mútuos.

Mas enfim, o que seria essa polêmica “preservação de direitos”? Ela tem força legal? Ela tem validade como meio de prova? Enfrentemos esse controverso tema no tópico seguinte.


3. O Boletim de Ocorrência de “Preservação de Direitos” (ou “Outros Não Criminal”)

No Brasil, não é incomum ouvirmos das pessoas que elas farão um boletim de ocorrência para “se preservar”. E a Polícia, já ocupada com suas atribuições legais (apurar a autoria e a materialidade dos crimes e contravenções), se vê premida ante a essa “necessidade social” que já caiu no ideário popular. Pois bem, como então agir?

Sabe-se que a única autoridade disponível e acessível em nosso sistema jurídico, vinte e quatro horas por dia, é o Delegado de Polícia, bacharel em Direito e técnico-profissional de Polícia. A ele se recorre para quase tudo, desde a simples contenda entre vizinhos até o caso grave de homicídio. O acesso a autoridade policial é simples, daí ser ela, no dia a dia, a que mais acaba sendo exposta e, consequentemente, cobrada.

Mas o que afinal é o boletim de ocorrência? Embora desprovido de expresso conceito legal, ele pode ser definido como um documento público, de controlada aferição, onde são descritos fatos que, a rigor, exigiram ou venham a exigir expressa intervenção da Polícia. Ressalte-se que, mesmo isento de taxas, o boletim de ocorrência não é um documento de incondicionada emissão pelo Poder Público, como se certidão fosse, devendo apenas prestar-se para o registro de fatos cuja solução esteja afeta a polícia judiciária.

Quando firmado por um popular, o boletim de ocorrência goza de relativa presunção de legitimidade. Nesse sentido, ao julgar uma ação cível de indenização, o Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo sentenciou que “o boletim de ocorrência goza de presunção relativa de veracidade das informações, uma vez que tão somente descreve as informações colhidas unilateralmente pela parte declarante. Assim, tendo o boletim de ocorrência descrito apenas a versão dos fatos contados pela recorrente, entende-se que este instrumento deve ser analisado conjuntamente com todo o conteúdo probatório”[2].

Diante disso, entendemos que quando a narrativa é feita de forma unilateral pela parte, o boletim de ocorrência, como se viu, ostenta valor relativo, devendo, então, ser analisado em conjunto com o contexto verificado. Em contrapartida, se a notícia for dada por um agente público no exercício das suas funções, entendemos que ela goza de presunção de veracidade até prova em contrário, pois decorre ela, daí, de uma ação administrativa “ex officio”, onde o noticiante, destarte, não age como particular.

Visto o que é o boletim de ocorrência, analisemos então a figura da “preservação de direitos”. Embora entendamos que os direitos existam para ser exercidos, e não para serem preservados, tem-se como mantra que esse registro policial unilateral enverga força probante geral, afinal ele foi feito na Polícia e ostenta a assinatura de um Delegado. Mas, na prática, as coisas são um pouco diferentes.

É cediço que os plantões policiais são movimentados e, a rigor, deveriam funcionar como uma espécie de “pronto-socorro”. Diante disso, dada a alta rotatividade de ocorrências graves, é por vezes difícil atender todas as demandas, mormente as não criminais.

Direto se preserva? Cremos que não. O mundo jurídico não terá modificação alguma caso a pessoa se limite a registrar um fato atípico e não procure a seara adequada para exercer o suposto direito maculado. A título de exemplo, de nada adianta registrar um boletim “não criminal” versando sobre “afastamento de lar” se a pessoa não solicitar, pelas vias adequadas, uma separação cautelar de corpos ao Juiz. Ou seja, na prática, esses boletins não tem validade absoluta alguma, que não a de cunho meramente psicológico para quem o solicitou.

Em razão disso, podemos chegar a algumas conclusões:

a) O boletim de ocorrência de “preservação de direitos” (ou “não criminal”), não tem previsão legal e, em razão disso, não pode ser sumária e obrigatoriamente exigido;

b) O que a parte possui é o direito de ser atendida e orientada pelo policial civil de plantão, o que não significa que todos os fatos narrados serão registrados em boletim;

c) Não existe expresso impedimento da Polícia registrar casos “não criminais”, desde que eles tenham relevância jurídica e o Delegado de Polícia, e apenas ele, veja justa causa para a sua elaboração;

d) Ao contrário da ata notarial, o boletim de ocorrência “não criminal” é desprovido de valor probatório absoluto pois não atesta fatos, apenas condensa declarações unilaterais não conferidas/atestadas “in loco” pela Polícia;

e) A confecção do registro é ultimada no mesmo sistema direcionado aos crimes e contravenções, o RDO[3] (sob o título “outros não criminal”), o que demanda o desvio de um já assoberbado agente de polícia judiciária (normalmente o Escrivão) para confeccioná-lo e;

f) Inexiste, a exceção das ressalvas legais[4], prioridade para o atendimento nesses casos, o que, por vezes, gera demora excessiva e consequente reclamação do usuário, que sequer deveria estar numa Delegacia de Polícia.

Dito isso, talvez pudéssemos sugerir uma alternativa ao RDO “não criminal”, uma que mantivesse o necessário equilíbrio do serviço público e que também atenda o cidadão.


4. A “Comunicação Simplificada de Fato”

Para chegarmos a um consenso bilateral (o efetivo policial seria preservado e o solicitante teria a sua pretensão atendida sem filas ou esperas), poder-se-ia pensar na criação de um mecanismo que, nos casos não criminais, substituísse o atual RDO por um sistema de autoatendimento a ser acessado, num primeiro momento, pela página de intranet[5] da Delegacia, em um terminal exclusivamente disposto para tanto.

Trata-se da “comunicação simplificada de fato”, um registro rápido e gratuito para a perpetuação de eventos similar a um “report”[6], a qual consistiria num formulário eletrônico onde constariam os dados da comunicação; a qualificação básica do comunicante e uma exposição resumida, num espaço previamente delimitado, dos fatos que a parte tenciona perenizar para fins de resguardo de interesses ou prevenção genérica de responsabilidades.

Nela o cidadão ficaria expressamente ciente de que se fatos não vierem a exigir providências de polícia judiciária, ela será arquivada ou, em último caso, remetida eletronicamente ao órgão público a que porventura estiver afeta a sua apreciação.

O preenchimento da “comunicação simplificada de fato”, por não requerer o concurso de policiais civis e dispensar o emprego do sistema RDO, geraria absoluta rapidez no atendimento, minimizando-se, assim, a estada do cidadão na Delegacia de Polícia para fins de registros não criminais. Em sendo o comunicante analfabeto, o agente que tria as ocorrências poderia, sem maiores problemas, excepcionalmente supervisionar o preenchimento de forma mediata.

O documento, por ser de exclusiva autoria da parte e não requerer providências policiais, dispensaria as firmas escritas do Escrivão e do Delegado de Polícia, haja vista tratar-se de um singelo “report” eletrônico cuja utilização se prestaria a formalizar o indiferente penal. Os registros do período, ao fim do dia, seriam examinados (sem a necessidade de serem validados) via terminal pela autoridade policial responsável, juntamente com os boletins de ocorrência comuns e, em não demandando providências policiais – a exemplo de 99% dos boletins de “preservação de direitos” – seriam arquivados no próprio sistema. Se não, através de uma lista de endereços eletrônicos pré-dispostos (Ministério Público, Defensoria Pública, Procon etc), a própria autoridade, facilmente, o remeteria no ato a quem de direito.

O sistema em si, é bom que se frise, seria diverso do já conhecido “boletim eletrônico de ocorrência”, dispensando-se a validação e demandando apenas um exame informal em pós-moderação. Seria emitido no mesmo momento em que fosse registrado e, ao recebe-lo impresso, o cidadão nele aporia a sua assinatura, na condição de comunicante. Num segundo momento, caso viesse a ser formalizado na Delegacia Eletrônica, bastaria um endereço válido de e-mail para acessar o sistema e auferi-lo.

Alguns poderiam dizer que a adoção do “report” seria temerária, já que o documento não é pré-moderado pelo Delegado de Polícia e nem é por ele assinado. Entretanto, o foco da inovação é exatamente esse. A “comunicação simplificada de fato” não é um boletim de ocorrência, mas sim, uma espécie de “pleito eletrônico”, onde eventos não criminais e que não demandam providências imediatas são descritos para serem pós-moderados. É como se a pessoa fosse a um órgão público e quisesse se comunicar formalmente com ele através de um formulário específico.

Por se tratar de inovação, o projeto poderia passar por fases de testes em regiões policiais adrede estabelecidas e, em havendo viabilidade institucional e social na sua implantação, seria aberto, num segundo momento, junto a própria Delegacia Eletrônica.

As principais vantagens que a “comunicação simplificada de fato” poderia trazer, num primeiro momento, seriam as seguintes:

a) as rusgas que geralmente ocorrem no atendimento desse tipo de ocorrência (“se registra” ou “não se registra”) tenderiam a diminuir, afinal, de maneira imediata, a parte seria direcionada a um terminal a fim de preencher a “comunicação”, que seria emitida com um protocolo eletrônico da Delegacia de Polícia (numeração do sistema), sem a necessidade de assinatura da autoridade policial ou do agente;

b) o desvio de função acabaria, pois em se tratando de autoatendimento a própria parte alimentaria o formulário “não criminal”, que seria bem mais simplificado que o RDO, com espaços pré-determinados (para evitar descrições infinitas) e campos básicos. O sistema funcionaria como uma espécie de “petição”, onde um suposto direito é narrado de maneira sintética e sem maiores formalidades;

c) a Polícia focaria as suas ações apenas nas notícias-crime, sem deixar de auxiliar o cidadão no exercício da sua cidadania, desta feita com um instrumento simplificado, deixando o RDO – bem como o escrivão e o agente – apenas para os casos específicos de polícia judiciária.

Mas a fim de melhor entendermos o foco dessa ideia, separamos os casos “não criminais” mais comuns que aportam nas Delegacias, os quais, embora não exijam providências de polícia judiciária, poderiam, ao invés de ser registrados no RDO (o usual “boletim de ocorrência”), ser objeto da novel “comunicação simplificada de fato”, pelo sistema exclusivo de autoatendimento.


5. Casos “não criminais” que poderiam ser objeto da Comunicação Simplificada de Fato.

Doravante analisaremos diversos casos práticos, que independente da adoção de inovações institucionais, poderão servir de base para que os policiais civis, diuturnamente, melhor orientem os cidadãos que os procuram.

5.1. Evasão voluntária de estabelecimento de saúde

De acordo com o item 2.1.7 da Portaria COFEN nº 312/02, considera-se evasão a saída do paciente do hospital sem autorização médica e sem comunicação da saída ao setor onde estava internado. Esse tipo de evento, por não caracterizar qualquer infração penal, não deve, a rigor, ser objeto de boletim de ocorrência, bastando menção do fato, pelo próprio enfermeiro, no livro de ocorrências do estabelecimento de saúde.

Independente do registro, a responsabilidade do hospital poderá ser discutida na área cível, já que o mesmo, a princípio, possui obrigação “in vigilando” de zelar pela integridade dos pacientes, cuja capacidade ou não de discernimento será objeto de análise numa possível demanda judicial. As mesmas regras se aplicam aos casos de recusa ao tratamento sugerido pela equipe médica.

Em tempo, dependendo da qualidade do evadido (menor, portador de necessidades especiais etc), cremos ser prudente ao Delegado de Polícia, nesses casos, avaliar a viabilidade de registro de boletim, não sem antes, analisar se delito pretérito, à título de concausa, ocorreu.

5.2. Recusa de atendimento em consulta médica

Recusa de atendimento médico é uma coisa, e omissão de socorro; outra. O crime de omissão de socorro só se caracteriza diante da ação daquele que deixa de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, a criança abandonada ou extraviada, ou a pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou, nesses casos, não pede o socorro da autoridade pública. É o que dispõe a redação do art. 135 do Código Penal.

Caso exista a recusa de atendimento em alguma situação que não se enquadre nesse rol taxativo, inexistirá a referida figura delitiva, devendo a parte interessada interpor reclamação junto à ouvidoria do hospital e a Agência Nacional de Saúde Suplementar[7], sem prejuízo de intentar, caso queira, uma ação cível em desfavor do seu convênio, recomendando-se, ainda, ciência aos órgãos de defesa do consumidor responsáveis.

Caso entenda a parte que demora poderá lhe causar prejuízos, poderá ela, judicialmente, requerer uma liminar, a título de tutela antecipada, a fim de compelir o estabelecimento de saúde a realizar o procedimento médico desejado.

A Polícia, destarte, só poderá intervir ativamente em caso de crime, nos moldes do art. 135 do Código Penal, acima descrito.

5.3. Ausência de médicos em hospitais

Nesses casos, bastaria a comunicação formal a administração do hospital com o registro em livro próprio, a fim de que seja subsidiada uma representação ao Conselho de Medicina e, em se tratando de nosocômio público, à respectiva Secretaria de Saúde. O mantenedor do serviço tem responsabilidade no que tange a prestação de serviço e, em razão disso, não se trata de problema cuja resolução impende a Polícia.

5.4. Perda/extravio de cédula de identidade

Por força da Portaria DGP-19/03, no atendimento de ocorrência sobre extravio de documento, o registro do fato em boletim de ocorrência será substituído por declaração subscrita pelo interessado ou seu responsável legal, conforme modelo constante no anexo do aludido ato administrativo. Quando o documento extraviado tratar-se única e exclusivamente de carteira de identidade expedida pelo IIRGD/SP, a declaração será firmada a critério do interessado ou seu responsável legal, nas Delegacias de Polícia, nos Postos do Poupatempo ou nos setores de identificação do IIRGD/SP, que se encarregarão de comunicar o extravio a sede do referido Instituto, sem prejuízo de sequencial remessa de cópia da declaração.

Se forem vários os documentos, inclusive carteira de identidade expedida pelo IIRDG/SP, a declaração será firmada pelo interessado ou seu responsável legal somente nas Delegacias de Polícia, que se encarregarão de comunicar o extravio da carteira de identidade ao referido Instituto, sem prejuízo de sequencial remessa ou cópia da declaração (Portaria DGP-19/03, art. 2º, parágrafos 1º e 2º). Em suma, em todos os casos apontados (extravio/perda), não demandam registro em boletim de ocorrência.

5.5. Perda/extravio de documentos ou objetos em geral

Não é obrigatório o registro de boletim de ocorrência nos casos de perda/extravio de documentos ou objetos em geral, bastando que a parte faça, sob as penas da lei, uma informação de próprio punho, entregando-a a quem possa interessar ou, dependendo do caso, uma declaração a praça, a ser publicada em jornal de grande circulação.

5.6. Sustação de cheques

Conforme o art. 36 da Lei Federal nº 7.357/85, mesmo durante o prazo de apresentação, o emitente e o portador legitimado podem fazer sustar o pagamento, manifestando ao sacado, por escrito, oposição fundada em relevante razão de direito, não cabendo sacado julgar da relevância da razão invocada pelo oponente.

Segundo a Circular nº 2.655/95, do Banco Central, a contraordem (revogação) e a oposição (sustação) ao pagamento, ocasionada por furto ou roubo (crimes), fica condicionada à apresentação, pelo emitente ou portador legitimado, no caso de oposição (ou sustação), da respectiva ocorrência policial.

Assim, tanto o emitente como o portador poderão solicitar a sustação, bastando o envio de uma carta ao banco, com as razões do pedido. Se, fora das hipóteses de furto ou roubo, for exigida a apresentação de boletim de ocorrência, deverá o interessado protocolar a carta/pedido no estabelecimento bancário e, após isso, comunicar o fato ao órgão de defesa do consumidor local e ao Banco Central.

5.7. Cheques pós-datados

O cheque, por definição legal, representa uma ordem de pagamento à vista, devendo ele, em razão disso, ser pago no momento de sua apresentação ao banco sacado (art. 32, Lei Federal nº 7.357/85).

O denominado cheque pós-datado, por aludir a uma operação bancária sem amparo legal, desnatura a legítima figura da cártula, não possuindo o seu emitente, em razão disso, qualquer garantia que obrigue a parte adversa a depositá-lo na data aprazada.

Assim, por ser emitido como promessa de pagamento, o “cheque pós-datado” acaba se desvirtuando da sua função original, sendo que a falta de fundos verificada quando da sua compensação antecipada, embora não configure o crime previsto no art. 171, parágrafo 2º, VI do Código Penal (fraude no pagamento por meio de cheque), pode dar azo a uma ação judicial por danos morais, já que aquele que recebe a cártula, assume, segundo vem entendendo a jurisprudência, uma obrigação de “não fazer”.

5.8. Cheques sem fundos

A emissão de um cheque sem fundos, dado como ordem de pagamento “à vista” (grifo nosso), pode configurar o crime previsto no art. 171, parágrafo 2º, VI do Código Penal, passível de registro e apuração pela polícia judiciária.

Sem prejuízo disso, o cheque poderá ser executado, caso não esteja prescrito (conforme o art. 33 da Lei Federal nº 7.357/85, o cheque deve ser apresentado para pagamento a contar do dia da emissão, no prazo de 30 (trinta) dias, quando emitido no lugar onde houver de ser pago ou, ainda, em 60 (sessenta) dias, quando emitido em outro lugar do país ou no exterior).

Na área cível, o prejudicado pode propor várias ações judiciais em desfavor do emitente, dente elas, a de execução, a de cobrança da dívida ou a monitória, para transformar o cheque num título executivo judicial.

5.9. Fraude civil ou negócios comerciais mal feitos

A prudência manda que o Delegado de Polícia verifique, de antemão, se o evento tem contornos de fraude penal, descrita no art. 171 do Código Penal, ou mero ilícito civil/negócio comercial mal feito. Estas últimas hipóteses, caracterizadas pela ausência de indução a erro mediante ardil ou fraude, não tipificam o crime de estelionato, devendo a parte interessada buscar a reparação de eventuais prejuízos junto à esfera cível, estranha a policial. Podemos citar como exemplos o inadimplemento de compromisso comercial, o não pagamento sob a alegação de que determinado serviço não tinha qualidade, encerramento de atividades comerciais sem dolo premeditado etc.

5.10. Invasão pacífica de terrenos

O art. 150 do Código Penal (violação de domicílio) não tem por finalidade a proteção possessória, mas sim, a tranquilidade doméstica. Já o art. 161, II, do mesmo Diploma (esbulho possessório), visa obstar o desapossamento (despojamento) violento ou o executado por mais de duas pessoas, e não a simples perturbação.

Assim, considerando-se que o conceito penal de esbulho é diverso e mais restrito que o civil, cabe ao prejudicado buscar em juízo, através de liminar, a manutenção/tutela da sua posse nos casos de turbação ou, ainda, a reintegração da mesma, na hipótese de esbulho (art. 926, do Código Civil). Se, por outro lado, tiver o possuidor o justo receio de que será perturbado ou esbulhado na sua posse, poderá ele intentar, também em juízo, uma ação de interdito proibitório, com a cominação de multa. Em se consumando a lesão, poderá ser expedida ordem de manutenção ou reintegração.

Cabe menção que a posse admite a autotutela, isto é, a autodefesa. O artigo 1.210, parágrafo 1º, do Código Civil aduz que “O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse”. No caso do esbulho, o possuidor deverá usar a força de forma imediata, em ato sucessivo, ou, então, logo que lhe seja possível agir, tão logo tome conhecimento do ato lesivo, podendo, ainda, contar com a ajuda de terceiros. Em suma, admite-se a resistência contra a turbação e o deforço imediato contra o esbulho, sendo que a questão do “ano e dia” alude apenas ao rito da ação que, pelo interessado, poderá ser intentada.

5.11. Danos culposos

O crime de dano, definido no art. 163 do Código Penal, é de natureza dolosa. Assim, os danos de natureza culposa, verificados por negligência, imprudência ou imperícia de outrem, devem ser objeto de ação apropriada junto ao Poder Judiciário (ação de indenização), nos termos dos arts. 186 e 927 do Código Civil.

O interessado poderá fazer prova testemunhal ou colecionar indicativos materiais, como fotos e filmagens, sem necessariamente ter que registrar um boletim de ocorrência.

5.12. Autolesão

A lei brasileira não pune a “autolesão”, exceto quando ela configurar, em tese, outro tipo penal, como aquele previsto no art. 171, parágrafo 2º, V, do Código Penal (fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro).

5.13. Constrangimento moral

A legislação difere o constrangimento ilegal do moral. Pela lei brasileira, só existe constrangimento (coação) ilegal, passível de intervenção policial, quando a ação ilícita for praticada com violência (violência física contra a pessoa), grave ameaça (promessa de causar mal futuro, injusto e grave) ou, ainda, redução de capacidade de resistência da vítima (administração não violenta de álcool, psicoativo ou outra substância de reduzir a resistência da pessoa), tudo isso, nos termos no art. 146 do Código Penal.

Nos casos de constrangimento ocorrido sem o emprego de violência, grave ameaça ou redução de capacidade de resistência da vítima, o interessado pode estar diante de um constrangimento de natureza moral, cujo dano pode ser reparado através de uma ação de indenização, a ser deflagrada junto ao Poder Judiciário.

Assim, entende-se por dano moral aquele em que, fora das hipóteses criminosas, exista um atentado contra a integridade ou reputação de alguém, causando-lhe tristeza, padecimento íntimo, humilhação, vergonha, vexame ou repercussão negativa em suas atividades pessoais. A lei protege o cidadão desse tipo de constrangimento ao estabelecer que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem (ainda que moral), comete um ato ilícito, ficando obrigado a repará-lo (artigos 186 e 927 do Código Civil). Para obter esse tipo de reparação, o interessado deve procurar assistência jurídica, a fim de pleitear, numa ação indenizatória junto ao Poder Judiciário, a devida reparação.

Por fim, ressalte-se que a lei brasileira não condiciona esse tipo de ação ao registro prévio de boletim de ocorrência, daí ser ele dispensável.

5.14. Oposição ao direito de visita a filho

O acordo em sentença que regulamenta o direito de visita é homologatório, não equivalendo a uma ordem judicial direta e específica, não configurando a sua inobservância, segundo entendemos, crime. A recusa, nesses casos, pode ser diretamente comunicada a Vara de Família que homologou o acordo, se possível, com a indicação de testemunhas, a fim de que, judicialmente, sejam adotadas as medidas cabíveis para o cumprimento, em condições a serem estipuladas pelo juiz, do acordo. A lei não condiciona essa comunicação ao registro de boletim de ocorrência.

A jurisprudência brasileira, já se posicionou da seguinte forma: “Não caracteriza desobediência o descumprimento de acordo homologado em separação judicial, referente ao exercício do direito de visita, pois tal homologação possui cunho genérico, que não equivale a uma ordem direta e específica de autoridade pública, como, por exemplo, um mandado de intimação para cumprimento do acordado” (HC - Processo nº 54854/1 - Relator: Juiz Luiz Ambra - Órgão Julgador: 5ª Câmara - Votação: VU – J. 24/11/2003). “A oposição ao direito de visita estipulado em separação judicial não significa desobediência a ordem legal, posto que na legislação civil se encontram os requisitos adequados para resguardar direitos quanto à visita de filho” (TACrimSP - HC 189.896-6 - 12ª Câmara - Rel. Juiz Emeric Leval - J. 05.03.1990). “A decisão que regulamenta o direito de visita é constitutiva e dela deve a parte ser intimada por mandado, e não pelo próprio interessado. A apresentação, por este, de cópia da sentença que lhe conferiu tal direito e a recusa do outro cônjuge em cumpri-la não caracterizam, portanto, sequer em tese, o delito de desobediência, por não se tratar de ordem legal” (TACrimSP - RHC 330.955 - 3ª C. - Rel. Juiz Ralpho Waldo - v.u. - J. 22.03.1983).

5.15. Afastamento da morada comum e abandono de lar

Sob o aspecto legal, o afastamento da morada comum encontra amparo no art. 1.562 do Código Civil. Quando um dos cônjuges tenciona deixar o lar (por impossibilidade de convivência ou desejando legitimar a saída), é de bom alvitre que providencie ele uma autorização judicial, através de um alvará de separação de corpos (medida cautelar). A importância deste documento é grande, visto que deixar o lar sem a concordância do outro cônjuge e/ou autorização judicial pode dar ensejo, em tese, a futura alegação de “abandono do lar” pelo outro consorte.

O pedido do alvará de separação deve ser feito ao Juiz de Direito, sem a necessidade de boletim de ocorrência. É de se registrar que o art. 1.573, IV, do Código Civil, diz que caracteriza a impossibilidade da comunhão de vida, a ocorrência de abandono voluntário do lar conjugal, durante, frise-se, apenas um ano contínuo. Inexiste, portanto, boletim de ocorrência alusivo a “afastamento da morada” ou “abandono de lar”, devendo o Delegado de Polícia, entretanto, sempre proceder a uma analise dos fatos, a fim de verificar a existência ou não de eventual crime de abandono material.

5.16. Pequenas causas e relações de consumo

O interessado deve recorrer ao juizado especial cível ou aos órgãos de proteção ao consumidor. O juizado especial cível pode ser usado por Pessoas físicas capazes, maiores de 18 anos e microempresas, nas causas de valor igual ou inferior a 40 salários mínimos. Para causas com valor superior a 40 salários, o consumidor poderá optar pelo atendimento do Juizado Especial Cível desde que renuncie ao valor excedente. Só é necessário contratar um advogado para as causas com valor superior a 20 salários mínimos.

O procedimento é, geralmente, iniciado por um funcionário do fórum, que registra a reclamação na hora. Quando houver advogado, este apresenta o pleito verbalmente ou por petição com procuração do reclamante. Os juizados não admitem processos contra a Fazenda Pública, Federal, Estadual ou Municipal e empresas públicas Federais.

A população pode ser valer dos juizados especiais cíveis e dos órgãos de defesa do consumidor para uma infinidade de casos, dentre os quais, compras de mercadorias com defeito; manutenção ineficaz de produtos defeituosos; demora para a conclusão de serviços contratados, com perdas e lucros cessantes; cobrança de dívidas junto a terceiros; pagamento por serviços mal feitos; acidentes de trânsito sem vítimas de lesões corporais; serviços contratados e não efetuados no prazo ou a contento; produtos encomendados não entregues; protesto de títulos por engano; telefone com problemas não resolvidos; recebimento de cheque pré-datado sem fundos; problemas com convênios médicos; problemas com multas de trânsito do antigo proprietário do veículo; danos morais; constrangimentos morais; inscrição indevida junto ao SPC/SERASA etc.

5.17. Demora no atendimento em estabelecimento bancário

Atualmente existem inúmeras legislações municipais que disciplinam o tempo de espera para atendimento nas agências bancárias. De acordo com os órgãos de defesa do consumidor, o meio para comprovar a espera é guardar os comprovantes de ingresso e saída do banco. As reclamações podem ser interpostas no Banco Central, nas agências de defesa do consumidor ou nas próprias prefeituras. Existe, ainda, a possibilidade de interpelar o banco judicialmente, através de uma ação de indenização por danos morais. Independente da providência escolhida, nenhuma delas demanda a necessidade de registro de boletim de ocorrência.

5.18. Acidente de trânsito sem vítimas

Em caso de acidente de transito sem vítimas não existe a necessidade de registro de boletim de ocorrência na Delegacia de Polícia, haja vista a inexistência de crime a ser apurado, salvo se envolver pessoa inabilitada, embriagada ou que tenha fugido do local para escapar a responsabilidade civil ou penal.

As partes podem buscar uma composição amigável, trocando dados documentais e auferindo imagens digitais do acidente, para fins de acionamento de seguro. Mas caso os implicados desejem registrar o evento, ele atualmente é feito pela Delegacia Eletrônica, bastando que a parte possua os dados da outra.

5.19. Chegada extemporânea em prova de concurso público

Não raro, candidatos a determinado concurso público alegam ter chego ao local da prova no horário estipulado no edital, mas encontram os portões fechados. Nesse caso, basta que os inconformados providenciem prova de suas alegações (captura de imagem com horário, por exemplo) e impetrem recurso junto a comissão organizadora do certame, de nada adiantando um boletim de ocorrência, afinal a Polícia não terá como interferir, não de maneira imediata, no andamento do concurso.

5.20. Obstáculos/acidentes urbanos

Por vezes acontece que o cidadão constata determinado obstáculo ou acidente urbano que considera inapropriado ou “perigoso” para a circulação. Nesse caso, basta uma reclamação formal a Prefeitura ou a Ministério Público, munida de fotos e demais elementos que façam prova do alegado. Em sendo verificada a impropriedade, poderá ser elaborado um termo de ajustamento precedido por inquérito civil, o qual porá fim ao problema.


6. Considerações finais

De todo o exposto, fica claro que o boletim de ocorrência de “preservação de direitos” não tem o condão de preservar o requerente tal qual ele tenciona.

Como não é de obrigatória emissão, por vezes acaba protagonizando discussões e debates acalorados nos plantões, gerando desgastes na Polícia e na sociedade, o que não é vantajoso para ninguém.

Diante da tradição e, considerando-se a necessidade de agregar valores institucionais e ainda assim atender o cidadão e otimizar os métodos que proporcionem com que ele tenha acesso rápido e facilitado aos direitos inerentes a sua cidadania, a “comunicação simplificada de fato” poderia cumprir esse papel sem esbarrar na rotina de atendimento das ocorrências convencionais.

Nos parece que proibir sumariamente os registros não criminais só serviria de mote para aumentar ainda mais as críticas que não raro são lançadas contra a Polícia, como se ela estivesse “virando as costas” para aqueles que buscam o auxílio dela. Como esses registros sempre foram feitos, por orientação superior inclusive (Recomendação DGP-7/03), nada impede que esses “fatos ou direitos declarados, tidos como úteis na defesa de direitos relevantes para o cidadão”, continuem a ser registrados, mas não em boletins de ocorrência, mas sim pela própria parte, de forma rápida e simples, num formulário eletrônico de autoatendimento.

Aliás, esse tipo de acesso ao serviço público poderia ser o primeiro passo para a alteração do atual sistema de recepção da notícia crime comum, onde todo fato em tese delituoso unilateralmente declarado, e que não demandasse providências imediatas de polícia judiciária, seria registrado sob o título “comunicação de fato de interesse policial” (contra a pessoa, patrimônio, costumes etc) que seria pós-moderado pela autoridade, que aí sim decidiria sobre a correta tipificação jurídica, a qual constaria da estatística oficial.

A ideia, destarte, é continuar a manter o serviço, de forma mais acessível e simples e, com isso, focar os recursos humanos da Polícia na função investigativa, que é a sua atividade-fim. O autoatendimento virtual é uma tendência mundial e, facilitar a inclusão do cidadão, é dever do Poder Público.


Notas

[1] Morte natural, desaparecimentos, localizações e apreensões, transgressões disciplinares etc.

[2] TJES - Apelação Cível: AC 48070066484 ES 0480700664841.

[3] Registro Digital de Ocorrência.

[4] Lei Federal n° 13.460, de 26 de junho de 2017, art. 5º, III: “O usuário de serviço público tem direito à adequada prestação dos serviços, devendo os agentes públicos e prestadores de serviços públicos observar as seguintes diretrizes: (...) III - atendimento por ordem de chegada, ressalvados casos de urgência e aqueles em que houver possibilidade de agendamento, asseguradas as prioridades legais às pessoas com deficiência, aos idosos, às gestantes, às lactantes e às pessoas acompanhadas por crianças de colo”.

[5] Rede interna.

[6] Comunicação de Fato da Polícia norte-americana.

[7] http://www.ans.gov.br/


Autor

  • Marcelo de Lima Lessa

    Formado em Direito pela Faculdade Católica de Direito de Santos (1994). Delegado de Polícia no Estado de São Paulo (1996), professor concursado de “Gerenciamento de Crises” da Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra”. Ex-Escrivão de Polícia. Articulista nas áreas jurídica e de segurança pública. Graduado em "Criminal Intelligence" pelo corpo de instrução do Miami Dade Police Department, em "High Risk Police Patrol", pela Tactical Explosive Entry School, em "Controle e Resolução de Conflitos e Situações de Crise com Reféns" pelo Ministério da Justiça, em "Gerenciamento de Crises e Negociação de Reféns" pelo grupo de respostas a incidentes críticos do FBI - Federal Bureau of Investigation e em "Gerenciamento de Crises", "Uso Diferenciado da Força", "Técnicas e Tecnologias Não Letais de Atuação Policial" e "Aspectos Jurídicos da Abordagem Policial", pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. Atuou no Grupo de Operações Especiais - GOE, no Grupo Especial de Resgate - GER e no Grupo Armado de Repressão a Roubos - GARRA, todos da Polícia Civil do Estado de São Paulo.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LESSA, Marcelo de Lima. Comunicação simplificada de fato: uma alternativa ao registro não criminal de preservação de direitos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5907, 3 set. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63747. Acesso em: 7 maio 2024.