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Propósito negocial: a problemática da incorporação de doutrina tributária alienígena no Brasil

Propósito negocial: a problemática da incorporação de doutrina tributária alienígena no Brasil

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No âmbito do planejamento fiscal e articulando conceitos da doutrina tributária clássica, o presente artigo busca analisar o instituto do propósito negocial, verificando a aplicabilidade genérica do mesmo ao direito brasileiro.

1.DA BASE PRINCIPIOLÓGICA TRIBUTÁRIA BRASILEIRA E O DIREITO DE ECONOMIZAR TRIBUTOS

Dentre os princípios constitucionais tributários, o que funda o estudo do Direito Tributário no Brasil é o da Rigidez do Sistema Tributário, como bem assinala Geraldo Ataliba (1966). Isso porque o legislador constitucional estabeleceu de forma bem discriminada as competências do jus imperii do poder de tributar estatal, de forma a garantir a cada ente federado a alçada da arrecadação que se entendeu necessária para o melhor funcionamento da máquina pública, bem como para garantir a atuação da União, dos estados, dos municípios e do Distrito Federal em suas atribuições.

Tal princípio remete, por sua essência, aos princípios da legalidade e da segurança jurídica, sendo este com status doutrinário de princípio implícito ao Estado de Direito em nossa tradição jurídica (TORRES, 2012, p. 303). Nesse sentido, não sendo ninguém obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, a nullum tributum sine lege é, assim, característica ao ordenamento tributário brasileiro, de origem romano-germânica – em contraposição ao Common Law, que alicerça a tradição anglo-saxônica.    

Na mesma toada, o artigo 114 do Código Tributário Nacional aduz que o “fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência”, asseverando, agora em plano infraconstitucional, o mister primeiro da incidência tributária.

Firma-se, pois, ao menos legal e doutrinariamente – posto que a prática jurisprudencial venha sendo questionável nesse aspecto, como veremos a diante –, o mister da limitação ao ius imperium estatal como a limitação do poder de tributar (TORRES, p. 315). Isso em louvor ao Estado Democrático de Direito em que se constitui o Brasil, fundado na livre iniciativa e tendo a propriedade privada por princípio (Art. 160/CRFB).

Sob esta perspectiva principiológica constitucional, a conclusão lógica seria o entendimento de possuir o contribuinte direito subjetivo a agir de forma a tornar menos oneroso seu negócio, evitando, por exemplo, a ocorrência de fato gerador de tributação, motivo pelo qual seria absolutamente razoável a prática de planejamento fiscal, sem esgueirar-se, obviamente, da legalidade – como nos casos de simulação ou fraude à lei propriamente. Assim assevera Schoueri (2010):

É próprio do ordenamento que algumas manifestações de capacidade contributiva sejam tributadas e outras tantas escapem de tal ônus. A mera presença de capacidade contributiva não constitui, daí, razão suficiente para se pretender ver alcançada pela tributação situação não contemplada pelo legislador. (p. 15).

Reforçando esse entendimento, consoante afirma Malerbi (1984), os comportamentos não tributados resultariam justamente da falta de disposição legal, donde conceitua a “elisão fiscal”:

A expressão “elisão fiscal” é empregada pela ciência jurídica para referir-se a um certo tipo de situações criadas pelo direito tributário positivo, que se constitui naquelas situações licitas não compreendidas dentro desse catalogo legislativo das situações tributáveis existentes. (p. 75 – grifo nosso).


2. DO PROPÓSITO NEGOCIAL E SUA INCORPORAÇÃO À JURISPRUDÊNCIA ADMINISTRATIVA

A doutrina do propósito negocial, conhecida como business purpose, é originária do direito norte-americano, de tradição de Commom Law, no leading case “Gregory v. Helvering”, julgado em 1935, pela Corte Constitucional Americana, como resposta do Estado americano frente a um contexto de reestruturações societárias ocorridas nos Estados Unidos, em tese, com vistas à mera economia de tributos.

Basicamente, a doutrina do propósito negocial assevera que a mera adequação dos atos e negócios jurídicos à letra da lei tributária é inapta a embasar uma economia tributária válida. Nesse sentido, afirma Schoueri:

Surgido na jurisprudência norte-americana, o business purpose, ou propósito negocial, questiona se a operação teria sido efetuada do mesmo modo, não fossem as vantagens tributárias geradas. (p. 18).

No Brasil, o propósito negocial foi importado pelo antigo Conselho de Contribuintes sem, porém, haver passado pelo crivo legal – como pressupõe nossa matriz tributária e que, no entanto, seria prescindível à matriz americana. De outro modo, i.e., ainda que se houvesse a sanção do parlamento, requerer-se-ia, à aplicabilidade de tal norma, maior zelo conceitual, posto que as atuais instâncias administrativas não vêm dando a devida precisão teórica a qual o tema carece, mesmo porque, em muitos casos, é tênue a diferença entre o propósito meramente tributário e o propósito negocial propriamente assim considerado.

Ratifica esta visão a tentativa de regulamentação da matéria em 2002. Por meio da Medida Provisória nº 66, de 29 de agosto daquele ano, publicada no Diário Oficial da União (DOU) em 30.08.2002, cujos artigos 13 a 19, que tratavam da norma geral antielisiva, acabaram sendo subtraídas da Lei 10.637/2002, decorrente da MP. Veja-se o artigo que tipificaria o tema:

Art. 14.  São passíveis de desconsideração os atos ou negócios jurídicos que visem a reduzir o valor de tributo, a evitar ou a postergar o seu pagamento ou a ocultar os verdadeiros aspectos do fato gerador ou a real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

§ 1º  Para a desconsideração de ato ou negócio jurídico dever-se-á levar em conta, entre outras, a ocorrência de:

I - falta de propósito negocial; ou

II - abuso de forma.

§ 2º  Considera-se indicativo de falta de propósito negocial a opção pela forma mais complexa ou mais onerosa, para os envolvidos, entre duas ou mais formas para a prática de determinado ato. (MP nº 66/2002 – grifo nosso).

Pelo que se conclui, com o sossego da clareza, que o legislador não desejou positivar tal conceito em nosso ordenamento, senão o teria cravado na oportunidade.

Nesse sentido, em voto vencido no julgamento do processo 11080.723307/2012-06, em que compõe o pólo passivo TRANSPINHO MADEIRAS LTDA. e SAIQUE EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS LTDA., em julgamento na 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, que trata sobre operação de reorganização societária, o Conselheiro Luís Flávio Neto assevera:

A motivação de reorganizações patrimoniais dessa natureza pode ser muito variada e, diante de seu caráter íntimo, não apresenta relevância jurídica. Em relação às pessoas físicas que constituem pessoas jurídicas para a integralização de seus bens imóveis, há motivos relacionados a questões sucessórias, a delicados assuntos familiares, a incrementação do sigilo, a profissionalização da administração dos bens imóveis etc. (Fl. 1.040 – grifo nosso).

Afirma, ainda:

A Constituição Federal, forte nas liberdades econômicas e na preservação da função social da propriedade, não exigiu como razões extratributárias para a fruição dessa garantia do particular [do reconhecimento expresso pelo art. 156, § 2º, I, CF, de que é legítimo ao particular segregar parcela de seu patrimônio integralizando-a ao capital social da pessoa jurídica]. Não se trata de uma garantia condicionada a justificativas gerenciais ou intimas do particular. Pelo contrário, o mandamento constitucional é claro, explícito, indubitável: no exercício de suas liberdades econômicas, com a garantia de poder decidir como e quando combinar fatores de produção e de utilizar de riqueza para produzir nova riqueza, o particular pode integralizar bens imóveis ao capital social de pessoas jurídicas, sejam elas imobiliárias ou não. (Fl. 1.045 – grifo nosso).

Verifica-se, por outro lado, que o voto do Conselheiro Relator Marcos Aurélio Pereira Valadão apontou que a reorganização societária haveria se dado com o mero fim tributário, enquadrando a situação como simulação:

Assim, procedente a afirmação da Fazenda Nacional, em contrarrazões, de

que, na realidade, está-se diante de uma “empresa veículo, com único intuito de diminuir a tributação sobre as operações realizadas” (e-fls. 960). [...]

Ou seja, em que pese a regularidade formal das operações, como a venda dos ativos foi feita de por meio de operação que escondeu a verdadeira operação realizada, caracterizando a simulação com o objetivo exclusivo de economia tributária. A simulação, que é dolosa, no caso em questão, restou caracterizada pelo dolo específico do tipo previsto art. 44 da Lei 9.430/1996, que remete ao art. 71 da Lei n. 4.502/1964, impondo a multa qualificada. (Fl. 1.038 e 1.039 – grifo nosso).

Fica evidenciada, desse modo, a hermenêutica imprecisa que se despendeu para que se enquadrasse a suposta e rebatida ausência de propósito negocial na operação em tela em um caso de simulação. Isso porque essa não é a definição conferida pelo Código Civil de 2002, no parágrafo 1º, do artigo 167, que define a simulação do negocio jurídico, e, sequer, se enquadraria na hipótese de dissimulação – conceito diverso – prevista pelo parágrafo único, do artigo 116, do CTN – que, a propósito, nunca chegou a ser regulado.


3. CONCLUSÃO

 Tendo por base pesquisa bibliográfica de doutrina tributária qualificada, de julgados em âmbito administrativo e de regras e princípios do ordenamento positivo, pretendeu-se demonstrar ser o propósito negocial prescindível à validade jurídica de operações societárias, mesmo em ambiente de eventual benefício tributário delas decorrente.

Destarte, através de uma análise da legislação vigente, sob a estrita ótica de normas e princípios expressos em nosso ordenamento, ponderaram-se, ainda, as relações interdisciplinares de institutos de direito constitucional, de direito civil e de direito tributário, que demonstraram a premência da positivação legal para uma correta solução de litígios em que se discuta a ausência do propósito negocial. Em que pese, dessa forma, saudando o princípio constitucional da legalidade e da segurança jurídica em nosso sistema.

Finalmente, desta feita, o resguardo à legalidade se mostra singelo, porém necessário, em ocasião que se busca embaraçar o que poderia nos lembrar, em nosso contexto, explícito confisco ou, pelo menos, a abertura a malfadados ares autoritários.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ATALIBA, Geraldo.  Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1966.

BRASIL. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Processo nº 11080.723307/201206. Acórdão n.º 9101002.429. Apelante: TRANSPINHO MADEIRAS LTDA. E SAIQUI EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS LTDA.. Interessado: Fazenda Nacional. Relator: Marcos Aurélio Pereira Valadão. Brasília, 18 de agosto de 2016.

BRASIL. Medida provisória nº 66, de 29 de agosto de 2002. <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/Antigas_2002/66.htm> Acesso em 15 nov.

MALERBI, Diva Prestes Marcondes. Elisão Tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984.

SCHOUERI, Luís Eduardo. Planejamento Tributário e o “Propósito Negocial”. São Paulo: Editora Quartier Latin do Brasil, 2010.

TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica: Metádica da Segurança Jurídica do Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Editora RT, 2012.



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