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O sistema pré-pago de utilização da água e outros métodos eletrônicos de controle de uso da água

O sistema pré-pago de utilização da água e outros métodos eletrônicos de controle de uso da água

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Se, por um lado, a essencialidade da água traz alguns agravantes na adoção deste sistema, por outro, a escassez de água doce acessível no planeta obriga à adoção urgente de uma forma mais racional de uso da água.

Sumário: 1. Introdução. 2. A água e sua distribuição no planeta. 3. Água, bem ou serviço?. 4. O modelo pré-pago de utilização da água. 4.1. Aspectos gerais. 4.2. Histórico da implantação em outros países. 4.3. Os testes do pré-pago no Brasil. 4.4. A posição das companhias de saneamento. 4.5. Aparentes vantagens e desvantagens do novo modelo. 5. Apresentação de uma forma viável de implantação do sistema pré-pago de acesso à água e outros métodos eletrônicos de controle do uso da água. 6. Conclusão.


1. Introdução

Discorrer sobre o sistema pré-pago de acesso à água e métodos eletrônicos de controle do seu uso traz à tona vários conceitos relacionados a diversos ramos do Direito e outros temas não pertencentes ao âmbito jurídico, porém, não menos importantes. O estudo deste tema tão polêmico leva ao estudo de outros não menos desafiadores, tais como: meio-ambiente; importância da água e sua escassez progressiva; gestão de recursos hídricos; direitos fundamentais; regulamentação infraconstitucional; bens públicos; serviço público; políticas públicas; desenvolvimento sustentável; saúde pública; direito do consumidor e outros.

O sistema pré-pago de acesso à água há bem pouco tempo vem sendo discutido no Brasil e, se por um lado, a essencialidade da água traz alguns agravantes na adoção deste sistema, por outro, a escassez de água doce acessível no planeta obriga à adoção urgente de uma forma mais racional de uso da água e, para este fim, o modelo pré-pago e os demais métodos de controle eletrônico de uso são altamente indicados.

A adoção do sistema pré-pago de acesso à água enfrenta diversas polêmicas, dentre elas a discussão acerca da possibilidade ou não da suspensão do abastecimento, em face da classificação do serviço como público essencial, conforme as leis nacionais.

As várias contrariedades em torno do novo modelo tornam o tema ainda mais instigante e ávido por estudos e reflexões mais profundas.


2. A água e sua distribuição no planeta

Ao abrirmos uma torneira e observarmos o fluxo contínuo de água, talvez não tenhamos a consciência de que estamos diante de um dos principais problemas que assolará a Terra neste terceiro milênio. As questões ligadas ao mau uso da água e sua conseqüente escassez certamente estarão no centro dos maiores conflitos e das maiores catástrofes da era em que vivemos.

A água é bem essencial para a vida, não só a vida humana, mas para a existência de toda vida no planeta. O direito à água é pressuposto fundamental do direito à vida, à saúde e à dignidade da pessoal humana, direitos fundamentais das pessoas elencados nos artigos III e XXV da Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como nos artigos 1º e 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. É dever de todos os povos, de todas as nações, manter e preservar a água como patrimônio para as futuras gerações.

A negligência na análise crítica deste problema pode levar ao fim da água doce de fácil acesso ao homem, levando-o à adoção de processos complexos e de alto custo para obtenção de água potável, como a dessalinização da água marítima. Os dados apontados pela Universidade da Água (1), Organização Não-Governamental com sede na cidade de São Paulo, são bastante alarmantes com relação ao aumento exorbitante da população mundial em contraposição à permanência do mesmo volume de água antes disponível: há 2.000 anos, a população mundial correspondia a 3% da população atual, enquanto a disponibilidade de água permanece a mesma, sendo que, a partir de 1950, o consumo de água, em todo o mundo, triplicou e o consumo médio de água, por habitante, foi ampliado em cerca de 50%.

Alguns setores da sociedade, preocupados com este problema, têm se organizado e várias ONGs foram criadas com a finalidade de informar e educar a população, conscientizando-a dos riscos da inação frente ao problema da água. Em 2004, no Brasil, o tema da Campanha da Fraternidade é "Fraternidade e Água: Água, Fonte de Vida", sendo descrito como objetivo geral da campanha, segundo a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, "conscientizar a sociedade de que a água é fonte de vida, uma necessidade de todos os seres vivos e um direito da pessoa humana, e mobilizá-la para que esse direito à água com qualidade seja efetivado para as gerações presentes e futuras".

Ainda com base em dados estatísticos publicados pela Universidade da Água (2), podemos precisar a gravidade do problema que nos assola. Estima-se que o volume total de água na Terra é de cerca de 1,35 milhões de quilômetros cúbicos e, apesar do monstruoso volume de água existente no planeta, constatamos que há um percentual praticamente insignificante disponível para consumo, como pode ser visto nos dados apresentados a seguir:

  • 97,5% da água disponível na Terra é salgada e está em oceanos e mares;
  • 2,493% da água é doce, mas se encontra em geleiras ou regiões subterrâneas de difícil acesso;
  • 0,007% apenas é água doce de fácil acesso para o consumo humano e encontra-se em rios, lagos e na atmosfera.

Como se não bastasse o ínfimo percentual de 0,007% de água doce disponível, o mau uso da água no decorrer dos anos fez com que essa disponibilidade diminuísse ainda mais, conforme se demonstra no quadro abaixo, referente à evolução, no tempo, e por regiões no mundo, da disponibilidade da água. 

Disponibilidade de Água por Habitante/Região (1000m3)

Região

1950

1960

1970

1980

2000

África

20,6

16,5

12,7

9,4

5,1

Ásia

9,6

7,9

6,1

5,1

3,3

América Latina

105,0

80,2

61,7

48,8

28,3

Europa

5,9

5,4

4,9

4,4

4,1

América do Norte

37,2

30,2

25,2

21,3

17,5

TOTAL

178,3

140,2

110,6

89

58,3

Fonte: N.B. Ayibotele. 1992. The world water: assessing the resource.

O reflexo da má gestão dos recursos hídricos no decorrer dos anos, conforme demonstrado acima, e a conseqüente escassez de água e saneamento básico fazem da água a maior "assassina" do mundo, conforme declarações do administrador-chefe do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Shoji Nishimoto, em discurso para o Dia Mundial da Água. Estima-se que cerca de 1,1 bilhões de pessoas não têm acesso à água limpa, e 2,5 bilhões não têm acesso a redes adequadas de saneamento. Essa situação aumenta sobremaneira os índices de mortalidade, notadamente a infantil, o que faz com que a falta de água e de saneamento básico ocasione a morte de 6 mil crianças diariamente.

Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), a falta de saneamento básico causa diretamente cerca de 80% das doenças e 65% das internações, o que leva a uma estimativa de que para cada R$1,00 investido em saneamento, o governo deixaria de gastar R$5,00 em serviços de saúde, segundo o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC (3).

Outro dado bastante importante é a distribuição dos recursos hídricos no mundo, pois, ao contrário do que pode-se imaginar, o maior desperdício e uso desordenado não se dá com a água consumida em residências, mas sim no uso em atividades agrícolas e industriais, isto, conforme se verá adiante, poderá servir de base para a implantação do sistema pré-pago para determinados consumidores e de outros métodos de controle eletrônico do uso da água para outros, permitindo o melhor aproveitamento da água disponível.

Distribuição dos Recursos Hídricos no Mundo:

70% agricultura 22% indústria 8% residências

Dentro deste panorama mundial, podemos dizer que o Brasil está em situação privilegiada, pois, de toda a água doce superficial do mundo, 11,6% está no Brasil. Apesar desta posição de vantagem, ao analisar a distribuição dos recursos hídricos no território nacional, constata-se que 70 % da água disponível para uso está localizada na Região Amazônica e apenas 30% está distribuída desigualmente pelo País, em uma área que concentra 93% da população brasileira, conforme demonstra o quadro abaixo.

Distribuição dos Recursos Hídricos, da Superfície e da População

(em % do total do país)

REGIÃO

Recursos hídricos

Superfície

População

Norte

68,50

45,30

6,98

Centro-Oeste

15,70

18,80

6,41

Sul

6,50

6,80

15,05

Sudeste

6,00

10,80

42,65

Nordeste

3,30

18,30

28,91

SOMA

100,0

100,0

100,0

Fonte: DNAEE 1992

O fato de concentrarmos em nosso país um grande percentual da água doce disponível no mundo nos faz responsáveis pela preservação deste patrimônio, que deve ser feita através da utilização da água com respeito e consciência, para que não esgotemos as reservas ainda existentes.


3. Água, bem ou serviço?

Atualmente, a água é um bem público, porém, antes da Constituição Federal de 1988, havia previsão no Código das Águas - Decreto 24.643/1934 – art.8º de águas particulares, além das águas públicas e águas comuns. Todavia, nota-se que houve uma publicização das águas na medida em que fora aumentando a sua importância e a necessidade de proteção do Estado. Conclui-se, portanto, que a Carta Magna de 1988 foi um marco neste processo de publicização, conforme destaca o ilustre Prof. Cid Tomanik Pompeu: "a Constituição Federal de 1988 estabelece que, praticamente, todas as águas são públicas, do domínio da União, dos Estados e, por extensão e analogia, do Distrito Federal". "Pelos termos empregados na Carta Magna, deixaram de existir, em tese, as águas comuns, as municipais e as particulares, previstas no Código de Águas". (4)

Seguem as disposições constitucionais:

Art. 20. São bens da União:

(...)

III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais;

(...)

VI - o mar territorial;

(...).

Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados:

I - as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União;

(...).

Posteriormente, com a publicação da lei 9.433/97, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, não paira qualquer dúvida acerca da caracterização da água como bem público, pois, dispõe seu art. 1º, I, "a água é um bem de domínio público".

A classificação da água como bem público garante a todos os indivíduos o direito a ter acesso à água, o que nos conduz, imediatamente, a um outro tema jurídico relevante: o dos serviços públicos e dos serviços públicos essenciais.

Dispõe o art. 175, caput, da Constituição Federal vigente:

Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Conceituar serviço público é bastante difícil, havendo grandes divergências doutrinárias, destacando o Prof. Carlos Ari Sundfeld (5): "Por múltiplas razões as normas centralizam certas atividades nas mãos do Estado, definindo-as como serviços públicos: para ordenar o aproveitamento de recursos finitos (como os hidroelétricos), controlar a utilização de materiais perigosos (como os potenciais nucleares), favorecer o rápido desenvolvimento nacional, realizar a justiça social, manter a unidade do país e assim por diante".(grifo nosso)

Segundo a Profa. Dinorá Adelaide Musseti Grotti (6): "A qualificação de uma dada atividade como serviço público remete ao plano da escolha política, que pode estar fixada na Constituição do país, na lei, na jurisprudência e nos costumes vigentes em um dado momento. Deflui-se, portanto, que não há serviço público por natureza".

Serviço público, na definição do ilustre Prof.Celso Antônio Bandeira de Mello (7), "é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais -, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo".

No Brasil, o serviço de abastecimento de água é tido como serviço público e, mais que isso, como serviço público essencial, posto que, conforme já ressaltado, correlaciona-se com os direitos à vida, saúde e dignidade da pessoal humana, garantidos constitucionalmente.

A lei 7783/1989, chamada Lei de Greve, definiu em seu artigo 11, parágrafo único, o que é serviço público essencial e em seu art. 10 elencou os serviços ou atividades considerados essencias, dentre os quais destaca-se o tratamento e abastecimento de água, nos termos do inciso I de referido artigo, que assim dispõe:

"Art. 10 São considerados serviços ou atividades essenciais:

I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;

(...)"

Qualificar o serviço de abastecimento de água como tal implica em aplicar a ele todo o regime jurídico próprio dos serviços públicos, com os princípios que lhe são inerentes tais como continuidade, igualdade, eficiência, regularidade, adequação, universalidade, modicidade, segurança etc.

Neste aspecto, o Código de Defesa do Consumidor – Lei Federal nº 8.078/90, art. 6º, X, garante como direito básico do consumidor a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral e dispondo em seu art. 22:

"Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos."

Em resumo, temos que a água é bem público, o que dá a todos o direito ao seu uso; o fornecimento de água correlaciona-se a direitos fundamentais garantidos constitucionalmente e é caracterizado como serviço público essencial, por conseqüência, conforme assevera o Código de Defesa do Consumidor, deve ser contínuo.

Neste momento, é oportuno ressaltar que a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos serviços públicos não é pacífica, havendo divergências em razão do disposto no art. 37, § 3º, I da Constituição Federal segundo a qual a lei regulará o direito dos usuários dos serviços públicos, o que dá margem para que alguns doutrinadores afirmem que não se aplica a referidos usuários o Código de Defesa do Consumidor, devendo ser criado, por lei, nos termos da disposição constitucional um "Código de defesa dos usuários do serviço público".

Mas, voltando às explanações acerca da classificação do serviço de fornecimento de água como serviço público essencial, chega-se à discussão acerca da possibilidade ou não do corte de água quando do não pagamento do serviço pelo usuário, havendo jurisprudência em ambos os sentidos, uns pela impossibilidade do corte de água por tratar-se de serviço público essencial e, por isso, contínuo, devendo o Estado ou a concessionária do serviço adotar os meios adequados para a cobrança da dívida; por outro lado, há acórdãos admitindo a suspensão do serviço, uma vez que tal serviço só está à disposição do usuário mediante contraprestação pecuniária, baseando-se, ainda, no art.6º, § 3º, da lei nº 8.987/95, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos :

"Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.

(...)

§ 3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:

(...)

II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade."

Não obstante tais divergências, destaca-se posicionamento bastante recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a favor da suspensão de serviços públicos essenciais quando da inadimplência dos usuários, conforme acórdãos que seguem:

Acórdão RESP 525500 / AL ; RECURSO ESPECIAL 2003/0048286-1 - DJ DATA:10/05/2004 PG:00235 – Relator Min. ELIANA CALMON (1114) - Data da Decisão 16/12/2003 - Orgão Julgador T2 - SEGUNDA TURMA

Ementa: ADMINISTRATIVO - SERVIÇO PÚBLICO - CONCEDIDO - ENERGIA ELÉTRICA - INADIMPLÊNCIA.

1. Os serviços públicos podem ser próprios e gerais, sem possibilidade de identificação dos destinatários. São financiados pelos tributos e prestados pelo próprio Estado, tais como segurança pública, saúde, educação, etc. Podem ser também impróprios e individuais, com destinatários determinados ou determináveis. Neste caso, têm uso específico e mensurável, tais como os serviços de telefone, água e energia elétrica.

2. Os serviços públicos impróprios podem ser prestados por órgãos da administração pública indireta ou, modernamente, por delegação, como previsto na CF (art. 175). São regulados pela Lei 8.987/95, que dispõe sobre a concessão e permissão dos serviços público.

3. Os serviços prestados por concessionárias são remunerados por tarifa, sendo facultativa a sua utilização, que é regida pelo CDC, o que a diferencia da taxa, esta, remuneração do serviço público próprio.

4. Os serviços públicos essenciais, remunerados por tarifa, porque prestados por concessionárias do serviço, podem sofrer interrupção quando há inadimplência, como previsto no art. 6º, § 3º, II, da Lei 8.987/95, Exige-se, entretanto, que a interrupção seja antecedida por aviso, existindo na Lei 9.427/97, que criou a ANEEL, idêntica previsão.

5. A continuidade do serviço, sem o efetivo pagamento, quebra o princípio da igualdade da partes e ocasiona o enriquecimento sem causa, repudiado pelo Direito (arts. 42 e 71 do CDC, em interpretação conjunta).

6. Recurso especial provido.

Decisão

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da SEGUNDA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conhecer do recurso e lhe dar provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Franciulli Netto, João Otávio de Noronha e Castro Meira votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Francisco Peçanha Martins.

Resumo Estruturado

POSSIBILIDADE, CONCESSIONARIA, SERVIÇO PUBLICO, INTERRUPÇÃO, FORNECIMENTO, ENERGIA ELETRICA, HIPOTESE, CONSUMIDOR, PERMANENCIA, INADIMPLENTE, POSTERIORIDADE, NOTIFICAÇÃO PREVIA, USUARIO, EXISTENCIA, PREVISÃO EXPRESSA, LEI FEDERAL, 1995, AUTORIZAÇÃO, SUSPENSÃO, SERVIÇO PUBLICO, NECESSIDADE, GARANTIA, CONCESSIONARIA, RETORNO, INVESTIMENTO FINANCEIRO, NECESSIDADE, AFASTAMENTO, ENRIQUECIMENTO ILICITO, USUARIO, PRESERVAÇÃO, EQUILIBRIO ECONOMICO-FINANCEIRO, RELAÇÃO JURIDICA, CONCESSIONARIA, CONSUMIDOR

Acórdão AGA 497589 / SP ; AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 2002/0171459-0 Fonte DJ DATA:03/05/2004 PG:00128 Relator Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA (1123) Data da Decisão 06/04/2004 Orgão Julgador T2 - SEGUNDA TURMA

Ementa: ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. CONSUMIDOR INADIMPLENTE. SUSPENSÃO DO SERVIÇO. PREVISÃO LEGAL. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.

1. A interrupção no fornecimento de energia elétrica ao consumidor inadimplente realizada na forma do art. 6º, § 3º, II, da Lei n. 8.987/95 não configura descontinuidade na prestação do serviço para fins de aplicação dos arts. 22 e 42 do CDC.

2. Destoa do arcabouço lógico-jurídico que informa o princípio da proporcionalidade o entendimento que, a pretexto de resguardar os interesses do usuário inadimplente, cria embaraços às ações implementadas pela fornecedora de energia elétrica com o propósito de favorecer o recebimento de seus créditos, prejudicando, em maior escala, aqueles que pagam em dia as suas obrigações.

3. Se a empresa deixa de ser, devida e tempestivamente, ressarcida dos custos inerentes às suas atividades, não há como fazer com que os serviços permaneçam sendo prestados com o mesmo padrão de qualidade. Tal desequilíbrio, uma vez instaurado, vai refletir, diretamente, na impossibilidade prática de observância do princípio expresso no art. 22, caput, do Código de Defesa do Consumidor.

4. Agravo regimental provido para conhecer do agravo de instrumento e dar provimento ao recurso especial.

Decisão

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da SEGUNDA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento ao agravo regimental para conhecer do agravo de instrumento e dar provimento ao recurso especial nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Castro Meira, Francisco Peçanha Martins e Eliana Calmon votaram com o Sr. Ministro Relator.

Ausente justificadamente o Sr. Ministro Franciulli Netto.

Presidiu o julgamento o Sr. Ministro João Otávio de Noronha.

Resumo Estruturado

LEGALIDADE, CONCESSIONARIA, SERVIÇO PUBLICO, INTERRUPÇÃO, FORNECIMENTO, ENERGIA ELETRICA, HIPOTESE, CONSUMIDOR, PERMANENCIA, INADIMPLENTE, POSTERIORIDADE, NOTIFICAÇÃO, USUARIO, DECORRENCIA, PREVISÃO EXPRESSA, LEI FEDERAL, 1995, REGULAMENTAÇÃO, CONCESSÃO DE SERVIÇO PUBLICO, CARACTERIZAÇÃO, CONTINUIDADE, PRESTAÇÃO DE SERVIÇO, SERVIÇO ESSENCIAL, AFASTAMENTO, CODIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, OBSERVANCIA, PRINCIPIO DA PROPORCIONALIDADE.

Neste cenário de grandes discussões jurídicas surgem os novos sistemas de utilização e controle de uso da água, intensificando os debates jurídicos e sociais em torno do novo modelo que ora será apresentado, sob a argumentação de que aumentará a exclusão do acesso à água e caracterizará sua mercantilização.


4. O modelo pré-pago de utilização da água

4.1. Aspectos gerais

O modelo, no caso da água, assemelha-se à forma de utilização dos telefones celulares pré-pagos, mas algo fundamental os diferencia: o serviço que está sendo oferecido através do cartão de pré-pagamento. Não há grandes problemas se, esgotados os créditos de um telefone celular, a pessoa ficar sem o direito de realizar ligações, porém, findos os créditos do cartão pré-pago de acesso à água, sem recarga por falta de condições financeiras para compra de um novo cartão, por exemplo, o abastecimento é interrompido e o indivíduo começa a adotar soluções alternativas e precárias para suprir a falta de água, como "roubar " água do vizinho ou procurar água gratuita em rios e lagos, na maior parte das vezes, poluídos por localizarem-se nos grandes centros urbanos, com graves reflexos na saúde pública. Tais problemas não existem em nenhum outro serviço em que este modelo possa vir a ser adotado, seja nos serviços de telefonia ou nos serviços de distribuição de energia elétrica, onde já se cogita a implantação de sistema similar.

O polêmico e recente sistema pré-pago de utilização da água, cujos testes iniciaram-se no Brasil em 2003, consiste numa tecnologia de medição eletrônica do consumo da água, carregada por cartões de valores diversos, que permitem a utilização de uma quantidade limitada de litros de água.

Do ponto de vista de medição, a grande diferença do sistema atual para o pré-pago é a substituição dos tradicionais hidrômetros – vulgarmente conhecidos como relógios de água – por um novo sistema composto de uma turbina acoplada a uma central eletrônica e um medidor eletrônico de consumo, que poderá fazer, via telefone, a transmissão dos dados para a companhia de abastecimento. O usuário compra o cartão nos pontos de venda pré-determinados, raspa uma tarja e digita no gerenciador um código numérico, quando, então, aparecerá no visor digital a quantidade de litros de água disponíveis para consumo.

Quando os créditos estão prestes a terminar, o usuário é avisado pelo gerenciador, e, esgotados os créditos, o fornecimento da água é suspenso até o reabastecimento com novos créditos. Porém, é possível ainda fazer, uma vez ao mês, um empréstimo, cujo valor será descontado do próximo cartão.

4.2. Histórico da implantação em outros países

O modelo pré-pago de acesso à água já foi utilizado no Reino Unido e na África do Sul, porém, sem muito sucesso, provavelmente devido a sua implantação direta, junto aos consumidores residenciais, sem nenhuma política estatal de subsídio para famílias carentes. Há formas de viabilizar a implantação do sistema pré-pago de acesso à água sem que tenhamos os mesmos problemas constatados nestes países, conforme se exporá em momento oportuno.

Em 1996, na Inglaterra, as companhias instalaram mais de 16 mil pré-pagos, ocasionando o aumento dos cortes de abastecimento de água devido ao término dos créditos dos cartões sem recarga. Na cidade de Birmingham houve 2.500 cortes em um mês, relacionados ao sistema pré-pago, um índice de cortes bastante alto para a cidade.

Por esta razão, foi contestada a legalidade dos aparelhos em Birmingham e em outras cidades, alegando-se, inclusive, o aumento dos casos de doenças relacionadas com falta de água devido aos cortes advindos do pré-pago. Situações como as ocorridas em Birmingham fizeram com que, em 1998, o modelo pré-pago de abastecimento de água foi proibido por lei e pela Justiça em todo o Reino Unido.

Também na África do Sul a experiência do pré-pago não foi boa, pois a água, antes de utilização livre, quando fora limitada pela necessidade do pré-pagamento, em muitas residências deixou de ser utilizada, por falta de condições financeiras para sua aquisição, ocasionando um aumento considerável de doenças causadas pela falta de água tratada, como a cólera, por exemplo.

Assim, após a implantação do pré-pago na província de KwaZula Natal, 113.966 pessoas foram infectadas pela cólera, das quais 259 morreram, entre agosto de 2000 e fevereiro de 2002, em contraposição a 78 casos de morte devido à cólera em duas décadas - 1980 a 2000. Além das pessoas atingidas pela cólera, também as que tinham AIDS, porção considerável da população africana, sofreram sobremaneira com a falta de água tratada.

4.3. Os testes do pré-pago no Brasil

No Brasil, existem três companhias de abastecimento de água realizando testes do sistema pré-pago de água, sendo que duas destas Companhias realizam os testes diretamente em residências – SANEATINS (Companhia de Saneamento de Tocantins) e SANEAGO (Saneamento de Goiás S.A.). A SABESP (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), por sua vez, preferiu a realização de testes preliminares em laboratório.

O sistema está sendo testado em 100 residências em Palmas-TO e a meta é que, até o final deste ano (2004), o sistema esteja implantado em mais de 10 mil lares. Há, inclusive, no site da Internet da SANEATINS (8) um ícone com os seguintes dizeres: "FATURAMENTO ELETRÔNICO – A melhor forma de gerenciar o seu consumo", e, ao acessá-lo, encontramos uma apresentação detalhada do sistema, mostrando os aparelhos utilizados e os cartões que estão à venda.

Também em Goiás, na cidade de Abadia de Goiás, o sistema está sendo testado pela SANEAGO em 800 domicílios, segundo reportagem publicada no jornal "Folha de São Paulo", em 16/03/2004, intitulada "Polêmico, sistema pré-pago de acesso à água começa no país".

4.4. A posição das companhias de saneamento

O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - IDEC publicou em seu site na Internet (9), no dia 15 de março de 2004, interessante reportagem intitulada "IDEC EM AÇÃO - Veja posição das companhias de saneamento brasileiras em relação ao sistema pré-pago", que passo a reproduzir pela adequação dos termos.

"O Idec, preocupado com a introdução do sistema no Brasil, em dezembro de 2003, encaminhou uma carta às 27 companhias de saneamento estaduais, à Associação de Serviços Municipais de Saneamento-ASSEMAE, à AESB – Associação das Empresas Estaduais de Saneamento Básico e a algumas empresas privadas municipais, expondo a sua posição e perguntando se estavam utilizando ou testando o pré-pago. Dez companhias estaduais, uma municipal, a AESBE e a ASSEMAE responderam, conforme tabela abaixo."

Posição das companhias de saneamento em relação ao pré-pago:

Empresa Estado Data Resposta Posição
CESAN E. Santo 2/3/04 Não está testando
CAGECE Ceará 17/2/04 Não está testando
CAGEPA Paraíba 16/2/04 Não está testando
SANEPAR Paraná 16/2/04 Não está testando e é contra o pré-pago
SANEATINS Tocantins 17/12/03 Está testando há 4 anos
SABESP São Paulo 8/01/04 Realizou testes em bancada
CAERD Rondônia 29/12/03 Não está testando e é contra o pré-pago
COPASA Minas Gerais 21/01/04 Não está testando
CAESA Amapá 20/02/04 Não está testando
SANEAGO Goiás sem resposta Está testando*
CEDAE Rio de Janeiro 11/03/04 Não está testando
CASAN Santa Catarina 17/02/04 Não possui nenhum estudo referente ao uso do sistema de cartão pré-pago
EMBASA Bahia 12/03/04 Não consta do seu planejamento o sistema pré-pago de cobrança para clientes residenciais
Águas de Paranaguá Paraná 04/03/04 Não programa implantar
AESBE Assoc. Emp. Est. San 04/03/04 Tem conhecimento que uma filiada está testando. Considera que ainda não há resultados que permitam a sua avaliação
ASSEMAE Assoc. Serviços Mun. de Saneamento 22/01/04 Contra o uso para consumidores residenciais

* Matéria da Gazeta Mercantil

Fonte: Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor

4.5. Aparentes vantagens e desvantagens do novo modelo

A SANEATINS, companhia de abastecimento de Tocantins, que testa o sistema pré-pago de acesso à água em residências há mais tempo no Brasil, elenca as seguintes vantagens a favor do novo modelo:

  • uso racional da água, com redução do consumo em 20%, segundo os testes realizados;
  • melhor relacionamento da empresa com o cliente;
  • diminuição dos custos e da inadimplência;
  • maior facilidade na detecção dos vazamentos, pois o usuário poderá a todo instante observar o consumo da água através do medidor eletrônico, controlando e evitando o desperdício;
  • redução das fraudes, também devido ao controle de consumo da água através do medidor eletrônico;
  • redução do volume de água consumido face a sua melhor utilização;
  • controle diário, pelo usuário, do volume de água gasto e quanto ainda tem para utilizar, possibilitando melhor planejamento do uso;
  • aquisição de água segundo a disponibilidade financeira, sem excessos;
  • eliminação da leitura, digitação e impressão de contas, conseqüentemente, eliminando erros que causam transtornos aos usuários;
  • eliminação da tarifa bancária;
  • eliminação da inadimplência.

Por outro lado, aqueles que são contra a implementação do sistema pré-pago de utilização da água contrapõem-se às vantagens acima, com os seguintes argumentos desfavoráveis ao novo modelo:

  • aumento dos cortes, devido à falta de condições financeiras para o pagamento antecipado;
  • mercantilização da água, que passa a ser tratada como mera mercadoria;
  • ofensa ao princípio da continuidade do serviço público, quando o abastecimento é interrompido por falta de recarga dos créditos;
  • ofensa à dignidade humana, submetendo o indivíduo a situações vexatórias, como pedir água emprestada para o vizinho;
  • diminuição da solidariedade na comunidade, aumentando os índices de criminalidade (furto de água);
  • aumento da exclusão dos que não tem acesso à água;
  • forma de coação indevida para pagamento e não educação para o consumo moderado;
  • o sistema favorece o aumento dos lucros das companhias;
  • diminuição dos postos de trabalho, pois haverá eliminação da leitura, digitação e impressão de contas;
  • aumento das doenças ocasionadas pelo falta de água e de saneamento básico.

Estes são os argumentos favoráveis e desfavoráveis ao sistema pré-pago de utilização da água, baseados na forma como o modelo vem sendo implantado para testes, ou seja, em residências, porém, ainda não se propôs nem tampouco houve estudos no Brasil sobre outras formas de implantação mais viáveis, notadamente de métodos de controle eletrônico de uso da água.


5. Apresentação de uma forma viável de implantação do sistema pré-pago de acesso à água e outros métodos eletrônicos de controle do uso da água

Analisando o grave problema da água, podemos notar a falta de conscientização das pessoas quanto ao seu uso racional e, ainda, o desconhecimento do problema, mesmo das pessoas com grau de instrução mais elevado.

Pôr em discussão este novo modelo de abastecimento de água é, no mínimo, começar uma maior conscientização das pessoas para o problema, tal como aconteceu com a questão do uso racional de recursos elétricos, advindo da preocupação com um eventual e eminente perigo de racionamento de energia elétrica, no evento historicamente denominado "Apagão", ocorrido em 2001..

Realmente, os serviços públicos, notadamente os essenciais como a água, devem, a princípio, ser contínuos. Porém, até onde chegaremos com o consumo desordenado de água e a impossibilidade de suspensão de abastecimento, mesmo nos casos de inadimplência? Argumentar-se-á que deverá a companhia de abastecimento usar os meios necessários para a cobrança da dívida do usuário, porém, se não houver condições financeiras sequer para o pagamento da água consumida, o que se dirá para o pagamento de uma execução por dívida? Neste caso, estar-se-ia propondo, ainda que indiretamente, a distribuição gratuita e ilimitada da água, o que não é nada razoável em face a sua escassez.

Por oportuno, convém destacar neste contexto um tema jurídico relevante - as políticas públicas. Segundo Maria Paula Dallari Bucci (10), políticas públicas "são programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados", ou seja, são planos de ação do Estado em conjunto com a iniciativa privada que visam a consecução do interesse público envolvido, daí o surgimento das chamadas Parcerias Público-Privadas (PPPs), projeto do governo federal que ainda está em trâmite no Congresso Nacional e que já foi implantado no Estado de Minas Gerais, e está atraindo grandes investimentos externos. Para especialistas (11), tais parcerias entre o Poder Público e a iniciativa privada na área de saneamento básico contribuirão para a universalização do serviço no Brasil.

A jurista Maria Paula Dallari Bucci (12) destaca como de exemplo de política pública já presente na legislação nacional, a Política Nacional de Recursos Hídricos, nos seguintes termos: "Vejamos alguns exemplos da diversidade de modos de referir-se à figura das políticas públicas. A lei que institui a Agência Nacional de Águas (ANA) incumbe-a de implementar a Política Nacional de Recursos Hídricos, baixada por outra lei, a Lei federal n. 9.433/97, embora com a criação da ANA a competência para formular a política na área tenha recaído sobre o Conselho Nacional de Recursos Hídricos".

O art. 1º da lei 9.984/2000, que criou a Agência Nacional de Águas – ANA, delegou a tal entidade a responsabilidade de implementar a Política Nacional de Recursos Hídricos, conforme se depreende da disposição literal do artigo:

"Art. 1º Esta lei cria a Agência Nacional de Águas – ANA, entidade federal de implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, integrante do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, estabelecendo regras para a sua atuação, sua estrutura administrativa e suas fontes de recursos."

Com relação à Política Nacional de Recursos Hídricos, seus objetivos e fundamentos, veja-se a lei 9.433/97 em seu nascedouro:

"Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos:

I - a água é um bem de domínio público;

II - a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico;

III - em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais;

IV - a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas;

V - a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos;

VI - a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades."

O art. 2º da mesma lei dispõe em seu inciso I:

"Art. 2º São objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos:

I - assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos;

(...)"

Nota-se que a lei dispôs expressamente que a água é recurso natural limitado, que deve ser assegurado à atual e às futuras gerações em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos. Para que esta Política Pública seja implementada com sucesso faz-se necessário, além da educação e conscientização da população acerca da urgência de se utilizar a água com racionalidade, o estudo e a implantação de métodos eficientes de utilização e controle da água, para que tais objetivos sejam atingidos.

Destaca Maria Paula Dallari Bucci (13): "Uma política é pública quando contempla os interesses públicos, isto é, da coletividade – não como fórmula justificadora do cuidado diferenciado com interesses particulares ou do descuido indiferenciado de interesses que merecem proteção – mas como realização desejada pela sociedade. Mas uma política pública também deve ser expressão de um processo público, no sentido de abertura à participação de todos os interessados, diretos e indiretos, para a manifestação clara e transparente das posições em jogo. (...) O sucesso da política pública, qualquer que seja ela, está relacionado com essa qualidade do processo administrativo que precede a sua realização e que a implementa. As informações sobre a realidade a transformar, a capacitação técnica e a vinculação profissional dos servidores públicos, a disciplina dos serviços públicos, enfim, a solução dos problemas inseridos no processo administrativo, com o sentido lato emprestado à expressão pelo direito americano, determinarão, no plano concreto, os resultados da política pública como instrumento de desenvolvimento".(grifo nosso)

Com base no exposto acima é que apresenta-se neste trabalho uma forma viável de implantação do sistema pré-pago de acesso à água e outros métodos eletrônicos de controle do uso da água. A princípio, há concretas possibilidades de viabilização da adoção do sistema pré-pago, ou de sistemas de controle eletrônico similares de abastecimento de água para grandes consumidores industriais e comerciais, pois além de consumirem grande volume de água, têm condições financeiras para o pagamento antecipado do serviço e, caso não efetue a recarga, não serão causados, diretamente, danos à saúde pública e nem tampouco será atingida frontalmente a dignidade da pessoa humana. Ademais, haverá maior preocupação das grandes indústrias em utilizar a água somente se necessário e na quantidade necessária.

Quanto aos consumidores residenciais, poder-se-ia implantar um sistema facultativo, onde haveria optantes e não-optantes pelo modelo pré-pago, sendo que, para os primeiros poder-se-ia instituir tarifas menores em contrapartida ao pagamento antecipado.

Ainda no que tange aos consumidores residenciais, mais especificamente os de baixa renda, que não possuem condições financeiras para pagar pelo abastecimento de água, qualquer que seja o modelo, poderia haver subsídio governamental, através de distribuição gratuita de cartões pré-pagos de acesso à água para famílias carentes ou ainda através de sua inclusão no Bolsa Família - programa unificado do Governo Federal de complementação de renda para famílias carentes, que garante o repasse de renda associado ao acesso aos serviços públicos básicos. O Bolsa Família unificou todos outros programas sociais, antes independentes, como o auxílio gás, bolsa escola, bolsa alimentação. etc.

Não há possibilidade de implementação de política pública de subsídio da água para famílias carentes no atual modelo de abastecimento, sem que se distribua água de forma ilimitada, o que é totalmente inaceitável frente à escassez de água doce no planeta. Com o modelo pré-pago de acesso à água é possível implementar tais políticas públicas, através de inclusão no programa Bolsa Família de uma quantidade de créditos para cada família beneficiária do programa que lhe permita utilização gratuita de uma quantidade pré-estabelecida de água por mês, de forma a lhe garantir um patamar mínimo de dignidade.

A água não pode mais ser tratada como um recurso infinito. Desde 1916, com a edição do Código Civil que vigorou no Brasil até 2002, devido à escassez da água tratada, permitiu-se a sua cobrança, também o Código de Águas, Decreto –lei 24.642/34, estabeleceu que o uso comum das águas pode ser gratuito ou retribuído. Em 1981, a Lei 6938/81, que instituiu a Política Nacional de Meio Ambiente, possibilitou a cobrança do usuário pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos; até que, em 1997, a Lei que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Lei 9433/97) definiu a cobrança pelo uso dos recursos hídricos como instrumento de gestão. Por fim, com a publicação da Lei 9984/2000, que criou a ANA - Agência Nacional de Águas, atribuiu-se à referida Agência a competência para implementar, em articulação com os Comitês de Bacia Hidrográfica, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos de domínio da União.

Conforme constatação da Agência Nacional de Águas (14): "A experiência em outros países mostra que, em bacias que utilizam a cobrança, os indivíduos e firmas poluidores reagem internalizando custos associados à poluição ou outro uso da água. A cobrança pelo uso de recursos hídricos, mais do que instrumento para gerar receita, é indutora de mudanças pela economia da água, pela redução de perdas, pela gestão com justiça ambiental. Isso porque cobra-se de quem usa ou polui"(grifo nosso).

Nota-se que um importante passo foi dado para a racionalização do uso da água desde a permissão para a cobrança desse recurso ambiental, em 1916, até sua definição como instrumento de gestão, em 1997. Hoje, devido ao crescimento populacional e a diminuição da disponibilidade da água, este instrumento já não é mais suficiente, sendo necessária a adoção de um novo paradigma de gestão dos recursos hídricos, de forma a possibilitar o desenvolvimento sustentável.

Este novo paradigma passa pelo controle eletrônico do uso da água, cujo maior expoente é o sistema pré-pago. Urge ressaltar que a análise acerca do assunto não pode ser superficial. Frente ao perigo premente de extinção dos recursos hídricos de fácil acesso, faz-se necessária a intensificação dos estudos sobre mecanismos de medição e controle de uso alternativos, com total imparcialidade, frente ao atual modelo, como forma de racionalização do uso da água e conscientização da população acerca desta séria questão, não atendo-se apenas a encarar o problema somente em face do direito do consumidor.

Um sistema de medição de água, como o pré-pago, enquadra-se perfeitamente nos projetos dos Planos de Recursos Hídricos previstos no art. 7º da Lei 9433/97, não havendo óbice jurídico a sua implantação, vejamos a disposição de referido artigo:

"Art. 7º Os Planos de Recursos Hídricos são planos de longo prazo, com horizonte de planejamento compatível com o período de implantação de seus programas e projetos e terão o seguinte conteúdo mínimo:

I - diagnóstico da situação atual dos recursos hídricos;

II - análise de alternativas de crescimento demográfico, de evolução de atividades produtivas e de modificações dos padrões de ocupação do solo;

III - balanço entre disponibilidades e demandas futuras dos recursos hídricos, em quantidade e qualidade, com identificação de conflitos potenciais;

IV - metas de racionalização de uso, aumento da quantidade e melhoria da qualidade dos recursos hídricos disponíveis;

V - medidas a serem tomadas, programas a serem desenvolvidos e projetos a serem implantados, para o atendimento das metas previstas;

VI - (VETADO)

VII - (VETADO)

VIII - prioridades para outorga de direitos de uso de recursos hídricos;

IX - diretrizes e critérios para a cobrança pelo uso dos recursos hídricos;

X - propostas para a criação de áreas sujeitas a restrição de uso, com vistas à proteção dos recursos hídricos."

Não se quer aqui defender interesses econômicos das companhias de abastecimento, mas tão somente estudar o problema por todos os ângulos, em busca da melhor solução, afinal a Constituição Federal assegura a todos existência digna, observada a defesa do meio ambiente, nos termos do art. 170:

"Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...)

VI - defesa do meio ambiente;

(...)"

Analisando, uma vez mais pelo aspecto constitucional, podemos aplicar os princípios basilares da razoabilidade e da proporcionalidade, pois diante de tão grave problema do uso desordenado da água, que em última instância é um problema de sobrevivência, é razoável que se limite e restrinja o uso da água, em prol do bem maior da vida.

Os recursos hídricos vêm sendo degradados pelo homem em grande velocidade devido à chamada "cultura de abundância", por tudo isso, faz-se necessária uma análise crítica sobre o sistema que ora nos é apresentado. Precisamos, urgentemente, criar uma nova cultura com relação ao uso da água para que possamos garantir a nossa sobrevivência e das gerações futuras.


6. Conclusão

Em suma, é muito importante tomar conhecimento do relevante e preocupante problema da escassez da água doce, por isso, foram apresentados vários dados estatísticos no início deste trabalho, para tomá-los como premissa para o estudo da viabilidade do sistema pré-pago de utilização da água e outros métodos eletrônicos de controle do uso da água

Foram apresentados argumentos favoráveis e desfavoráveis ao sistema pré-pago, baseados na forma implantada para testes no Brasil e, posteriormente, apresentada uma proposta de implantação que, de modo particular, entendo viável.

O assunto, apesar de bastante polêmico, é de fundamental importância. Por este motivo, faz-se necessária uma análise crítica do tema, sem pré-conceitos e posturas demasiadamente rígidas, pois, como tão bem lembrou o ilustre Professor Paulo Modesto (15): "Dos juristas se espera um discurso que favoreça a decidibilidade dos conflitos jurídicos; não se espera o impasse e a desesperança".

É certo que uma ampla discussão, envolvendo a sociedade civil, a iniciativa privada e o governo, em todas as suas esferas, não tardará. Tal discussão tem importância fundamental para a definição dos rumos quanto às formas de controle de uso da água; o que poderá, ou não, contemplar a utilização do modelo pré-pago. Espera-se, portanto, que, seja qual for a decisão final tomada, o seja com observância dos direitos constitucionais dos cidadãos e, sobretudo, com vistas à solução do tão grave problema da água no Brasil.

O mundo clama por um desenvolvimento sustentável, evitando-se o esgotamento dos recursos naturais ainda existentes e, para isso, novos modelos de gestão dos recursos hídricos deverão ser desenvolvidos, ainda que não seja o sistema pré-pago o melhor modelo, outros hão de surgir e caberá aos juristas e operadores do direito a análise de tais modelos de forma crítica e à luz da legislação do país onde será implementado o sistema, para que não fira direitos dos cidadãos, mas ao mesmo tempo, contribua para a preservação deste tão valioso patrimônio da humanidade.


Notas

  1. <www.uniagua.org.br>. Acesso em: 30.abril.2004.
  2. <www.uniagua.org.br>. Acesso em: 30.abril.2004.
  3. <www.idec.org.br>. Acesso em: 30.abril.2004.
  4. POMPEU, Cid Tomanik, in Aspectos jurídicos da cobrança pela utilização dos recursos hídricos, citado por Maria Luiza Machado Granziera, Direito de Águas. São Paulo. Editora Atlas S.A. – 2001, p.91.
  5. SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. São Paulo. Malheiros Editores – 1992. P.82.
  6. GROTTI, Dinorá A. Mussetti. Teoria dos Serviços Públicos e sua Transformação. Direito Administrativo Econômico. Coor. Carlos Ari Sundfeld. 1ª.ed..2ª tiragem. São Paulo. Malheiros Editores – 2002. P.45.
  7. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 14ª edição, refundida, ampliada e atualizada até a Emenda Constitucional 35, de 20.12.2001. São Paulo. Malheiros Editores – 2002. P. 600.
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  9. <www.idec.org.br/paginas/emacao.asp?id=596>. Acesso em: 30.abril.2004.
  10. BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo. Editora Saraiva – 2002. P.241.
  11. Antonio Corrêa Meyer e José Virgílio Lopes Enei: Advogados e sócios do Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados. Publicado no Jornal `Valor Econômico`, Caderno E2, São Paulo, SP em 27.04.2004.
  12. Obra citada, P. 257.
  13. Obra citada. P. 269.
  14. <www.ana.gov.br>. Acesso em: 30.abril.2004.
  15. MODESTO, Paulo. Agências executivas: a organização administrativa entre o casuísmo e a padronização. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. I, nº. 6, setembro, 2001. Disponível em: <www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 30 de abril de 2004.

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Autor


Informações sobre o texto

Texto publicado anteriormente na Revista Zênite IDAF Informativo de Direito Administrativo e Lei de Responsabilidade Fiscal (ano IV, nº 37, Agosto 2004/2005, pp. 17 a 29).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMARGO, Adriana Custódio Xavier de. O sistema pré-pago de utilização da água e outros métodos eletrônicos de controle de uso da água. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 623, 23 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6505. Acesso em: 26 abr. 2024.