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Refutando os três principais fundamentos da tese da legalidade da execução provisória

Refutando os três principais fundamentos da tese da legalidade da execução provisória

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Análise dos 3 principais argumentos em favor da execução provisória: 1 - A presunção de inocência não se esgota no 2º grau; 2 - As prisões cautelares não se contrapõem à presunção de inocência; 3 - O texto constitucional assegura a prisão só após o trânsito em julgado.

A jurisprudência do STF que autoriza a execução provisória é defensiva. Busca reduzir o número de recursos perante aquela Corte. Diminuir o risco de prescrição. Em última análise, diante da impossibilidade física de dar conta da quantidade de processos, os direitos das partes são subtraídos. O início do cumprimento da pena, ao esgotarem os recursos perante a 2ª instância, é uma das maneiras de reduzir o número de recursos. Outras vêm sendo criadas, especialmente obstáculos artificiais diversos ao conhecimento de recursos, ao habeas corpus e ao mandado de segurança. Problemas que deveriam ser resolvidos ou com projetos de gestão, ou com alterações que competem ao Poder Legislativo, quem sabe aumentando o número de Ministros, não com subtração de direitos.

Dentre os argumentos que há em favor da execução provisória, três merecem destaque. São eles: 1 – a presunção de inocência se esgota no 2º grau; 2 - a constitucionalidade das prisões cautelares confirma que a presunção de inocência é uma garantia relativa; 3 - o texto constitucional não assegura prisão só após o trânsito em julgado.

Tem-se afirmado que não há exame de prova nos Tribunais Superiores (o que é discutível) e, por consequência, a presunção de inocência se esgota no julgamento do 2º grau. Logo, o artigo 5º, inciso LVII, da CF, do qual decorre o princípio da presunção de inocência - “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”-, só se aplica no curso do processo penal até o julgamento dos tribunais de 2ª instância.

O argumento é inteligente, criativo, mas incompleto, pois revela a apenas metade do contido no artigo 5º, inciso LVII, da CF. Desta regra constitucional, além do princípio que regulamenta a avaliação de provas, o “in dubio pro reo”, origina-se outro que atua sobre a interpretação de normas, o irmão mais discreto, menos conhecido, o princípio do “favor rei”. Segundo o tratadista italiano Giovanni Leone, “é princípio em virtude do qual todos os instrumentos processuais devem tender para a declaração de certeza da não responsabilidade do acusado” (LEONE, Giovanni. Tratado de derecho procesal penal. Buenos Aires, Jurídicas Europa-América, 1963, v. I, p. 188). Diz respeito a uma posição de mérito em relação à notícia do crime. É que o sistema processual penal, a ordem processual, o processo penal, todo ele, é uma ordem de garantia da liberdade, e, por lógica consequência, e, também, por derivação do comando constitucional (5º, inciso LVII, da CF), havendo duas, três, ou mais interpretações possíveis, o juiz deve optar pela norma que for mais favorável a acusado.

Os Tribunais Superiores não precisam avaliar provas para absolver com base no artigo 5º, inciso LVII. Damos exemplo. Levando em consideração o fato narrado no acórdão tido como verdadeiro e que resultou na condenação, o STF, dando nova interpretação a esse fato a luz do direito objetivo, e com fundamento no princípio do favor rei, pode considerá-lo ou atípico, ou não antijurídico, ou não culpável, e absolver o acusado. Tudo só sem mover uma folha sequer do processo. Só com a leitura do acórdão. Vale dizer, sem qualquer exame de prova.

A propósito, como é mesmo essa conversa de que a presunção de inocência se esgota na 2ª instância porque não se aplica o princípio inserto no artigo 5º, inciso LVII, da CF nas instâncias Superiores? E se as leis são interpretadas favoravelmente ao acusado em todas instâncias, como sustentar que a presunção de inocência não se aplica em todas instâncias? Pois bem, vamos em frente.

Outro argumento utilizado para justificar a execução provisória é a constitucionalidade das prisões cautelares (flagrante, temporária e preventiva), ou seja, é o argumento alhos com bugalhos, pois mistura institutos, quando um não tem nada a ver com o outro, embora possam ser semelhantes. A presunção de inocência não desampara o preso cautelarmente, seja em flagrante, seja temporária, seja preventivamente. Preso sob qualquer uma dessas cautelares, seu processo, e especialmente a avaliação das provas, perseguirá integralmente informada pela presunção da inocência, inclusive nas etapas de  decisórias. Imagine-se um processo, dois acusados, um preso preventivamente, outro respondendo solto. A prisão preventiva se deu ou para garantia da ordem pública, ou por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, pouco importa qual desses motivos. Ao avaliar a prova para fins de sentenciar, haverá alguma razão para aplicar a regra da presunção de inocência somente em favor daquele que não esteve preso preventivamente? Evidentemente, não. Ser culpado não é pressuposto do decreto da preventiva.

As prisões provisórias não excepcionam o artigo 5º, inciso LVII, da CF. Referido dispositivo constitucional diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Ora, para impor prisão em flagrante, prisão temporária e prisão preventiva, qualquer uma delas, não é necessário considerar o indiciado/acusado culpado. Para o flagrante é preciso que esteja em estado de flagrância delitual, o que não significa que seja culpado, pois que flagrância delitual não passa de uma fotografia da tipicidade, apenas um dos elementos do delito.

Para a prisão preventiva é necessário prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria, o que, técnica e logicamente, representa uma longa distância até a considerar-se culpado o autor. A temporária exige qualquer prova admitida na legislação penal de autoria ou participação em determinados delitos, ou seja, culpado, longe ainda, também. Execução de pena, alhos. Prisão cautelar, bugalhos. Execução de pena pressupõe que aquele que a cumpre seja culpado. Prisão cautelar, não. Prisão cautelar pode ser imposta a inocente.

O antigo paradoxo doutrinário presunção de inocência/prisão cautelar é um falso paradoxo. Se colocarmos a transitar, em uma via, o acusado, a segurança jurídica, a prisão cautelar e presunção de inocência, concluiremos que vão todas na mesma direção. Ninguém vem no contrafluxo. O acusado preso preventivamente está sendo transportado pela preventiva, que é empurrada pela segurança jurídica, e, ao lado, é acompanhado pela presunção de inocência. Por razões de estrita necessidade, a segurança jurídica e a preventiva limitam sua liberdade, sem jamais considerá-lo culpado. Nessa via, nesse procedimento, sempre que se faz necessário avaliar provas, a presunção de inocência, acompanhando de perto ao lado, intransigente, se apresenta e exerce sua função. E assim vão. Os quatro. Todos no mesmo sentido. Até o final da via. Até o final do processo.

Afirma-se que o texto constitucional não assegura que a prisão só pode ter início após o trânsito em julgado. O artigo 283 do CPP o faz de maneira clara: “Ninguém poderá ser preso senão (...) por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado (...).” É verdade que a CF não seja expressa para vedar a prisão antes do trânsito em julgado. Veja-se: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Todavia, inequivocamente, é o seu significado. Há a proibição constitucional de que alguém seja considerado culpado antes do trânsito em julgado da condenação. Somente o culpado pode ser executado, pois que repugna à ordem jurídica a ideia de que o inocente possa cumprir pena. A submissão daquele que não foi considerado culpado por decisão transitada em julgado à execução provisória é a aplicação do dispositivo constitucional lido pelo lado avesso: “Ninguém será considerado inocente até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, e, nesse caso, sim, fica autorizada execução da pena sem condenação definitiva.

O sistema vigente poderia ser diferente, como o foi no passado, se não houvesse a garantia constitucional, e o CPP autorizasse o início de cumprimento de pena diante do esgotamento dos recursos em 2ª instância.  Entretanto, não foi essa a opção constitucional. Há cláusula constitucional, e reforçada por lei federal expressa. Fraudar isso é se disfarçar de legislador. Pior, de constituinte. Muito pior, burlando cláusula pétrea.

Alguns dispositivos da Constituição Federal são cláusulas de pedra, são duras, impermeáveis, consistentes, não se amoldam, inflexíveis, imutáveis, inalteráveis, não podem ser abolidas. Pétreas, são chamadas. Só podem ser interpretadas de maneira estrita.

Não podem ser objeto de Proposta de Emenda (PEC). Não podem ser violadas por iniciativa de qualquer um dos Poderes, pois que objetivam dar estabilidade à nação. A proibição do reconhecimento de culpa antes da prisão (estatuída no artigo 5º da CF entre os direitos e garantias fundamentais) é uma cláusula pétrea, posto que o artigo 60, § 4º, inciso IV, vedou que seja objeto de deliberação a emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais. Sendo cláusula pétrea não há como relativizar seu valor. Introduzir segurança jurídica, para colocar aquele que não foi reconhecido culpado a cumprir pena antes do trânsito em julgado, só se for a mão armada, já que caracterizaria uma intervenção arbitrária.

Por derradeiro, ficam registradas duas curiosidades. Iniciada a execução provisória da pena na segunda instância, e cumprida toda a pena antes que o recurso da defesa seja julgado, qual o nome se dará à liberdade? Liberdade “provisória”? Certo. Sabemos. Definitiva. Mas dúvida não há que o inocente/culpado possui o direito a que seu recurso seja julgado, pois que não lhe pode ser retirado o direito a uma justa indenização no caso de erro judiciário. E erro grave, já que se trata de cumprimento de pena integral por inocente, algo bem distinto de dar liberdade a quem estava preso preventivamente e foi absolvido. A segunda curiosidade diz respeito a quando, no mesmo caso anterior, sendo da acusação o recurso para aumentar a pena, qual o nome se dará a liberdade? Liberdade provisória condicional? Passaremos, então, a ter duas figuras de execução penal com nomes semelhantes, o livramento condicional, uma interrupção da execução, e a liberdade condicional, que poderá se transformar naquilo que poderá ser chamado de uma interrupção da liberdade, a qual se verificará quando o acusado já estiver solto por ter cumprido toda a pena, e o recurso da acusação for provido, havendo novo saldo de pena a ser cumprido.

Melhor refletindo, o direito processual deverá criar um capítulo para tratar especificamente da fase seguinte à execução, a qual ficará condicionada a resultados recursais. E, criando direito, vamos criando novos institutos. São os riscos de legislar com a jurisdição.

Diante de tantas idas e vindas em torno da execução provisória, a impressão que dá é que todos esqueceram que existe a prisão preventiva, a qual possui larga vantagem em relação à execução provisória,  podendo ser aplicada desde a fase do inquérito policial. Presentes seus requisitos (garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria), o indiciado/acusado pode responder todo o processo, de seu início a seu final, preso, seja culpado ou inocente.


Autor

  • Flavio Meirelles Medeiros

    Flavio Meirelles Medeiros

    Autor da obra Código de Processo Penal Comentado: https://flaviomeirellesmedeiros.com.br/

    formou-se Bacharel em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1982. Durante o curso universitário foi Chefe do Departamento de Direito Penal do SAJUG e Monitor da Cadeira de Processo Penal. Foi professor na Faculdade de Direito da Pontifície Universidade Católica e na Faculdade de Direito da UNISINOS, sendo que na primeira exercia o cargo de Advogado-Instrutor do Serviço de Assistência Judiciária Gratuita e na segunda lecionou na Cadeira de Processo Penal. Foi Diretor Adjunto do Departamento de Direito Penal do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, Membro da Comissão de Direito Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Membro da Comissão de Defesa e Assistência da Ordem dos Advogados do Brasil e Assessor Jurídico do Procurador-Chefe da República no Rio Grande do Sul . É Membro Efetivo do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul desde 1983. Advogado desde o ano de 1982. Publicações (livros): - Nulidades do Processo Penal Editora Síntese 1982 - Princípios de Direito Processual Penal Editora Ciências Jurídicas 1984 - Noções Iniciais de Direito Processual Penal Editora Ciências Jur¡dicas 1984 - Primeiras Linhas de Processo Penal Editora Ciências Jurídicas 1985 - Manual do Processo Penal Editora Aide 1985 - Empréstimos de Custeio e Investimento Agrícola Editora Livraria do Advogado 1991 - Do Inquérito Policial Editora Livraria do Advogado 1994 - Da Ação Penal Editora Livraria do Advogado 1995 - Publicações (Artigos doutrinários): Princípios de Direito Processual Penal. Noções Direito & Justiça 1983 - A Relação Jurídica Processual e Temas Afins Direito & Justiça 1984 - Dificuldade de Atuação dos Limites Jurídicos a Livre Convicção. Revista dos Tribunais 1994 - vol. 710

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, Flavio Meirelles. Refutando os três principais fundamentos da tese da legalidade da execução provisória. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5409, 23 abr. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65313. Acesso em: 19 abr. 2024.