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Discriminação racial, desigualdade social e possíveis equívocos na ação afirmativa brasileira: análise crítica do pensamento de Carlos Alfredo Hasenbalg

Discriminação racial, desigualdade social e possíveis equívocos na ação afirmativa brasileira: análise crítica do pensamento de Carlos Alfredo Hasenbalg

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Analisa-se, de forma crítica, o pensamento de Carlos Alfredo Hasenbalg sobre discriminação racial, estratificação e mobilidade social, para concluir, de forma pragmática, quanto à existência de equívocos na política de cotas com base em raça no Brasil

Introdução

O livro “Discriminação e desigualdades raciais no Brasil”, do sociólogo argentino Carlos Alfredo Hasenbalg, editado no final da década de 70, constitui uma obra referencial no que pertine a explicar a relação causal existente entre escravismo e relações raciais no Brasil após a abolição.

A indagação crucial é quanto a saber se o escravismo produziu, de forma permanente, um conjunto de características sociais, psicológicas e culturais nos negros após a sua emancipação como cidadãos livres.

O autor também reflete sobre a influência da discriminação racial sobre a atual estratificação e mobilidade de classes no Brasil, fazendo uma análise pragmática, com base em dados estatísticos e empíricos, a respeito das implicações que as diferenças regionais nordeste-sul projetaram e projetam no processo de emancipação do negro.

A leitura da obra produz uma conclusão, com base em números, quanto à existência das desigualdades raciais históricas brasileiras, motivadas por acontecimentos prévios e posteriores à abolição da escravatura.

No presente artigo, partindo dessa conclusão, faz-se uma crítica às ações afirmativas com base em cotas raciais como forma de resgatar tais desigualdades históricas, considerados os resultados alcançados por essa política pública passados mais de quinze anos da sua implementação no Brasil. A crítica se escuda em dados estatísticos e na análise de direito comparado feita pelo economista norte-americano Thomas Sowell. 


1 Cultura escrava

Não existe um pensamento escravagista único. A cultura escrava é múltipla e possui diferentes características que se ligam a aspectos de formação ética, religiosa e econômica de cada lugar em que ocorreu o posicionamento de seres humanos como objetos, e não sujeitos de direitos.

Pode-se falar de uma cultura escrava na África, por exemplo, continente em que a escravidão de negros, por negros, ocorria bem antes do comércio escravagista entre europeus e africanos na costa atlântica[1].

Após o início do tráfico negreiro a partir da África, com o objetivo de desenvolvimento econômico das colônias europeias na América, também se verificou uma diversidade de “coisificação” do humano entre os países de formação ética protestante e de formação ética católica.

Na América Latina, ocupada sobretudo por metrópoles católicas, há uma variante mais suave do escravismo, com reconhecimento de uma personalidade mínima ao escravo, seja sob o ponto de vista moral, seja sob o ponto de vista espiritual[2].

No Brasil se desenvolve um escravismo como sistema econômico, em que a plantation é uma empresa capitalista que visa lucro e, para isso, fomenta a família escrava nuclear estável, junto com pequenas recompensas materiais e diminuta mobilidade social como formas de conseguir colaboração negra. Isso explica uma natureza menos patológica do processo de adaptação do africano ao regime escravista brasileiro.

Já nos Estados Unidos da América, sob o jugo de um poder estabelecido pós-reforma anglicana, a alternativa de compatibilização do escravo com a religião predominante é a negação da personalidade moral e espiritual do escravo, pois é difícil a inserção do escravo num paradigma de progresso humano pela liberdade.

É antagônico para o cidadão da deep América, no século XVIII e XIX, ouvir do pastor dominical que todos são livres para gerar riqueza e admitir que essa riqueza é patrocinada pela negação da liberdade a outros seres humanos. A saída é negar a qualidade humana ao escravo.

O escravismo norte-americano passa a se desenvolver, sob essa perspectiva, muito semelhantemente aos campos de concentração de trabalhos forçados, pois era o que se permitia dentro de um contexto de capitalismo não controlado, ou seja, sem a presença estatal uniformizadora de condutas.

Essa diferença gerou consequências históricas diversas para a inserção do negro na sociedade pós-abolição latino-americana e na sociedade pós-abolição anglo-britânica. Nos Estados Unidos, após a abolição, há uma negação de cidadania ao negro, que passa a lutar por essa cidadania em um processo histórico que se reflete nas mutações constitucionais operadas pela Suprema Corte.

Em 1857, no caso Dred Scott v. Sanford, a Suprema Corte afirma a inexistência de cidadania para o negro, que não possui direitos constitucionais, sendo propriedade do seu senhor.

Mas mesmo depois do ato formal de abolição da escravatura, representado pelas emendas constitucionais décima terceira e décima quarta, que proibiram a escravatura e consideraram qualquer pessoa livre um cidadão pleno, a corte estabelece, em Plessy v. Fergunson, que negros e brancos são iguais, mas devem viver separadamente (1896). Isso é reflexo da cultura de negação humana do negro em face da natural humanidade branca.

O caso Brown v. Board of Education emancipou formalmente os negros em 1954, ao permitir que sejam livres e desfrutem de locais e de um cotidiano igual ao dos brancos, mas a resistência cultural em implantar uma isonomia material persiste, como se pode perceber em Schuette v. Coalition to Defend Affirmative Actions, julgado em 2014, quando a corte considera constitucionais todas as iniciativas legislativas que proíbam cotas raciais em universidades norte-americanas, como expressão de autonomia federativa.

No Brasil, ao invés de uma negação de cidadania ocorre uma atribuição de cidadania de segunda classe ao negro, de maneira que sob ótica formal e legislativa não há discriminação, ainda que ela permaneça latente em atos concretos de negativa de oportunidades laborais e econômicas iguais para brancos e para a população afrodescendente.

O que há de comum entre o escravismo norte-americano e brasileiro é a ambiguidade ou paradoxo homem-coisa, a gerar um paternalismo muito semelhante à síndrome de Estocolmo.

Há uma contradição entre coisa, ou instrumento de trabalho, e a figura humana. Essa contradição gerou comportamentos paternalistas na relação senhor-escravo tanto no sul dos Estados Unidos como no Nordeste do Brasil, o que projeta o escravismo para além do econômico, chegando a um sentido de comunidade social ou modo de vida.

O paternalismo gerava uma percepção cultural de que o trabalho involuntário dos escravos era uma retribuição legítima dos negros à “proteção” e “direção” dos seus senhores, numa tentativa de superação da ambiguidade homem-coisa em que o aristocrata rural, apesar de não ser um democrata social, é um pai autoritário a presidir todos os mais fracos: mulheres, crianças e negros. Esse paradigma paternalista foi útil para desenvolver formas não patológicas de adaptação social do escravo.

Hasenbalg conclui no sentido de que a) o verdadeiro legado da escravidão foi um analfabetismo maciço, limitada diversificação de habilidades ocupacionais e concentração demográfica do negro em áreas rurais; b) o escravismo foi um período de construção da identidade nacional negra; c) o estímulo à animosidade entre negros, consideradas suas origens regionais diferentes, na África, favoreceu a inexistência de resistência coletiva à escravidão tanto dos Estados Unidos como no Brasil; d) o escravismo é a herança que explica a perpetuação dos negros em posições socioeconômicas inferiores, sendo tal herança comum em todas as sociedades escravistas, seja na América do norte, central ou do sul, sobretudo quando se tenta explicar a posição subordinada dos negros e a perpetuação do sua pobreza como se fossem consequências naturais dos seus próprios defeitos inatos de personalidade.


2 Da senzala à liberdade

A categorização racial permanece após a transição entre escravismo e liberdade, ou seja, os padrões inter-raciais anteriores a 1888 permaneceram após a abolição?

Para Hoetink o escravismo não apenas condicionou a estrutura de classes e o sistema de disciplina de classe e de raça aos quais toda a população livre estava sujeita, mas também influenciou o destino social dos escravos alforriados e dos não brancos nascidos livres[3].

Nos Estados Unidos, essa vinculação é inexorável e não existe como fugir. Já no Brasil o dinheiro clareia, de modo que o negro em boa posição econômica se torna um moreno, e um mulato claro rico ou educado é, na verdade, um branco.

Para Florestan Fernandes, contudo, o preconceito e a discriminação racial apareceram no Brasil como consequências inevitáveis do escravismo – trata-se de um caso de atraso cultural com reflexos trabalhistas e econômicos.

O modelo arcaico de relações raciais derivado do escravismo só desaparecerá quando a ordem social competitiva se libertar das distorções que resultam da concentração racial de renda, privilégio e poder. As práticas racistas após a abolição são ativadas pelas ameaças reais ou imaginárias que os negros representam para a estrutura de privilégios sociais dos brancos[4].

Para Hasenbalg houve, durante algum tempo após a abolição, a falsa impressão de que a industrialização tornaria o fator raça desprezível como fonte de clivagem social, mas a mudança só resulta de pressão externa ao sistema econômico, ou seja, por força movimentos políticos organizados de emparelhamento social do negro.

Não é a lógica inerente ao industrialismo que causa a modificação do significado de raça e subordinação negra, mas a mudança ideológica, a mobilização política e certas divisões dentro do próprio grupo dominante branco quanto à política racial, ainda que seja inegável, com base em dados estatísticos, que as desigualdades raciais são mais brandas em economias urbanas e industriais do que no meio rural[5]


3 Raça, abolição da escravatura e estratificação social no Brasil

Não se pode confundir estratificação social com classe. Quando se fala em estratificação social histórica dos negros, fala-se em desigualdade distributiva, em distribuição diferenciada de recompensas e privilégios sociais na história, em face do aspecto raça. Classe tem a ver com a consequência disso, e se refere ao lugar da maioria dentro de uma hierarquização sobretudo econômica.

Os negros, nos Estados Unidos da América, são uma colônia interna, ao contrário do que prega o assimilacionismo industrial e o materialismo histórico marxista. A novidade dessa teoria colonial consiste em que ela dirige a atenção para os ganhos cumulativos – econômicos e não econômicos – dos brancos, originados da dominação racial sobre os negros.

Aspectos culturais e políticos do racismo são instrumentos dessa dominação, o que prova que opressão social é diferente de exploração de classe. Na teoria colonialista o progresso branco está ligado à presença do negro.

O grupo dominante branco extraiu historicamente uma certa mais-valia psicológica, cultural e ideológica do negro internamente oprimido (colonizado), ainda que isso seja apenas uma analogia formal entre teoria colonial e modelo de luta de classes, posto que os fenômenos são divergentes.

A essência da justificação da dominação racial é que ela exclui os não brancos do universalismo burguês, com base em sua alegada humanidade incompleta, sendo essa a única forma de deixar os negros fora da ideia de liberdade e igualdade reformada e iluminista.

No Brasil o preconceito racial é anterior ao escravismo, e sobrevive reforçado em momentos posteriores à escravatura, que se notabilizou sobretudo pelo interesse econômico da classe branca em ter o negro como instrumento de trabalho, mas sem uma negativa da sua personalidade moral ou da sua humanidade. Nos momentos posteriores à abolição ocorre o colonialismo psicológico no Brasil, e quanto a essa fase até mesmo brancos não detentores de meios de produção se beneficiam desse modelo de opressão racial.

Segundo Hasenbalg o negro foi historicamente alijado de qualquer privilégio social em face da discriminação racial, ou seja, o negro nunca teve o direito de sair na frente, ou em igualdade, na disputa por valores sociais, pois a raça, como fenótipo historicamente elaborado, passa a ser um critério relevante, no Brasil, para recrutamento da força de trabalho[6].

Para o autor há quatro mecanismos de discriminação racial: a) normas impostas pelo Estado; b) preferências sociais da comunidade; c) estereótipos culturais, e d) circunstâncias de mercado.

No Nordeste do Brasil, à época da abolição, era já muito comum a figura da pessoa de cor livre. Isso atenuou a dicotomia entre negro escravo e branco livre, facilitando a absorção do escravo na estrutura social dessas regiões, ainda que essa absorção não tenha se dado pela transformação do escravo negro em um trabalhador assalariado, mas com o aproveitamento dos ex-escravos em relações servis de dependência.

Na região nordestina a abolição ocorreu sem grandes ajustes e os ex-escravos foram incorporados às várias funções do campesinato nordestino em novas relações servis. Os efeitos deletérios desse servilismo foram piorados, potencialmente, pela imobilidade econômica e social da região no período logo posterior à abolição.

No Sudeste do Brasil o destino dos ex-escravos e da pouca população de cor livre foi completamente diferente, pois o abolicionismo naquela região via o escravismo como obstáculo à modernização econômica, de modo que, se era para pagar pelo trabalho era melhor contratar brancos estrangeiros do que o negro liberto degradado pela escravidão. O abolicionismo no Sudeste foi, assim, um movimento ideologicamente racista.

Iniciou-se, por conta desse raciocínio racista, uma política de incentivo à imigração branca europeia para compor a força de trabalho antes exercida pelos escravos, o que gerou um deslocamento socioeconômico da população negra para o desempenho de funções cada vez mais subalternas e subordinantes tanto no meio urbano como rural da região Sudeste.

Além da preferência dos empregadores por ter brancos europeus como assalariados, o que propiciou rápida mobilidade econômica e social para esses imigrantes, o conjunto da população de cor estava em desvantagem no que se refere à qualificação na competição com os trabalhadores estrangeiros recém-chegados, a exceção de alguns poucos negros artesãos e ligados ao trabalho doméstico.

Em resumo, o negro livre habitante da região Sudeste não se valeu das posições assalariadas que surgiram após a abolição da escravatura, o que impediu uma mobilidade social imediata dos ex-escravos.

Conclui-se no sentido de que a industrialização amenizou, mas não eliminou a raça como critério de estruturação das relações sociais, nem eliminou a subordinação das minorias raciais. A posição relativa dos grupos raciais na hierarquia social nunca foi substancialmente alterada pela industrialização no Sudeste. A industrialização não foi capaz de alterar o ponto de partida de cada classe no momento da abolição – negros atrás e brancos na frente no momento da largada.              


4 Classes sociais e geografia racial brasileira

Os negros entraram em maior número, vindos da África, para a monocultura do açúcar no Nordeste, entre Maranhão e Bahia, durante os séculos XVII e XVIII. Esse grupo se concentrou nos setores econômicos mais atrasados e em regiões com menor dinamismo industrial após a abolição.

Os negros que ficaram em regiões de franca industrialização, após a abolição, experimentaram ganhos socioeconômicos em poucas décadas, mas a maioria, que ficou no Nordeste, que até hoje não passou por uma revolução industrial, experimentou imobilidade econômica num contexto agrário de estagnação.

A industrialização cria graus relativamente menores de desigualdade racial, reduzindo parcialmente a desigualdade de oportunidades entre brancos e negros. O Sul brasileiro, assim como o Nordeste, usava trabalho escravo, mas, diferentemente do Nordeste, o Sul não produziu um modo de produção escravista ou senhorial, pois a introdução do trabalho escravo no Sudeste ocorreu tardiamente, a partir de 1850, com base em tráfico negreiro interno.

Esse tráfico interno fez com que a população de escravos no Nordeste fosse, no século XIX, diminuindo quantitativamente e qualitativamente sob a ótica da força laboral. Permaneceram na região apenas doentes, mulheres, idosos e escravos desqualificados. O resto foi para o Sudeste.

De toda forma, apesar desse tráfico interno, à época da abolição, a grande maioria da população negra permanecia, em grande parte, fora da região em que uma sociedade urbana e industrial estava em formação (Sudeste).

Havia mais brancos ao sul e mais negros ao norte, o que ajudou a perenizar a pouca mobilidade da maior parte da população de cor.

Houve uma segregação geográfica dos dois grupos raciais, ou seja, uma concentração desproporcional de não brancos no Brasil subdesenvolvido e de brancos no Sudeste, ou Brasil desenvolvido, o que marca a desigualdade de oportunidades de ascensão social após a abolição em face das características heterogêneas do território brasileiro sob ótica econômica.

Em 1950, 89% das mulheres negras empregadas fora das atividades primárias e industriais concentravam-se nos serviços pessoais, principalmente no emprego doméstico, com base em relações nem sempre assalariadas. Em resumo, a casa de família passa a ser a nova senzala.

Isso indica que mesmo após a igualdade meramente formal de 1888 o grupo branco continuou a se beneficiar colonialmente da presença dos não brancos, gozando de melhores possibilidades de evitar as ocupações mais desagradáveis e mal pagas.

Durante todo o século XIX, no Brasil, a cor da pessoa operava mais fortemente como critério negativo de seleção quanto mais próximo essa pessoa chega do ápice da hierarquia ocupacional. Estranha, sob enfoque cultural, a essa época, e talvez ainda hoje, o negro doutor ou executivo.                                              


5 Mobilidade social e raça

Passados mais de um século da abolição da escravatura no Brasil, os negros e mulatos brasileiros aglomeram-se nas posições subordinadas da estrutura de classes e nos degraus inferiores do sistema de estratificação social. A evidência empírica indica que os brasileiros não-brancos estão expostos a um ciclo de desvantagens cumulativas em termos de mobilidade social intergeneracional e intrageracinal.

Nascer negro ou mulato, no Brasil, significa estatisticamente nascer em famílias carentes. As probabilidades de fugir às limitações ligadas a uma posição social mais baixa são consideravelmente menores para os não-brancos do que para os brancos de mesma origem social.

Devido aos efeitos de práticas discriminatórias sutis e de mecanismos racistas mais gerais, os negros têm oportunidades educacionais mais limitadas que os brancos de mesma origem social. Por sua vez, as realizações educacionais dos negros e mulatos são traduzidas em ganhos ocupacionais e de renda proporcionalmente menores que os dos brancos.

Se os processos de competição social, envolvidos no processo de mobilidade social individual, calcados no mecanismo de mercado, operam em detrimento do grupo racialmente subordinado, então o enfoque da análise deve se orientar para as formas de mobilização política dos não-brancos e para o conflito inter-racial, uma vez que toda a opressão social de raça também gera uma neutralização política do negro.

Essa mobilização política como forma de implemento de iniciativas para maior mobilidade social esbarra no sistema político brasileiro, que combina repressão com relações de autoridade, carregadas de matizes paternalistas, como meio de impedir a articulação de demandas populares para inibir movimentos sociais – sejam eles de orientação racial ou de classe.

A mais importante conquista da mobilização política negra, na história do Brasil, foi a adoção de ação afirmativa de cotas raciais no campo educacional.

Mas essa solução para o quadro de desigualdade histórica que se comprova pelas análises feitas precedentemente nesse texto, passados mais de quinze anos do começo da sua adoção, tem mostrado resultados empíricos razoáveis? Essa é a pergunta a ser respondida no próximo tópico.


 6 Política de cotas raciais no Brasil

As ações afirmativas podem ser definidas como toda política de tratamento diferenciado que visa corrigir, na atualidade, distorções históricas entre agrupamentos sociais ligados entre si por uma característica basal, sobretudo distorções quantitativas.

Desde 1949, na sociedade indiana, há política de reserva de vagas em prol dos “intocáveis”, que representam a casta social menos privilegiada numa coletividade singularmente hierarquizada e sectarizada. Essas políticas permanecem até os dias atuais, mais de sessenta anos após a sua implementação, o que gera a indagação sobre qual a duração razoável de uma ação afirmativa.

As ações afirmativas, enquanto políticas públicas de igualização artificial das pessoas ganharam notoriedade a partir da década de 60 durante o governo Kennedy nos Estados Unidos. A intenção, numa época em que ainda se tentava executar o decidido no caso Brown (1954), era impedir a discriminação na admissão a empregos ou vagas educacionais. Não havia, nesse primeiro momento, a prática da reserva de vagas, o que poderia ser visto como reforço à doutrina separate but equal.

Kennedy foi quem propôs ao parlamento norte-americano a Lei de Direitos Civis, mesmo profetizando que a aprovação daquele diploma seria um golpe para o partido democrata em todo o sul dos Estados Unidos. A lei só seria aprovada em 2 de julho de 1964, já sob o governo de Lyndon Johnson.

A visita que Kennedy fazia ao Texas, em 1963, quando foi assassinado, tinha a ver com a prevenção de prejuízos políticos no Sul por conta das suas iniciativas para dar fim à discriminação contra não-brancos, sobretudo a propositura da Lei de Direitos Civis.

A profecia, contudo, concretizou-se. Em 1960, dos 15 Estados mais ao sul dos Estados Unidos o partido democrata obteve vitória em 9, incluindo o Texas. Na primeira eleição após a aprovação da Lei de Direitos Civis, em 1968, o partido democrata venceu apenas no Texas, desses mesmos quinze estados mais ao sul. É inevitável fazer a ligação entre esses dois resultados antagônicos e a aprovação da norma que deu início ao fim da segregação racial norte-americana.

De fato, quando se compara o mapa político-federativo dos Estados Unidos entre 1959 e 1969, verifica-se um “avermelhamento” rápido e geral de todo o Sul, o que demonstra ser verídica a tese de racismo estrutural na formação histórica norte-americana. Em outras palavras, nos Estados Unidos o racismo não se encerra em um cheque da Previdência Social ou uma vaga na Universidade, pois se estende a um mindset de que negros, por maior que seja o seu saldo bancário, são diferentes.

Ações afirmativas como conceito numérico passaram a ser adotadas, nos Estados Unidos, a partir do governo de Richard Nixon, o republicano que venceu as eleições de 1968, mas a política de reserva de vagas era vista, à época, como um racismo invertido que inclusive aumentava a dependência do negro em relação ao poder público.

O que não se antevia, à época, era a possibilidade inversa, ou seja, de que o Estado se tornasse refém da sua própria política pública. Esse tipo de benefício à minoria, quando implantado, dificilmente consegue ser extinto, e isso se explica por razões políticas. Essa “refenização” do Estado leva à eternização da prática, o que depõe contra seus próprios resultados. 

Existe um esforço considerável para descrever tais políticas como temporárias, mesmo quando os fatos indicam a sua permanência e crescimento. Para Sowell as diferenças étnicas são universais e naturais, e não são estancadas por política de cotas, pois minorias com capacitações específicas tendem a ser super-representadas em áreas específicas de trabalho[7].

As capacidades específicas de uma pessoa tendem a ser intergeracionais, uma vez que a família é, na verdade, a esfera em que há maior difusão de cultura, de modo que as correções artificiais por parte do Estado tendem a ser esforços infrutíferos.

No Brasil, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ainda em 2000, foi a primeira a estabelecer um sistema de cotas, mas baseada em perfil socioeconômico, e não racial. A Universidade de Brasília, em 2004, foi a primeira a adotar reserva de vagas para negros, ou seja, a adotar o critério racial como diferenciador.

A lei federal nº 12.711, de 2012, acabou por uniformizar o critério racial entre as Universidades brasileiras, ao prever que metade das vagas sejam destinadas a concluintes do ensino médio em escolas públicas e, dessa metade, deva ser tirada uma quantidade de vagas, para negros, proporcional à população local de cor, conforme dados do IBGE.

De acordo com pesquisa da agência Hello Research, quando as cotas são sociais elas contam com aprovação de 54% da população total do país, considerada uma amostragem significativa e supra regional. Já quando se fala em cotas raciais, esse apoio decresce a 42%[8].

Um grande problema do sistema é a alta miscigenação brasileira e o procedimento de auto-declaração, em que o próprio candidato se julga branco ou negro, ainda que passe por uma avaliação externa.

No Brasil, em que o racismo é do tipo colonial, ou seja, baseado em aspectos econômicos, talvez essa não seja a melhor maneira de dar execução ao programa, pois o torna meio para manutenção de um status já historicamente favorecido, dentro da minoria.

Em outras palavras, quem acaba sendo mais privilegiado são aqueles candidatos que contam com mais recursos, materiais e imateriais, dentro do conjunto que se quer historicamente resgatar, não sendo incomum um monopólio das cotas por negros privilegiados sob a ótica socioeconômica.


Conclusão

Os estudos antropológicos e sociológicos de Carlos Hasenbalg e Florestan Fernandes apontam para a existência de uma segregação racial histórica no Brasil, mas de tipo diferente da ocorrente nos Estados Unidos. Enquanto o racismo no Brasil é do tipo colonial, nos Estados Unidos é do tipo estrutural.

De toda forma, em ambos os modelos se constata uma desigualdade histórica de acesso a oportunidades sociais entre negros e brancos, o que aponta para a necessidade de políticas públicas de resgate dessas desigualdades. A principal dessas políticas, na órbita nacional e internacional, tem sido as ações afirmativas, com reserva de vagas educacionais e de trabalho para os negros.

Contudo, os principais equívocos dessas políticas públicas têm sido não atentar para a possibilidade de criação de castas privilegiadas no conjunto minoritário que se quer resgatar e a “refenização” política do Estado quanto a essas ações, o que gera a sua eternização.

A eternização da ação afirmativa, por outro lado, depõe contra a sua própria eficácia no tempo e pode vir a gerar a oficialização da diferença, trazendo o risco de conflitos inter-raciais em momentos de crise, assim considerados os períodos em que sazonalmente as oportunidades sociais se escasseiam para todos.                        


Notas

[1] LOVEJOY, Paul E; RICHARDSON, David. The Business of Slaving: Pawnship in Western Africa, c. 1600–1810. The Journal of African History, 2001, n. 42, p. 67–89

[2] TANNENBAUM, Frank. Slave and citizen, 1947.

[3] Hoetink, H. Slavery and race relations in the Americas: comparative notes on their nature and nexus. Harper and Row: Nova York, 1973.

[4] FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Vol. I – O legado da raça branca. São Paulo: Edusp, 1965.

[5] HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. São Paulo: Humanitas, 1980.

[6] HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. São Paulo: Humanitas, 1980, p. 96-125.

[7] SOWELL, Thomas. Ações afirmativas ao redor do mundo: um estudo empírico sobre cotas e grupos preferenciais. São Paulo: É realizações, 2017, p. 20-40.

[8] 1274 pessoas em 70 cidades, incluindo capital e interior, nas cinco regiões do Brasil. Disponível em www.helloresearch.com.br. Acesso em 04.05/2018



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