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A democracia entre a expansão da jurisdição constitucional e a interpretação constitucional no novo constitucionalismo

A democracia entre a expansão da jurisdição constitucional e a interpretação constitucional no novo constitucionalismo

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A perspectiva do novo constitucionalismo no Brasil parece ter efetivado a importância da Constituição na sociedade. Isso tem sido evidente, também, em questões sociais, políticas e, claro, jurídicas.

Introdução

O artigo em questão tem como objeto a análise do contexto jurídico contemporâneo em função do novo constitucionalismo, considerado este desde o contexto histórico de formação do movimento constitucionalista no século XVIII, passando pela evolução de tal movimento, até as definições filosóficas e teóricas de composição deste novo constitucionalismo.

O entendimento da formação do novo constitucionalismo deve ser precedido da análise da formação do movimento constitucionalista próprio do século XVIII produto de ideias liberais e parte integrante do Estado Liberal. Este é o tema do primeiro tópico. Desde já vale consignar que é analisado o constitucionalismo a partir do século XVIII devido ao seu caráter de movimento transformador e fonte de influência para a formatação do Estado Liberal. Transformador porque supera o paradigma de Estado Absolutista e fonte de influência porque o movimento se espalha para diversos países.

No tópico seguinte, são analisadas a formação do constitucionalismo social e a referência do mesmo ao Estado Liberal, em especial nos pontos em que este se mostrou falho em seu ideal de abstenção estatal. O Estado Social tenta superar ideologias do Estado Liberal sem, contudo, representar uma substituição ao modelo constitucional moldado em prol da legalidade. A legalidade inaugurada pelo constitucionalismo liberal continua sendo um paradigma dentro do Estado Social e muitas vezes associada à própria legitimidade do sistema constitucional social.

O terceiro tópico expõe a formação do novo constitucionalismo, tendo como ponto de partida a crítica à legalidade enquanto elemento legitimador do Estado (tanto Liberal quanto Social). A análise segue demonstrando a não coincidência entre legalidade e legitimidade evidenciadas no cerne do século XX. Diferenciar legalidade de legitimidade consiste em caracterizar a formação de um constitucionalismo novo, o qual conjuga os ideais liberais e os ideais sociais, definindo a ideologia do Estado Contemporâneo.

Em seguida, é exposta a fundamentação filosófica do novo constitucionalismo. Importa, para tanto, a normatividade da Constituição, principalmente a juridicidade dos princípios constitucionais, possibilitados pela hermenêutica constitucional.

No tópico quinto são apresentados os fundamentos teóricos do novo constitucionalismo. Por envolver questões bastante específicas, o tópico foi dividido em duas partes.

A primeira parte do tópico quinto aborda a expansão da jurisdição constitucional. A expansão da jurisdição constitucional mudou a configuração da relação entre os poderes institucionais, em que pese a atuação cada vez maior do poder Judiciário. Esta configuração tem suscitado críticas, em especial quanto à legitimidade ou não de o poder Judiciário agir em questões políticas expondo a fragilidade ou mesmo “crise” da democracia representativa.

A outra parte do quinto tópico abrange a nova dogmática da interpretação constitucional; a diferença desta em relação à hermenêutica constitucional; a materialização da disposição normativa em norma através do trabalho do intérprete; e, a importância da interpretação para viabilizar a tendência de expansão da jurisdição constitucional de forma legítima.

Por fim, são apresentadas as considerações finais e a bibliografia utilizada no presente artigo.


1. Formação do constitucionalismo liberal

As origens do movimento constitucionalista têm como pontos de partida o processo de independência dos Estados Unidos da América de 1776 e a Revolução Francesa de 1789.

Os Estados Unidos da América materializaram os ideais político-liberais desde a Constituição da Virgínia de 1776 e, principalmente, na Constituição estadunidense de 1787; já a França, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e na Constituição francesa de 1791 (BULLOS, 2007, p. 08).

Conspícuo ressaltar que os Estados Unidos da América e a França não foram os países pioneiros em efetivar os ideais liberais. Anteriormente, a Inglaterra já havia promovido atos políticos de cunho liberal. Aliás, as ideias liberais já vinham sendo amplamente discutidas e aceitas em grande parte da Europa. Países como a Prússia, Rússia e Áustria mesclaram o absolutismo característico da época a preceitos liberais.

O diferencial dos Estados Unidos da América e da França é que ambos rompem com o regime político absolutista característico da época através de um documento escrito denominado Constituição: o movimento constitucionalista apregoava que todos os Estados deveriam possuir constituições escritas, as quais funcionariam como instrumentos assecuratórios dos direitos e garantias fundamentais (BULLOS, 2007, p. 08).

 No caso dos Estados Unidos da América, seu modelo liberal serviu de inspiração para a França nos atos políticos pós-revolucionários de 1789, contudo, a Revolução Francesa é peculiar porque ela representa uma ruptura drástica com um padrão de Estado Nacional Moderno centrado na figura do rei e conhecido como absolutismo monárquico. Mais do que isso, a França rompe com o absolutismo no cerne do próprio regime político em questão: a Europa continental.

Neste ponto, vale consignar que a Inglaterra e os Estados Unidos da América, por partilharem de uma tradição jurídica distinta da francesa, em termos de direito, não exerceram a mesma influência que a França pós-revolucionária (após 1789), especialmente na América Latina.

Isto porque, a colonização empreitada pela União Ibérica desde os séculos XV e XVI, dividindo o mundo entre Espanha e Portugal, impôs a grande parte do mundo, incluído a América Latina e, por óbvio, o Brasil, um modelo de Estado europeu continental, em que a sistemática jurídica é de origem romano-germânica. A França pós-revolucionária (após 1789) chegou a dominar a Europa continental, inclusive Espanha e Portugal, e, os ideias liberais franceses foram disseminados por todo o continente, tornando-se modelo também para as colônias de países europeus dominados pela França. A França, dessa maneira, tornou-se referência ideológica e política:

A França forneceu o vocabulário e os temas da política liberal e radical-democrática para a maior parte do mundo. A França deu o primeiro grande exemplo, o conceito e o vocabulário do nacionalismo. A França forneceu os códigos legais, o modelo de organização técnica e científica e o sistema métrico de medidas para a maioria dos países. A ideologia do mundo moderno atingiu as antigas civilizações que tinham até então resistido as idéias européias inicialmente através da influência francesa. Esta foi a obra da Revolução Francesa (HOBSBAWM, 1977, p. 84).

A Revolução Francesa representa um marco de ruptura com o absolutismo monárquico, que era a base de Estado na Europa continental. Os Estados Nacionais Modernos eram Estados legitimados pelo poder divino (referência clássica a Jacques Bossuet e a teoria da origem divina do poder real). Em uma lógica cuja legitimação se dava através deste poder divino, reflexo do direito canônico, o poder do monarca era incontestável, devendo este prestar contas apenas a Deus. Este poder sem controle caracterizou o absolutismo monárquico, sendo que o monarca se confundia com o Estado e também com as leis (leis em sentido genérico; poderiam ser ordenamentos, decretos, atos, etc.):

Como primeira expressão do Estado Moderno vamos observar que a estratégia de construção da nova forma estatal, alicerçada na idéia de soberania vai levar à concentração de todos os poderes nas mãos dos monarcas, o que vai originar as chamadas monarquias absolutistas, fazendo com que, como sustenta Duguit, a realeza que está nas origens do Estado Moderno associe as concepções latina e feudal de autoridade - imperium e senhoriagem - permitindo-se personificar o Estado na figura do rei, ficando na história a frase de Luis XIV, o Rei Sol: L’Etat c’est moi – O Estado sou eu (STRECK; MORAIS, 2003, p. 44).

O poder do rei e do Estado era enorme e muito discricionário, deixando os súditos sem qualquer proteção em face de abusos e atos inéditos. Desde o surgimento do Estado Nacional Moderno, este fora identificado como uma figura acima das pessoas, acima dos indivíduos. A lei não alcançava o Estado; a lei apenas era dirigida em um sentido unilateral aos seus subordinados.

Então, quando na França acontece uma revolução em que o auge é a queda da Bastilha (representação do poder de Estado) seguida pela decapitação de Luís XVI (em certa medida, o próprio Estado), até então um monarca absoluto, o derramamento de um sangue tão vermelho quanto o dos demais indivíduos fez prosperar o ideal de que o monarca é também um indivíduo, um ser humano, portanto, não pode ser superior aos demais.

Se a monarquia não é absoluta, o poder da monarquia também não é. Impor limite à monarquia, ao rei, em um cenário político em que o poder do rei era o poder de Estado, importava impor limites ao próprio Estado. Estes limites ao Estado identificam o surgimento do movimento constitucionalista:

 

O surgimento do constitucionalismo – afirmam-no os compêndios – coincide com as revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII e o conseqüente advento do Estado Liberal. É nesse período, quando as monarquias absolutistas entram em colapso, que toma força a idéia de submissão da ação estatal a uma norma positiva que deve vincular a existência dos poderes e garantir a incolumidade das liberdades individuais frente ao Estado. A Constituição surge, assim, como exigência burguesa da limitação e racionalização do poder real, até então absoluto, que passa a curvar-se aos interesses da nova classe dominante (BINENBOJM, 2001, p. 15-16).

A Constituição do Estado é a forma de o liberalismo concretizar sua meta mais primária: a liberdade do indivíduo. Em outras palavras, a ideologia liberal prima pelo indivíduo, pela liberdade do mesmo. Estes aspectos liberais consistiam em uma clara resposta ao absolutismo estatal até então imposto:

O liberalismo se apresentou como uma teoria antiestado. O aspecto central de seus interesses era o indivíduo e suas iniciativas. A atividade estatal, quando se dá, recobre um espectro reduzido e previamente reconhecido. Suas tarefas circunscrevem-se à manutenção da ordem e segurança, zelando que as disputas porventura surgidas sejam resolvidas pelo juízo imparcial sem recurso a força privada, além, de proteger as liberdades civis e a liberdade pessoal e assegurar a liberdade econômica dos indivíduos exercitada no âmbito do mercado capitalista. O papel do Estado é negativo, no sentido de proteção dos indivíduos (STRECK; MORAIS, 2003, p. 56).

A atuação negativa do Estado é uma exigência do movimento constitucionalista. O constitucionalismo que se forma é liberal, logo, o constitucionalismo liberal é uma garantia à liberdade individual através da não intervenção do Estado. Ou seja, a Constituição garante que o Estado não intervenha nas questões individuais.

O Estado age dentro do contexto constitucional liberal desde que atrelado à lei, com discricionariedade reduzida:

Sua explicitação política se fez por via revolucionária, quando a legalidade se converteu em matéria constitucional. Assim, no texto de 1791: “Não há em França autoridade superior à lei; o rei não reina senão em virtude dela e é unicamente em nome da lei que poderá ele exigir obediência” (Art. 32, do Capítulo II da Constituição Francesa de 1791) (BONAVIDES, 2004, p. 113).

A legalidade era prevista desde a Constituição e, portanto, materializava a tendência de o Estado agir conforme a lei. O texto da Constituição francesa de 1791 é claro em evidenciar que o rei, representante do poder Executivo de Estado só reina tendo em vista a lei. A atuação do Estado, ou seja, o poder Executivo estava submetido ao crivo da lei, portanto, à aprovação do povo.

No contexto pós-revolucionário da França, as leis eram editadas pela vontade geral do povo e não mais pelo rei. A aprovação via processo legislativo em um Estado com os poderes institucionais separados garantia racionalidade à lei (império da razão):

O legicentrismo, desta maneira, exsurgiu como importante característica oriunda das revoluções liberais (notadamente da Revolução Francesa), que vieram a influenciar o Estado dos séculos seguintes. Com efeito, a lei era vista não como um instrumento técnico apto a garantir os direitos e liberdades inerentes à natureza humana, mas como um valor em si mesma, valor este que fez possível a existência dos direitos e liberdades: a ausência da lei, editada por um legislador firme e legitimado pela vontade geral, acarretaria a volta ao passado de privilégios que se tenta esquecer (MOTTA, 2007, p. 36).

O impacto da legalidade na perspectiva liberal é que ao Estado atuar conforme previsão legal é razão de sua própria existência, condição para a mesma. Para o constitucionalismo liberal, a Constituição do Estado é o que o legitima. Se a própria Constituição prevê a atuação do Estado conforme previsão legal, seria impossível ao mesmo existir de forma legítima desrespeitando tal requisito.

Se o Estado estava submetido à lei, estava submetido ao direito. Essa concepção, no campo filosófico, reflete a predominância do positivismo na época. Com efeito, os positivistas entendiam o direito como posto exclusivamente pelo poder soberano do Estado, mediante normas gerais e abstratas, materializadas na “lei” (MOTTA, 2007, p. 60).

Por natural, no positivismo jurídico somente é direito a legalidade construída pelo poder Legislativo (representante da vontade geral do povo) do Estado, o direito posto. Nesse sentido, “a legalidade ocupa o lugar da legitimidade”. (GRAU, 2008, p. 31). A questão da legitimidade no positivismo jurídico se confunde com a legalidade. O que é legal é legítimo porque foi edificado pelo poder Legislativo que representa o povo. Como a lei é a verdade universal no cenário positivista, reflexo da cientificidade jurídica, a lei passa a ser o próprio direito. Tal percepção afastou o ideal de jusnaturalismo do Estado:

Ao conceito jurídico-material de Estado de direito, que associava a lei à idéia de justiça material e, de certa forma, ao pensamento democrático, seguiu-se um Estado de direito formal, que adquiriu contornos definitivos com o positivismo jurídico-estatal.

O positivismo formalista converteu-se em teoria jurídico-política da burguesia liberal, ao eliminar, gradativamente, as exigências jusnaturalistas do conceito de Estado de direito (SOARES, 2008, p. 197).

O constitucionalismo enquanto movimento surge sob a égide do liberalismo. O liberalismo é uma ideologia própria da burguesia em que o Estado não age, ou seja, não interfere na propriedade privada ou na liberdade do indivíduo, a não ser que a lei assim autorize; tudo isto dentro de um cenário constitucional. Em outras palavras, o constitucionalismo liberal privilegia o poder Legislativo por este ser a representação de poder do povo, todavia, não é demais ressaltar que o poder Legislativo era composto, essencialmente pela nova classe ascendente burguesa.


2. Formação do constitucionalismo social

Conforme visto, a limitação do poder do Estado através da Constituição foi uma imposição da classe dominante que chegava ao poder: a burguesia. A abstenção estatal favorecia a situação que estava se consolidando, uma situação capitalista de lucro e de empreendimentos industriais. O Estado não agir significava não limitar os lucros ou mesmo agredir as propriedades formadas a partir do poder econômico.

A liberdade individual “conduzia, com efeito, a graves e irreprimíveis situações de arbítrio” (BONAVIDES, 2011, p. 59). A igualdade decorrente da liberdade individual é uma igualdade formal porque apenas é encontrada na Constituição Liberal. Na prática social, os indivíduos não são iguais, em especial quando é avaliada a situação econômica:

Expunha, no domínio econômico, os fracos à sanha dos poderosos. O triste capítulo da primeira fase da Revolução Industrial, de que foi palco o Ocidente, evidencia, com a liberdade do contrato, a desumana espoliação do trabalho, o doloroso emprego de métodos brutais de exploração econômica, a que nem a servidão medieval poderia, com justiça, equiparar (BONAVIDES, 2011, p. 59).

O constitucionalismo liberal, ao mesmo tempo em que permite a igualdade política, avaliza a desigualdade social. São conhecidas as críticas ao liberalismo (sobretudo, econômico) desde o século XIX (em especial, as críticas marxistas).

Vale destacar desde já que o Estado considerado Social analisado no artigo não coaduna com uma teoria social específica ou uma ideologia única, mesmo porque as teorias sociais são diversas e díspares. O Estado aqui considerado Social remete ao intervencionismo deste Estado, principalmente nas questões sociais.

O Estado Social é uma resposta ao Estado Liberal e também se manifesta em constituições. São exemplos clássicos a Constituição mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919. Também a Revolução Russa de 1917 e a subsequente Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado de 1918 evidenciam preocupações com as injustiças advindas da perspectiva liberal de Estado. Nesse contexto, acontece a crise de 1929 que abala os fundamentos do liberalismo econômico.

Países como a Rússia, então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e a Alemanha, que praticavam intervenções na economia (contrariando o liberalismo clássico) não sofreram efeitos drásticos desta crise, aliás, tornaram-se modelos de como se portar diante de um cenário econômico tão drástico.

A partir da década de 1930, então, os Estados Liberais passaram a considerar pressupostos intervencionistas, principalmente os Estados Unidos da América com o estado de bem-estar social (em inglês: “welfare state”). No contexto da crise, as propostas do Estado Social passaram a ser difundidas:

A proposta deste Estado Social é a realização do desenvolvimento econômico, da dignidade da pessoa humana e do bem-estar social, abandonando a crença existente na justiça natural da ordem econômica e social, ficando estes cuidados ao encargo do Estado (MOTTA, 2007, p. 49).

Esta proposta de Estado é definida, em geral, por uma Constituição, assim, surge o constitucionalismo social. Se o constitucionalismo liberal traça um papel negativo ao Estado, de não intervenção, o constitucionalismo social é o oposto, exige a atuação do Estado. O que há, portanto, é uma mudança de papel: o Estado deixa de ser coadjuvante para se tornar protagonista, todavia, sem modificar a estrutura liberal do Estado baseada na separação de poderes. Permanecem os três poderes, mas “com o Estado Social, aumentaram as funções exercidas pelo Poder Público. O Executivo passa a controlar quase que a totalidade das novas funções recentemente conquistadas pelo Estado” (CLÈVE, 1993, p. 49).

Como permanece a divisão em três poderes, o Executivo passa a ser protagonista das ações, mas o Legislativo ainda tem que legislar para autorizar o Executivo a agir. Sendo assim, o Estado Social faz com que haja o fenômeno da “inflação legislativa” e a “crise da lei” (CLÈVE, 1993, p. 47).

A Constituição do Estado Social tende a ampliar a atuação do Estado, caracterizando constituições extensas, e o surgimento das normas programáticas clássicas:

(...) disposições indicadoras de valores a serem preservados e de fins sociais a serem alcançados. Seu objeto é o de estabelecer determinados princípios e fixar programas de ação. Característica dessas regras é que elas não especificam qualquer conduta a ser seguida pelo Poder Público, apenas apontando linhas diretoras (BARROSO, 2009, p. 113).

O Estado Social necessita agir e a Constituição do mesmo aponta as direções através das normas programáticas, contudo, a Constituição não define a forma de agir, deixando isto a cargo da lei. A lei então é uma constante nesse Estado, por isso a “crise” da mesma manifestada em produção legislativa exacerbada.

Em suma, as características principais do Estado Social compreendem a predominância do Executivo sobre os demais poderes sendo que a lei passa a ser basicamente (mas não exclusivamente) um instrumento de realização de políticas sociais. A Constituição Social prevê a necessidade de atuação do Estado.

Embora com outro enfoque, permanece no constitucionalismo social, o fenômeno de culto à lei ou “legalismo” (CLÈVE, 1993, p. 46) iniciado com o liberalismo, ou seja, tanto o Estado Liberal quanto o Estado Social funcionam sob a perspectiva teórico-jurídica do positivismo.


3. Formação do novo constitucionalismo

O século XX demonstrou que nem sempre a lei coincide com a racionalidade, fundamento do positivismo jurídico. Países constituídos no cerne do Estado de Direito como a Itália e a Alemanha foram abrigo de regimes totalitários que sob o aspecto estritamente legal gozavam de legitimidade. O fascismo e, principalmente, o nazismo, colocaram em cheque muitas certezas a respeito do Estado de Direito.

A atuação do Estado conforme a lei, se esta é completamente absurda, pode gerar situações também absurdas. Por mais que o poder legislativo, em tese, deva representar a vontade geral do povo, isto nem sempre acontece, e, em muitos casos, tal poder acaba sendo a fonte legitimadora de ações injurídicas por parte do Estado:

A lei, no Estado Contemporâneo, é resultado de ajustes legislativos marcados pela vontade dos lobbys e dos grupos de pressão. O fracasso da soberania do paramento e da concepção da lei como vontade geral sepultou o positivismo jurídico clássico centrado na identificação da lei como expressão do direito (CAMBI, 2006, p. 673).

A legalidade passou a ser utilizada como subsídio para qualquer tipo de atuação estatal, por mais injurídica que fosse tal atuação. A lei já não mais representava a certeza da atividade legítima por parte do Estado, seja no Estado Liberal seja no Estado Social em que este deve agir.

Assim, a lei deixou de ser a única garantia de legitimidade e passou a não ser confundida com o direito. A Lei Fundamental de Bonn, na Alemanha, de 1949 foi um sinal de que o Estado deveria estar de acordo não só com a lei, mas, sobretudo, com o direito:

Nesse sentido, o artigo 20, § 3º, da Lei Fundamental da Alemanha, de 8-5-49, estabelece que “o poder legislativo está vinculado à ordem constitucional; os poderes executivo e judicial obedecem à lei e ao direito”. Idéias semelhantes foram inseridas nas Constituições espanhola e portuguesa (DI PIETRO, 2008, p. 29).

O local onde o direito de um Estado deveria ter suas fontes principais passou a ser a Constituição. Em 1959, Konrad Hesse elaborou a tese da força normativa da Constituição. Até então, o constitucionalismo iniciado no século XVIII e disseminado no século XIX significava apenas um atestado formal de existência do Estado de Direito. A Constituição nos países de tradição romano-germânica, em que a fonte principal do direito é a lei, era algo bastante vulnerável. Apenas com a tese de Konrad Hesse esse panorama começa a ganhar novos contornos:

A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social.

(...) A Constituição adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão de eficácia (HESSE, 1991, p. 15-16).[1]

A legalidade, nesse viés, deveria estar subordinada a algo maior do que a simples aprovação de uma lei pelo poder Legislativo. A lei deve estar incorporada à perspectiva da juridicidade, refletindo o direito inerente à Constituição. O cenário jurídico dos países de tradição romano-germânica começava a mudar.

No caso do Brasil e da América Latina, muitas das tendências jurídicas seguem a teorização europeia e, geralmente, com certo lapso temporal. A tendência de juridicidade em que o direito deve ser garantido pela Constituição chegou ao Brasil de forma efetiva após a ditadura militar.

Ditaduras militares no Brasil e na América Latina corresponderam ao mesmo desrespeito jurídico ocorrido na Europa no período entre guerras. Assim como os regimes fascistas, as ditaduras militares na América Latina tinham um aparato legal que “legitimava” o Estado totalitário.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é promulgada em um momento de superação do padrão exclusivamente legal no que diz respeito à atuação do Estado. O próprio princípio da legalidade tem previsão na Constituição Federal (artigo 37, caput, da Constituição Federal), justamente para dotá-lo de força constitucional. A lei deve ser constitucional.

A partir da inserção da legalidade dentro da ordem constitucional, as teses passam a ser no sentido de que a abstenção e/ou atuação do Estado é/são legítima/s se de acordo com a Constituição e o direito, não somente com a lei.

Essa questão de estar conforme o direito e conforme a Constituição são bastante próximas e comprometidas. No Brasil, a Constituição é fundamento para toda a legislação. Legislação destoante da Constituição Federal é inconstitucional. O mesmo raciocínio vale para os atos normativos do poder Executivo. O direito brasileiro tem, atualmente, como fonte majoritária a Constituição Federal, por isso que a atuação de acordo com o direito passa, necessariamente, por um exame de constitucionalidade evidenciando a supremacia constitucional.


4. Fundamento filosófico do novo constitucionalismo efetuado através da hermenêutica constitucional

A força normativa da Constituição é um marco para o direito contemporâneo, e, consequentemente para o Estado. O direito contemporâneo tem superado a perspectiva do positivismo jurídico, inaugurando uma fase denominada pós-positivismo.

Esta fase de pós-positivismo jurídico é marcada pela hermenêutica, em que é estabelecida uma nova normatividade:

Sob o aspecto filosófico, a identificação do direito com a lei, marcada pelo dogma da lei como expressão da “vontade geral”, foi superada pela hermenêutica jurídica que, sem cair na tentação de retornar à compreensão metafísica proposta pelo direito natural, desenvolveu a distinção entre as regras e os princípios, para dar força normativa a estes, com o escopo de ampliar a efetividade da Constituição (CAMBI, 2006, p. 673).

Os princípios passam a ser normas tanto quanto as regras. Isto é importante porque a Constituição é (também) uma manifestação normativa, sobretudo de caráter principiológico:

Um dos movimentos mais fantásticos ocorrido nas Teorias do Direito e da Constituição contemporâneas foi, sem dúvida, a afirmação da força normativa dos princípios constitucionais, com a superação das correntes teóricas que ainda sustentavam um Direito formado apenas por regras estritas, vistas como únicos preceitos dotados de juridicidade (PEREIRA, 2001, p. 127).

O novo constitucionalismo é a forma atual de o direito se manifestar a partir da Constituição, nesse sentido, todos os institutos jurídicos passam a ser, em última análise, institutos constitucionais, estando positivamente previstos na Constituição ou não. Por questão de lógica, o sistema jurídico contemporâneo é um sistema normativo constitucional, logo, a norma jurídica válida é, inevitavelmente, uma norma constitucional:

Por isso, deve-se afirmar que existe apenas uma Hermenêutica: a Hermenêutica Constitucional que promove, por assim dizer, uma verdadeira “absorção” da chamada Hermenêutica Jurídica Clássica.

Nesse sentido, é possível sustentar igualmente que toda jurisdição é necessariamente jurisdição constitucional (PEREIRA, 2001, p. 122-123).[2]

No cenário liberal clássico, a Constituição existia para afastar a intervenção do Estado. No cenário social subseqüente ao liberal a Constituição ditava direções gerais de atuação ao Estado, mas faltava a normatividade destas direções. Já no cenário contemporâneo, os princípios constitucionais gozam de juridicidade, inclusive quando importam em direções gerais.

Graças a esta normatividade de princípios constitucionais pode-se dizer que as normas programáticas ganham novo sentido:

O sentido dessas normas não é, porém, o assinalado pela doutrina tradicional: “simples programas”, “exortações morais”, “declarações”, “sentenças políticas”, “aforismos políticos”, “promessas”, “apelos ao legislador”, “programas futuros”, juridicamente desprovidos de qualquer vinculatividade. Às “normas programáticas” é reconhecido hoje um valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da constituição (CANOTILHO, 2003, p. 1176).

Então, o fundamento filosófico remete à questão da normatividade da Constituição, em especial a juridicidade dos princípios que passam a ser normas constitucionais, graças à hermenêutica constitucional própria do novo constitucionalismo.


5. Fundamentos teóricos do novo constitucionalismo

A supremacia constitucional é possível graças a um dos aspectos teóricos essenciais ao novo constitucionalismo: a força normativa da Constituição. Os outros dois aspectos teóricos são: a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional [BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e a Constitucionalização do Direito (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil). Salvador, 2007. < http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-9-MAR%C7O-2007-LUIZ% 20 ROBE RTO %20BARROSO.pdf > Acesso em: 12/10/2011].

A força normativa da Constituição foi evidenciada no tópico terceiro deste artigo quando da formação do novo constitucionalismo e a importância teórica de Konrad Hesse bem como o início da recepção desta teoria no Brasil com a promulgação da Constituição de 1988.

No que diz respeito à expansão da jurisdição constitucional, a temática tem sido muito discutida (e difundida), ensejando o estudo da jurisdição constitucional e do processo constitucional.

Já a nova dogmática da interpretação constitucional modificou a forma mesmo de perceber a norma jurídica no novo constitucionalismo.

Tais aspectos teóricos serão analisados em tópicos separados, tendo em vista algumas críticas a serem consideradas.

5.1. Expansão da jurisdição constitucional

O liberalismo trouxe a ideia de que o poder Legislativo traduzia a razão em leis por refletir nestas a vontade geral do povo. Isto propiciou um ambiente de predominância do poder Legislativo a partir do Estado Liberal.

A fase do Estado Social elevou o Estado a protagonista de ações políticas e sociais, sendo que tal papel protagonista é em grande medida exercido pelo poder Executivo. Não significou o fim do poder Legislativo, apenas adicionou à cena do jogo de poderes o Executivo.

Tanto no constitucionalismo liberal quanto no constitucionalismo social, os atos políticos com teor legislativo (mesmo os atos emanados do Executivo com tal função, no caso do Brasil a proliferação do decreto-lei, em situações de Estado Intervencionista/Social) são os mais importantes, ou seja, a lei tem mais significado político prático do que a própria Constituição. Por isto, tanto o Estado Liberal, quanto o Estado Social, por mais que sejam Estados formatados a partir de uma constituição, são Estados, sobretudo, Legais.

O Estado Contemporâneo é um Estado Constitucional por excelência, não se restringe à lei ou está reduzido a um Estado Legal. O Estado Constitucional Contemporâneo é formatado a partir de uma constituição, e a Constituição deste Estado deve ser efetivada. A Constituição do Estado não pode se limitar a um documento político ou cultural, mas deve ser um documento também normativo, dotado, por evidente, de juridicidade.

O novo constitucionalismo está presente neste Estado Contemporâneo e Constitucional. A Constituição ganha relevância social a cada dia dentro deste Estado. As questões de Estado são questões constitucionais, como se a Constituição fosse o centro gravitacional em torno do qual gira todo o aparato jurídico do Estado.

Nesse diapasão, a discussão sobre as normas envolve cada vez mais a constitucionalidade das mesmas, uma vez que dentro de um Estado Constitucional não pode haver norma que não seja constitucional. Há um crescimento do conhecimento da Constituição, da aplicação da mesma tendo em vista a efetividade.

A Constituição é a fonte do direito no novo constitucionalismo. Com o amplo acesso à justiça garantido na Constituição brasileira de 1988, os cidadãos tendem a buscar a concretização dos seus direitos através do poder Judiciário, incrementando essa tendência de expansão da jurisdição constitucional. Aliás, o amplo acesso à justiça é uma das causas apontadas por Eduardo Cambi (2006, p. 665) para explicar a expansão da jurisdição constitucional.

Luís Roberto Barroso justifica o crescimento da jurisdição constitucional com a Constituição de 1988 que ampliou a legitimidade para o direito de propositura de ação direta de constitucionalidade:

(...) a jurisdição constitucional expandiu-se, verdadeiramente, a partir da Constituição de 1988. A causa determinante foi a ampliação do direito de propositura. A ela somou-se a criação de novos mecanismos de controle concentrado, como a ação declaratória de constitucionalidade e a regulamentação da argüição de descumprimento de preceito fundamental (BARROSO, 2007, p. 07).

A jurisdição constitucional remete ao controle de constitucionalidade e atualmente a doutrina tem estipulado os contornos teóricos de um processo constitucional: “estudo dos instrumentos estabelecidos nos diversos ordenamentos jurídicos para a resolução dos conflitos ou controvérsias de caráter estritamente constitucional” (BARACHO, 2001, p. 136).

Sobre o processo constitucional, na doutrina brasileira podemos exemplificar através de Willis Santiago Guerra Filho (2000, p. 27). O autor diz “que a Constituição possui a natureza (também) de uma lei processual, assim como institutos fundamentais do direito processual possuem estatuto constitucional”. No mesmo sentido, Cândido Rangel Dinamarco (2005, p. 207-208) ressalta que o método constitucionalista compreende a tutela constitucional do processo e a jurisdição constitucional das liberdades.

A relação entre Constituição e processo encontra guarida em doutrina estrangeira também, como ressalta Gustavo Binenbojm (2001, p. 106), “a compreensão procedimentalista da jurisdição constitucional – que, de resto, reflete uma visão procedimental da própria Constituição – foi recebida com interesse por teóricos da filosofia política como Robert Dahl e Jürgen Habermas”. O processo constitucional gira em torno da jurisdição constitucional.

A jurisdição constitucional evidencia um ativismo judicial, logo, no Estado Contemporâneo delineado pelo novo constitucionalismo corre o risco de proeminência do poder Judiciário.

Segundo Luís Roberto Barroso (2009, p. 335), as “origens do ativismo judicial remontam à jurisprudência norte-americana” e a “ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes”.

O problema do ativismo judicial é que, diferentemente dos poderes Legislativo e Executivo, o poder Judiciário, no Brasil, não passa por um processo eleitoral, expressão base da democracia representativa:

As críticas, como já salientado, partem da ausência de legitimidade democrática do Poder Judiciário. Poderiam os magistrados, não tendo sido eleitos pelo voto direto, tomar decisões políticas, em nome da maioria da população? (CAMBI, 2006, p. 666).

Eduardo Cambi (2006, p. 666-667) salienta, contudo, que a democracia representativa está em crise por três motivos: a “vontade do representante não se identifica com a do representado; cada vez mais se verifica o afastamento do povo do processo político; falta de igualdade de participação no processo político”.

A expansão da jurisdição constitucional e o consequente ativismo judicial, não são em si causas da “crise” da democracia. A democracia de uma forma geral, em especial a democracia representativa (modelo majoritário, inclusive no Brasil), passa por alguns problemas que envolvem não só o poder Judiciário e o ativismo judicial, mas a própria “crise do Estado-Nação”.[3]

A judicialização da política e o “risco de politização da Justiça” (BARROSO, 2009, p. 340) podem sinalizar para um problema político de legitimidade caso o poder Judiciário exceda seus limites institucionais.

O estabelecimento dos limites do poder Judiciário passa, necessariamente, pelo exame do terceiro componente do novo constitucionalismo: nova dogmática da interpretação constitucional, analisado a seguir.

5.2. Nova dogmática da interpretação constitucional

A título de preliminar, necessário destacar que interpretação é algo distinto de hermenêutica:

A hermenêutica e a interpretação são conceitos que não se confundem. A hermenêutica, como uma teoria científica, tem por objetivo fundamental ordenar métodos e princípios próprios para o exercício das operações interpretativas. Já a interpretação, como atividade criadora, visa dar operacionalidade ao Direito, convertendo a norma geral e abstrata numa norma individualizada e concreta (MARIN, 2008, p. 117).

A hermenêutica constitucional permite a interpretação das disposições normativas. Neste ponto, importa distinguir ainda a diferença entre norma e proposição (ou disposição normativa). Grosso modo, a disposição normativa é um texto, uma forma seca e ainda sem interpretação. A norma começa a se definir a partir do momento que a disposição normativa é dotada de significado. O conceito de norma, assim, necessita de um trabalho hermenêutico para se chegar a uma interpretação da proposição da qual se extrai a norma jurídica, o que, na perspectiva do novo constitucionalismo, será uma norma constitucional.

Muito embora hermenêutica e interpretação constitucional não sejam a mesma coisa, a dogmática da interpretação constitucional sob a égide do novo constitucionalismo exige a consideração de aspectos da hermenêutica constitucional, uma vez que esta hermenêutica possibilita a interpretação constitucional compositora de normas constitucionais.

Em primeiro lugar, a Constituição possui singularidades na manifestação de suas normas:

Embora seja uma lei e como tal deva ser interpretada, a Constituição merece uma apreciação destacada dentro do sistema, à vista do conjunto de peculiaridades que singularizam suas normas. Quatro delas merecem referência expressa: a) a superioridade hierárquica; b) a natureza da linguagem; c) o conteúdo específico; d) o caráter político (BARROSO, 2009, p. 111).

Esse conjunto de peculiaridades singulariza as normas constitucionais e são os pressupostos da hermenêutica constitucional, o que nos leva à questão dos intérpretes da Constituição e os princípios de interpretação especificamente constitucional.

No quesito de intérpretes da Constituição, importante os ensinamentos de Pablo Lucas Verdú sobre a “Constituição aberta”, o que nos leva a Peter Häberle e sua “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”.

A questão de uma “Constituição aberta”, e de uma “sociedade aberta de intérpretes” reflete a constitucionalidade contemporânea, e cabe a toda a sociedade a interpretação de seu documento jurídico máximo, sobretudo em um cenário dotado de pluralismo político, e, naturalmente, pluralismo jurídico.

A interpretação, ao mesmo tempo em que deve ser possível aos diversos elementos e setores sociais, num processo democrático, também deve observar critérios e princípios interpretativos relativos à Constituição.

O fundamento ou princípio primeiro é o da supremacia da Constituição (superioridade hierárquica da Constituição enquanto pressuposto de singularidade da norma constitucional), sendo esta a origem da discussão sobre o fundamento da hermenêutica constitucional (PEREIRA, 2001, p. 92 ss).

Os princípios de interpretação especificamente constitucional compreendem o próprio princípio da supremacia da Constituição; o princípio da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público; o princípio da interpretação conforme a Constituição; o princípio da unidade da Constituição; os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade; e, por fim, o princípio da efetividade (BARROSO, 2009, p. 155-279).

A supremacia da Constituição decorre do pressuposto de superioridade hierárquica da Constituição. Este pressuposto reflete na questão temporal do direito, em que pese a revogação e recepção de leis anteriores ou contrárias à Constituição (BERNARDES, 2002, p. 13 e ss).

A supremacia da Constituição, como o próprio nome já diz, concentra-se na relação entre lei e Constituição, superando os métodos clássicos de interpretação da hermenêutica clássica que acabava privilegiando a lei isoladamente. Com a supremacia, não há como considerar uma lei sem considerar a Constituição. Nesse viés, consequências decorrem do princípio em tela: vínculo legislativo; vínculo de atos estatais; reserva constitucional; força normativa da Constituição (CANOTILHO, 2003, p. 242 e ss).

O princípio da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público, conforme proposto por Canotilho (acima), é uma consequência da supremacia constitucional. Parte-se sempre do pressuposto de que as leis, e não somente estas, as normas de uma forma geral (engloba-se aí os atos do Poder Público) são constitucionais. Este princípio considera tanto a legitimidade do poder público constituído sob uma perspectiva democrático-representativa cuja legitimidade se manifesta através de normas a princípio constitucionais como também reflete a tendência do novo constitucionalismo em que as normas jurídicas, em qualquer seara do direito, são normas constitucionais, conforme já exposto.

No caso, ao ser considerada uma norma emanada do Poder Público, a interpretação da mesma se inicia com a dialética entre a norma pública e a norma constitucional, em que o trabalho do hermeneuta sintetizará uma norma necessariamente constitucional. Sentido oposto, se verificada a inconstitucionalidade, o que é uma exceção dentro desta perspectiva, a norma deve ter sua aplicação afastada.

Com relação à interpretação conforme a Constituição, trata-se de um princípio interpretativo cujo escopo principal é prevenir antinomias. Como dito no escopo deste tópico, norma e disposição normativa (proposição) não se confundem. De uma disposição normativa podem surgir mais de uma norma jurídica. Ao se interpretar uma disposição e dotá-la de significado, portanto, tornando-a norma jurídica, o intérprete deve se atentar à melhor interpretação tendo em vista a Constituição, desta forma prevenindo antinomias. Mais uma vez, é um princípio de interpretação constitucional. Entretanto, vale a crítica a respeito do uso equivocado deste princípio como se fosse técnica decisória de controle abstrato de constitucionalidade (BERNARDES; FERREIRA, 2011, p. 495).

Sobre a unidade da Constituição, mais uma vez, remetemos à questão de sistema jurídico, o qual, atualmente, parte do princípio de que o sistema jurídico é um sistema constitucional. A unidade refere-se à Constituição enquanto um todo que abrange as diversas áreas do direito, as quais devem estar consoantes à Constituição. O princípio reforça a ideia de que toda norma deve ser dotada de constitucionalidade para ter validade. Aqui, concordamos com as teses jurídicas a partir da autopoiese luhmanniana, em que a Constituição seria um sistema autopoiético, sustentável a partir de si mesmo (VILLAS BÔAS FILHO, 2006, p. 268). A unidade da Constituição enquanto princípio.

As noções de proporcionalidade e razoabilidade têm sido bastante disseminadas na constitucionalidade contemporânea. Todavia, existem duas problemáticas envolvendo a proporcionalidade e a razoabilidade: a primeira é o uso pouco técnico dos termos, como se sinônimos fossem. A segunda é que, apesar de serem bastante reverenciados, ainda são pouco praticados.

A primeira questão que se faz necessária é que há sim distinções entre a proporcionalidade e a razoabilidade.

Inicialmente, cumpre-nos ressaltar que, para a doutrina brasileira, proporcionalidade e razoabilidade são princípios especificamente de interpretação constitucional (BARROSO, 2009, p. 224 e ss).

As origens da razoabilidade moderna têm raízes no devido processo legal de pioneirismo estadunidense. A relação entre razoabilidade e processo é extremamente necessária na tendência constitucional contemporânea:

O princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça. Sendo mais fácil de ser sentido do que conceituado, o princípio se dilui em um conjunto de proposições que não o libertam de uma dimensão excessivamente subjetiva. É razoável o que seja conforme à razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar (BARROSO, 2009, p. 230-231).

A razoabilidade enquanto princípio de interpretação deve se expressar de forma interna: relação razoável entre meios e fins dentro da própria norma; e de forma externa: relação razoável entre meios e fins constitucionais. Ou seja, edita-se uma norma, e seu próprio fundamento deve ser razoável. Além deste fundamento próprio, deve estar consoante à Constituição quanto ao que esta preconiza em seus meios e fins.

Grosso modo, portanto, a razoabilidade tende a ser expressa como uma conciliação entre os meios e os fins.

A proporcionalidade foi muita difundida na doutrina alemã através de Robert Alexy (2011, p. 156 ss). Ao analisar a prática de muitos tribunais alemães, Alexy destaca que um dos temas principais sobre a interpretação dos direitos fundamentais (os quais estão presentes na maioria das Constituições contemporâneas) é a ponderação. E continua dizendo que a ponderação é parte do princípio da proporcionalidade.

O princípio da proporcionalidade consiste em três princípios parciais, a saber: idoneidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito:

Os princípios parciais da idoneidade e da necessidade concernem à otimização relativamente às possibilidade fáticas. O terceiro princípio parcial, o princípio da proporcionalidade em sentido restrito, concerne à otimização relativamente às possibilidades jurídicas (ALEXY, 2011, p. 156).

A questão de possibilidades jurídicas múltiplas refere-se, sobretudo a diversidade principiológica e a conciliação entre eles, em especial quando cada princípio aponta em sentido contrário e precisa-se de ponderar qual o princípio deve ser aplicado.

Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade têm sido considerados, principalmente, na seara do direito administrativo (inclusive processo administrativo) e do direito processual. Isto porque a razoabilidade e proporcionalidade devem ser utilizadas para interpretação de disposições normativas, criando normas. Ora, a criação de normas é um trabalho cuja aplicabilidade reside na seara processual, seja judicial ou administrativo.

Os textos, proposições e disposições normativas estão espalhados pelos diversos setores sociais e áreas do direito. Mas, é na decisão dos conflitos em que as disposições normativas são trazidas à discussão, que se faz necessário o trabalho interpretativo, logo, a razoabilidade e a proporcionalidade vão orientar a tomada de decisão mitigando um exagero de discricionariedade por parte de quem dá significado à disposição e cria a norma aplicável.

O princípio interpretativo da efetividade é a própria meta do novo constitucionalismo proposta desde a teoria da força normativa da Constituição, sendo que as normas constitucionais devem sim ser realizadas, materializadas e concretizadas.

Em relação, então às críticas ao ativismo judicial, devemos considerar que o poder Judiciário tem um papel institucional de decidir questões cruciais ao Estado e em prol do cidadão. No caso brasileiro, o Supremo Tribunal Federal tem tido destaque em importantes decisões, inclusive políticas. É normal que o poder Judiciário se manifeste sobre questões políticas, faz parte do seu papel institucional a guarda da Constituição (art. 102, CF), que é um documento jurídico, dotado de normatividade, mas também um documento de expressão política, assim:

A Constituição faz a interface entre o universo político e o jurídico, em um esforço para submeter o poder às categorias que mobilizam o Direito, como a justiça, a segurança, o bem-estar social. Sua interpretação, portanto, sempre terá uma dimensão política, ainda que balizada pelas possibilidades e limites oferecidos pelo ordenamento vigente (BARROSO, 2009, p. 341).

O poder Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal, que embora não seja um tribunal constitucional ao molde estadunidense, ainda assim é o órgão máximo responsável pelas questões constitucionais em última instância, deve considerar toda a dinâmica da interpretação constitucional para que a proeminência do Judiciário, tendência do novo constitucionalismo através da expansão da jurisdição constitucional, “não se converta em uma instância autoritária de poder” (BINENBOJM, 2001, p. 114). Aliás, Gustavo Binenbojm, em referência a Habermas, escreve sobre a “atuação legítima da jurisdição constitucional: a proteção do sistema de direitos possibilita a autonomia privada e política dos cidadãos, condição da gênese democrática das leis” (2001, p. 112).

A relevância do poder Judiciário pode e deve possibilitar a democracia no Estado Contemporâneo, inclusive através de tribunal constitucional que tenha suas decisões político-normativas pautadas na nova interpretação constitucional.


Considerações finais

O novo constitucionalismo é um movimento em formação que influencia o Estado Contemporâneo. No caso do Brasil, a Constituição de 1988 vem modificando algumas perspectivas do Estado brasileiro.

A perspectiva do novo constitucionalismo no Brasil parece ter efetivado a importância da Constituição na sociedade. A relevância da Constituição tem sido evidente na sociedade em questões sociais e políticas e claro, jurídicas.

O novo constitucionalismo é baseado na força normativa da Constituição, e a expansão da jurisdição constitucional possibilita os direitos a um maior número de pessoas e tem sido uma forma de garantir a justiça. Claro que enfrenta problemas estruturais, desde os que foram apontados durante o artigo até a própria morosidade crônica do poder Judiciário brasileiro. Todavia, o acesso à justiça é uma conquista marcante da Constituição de 1988.

A expansão da jurisdição constitucional presente no Estado Contemporâneo, baseado no movimento do novo constitucionalismo, tem sido mais um ganho para a democracia do que uma causa das “crises” vividas pela mesma, “crises” estas que têm origens, sobretudo no próprio âmbito Legislativo e Executivo.

Então, desde que em consonância com uma interpretação da Constituição pautada em fundamentos jurídicos sólidos e transparentes, a jurisdição constitucional é uma defesa do novo constitucionalismo e aliada da permanência do exercício de poder democrático dentro do Estado Contemporâneo.


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http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-9-MAR%C7O-2007-LUIZ%20ROBERTO%20BARROSO.pdf. Acessado em 12/10/2011.

 


Notas

[1] A força normativa da Constituição, inclusive, é um dos aspectos teóricos estipulados por Luís Roberto Barroso em Neoconstitucionalismo e a Constitucionalização do Direito (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil). Salvador, 2007. <http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-9-MAR%C7O-2007-LUIZ%20ROBERTO%20 BARROSO.pdf > Acesso em: 12/10/2011 e será abordado mais especificamente como tal em capítulo próprio.

[2] A abordagem da jurisdição constitucional atual será tema de tópico posterior por fazer parte dos fundamentos teóricos do novo constitucionalismo de acordo com a classificação de Luís Roberto Barroso Neoconstitucionalismo e a Constitucionalização do Direito (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil). Salvador, 2007. <http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-9-MAR%C7O-2007-LUIZ%20ROBERTO%20BARROSO.pdf> Acesso em: 12/10/2011, já evidenciada no presente artigo.

[3] Dentre os teóricos contemporâneos que abordam o tema sob tal perspectiva está Eric Hobsbawn no texto “A Falência da Democracia” publicado na Folha de São Paulo no dia 09 de setembro de 2001.


Autor

  • Andrey Borges Pimentel Ribeiro

    Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Pós-graduado em Direito Administrativo e Processo Administrativo pela Universidade Cândido Mendes (UCAM/RJ). Advogado. Licenciado em História pela Universidade Estadual de Goiás (UEG). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professor Adjunto no Curso de Direito da Faculdade Sul-Americana (FASAM/GO). Coordenador Adjunto de Pesquisa e TCC do Curso de Direito da Faculdade Sul-Americana (FASAM/GO).

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