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Direito à moradia - diretrizes internacionais sobre o tema

Direito à moradia - diretrizes internacionais sobre o tema

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Enquanto direito humano, o direito à moradia é objeto de tratados e convenções internacionais, que estabelecem componentes que o estruturam.

1. Introdução

Embora compreendido atualmente como um pressuposto do princípio da dignidade da pessoa humana – um dos fundamentos sobre o qual se estrutura a República Federativa do Brasil – o direito à moradia restou positivado explicitamente na Constituição no ano 2000, tendo sido alçado à categoria de direito social.

Não obstante tal positivação, o compromisso de se efetivar o direito à moradia já havia sido assumido pelo Estado brasileiro anteriormente, em razão da ratificação pelo país de tratados internacionais que tratavam da proteção e da promoção de tal direito, tendo em vista o seu reconhecimento como um direito humano.

Ao abordar o direito à moradia sob a perspectiva de direito humano, convenções internacionais estabeleceram uma série de componentes que estruturam esse direito e que devem ser observados pelos Estados signatários sob quaisquer circunstâncias. Neste contexto, o presente trabalho busca analisar as diretrizes internacionais relacionadas ao tema, que devem ser observadas pelo Brasil. 


2. Direito à Moradia no Plano Internacional: Breve Histórico

O direito à moradia restou reconhecido, pela primeira vez, de forma explícita, no plano internacional, segundo Ingo Wolfang Sarlet (2009), na Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948, integrando os intitulados direitos econômicos, sociais e culturais. De acordo com essa Declaração: 

Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948, artigo XXV)

Apesar de o direito à moradia ter sido enunciado nesse documento, cumpre registrar o entendimento de Nelson Saule Júnior citado por Francisco Donizete Gomes (2005), de que tal Declaração não possui valor jurídico. O autor, entretanto, a reconhece, no âmbito do direito internacional, como a fonte originária do direito à moradia por trazer em si um núcleo de direitos da pessoa humana, que foram posteriormente incorporados nos tratados do direito internacional. 

Em sentido diverso, porém, posicionam-se Celso Albuquerque de Mello e Fábio Comparato, ambos citados por Francisco Donizete Gomes (2005), para os quais a Declaração Universal dos Direitos Humanos possui força jurídica, uma vez que seu conteúdo integra o costume e os princípios jurídicos internacionais, que também são fontes do direito internacional.

De toda forma, explicitado nessa Declaração genericamente como “habitação”, o direito à moradia, desde então, passou a ser consubstanciado em diversos tratados e instrumentos internacionais, dos quais alguns serão destacados a seguir.

Cumpre registrar, primeiramente, a natureza jurídica dos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil. 

A respeito do tema, a Constituição de 1988 dispõe que:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.)

Diante desses dispositivos, concorda-se com o entendimento anotado por Flávia Piovesan e Valério Mazzuoli, ambos citados por Daniel Avelar e Carol Proner (2011). Ao discorrerem, pois, sobre a Emenda Constitucional n. 45, de 30 de dezembro de 2004, que acrescentou ao artigo 5º da Constituição Federal o § 3º, os autores afirmam que tal Emenda, em momento algum, tratou de revogar o disposto no §2º do mesmo artigo, o qual confere “status” de norma constitucional aos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Dessa forma, os autores compreendem que os tratados ratificados pelo país até 2004, são materialmente constitucionais, e aqueles que após a edição da Emenda Constitucional n. 45/2004 forem aprovados, em dois turnos, pelo quorum de três quintos dos votos, em cada Casa do Congresso Nacional, além de serem materialmente serão, também, formalmente constitucionais podendo, inclusive, reformar a Constituição.

Registrado o posicionamento sobre a natureza jurídica dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, apontam-se, em seguida, os principais relacionados com o direito à moradia.

Na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965, por exemplo, os Estados partes se comprometeram a erradicar toda e qualquer forma de discriminação ética, sendo reforçado, no âmbito dos direitos econômicos, sociais, e culturais, o direito à habitação, acompanhado dos direitos ao trabalho, à sindicalização e ao acesso à saúde pública. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, 1965). Esta Convenção foi ratificada pelo Brasil em 1969.

Sob essa perspectiva, ainda no plano internacional, tem-se, em 1966, publicado o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC). Este consolida vários direitos já reconhecidos na Declaração Universal de 1948, afirmando que, para se alcançar o ideal do ser humano, de fato, livre – o que implica, necessariamente, em superação da situação de miséria – faz-se indispensável a criação de condições que tornem possível o desfruto, por cada um dos homens, dos direitos econômicos, sociais e culturais, além dos direitos civis e políticos. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1966)

O artigo 11 do supracitado PIDESC é compreendido por Nelson Saule Júnior (1997) como o alicerce do reconhecimento do direito à moradia como um direito humano, tendo gerado, inclusive, para os Estados signatários a obrigação de promover e proteger este direito. Esse dispositivo estabelece que:

Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento.(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1966, artigo 11)

Ratificado pelo Brasil, em 1992, ao tratar do direito à moradia, o PIDESC traz consigo uma especificação importante: não se trata de reconhecer o direito a qualquer tipo de moradia, mas, sim, de reconhecer o direito à moradia adequada.

Mencionam-se, ainda, outras Convenções que, em alguma medida, se referem ao direito à moradia e que foram ratificadas pelo Brasil, reforçando a obrigação do Estado no que toca a efetivação deste Direito Humano: Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, (artigo 14, §2º,h), ratificada em 1984; Convenção sobre os Direitos das Crianças, de 1989, (artigo 27, §3º) ratificada em 1990.

Abrangendo vários países americanos e integrando, assim, um sistema regional de proteção, elaborou-se, em 1969, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto San José da Costa Rica), instrumento ratificado pelo Brasil em 1992. Nesta Convenção, os Estados partes se comprometem a buscar a efetivação progressiva dos direitos econômicos, sociais e culturais, através da implementação de medidas que utilizem todos os recursos disponíveis. (CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS – Pacto San José da Costa Rica, 1969)

Ao tratar da proteção da honra e da dignidade (artigo 11), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de forma expressa, veda as interferências arbitrárias e abusivas na vida privada de qualquer ser humano, incluindo neste ponto o domicílio. Importa registrar, ainda, neste contexto, o reconhecimento do direito à proteção legal contra tais ingerências. No que se refere expressamente ao direito à propriedade, neste instrumento são impostos alguns limites, sendo afirmado, por exemplo, que a lei pode subordinar o uso e o gozo deste direito ao interesse social. Afirma-se, assim, que “nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, salvo mediante o pagamento de indenização justa, por motivo de utilidade pública ou de interesse social e nos casos e na forma estabelecida pela lei”. (CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS – Pacto San José da Costa Rica, 1969, artigo 21)

Ao tratar do direito de circulação e residência, essa Convenção reconhece o direito a toda pessoa que se encontre legalmente em um território de nele circular e residir, de acordo com a lei, só sendo permitido restringir tais direitos mediante lei, devendo tais restrições se aterem ao indispensável para “prevenir infrações penais ou para proteger a segurança nacional, a segurança ou a ordem públicas, a moral ou a saúde públicas ou os direitos e liberdades das demais pessoas”. (CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS – Pacto San José da Costa Rica, 1969, artigo 22)

Em 1976, é realizada em Vancouver, no Canadá, uma Conferência das Nações Unidas, que acaba por agregar ao direito à moradia uma nova perspectiva: a dos assentamentos humanos. Reconhecendo de maneira manifesta que a condição dos assentamentos humanos, citada na declaração como “extremamente grave”, afeta de forma determinante a qualidade de vida da população, prejudicando inclusive a satisfação de suas necessidades básicas, a Declaração de Vancouver sobre Assentamentos Humanos estabelece propostas e princípios gerais a serem seguidos pelos Estados diante da finalidade de se melhorar a qualidade de vida nestes conglomerados demográficos. Afirma-se neste documento que os assentamentos humanos devem ser compreendidos como um instrumento e objeto de desenvolvimento. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração de Vancouver sobre os Assentamentos Humanos, 1976)

Neste contexto, os Estados devem desenvolver e implementar políticas e programas direcionadas aos assentamentos humanos que tenham por objetivo melhorar a qualidade de vida da população alocada nessas localidades, devendo receber atenção a área da saúde, emprego, educação, higiene, água, energia, alimentação e moradia ou abrigo.

De acordo com Francisco Donizete Gomes, a Declaração de Vancouver estabelece as seguintes diretrizes para as políticas e programas de assentamentos humanos: 

a) urgência e progressividade na satisfação das necessidades básicas de comida, abrigo, água pura, emprego, saúde, educação, treinamento e seguridade social;

b) proibição de discriminação por raça, cor, sexo, língua, religião, ideologia, origem social ou nacional ou outra causa;

c) respeito ao direito de livre locomoção e à livre escolha do lugar de estabelecimento dentro dos limites do país;

d) planejamento e regulamentação do uso da terra;

e) respeito ao meio ambiente, ao patrimônio histórico e cultural;

f) participação das pessoas, individual ou coletivamente, com medidas para assegurar a atuação das mulheres e jovens;

g) prioridade aos menos favorecidos;

h) cooperação internacional. (GOMES, 2005, p. 48)

Vinte anos depois, em 1996, em Istambul, Turquia, realiza-se outra Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos, conhecida também por Habitat II, que tratou de discutir principalmente sobre dois temas: “Moradia Adequada para Todos” e “Desenvolvimento de Assentamentos Humanos Sustentáveis em um Mundo em Processo de Urbanização”. Em decorrência desse encontro, foram elaboradas a Declaração de Istambul sobre os Assentamentos Humanos e a Agenda Habitat.

Através da Declaração de Istambul, os Estados atualizam e detalham os compromissos assumidos em Vancouver, em 1976, com o objetivo claro de melhorar os padrões de vida para toda a humanidade. Sob a perspectiva de implementação progressiva e total do direito à moradia adequada, os Estados reconhecem que devem buscar a participação de entes públicos, privados e não governamentais, a fim de se atingir um cenário de acesso igualitário às moradias adequadas. Reconhece-se a interdependência entre os desenvolvimentos rural e urbano, sendo afirmada a necessidade de se garantir também nas cidades médias, pequenas e zonas rurais a infraestrutura adequada e os serviços públicos a fim de se mitigar o processo de migração para as áreas urbanas. Neste documento os Estados manifestam, ainda, o seu compromisso com o conteúdo da Agenda Habitat, expressando apoio a sua efetiva implementação. (ORGANIZAÇÃO DAS NACÕES UNIDAS. Declaração de Istambul sobre Assentamentos Humanos, 1996)

A Agenda Habitat, por sua vez, constitui-se em um programa detalhado, que contém preâmbulo, objetivos, princípios, compromissos e estratégias de concretização, formando tais estratégias uma espécie de “Plano de Ação Mundial”. Em seu preâmbulo, aborda-se a moradia adequada – descrita como segura e saudável – como uma condição para o bem estar físico, psicológico, social e econômico do ser humano. Afirma-se, também, que o desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos é composto por desenvolvimento econômico, social, proteção ao meio ambiente e respeito pleno aos direitos humanos. Neste preâmbulo são destacados, ainda, problemas graves enfrentados pelas cidades e seus habitantes, sendo citados, por exemplo: o desenvolvimento urbano descoordenado, a insuficiência de recursos financeiros, a expansão de assentamentos irregulares, de pessoas sem teto, o uso indevido do solo e a posse insegura da terra. Outro aspecto relevante presente neste preâmbulo é o reconhecimento de que os processos participativos que tratam da formação das cidades, vilas e bairros devem merecer atenção especial a fim de se utilizar o conhecimento e a criatividade que dali emergem. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Agenda Habitat, 1996)

Já na parte destinada aos objetivos e princípios da Agenda Habitat, afirma-se como um direito soberano de cada Estado parte, e ao mesmo tempo, como uma de suas responsabilidades a implementação da referida Agenda, inclusive através de leis nacionais e definição de prioridades e elaboração de políticas públicas. Explicitam-se, ainda, como objetivos e princípios do Programa: a moradia adequada para todos e o desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos, sendo manifestada a ideia de que atingindo esses objetivos, contribuir-se-á para um mundo com menos injustiças e com paz duradoura. Reafirma-se o compromisso de implementação do direito à moradia adequada de forma progressiva, tal como consta em diversos documentos internacionais, sendo citado dentre eles o PIDESC. Nesta parte da Agenda Habitat, define-se, também, o que se entende por “assentamentos humanos equitativos” e “assentamentos humanos sustentáveis”, sendo estabelecido, assim, um cenário para o qual todos os assentamentos devem ser conduzidos. 

Em seu capítulo III, a Agenda Habitat elenca e detalha os compromissos assumidos pelos Estados participantes, os quais se dividem genericamente entre: a) Moradia adequada para todos; b) Assentamentos humanos sustentáveis; c) Capacitação e participação; d) Igualdade de gênero; e) Financiamento da moradia e dos assentamentos humanos; f) Cooperação internacional; g) Avaliação dos progressos.

Já o capítulo IV é responsável por descrever o “Plano de Ação Global”, no qual se elencam diversas medidas a serem executadas, tendo em vista os objetivos propostos no documento analisado. Ressalta-se, nesse tópico, que as medidas ali propostas devem ser adaptadas à realidade de cada país e sua comunidade. Reconhece-se, ainda, que embora os entraves estruturais necessitem de intervenções a nível nacional, ou até mesmo internacional, o avanço no que tange à melhoria das condições de vida nos assentamentos humanos dependerá, em grande parte, do envolvimento das autoridades locais e das parcerias entre os setores público, privado e organizações não governamentais e comunitárias.

No que se refere à implementação progressiva do direito à moradia, devem ser destacadas as seguintes medidas previstas no Plano de Ação Global aos Estados participantes: a) dispor que, tratando-se do direito à habitação, a lei proibirá qualquer forma de discriminação e garantirá a todas as pessoas proteção contra a discriminação; b) garantir a segurança jurídica da posse, acesso igualitário à terra; c) adotar medidas que se destinem a tornar as moradias habitáveis e acessíveis, inclusive para aqueles que não dispõem de condições próprias para garantirem uma habitação para si mesmos; d) promover sistemas de transportes capazes de melhorar a acessibilidade da população aos bens, serviços e trabalho. Para tanto, propõem-se, dentre outras, ações de regulação e incentivos de mercado, concessão de subsídios, aluguel, ou outras formas de auxílio moradia para as pessoas que vivem em situação de pobreza, integração das políticas habitacionais com as políticas voltadas para o desenvolvimento macroeconômico e social, descentralização e capacitação das autoridades locais e participação popular.

Com propostas concretas e objetivos claros de realização do direito à moradia adequada para todos e de desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos, a Conferência de Istambul, sua Declaração e o Programa Habitat constituem-se em marcos importantes para a consolidação do direito à moradia. Sobre esse assunto, acrescenta Francisco Donizete Gomes que:

[...] adquirem especial importância na compreensão e interpretação do direito à moradia na CF/88. Foram os trabalhos preparatórios da delegação brasileira à dita conferência e o papel de proeminência desempenhado pelo Brasil nos debates e nos relatórios que motivaram a retomada do tema da moradia, culminando com a proposta de EC que alterou a redação do caput do art. 6º da CF/88 para incluir a moradia entre direitos sociais. (GOMES, 2005, p. 61)

Dessa forma, no Brasil, doze anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, o direito à moradia foi alçado, de maneira explícita, à categoria de direito social, através da edição da Emenda Constitucional n. 26, de 14 de fevereiro de 2000. Observa-se, que ao inserir o direito à moradia na classe de direito social, não se definiu de forma expressa o conteúdo mínimo deste direito. Tal conteúdo, porém, encontra-se gravado nos diversos tratados e documentos internacionais sobre direitos humanos firmados pelo Brasil e será detalhado a seguir.


3. Direito à Moradia Adequada

Tendo sido apresentados, no tópico anterior, alguns dos principais documentos internacionais relacionados com a consolidação do direito à moradia, pretende-se, então, tratar sobre o conceito de moradia adequada, abordando-se os fatores e condições que o estruturam.

Como já explicitado, o direito à moradia integra, desde o ano 2000, o rol dos direitos sociais expressamente previstos pela Constituição Federal brasileira. Para Alexandre de Moraes (2003), os direitos sociais, ao serem compreendidos como direitos fundamentais do homem, exigem do Estado prestações positivas, as quais devem possibilitar a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos mais vulneráveis, de forma a equalizar as situações sociais desiguais.

Corroborando este entendimento, José Afonso da Silva (2005) aponta os direitos sociais como “pressupostos do gozo dos direitos individuais”, uma vez que a satisfação daqueles tende a proporcionar situações de igualdade material entre as pessoas, tornando, assim, mais possível o exercício efetivo da liberdade.

O direito à moradia, por sua vez, é compreendido por José Afonso da Silva da seguinte forma:

O direito à moradia significa ocupar um lugar como residência; ocupar uma casa, apartamento etc., para nele habitar. No “morar” encontramos a idéia básica da habitualidade no permanecer ocupando uma edificação, o que sobressai com sua correlação com o residir e o habitar, com a mesma conotação de permanecer ocupando um lugar permanentemente. O direito à moradia não é necessariamente o direito à casa própria. Quer-se que se garanta a todos um teto onde se abrigue com a família de modo permanente, segundo a própria etimologia do verbo morar, do latim “morari”, que significa demorar, ficar [...] (SILVA, 2005, p. 313)

Ao tratar da relação entre o direito à moradia e a dignidade da pessoa humana, Helano Márcio Vieira Rangel e Jacilene Vieira da SIlva (2009) relembram a ideia de Estado Democrático de Direito e estabelecem o direito à moradia como um desdobramento da função social da propriedade – prevista na Constituição Federal de 1988 tanto na parte relativa aos direitos fundamentais (artigo 5º, XXIII), quanto no capítulo referente aos princípios da atividade econômica (artigo170, III). Em nossa ordem jurídica, a função social da propriedade atua, portanto, estruturando o direito à propriedade, dando a ele conteúdo e sentido.

Diante da perspectiva de se compreender a importância do direito à moradia, cumpre reforçar a relação da moradia com a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos sobre o qual se estrutura a República Federativa do Brasil, de acordo com o art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988.

Elza Maria Alves Canuto (2008) destaca o direito à moradia como um pressuposto à efetivação da dignidade da pessoa humana, em seu sentido material. Para a autora, uma situação de dignidade humana material é aquela na qual o “mínimo existencial” seja atendido, estando abarcados neste mínimo os direitos sociais. Neste sentido, afirma-se que sem habitação não há dignidade humana que se concretize.

Portanto, em uma situação onde não se tem devidamente assegurado ao sujeito o direito à moradia, tem-se de imediato uma violação também ao princípio da dignidade da pessoa humana, podendo ainda ser observado que a violação ao direito à moradia determina e afeta de forma grave o exercício de outros direitos básicos, tais como a saúde, a educação, o trabalho e o lazer. 

O texto constitucional, entretanto, ao estabelecer, em 2000, o direito à moradia como um direito social, não trouxe consigo um conteúdo mínimo a respeito da moradia que estava sendo assegurada. A definição de parâmetros mínimos relacionados à moradia, porém, já havia sido realizada internacionalmente, através de um documento publicado pelo Comitê das Nações Unidas de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais sobre o PIDESC, denominado “Comentário Geral n. 4”, o qual será abordado a seguir.

3.1 Comentário Geral n.4 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

No que diz respeito ao direito à moradia, em 1991, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais editou o Comentário Geral n. 4, que tratou sobre a definição de moradia adequada, servindo como um instrumento importante de consubstanciação deste direito. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Comentário Geral n. 4 sobre o Direito à Moradia Adequada, 1991)

De acordo com este Comentário Geral, o direito à moradia não deve ser compreendido e concretizado a partir de uma concepção minimalista ou restrita sobre o que se entende por moradia. O direito à habitação deve ser assegurado a todos, independentemente de renda, e vai muito além do que se ter apenas um teto para se abrigar, devendo ser concebido como o direito a se viver em algum lugar com paz, segurança e dignidade. 

O supracitado Comitê reconhece neste Comentário Geral que a adequação de uma moradia pode variar, em alguma medida, em razão de características específicas do país ou comunidade que se analisa, mas ele afirma que, em relação à moradia, alguns aspectos devem ser considerados e assegurados em qualquer lugar, sob quaisquer circunstâncias. Sob este entendimento, para que uma moradia possa ser considerada adequada, segundo o referido Comitê, os seguintes fatores precisam ser atendidos: a) Segurança jurídica da posse; b) Disponibilidade de serviços, materiais, instalações e infraestrutura; c) Custo acessível; d) Habitabilidade; e) Acessibilidade; f) Localização; g) Adequação Cultural.

No que diz respeito à segurança jurídica da posse, o documento analisado reconhece a diversidade de formas de origem da posse, tais como a locação, o arrendamento, a habitação cooperativa, as ocupações informais, e afirma que independente da forma, faz-se necessário garantir às pessoas certo grau de segurança jurídica que as proteja legalmente contra os despejos forçados, perturbações ou outras ameaças.

Quanto ao segundo fator, afirma-se que uma moradia adequada deve contemplar certas instalações fundamentais para saúde, segurança, conforto e nutrição de seus moradores. Assim, há que se ter acesso à energia para cozinhar, água apropriada para beber, aquecimento, iluminação, instalações sanitárias e de asseio e formas de armazenar comida, eliminar lixos e dejetos, drenagem do local e serviços de emergência.

Além disso, uma moradia adequada deve ser de custo acessível, sendo assim necessário que os gastos relacionados a ela não comprometam a satisfação de outras necessidades básicas daquele grupo doméstico. Destaca-se, ainda, que o custo de uma moradia adequada deve ser compatível com o nível de renda percebido nos Estados partes e que os governos devem adotar medidas para que isso seja de fato uma realidade. Estabelece-se, assim, que os Estados devem fornecer subsídios para aqueles que se encontrem incapazes de conseguir uma moradia adequada a um custo suportável, bem como prover formas e níveis de financiamento que atendam às necessidades habitacionais de sua população. Sob tal perspectiva, é previsto, também, que os inquilinos devem ser protegidos contra preços ou aumentos não razoáveis dos custos do aluguel.

A moradia adequada deve ser, ainda, composta por um espaço apropriado, capaz de garantir aos seus ocupantes segurança física e protegê-los contra as intempéries do tempo e do clima, além de protegê-los contra ameaças à saúde, riscos estruturais e vetores de doenças, constituindo-se, assim, em um local habitável. 

Sob a perspectiva de que a moradia deve ser acessível aos titulares desse direito, o Comentário Geral n. 4 estabelece que tanto as leis quanto as políticas e programas destinados à habitação devem considerar as necessidades especiais de grupos em situações de vulnerabilidade, de grupos desfavorecidos, sendo citados os idosos, os portadores de doenças crônicas, deficientes físicos, vítimas de desastres naturais e moradores de área de risco, dentre outros. Afirma-se que esses grupos devem ser considerados, em alguma medida, de forma prioritária na realização do direito à moradia. Neste ponto, esclarecem que os governos devem agir para aumentar o acesso à terra por parte de grupos empobrecidos ou sem-terra, devendo este constituir-se em um objetivo político central.

Quanto ao aspecto localização, para ser adequada, uma moradia precisa situar-se em um local que permita o acesso de seus moradores a opções de emprego, serviços de saúde, escolas, creches e outros serviços públicos essenciais. A consideração desse aspecto é importante, uma vez que se reconhece que tanto nas grandes cidades como nas áreas rurais, as famílias costumam gastar boa parte de seu tempo e de seus recursos para se deslocarem de sua residência até o local de trabalho. Observa-se, também, que não se deve construir moradias próximas a locais poluídos, ou nas imediações de fontes de poluição.

Por fim, salienta-se que as políticas de habitação e os materiais e a forma como são construídas as moradias devem permitir a expressão de identidade cultural e da diversidade das habitações.


4. Considerações Finais

Analisando as diretrizes internacionais relacionadas ao direito à moradia, observa-se de forma inequívoca que esse direito transcende a ideia de se ter apenas um teto para abrigar-se, devendo estar presentes diversos fatores e condições, os quais, pode-se dizer, derivam de outros direitos humanos e do princípio da dignidade da pessoa humana. Corroborando este entendimento, Nelson Saule Júnior destaca que:

O direito à moradia derivado do direito a um nível de vida adequado configura a sua indivisibilidade e interdependência e inter-relacionamento, como direito humano, por exemplo, com o direito de liberdade de escolha de residência, o direito de liberdade de associação (como as de moradores de bairro, vila e comunidades de base), com o direito de segurança (casos de despejos e remoções forçadas ou arbitrárias ilegais), o direito de privacidade da família, casa e correspondência, com o direito a higiene ambiental e o direito de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental. (SAULE JUNIOR, 1997, p. 67)

Conforme demonstrado ao longo desse trabalho, essa concepção abrangente do direito à moradia envolve, de forma necessária, o resguardo da privacidade, da saúde, da segurança jurídica da posse, da acessibilidade física, do custo suportável, da estabilidade estrutural. Além disso, há que se ter garantido o acesso ao abastecimento de água e ao saneamento básico e sua localização deve permitir o acesso ao trabalho e a outros serviços básicos. 

Diante das normas e diretrizes internacionais relacionadas ao tema, considera-se indispensável a implementação de políticas públicas consistentes e multidimensionais com o intuito de que o direito à moradia possa ser, de fato, desfrutado por grande parte da população brasileira, não devendo ser esquecido que essa moradia tem de estar integrada à cidade.


5. Referências 

AVELAR, Daniel; PRONER, Carol. A Natureza Jurídica dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, Sua Harmonização e Aplicabilidade no Ordenamento Brasileiro. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, jul./dez. 2011.

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CANUTO, Elza Maria Alves. O Direito à Moradia Urbana como um dos Pressupostos para a Efetivação da Dignidade da Pessoa Humana. Tese, Universidade Federal de Uberlândia, 2008.

GOMES, Francisco Donizete. Direito Fundamental Social à Moradia: Legislação Internacional, Estrutura Constitucional e Plano Infraconstitucional. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2003.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. A Agenda Habitat, 1996. 

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comentário Geral n. 4 sobre o Direito à Moradia Adequada (Art.11.1), 1991. 

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, 1965.

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ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração de Vancouver sobre os Assentamentos Humanos, 1976. 

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1966. 

RANGEL, Helano Márcio Vieira; SILVA, Jacilene Vieira da. O Direito Fundamental à Moradia como Mínimo Existencial e a sua Efetivação à Luz do Estatuto da Cidade. Veredas do Direito, Belo Horizonte. v. 6, jul. a dez., 2009.

SARLET, Ingo Wolfgang. O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: Algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia.  Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador, n. 20, dez., 2009.

SAULE JUNIOR, Nelson. O Direito à Moradia Como Responsabilidade do Estado Brasileiro. Cadernos de Pesquisa, n. 7, 1997.

SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25.  ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BONALDI, Emanuele Fraga Isidoro. Direito à moradia - diretrizes internacionais sobre o tema. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5605, 5 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68877. Acesso em: 17 abr. 2024.