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Reflexão analítica e síntese da obra 'Teoria Pura do Direito', de Hans Kelsen

Reflexão analítica e síntese da obra 'Teoria Pura do Direito', de Hans Kelsen

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Reflexões sobre a obra que mais influenciou a ciência jurídica no século XX: Teoria Pura do Direito, do austríaco Hans Kelsen.

1. Direito e Natureza

Neste capítulo como um todo, Hans Kelsen aborda o processo de criação e evolução do Direito como fenômeno destinado a assegurar e garantir o equilíbrio social, necessário para a garantia da paz no seio de uma sociedade. Para tanto, parte da concepção primitiva do que se entende por direito, perpassando pelas teorias do direito natural e chegando à teoria do direito enquanto fenômeno social.

Inicialmente, este autor ressalta que a ciência jurídica, no decurso dos séculos XIX e XX esteve longe de satisfazer a exigência de pureza metodológica necessária para a garantia da unidade jurídica, uma vez que a jurisprudência, por diversas vezes confundiu-se com a psicologia, a sociologia, a ética e a teoria política.

Kelsen considera que a análise do fenômeno jurídico, sob a ótica da sociologia, da teoria política ou de outra área afim, se mostra importante, de modo a se tentar explicar a razão de ser de determinadas condutas, ou a razão de existir determinadas sanções ou prêmios para as condutas reprováveis ou louváveis, respectivamente, mas não devem integrar a natureza do fenômeno jurídico, devendo este ser estudado de forma separada.

Quando pretende delimitar o conhecimento do direito, Kelsen não o faz por ignorar, ou, muito menos negar esta conexão, mas porque intenta afastar um sincretismo metodológico que se mistura à essência da ciência jurídica.

Ao abordar os atos e suas conseqüências no mundo jurídico Kelsen recorda que o ato de um indivíduo que provoca a morte de outro indivíduo gera conseqüências no seara jurídica, uma vez que tal ato certamente gera uma reprovação social digna de repreensão, em caráter punitivo e educativo.

Kelsen ressalta ainda que todo ato possui um sentido, podendo este ser objetivo ou subjetivo. Lembra que a significação jurídica não pode ser percebida no ato por meio dos sentidos, tal como se apercebe das qualidades naturais de um objeto tais como a cor, o peso, a dureza, mas da seguinte forma: o indivíduo que, racionalmente, põe o ato, liga este ato um determinado sentido, que acaba sendo entendido pelos outros. Este sentido subjetivo, ou seja, este sentimento inerente ao indivíduo, pode acabar coincidindo com o significado objetivo que o ato tem do ponto de vista do Direito, mas não tem necessariamente de ser assim. Kelsen apresenta como exemplo a esta explanação o fato de uma pessoa dispor por escrito do seu patrimônio para depois da morte. O sentido subjetivo deste ato é um testamento.

Kelsen frisa que o homem (pela sua natureza), diferentemente de outros animais é capaz de expressar atos conscientes. Neste sentido ressalta que: “Uma planta nada pode comunicar sobre si própria ao investigador da natureza que a procura classificar cientificamente. Ela não faz qualquer tentativa para cientificamente explicar a si própria. Um ato de conduta humana, porém, pode muito bem levar consigo uma auto-explicação jurídica, isto é uma declaração sobre aquilo que juridicamente significa”.

Quando aborda a questão da norma como esquema de interpretação, Kelsen afirma que o fato externo que, de acordo com seu sentido objetivo, constitui um ato jurídico (lícito ou ilícito), somente se realiza pela significação que o ato possui na esfera jurídica e não pela sua simples facticidade. Desta forma, a norma funciona como um esquema de interpretação. Nas palavras de Kelsen: “... o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico) é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa”.

Para o autor supracitado, a norma que empresta ao ato o significado de um ato jurídico ou antijurídico é, em si mesma, produzida por um ato jurídico, o qual recebe sua significação jurídica de outra norma.

No que tange à produção normativa, Kelsen aduz que o Direito é uma ordem normativa da conduta humana, e que, desta forma, se serve a regular o comportamento humano. Por este motivo a produção normativa se faz importante, uma vez que as condutas não positivadas como sendo indesejáveis e abomináveis socialmente, se praticadas, não dão ensejo à aplicação se sanções (que visem combatê-las), o que, por sua vez abrem espaço para a proliferação de tais práticas reprováveis (socialmente). Nesta direção, Kelsen afirma que “ Aquele que ordena ou confere o poder de agir, quer, aquele a quem o comando é dirigido, ou a quem a autorização ou o poder de agir é conferido, deve. Desta forma o verbo “dever” é aqui empregado com uma significação mais ampla que a usual. No uso corrente da linguagem apenas ao ordenar corresponde um “dever”, correspondendo ao autorizar um “estar autorizado” e ao conferir competência a um “poder”. Aqui, porém, emprega-se o verbo “dever” para significar um ato intencional dirigido à conduta de outrem. Neste “dever vão incluídos o “ter permissão” e o “poder” (ter competência).

Kelsen afirma que existe uma certa independência entre o ser e o dever-ser, ou seja, entre o comportamento que ocorre e o comportamento que deve ocorrer (segundo as normas do Direito positivo). Em outras palavras, este jurista austríaco afirma que o ser está intimamente relacionado com a conduta livre, ou seja, com o acontecimento dos fatos (jurídicos ou antijurídicos), enquanto que o dever-ser está adstrito a uma ordem jurídica, a qual determina o comportamento esperado.

No entanto, para que o dever-ser possa ser considerado como norma válida (“vigente”) é necessária que se apóie em uma norma que lhe dê sustentação. Só assim é possível afastar por completo ordens arbitrárias e ilícitas, emanadas de indivíduos interessados em afastar-se das normas jurídicas e morais. O tratado jurista citou como exemplo a ordem de um gângster para que lhe seja entregue uma determinada soma em dinheiro. Consubstanciando este entendimento Kelsen ressalta que “Se o ato legislativo, que subjetvamente tem o sentido de dever-ser, tem também objetivamente este sentido, quer dizer, tem o sentido de uma norma válida, é porque a Constituição empresta ao ato legislativo este sentido objetivo”. Em síntese, o que este autor quis dizer, é que o pressuposto fundante da validade objetiva, será designado por norma fundamental (Grundnorm).

Quando trata da vigência e domínio de vigência da norma, Kelsen diz que toda norma possui dois aspectos essenciais: o aspecto espacial e o aspecto temporal. Uma norma, para que possa ser posta em um determinado ordenamento jurídico precisa passar por um processo forma legiferante, composto de inúmeras etapas. Quando encerra-se esta fase, diante da promulgação e conseqüente publicação da norma, a mesma esta apta a surtir seus efeitos no mundo jurídico, dentro, obviamente, de um território especificamente delimitado, ou seja, dentro das fronteiras de um referido Estado. Nesta ocasião, convém citar trecho em que Kelsen trata deste assunto: “Os indivíduos que funcionam como órgão legislativo, depois de aprovarem uma lei que regula determinadas matérias e de porem, portanto, em vigor, dedicam-se, nas suas resoluções, à regulamentação de outras matérias – e as leis que eles puseram em vigor (a que eles deram vigência) podem valer mesmo estes indivíduos já tenham morrido há muito tempo, e portanto, nem sequer sejam capazes de querer.

Neste diapasão, Kelsen aduz que é um erro tentar caracterizar a norma em geral e a norma jurídica em particular como “vontade” ou “comando” – do legislador ou do Estado -, quando por “vontade” ou “comando” está explícita a vontade psíquica.

Kelsen tratou ainda de esclarecer que existe uma distinção entre vigência de uma norma e sua eficácia. Para este autor, uma norma é eficaz quando é efetivamente aplicada e observada no mundo dos fatos, ou seja, quando uma conduta humana se amolda à ordem do dever-ser. Nesta linha de pensamento, Kelsen destaca que: “Uma norma jurídica é considerada como objetivamente válida apenas quando a conduta humana que ela regula lhe corresponde efetivamente, pelo menos numa certa medida. Uma norma que nunca e em parte alguma é aplicada e respeitada, isto é, uma norma que – como costuma dizer-se – não é eficaz em uma certa medida, não será considerada como norma válida (vigente)”.

Em síntese do exposto no parágrafo anterior, Kelsen esclarece que a eficácia é condição de vigência, visto ao estabelecimento de uma norma se ter de seguir a sua eficácia para que a mesma não perca a sua vigência.

Sobre o aspecto espaço-temporal, Kelsen destaca que: “A vigência de todas as normas em geral que regulam a conduta humana, e em particular a das normas jurídicas, é uam vigência espaço-temporal na medida em que as normas tem por conteúdo processos espaço-temporais. Dizer que uma norma vale significa sempre dizer que ela vale para um qualquer período de tempo, isto é, que ela se refere a uma conduta que somente se pode verificar em um certo lugar ou e um certo momento (se bem que porventura não venha de fato a verificar-se)”.

Em se tratando do domínio de vigência de uma norma, Kelsen afirma este é elemento de seu conteúdo, e que este conteúdo pode ser predeterminado até certo ponto por uma norma superior. Já o domínio pessoal de validade de uma norma, segundo este jurista, refere-se ao elemento pessoal da conduta fixada pela norma. Este domínio de validade pode ser limitado ou ilimitado. Tem-se ainda, segundo Kelsen, o domínio material de validade de uma norma, levando em conta os diversos aspectos da conduta humana que são normados: aspecto econômico, religioso, político, etc.

Kelsen, em item que trata da regulamentação positiva e negativa, afirma que a conduta humana é disciplinada de forma que se observam ações ou omissões, ou seja, condutas positivas (disciplinadas em textos normativas como condutas exigíveis), ou condutas negativas (como resultado da não aplicação da conduta positivada). Este autor informa aqui que a regulamentação da conduta humana por um determinado ordenamento normativo processa-se por uma forma positiva e por uma forma negativa. A conduta humana será positiva quando a um indivíduo é prescrita a realização ou a omissão (omissão necessária ou exigível por meio de lei) de um determinado ato. Será ainda regulada num sentido positivo a conduta de um indivíduo quando a este é conferido o poder ou a competência para produzir, através de uma dada atuação, certas conseqüências pelo mesmo ordenamento normadas, especialmente – se o ordenamento regula a sua própria criação – para produzir normas, ou para interferir na elaboração de normas. Concluindo este raciocínio, deve-se ter em mente, em sentido amplo, que toda conduta humana, determinada num ordenamento normativo como pressuposto ou como conseqüência se pode considerar como autorizada por este mesmo ordenamento, e, neste sentido, como positivamente regulada.

Para que uma norma seja visada, em primeiro lugar é necessário determinar o bem que se visa tutelar. Tal bem da vida possui um valor, valor este que é a justificativa maior do desencadeamento do processo legiferante. Kelsen, neste sentido, ressalta que uma norma objetivamente válida, que fixa uma conduta como devida constitui um valor positivo ou negativo, sendo a conduta que corresponde à norma dotada de valor positivo e a conduta que contraria a norma dotada de valor negativo.

O que é considerado como valioso para uma determinada sociedade pode não ser para uma outra longínqua sociedade, motivo pelo qual cada grupo social deve criar as suas próprias normas de conduta, primando pela fluência das condutas aceitáveis e louváveis e reprimindo as condutas nefastas em sentido geral. Confirmando esta tese, Kelsen leciona que: “...as normas legisladas pelos homens – e não por uma autoridade supra-humana – apenas constituem valores relativos. Quer isto dizer que a vigência de uma norma desta espécie que prescreva uma determinada conduta como obrigatória, bem como a do valor por ela constituído, não exclui a possibilidade de vigência de uma outra norma que prescreva a conduta oposta e constitua um valor oposto”.

Para Kelsen, quando uma determinada norma tem em sua origem a emanação da vontade de uma autoridade supra-humana, o valor que a mesma revela possui um caráter absoluto, ao contrário das normas oriundas de uma autoridade humana, que, pela sua natureza inata, podem e costumam ser falhas.

Kelsen esclarece ainda que o valor que consiste na relação de um objeto, especialmente de uma conduta humana, com o desejo ou vontade de uma ou vários indivíduos, àquele objeto dirigida, pode ser designado como valor subjetivo, em contraposição ao valor objetivo, decorrente de uma conduta em consonância com uma norma objetivamente válida.

Por termo, no que tange, ainda, ao aspecto valorativo das normas jurídicas, Kelsen frisa que há uma íntima relação entre um objeto jurídico e uma conduta humana com um fim jurídico, que pode ser um fim objetivo e um fim subjetivo, sendo o primeiro um fim que deve ser realizado, isto é, um fim estatuído por uma norma considerada como objetivamente válida, e o segundo um fim que um indivíduo se põe a si próprio, ou seja, um fim que ele deseja realizar.

No item que trata das ordens sociais que estatuem sanções, Kelsen aduz que uma ordem normativa que regula a conduta humana na medida em que está em relação com outras pessoas é uma ordem social. A Moral e o Direito são ordens sociais deste tipo.

Uma ordem social, para que seja eficaz, deve possuir mecanismos que desestimulem os indivíduos que nela se inserem a não praticarem atos em desconformidade com a ordem jurídica posta. O mecanismo mais eficaz contra o desuso ou a inaplicabilidade de uma norma é a aplicação de sanções em caso de descumprimento. Uma vez sendo descumprida tal norma, se não for aplicada a correspondente sanção pode-se ter como certa a repetição da conduta não visada. O Direito, ao contrário da Moral, é uma ordem estatuidora de sanções. Vale destacar um trecho deste texto fichado: “De conformidade com o seu sentido imanente, pode o ordenamento estatuir as suas sanções sem ter em conta os motivos que efetivamene conduziram, no caso concreto, à conduta que as condiciona. O sentido do ordenamento traduz-se pela afirmação de que, na hipótese de uma determinada conduta – quaisquer que sejam os motivos que efetivamente a determinaram -, deve ser aplicada uma sanção (no sentido amplo de prêmio ou de pena).

No item que trata das sanções transcendentes e sanções socialmente imanentes, Kelsen faz a distinção entre elas afirmando que as primeiras são aquelas que, segundo a crença das pessoas submetidas ao ordenamento, provêm de uma instância supra-humana, enquanto que as segundas são aquelas sanções estatuídas na esfera humana, destinadas a regular as condutas dos indivíduos. A sanção transcendente afeta a consciência e o estado de espírito das pessoas, enquanto que a sanção socialmente iminente afeta diretamente os bens da vida, tais como a vida, a liberdade, a propriedade, etc. Tratando das sanções do tipo transcendental, Kelsen destaca que “Até o homem civilizado dos nossos dias se pergunta instintivamente, quando é atingido por uma infelicidade: que mal fiz eu para merecer este castigo?... As religiões altamente evoluídas diferenciam-se, sob este aspecto, das primitivas, apenas na medida em que acrescentam às sanções que somente serão aplicadas por Deus – e não pela alm dos mortos – no além-túmulo. Estas sanções são transcendentes, não apenas no sentido de quem provêm de uma instância sobre-humana, e supra-social, portanto, mas ainda no sentido de que elas se realizam fora da sociedade, fora do mundo do aquém, numa esfera transcendente”.

No item que trata da ordem jurídica, Kelsen aborda temas como o Direito como ordem de conduta humana, onde aborda a natureza filosófica do Direito como fenômeno destinado a estabelecer um equilíbrio nas relações entre os indivíduos que compõem determinado grupo social, entre outros, que virão na seqüência deste fichamento.

Na seqüência, Kelsen destaca que o direito possui a natureza de uma ordem coativa, de modo que a observância de seus preceitos é imperativa, sob pena de aplicação de sanções jurídicas. Para que a fluência das normas de conduta ocorra, com a aplicação das respectivas sanções (caso sejam necessárias), se faz necessário o estabelecimento de um sistema jurídico estatal, sistema este que deve ser estruturado por uma norma fundamental.

Kelsen recorda que nas sociedades primitivas existiram até demandas judiciais contra animais, plantas, coisas mortas e objetos inanimados, devido a males causados a seres humanos pela “conduta”, ou melhor, por fatos relacionados a tais seres.

Na ordem social dos povos civilizados, as normas de conduta regulam apenas a conduta humana. No entanto, frisa Kelsen que: “O fato de as modernas ordens jurídicas regularem apenas a conduta dos homens e não a dos animais, das plantas e dos objetos inanimados, enquanto dirigem sanções apenas àqueles e não a estes, não exclui, no entanto, que estas ordens jurídicas prescrevam uma determinada conduta de homens não em face de outros homens como também em face dos animais, das plantas e dos objetos inanimados”.

Kelsen destaca, ainda, no tópico que trata do monopólio da coação da comunidade jurídica, que o Direito é uma ordem coativa, mas que esta coação deve ser exercida dentro dos limites estabelecidos no próprio ordenamento jurídico, de modo a se evitar a utilização de força não autorizada. Neste sentido convém destacar trecho em que este autor trata deste assunto: “...estabelece-se o princípio de que todo o emprego da força física ´proibido quando não seja – e temos aqui uma limitação ao princípio – especialmente autorizado como reação, da competência da comunidade jurídica, contra uma situação de fato considerada perniciosa.

Diante do exposto no parágrafo anterior, é possível entender que a força física, utilizada nos limites da lei, de modo a tornar eficaz o seu cumprimento, possui o condão de estabelecer a segurança coletiva, que por sua vez garante a paz social. Kelsen ressalta que: “A segurança coletiva visa a paz, pois a paz é ausência de força física. Determinando os pressupostos sob os quais deve recorrer-se ao emprego da força e os indivíduos pelos quais tal emprego deve ser efetivado, instituindo um monopólio da coerção por parte da comunidade, a ordem jurídica estabelece a paz nesta comunidade por ela mesma constituída. A paz do Direito, porém, é uma paz relativa e não uma paz absoluta, pois o Direito não exclui o uso da força, isto é, a coação física exercida por um indivíduo contra o outro”.

Quando aborda a questão dos atos coercitivos que não têm o caráter de sanções, Kelsen ressalta que em alguns governos, como os totalitários, são comuns atos como encerrar em campos de concentração, forçar quaisquer trabalhos e até matar os indivíduos de opinião, religião ou raça indesejáveis, sem que os mesmos possuam o caráter de sanção. A sanção, em sua essência, possui uma natureza punitiva/educativa socialmente aceita, enquanto que os atos de coerção acima apontados, como práticas comuns de estados totalitários não passam de puros extermínios ou explorações, sem o mínimo de preocupação com o princípio da dignidade da pessoa humana, e sem a mínima natureza educativa.

No que pesa ao mínimo de liberdade abordado por Kelsen, vale destacar que é essencial para o desenvolvimento de um determinado grupo social, que haja um mínimo de liberdade para a realização de atos humanos. Neste sentido, aquelas condutas que não estão prescritas em normas são livres para serem praticadas, na medida em que esta liberdade não interfira no Direito de outro indivíduo.

Nos últimos itens deste capítulo, Kelsen coloca lado a lado a semelhança entre a ordem normativa de coação da comunidade jurídica e a ordem de um bando de salteadores de estradas, no sentido da imperatividade de seu cumprimento, fazendo, obviamente, as ressalvas necessárias entre uma ordem lícita e uma ordem ilícita e, essencialmente, antijurídica. Aborda também, mais uma vez a importância da sanção como meio de cumprimento dos deveres jurídicos, e por fim, o destaca o caráter de interdependência que umas normas têm em face de outras, diante da unidade e da complexidade de um ordenamento jurídico.


2. Direito e Moral

As normas morais como normas sociais

Kelsen destaca que existem outras normas, ao lado das normas jurídicas, que regulam a conduta dos homens entre si, as quais também podem ser classificadas como normas sociais. Estas tais normas são conhecidas sob a designação de Moral, e a ciência que as tem por objeto é a Ética. Nas palavras de Kelsen: “Na medida em que a Justiça é uma exigência da Moral, na relação entre a Moral e o Direito está contida a relação entre a Justiça e o Direito”.

Kelsen informa que quando se afirma que a Moral, assim como o Direito, regula a conduta humana, estatuindo deveres e direitos, isto é, que estabelece autoritariamente determinadas normas, a pureza do método da ciência jurídica é posta em perigo, pois já não se sabe o que é Moral e o que é Direito.

Aduz ainda que o caráter social da Moral é, por muitas vezes, posto em questão, afirmando que, além das normas morais que dispõem sobre a conduta de um homem em face de outro, existem ainda normas morais que prescrevem uma conduta do homem em face de si mesmo (como a norma que proíbe o suicídio, a coragem e a castidade), o que por si só afasta tal caráter social.

Kelsen finaliza este item afirmando que: “...só por causa dos efeitos que esta conduta tem sobre a comunidade é que ela se transforma, na consciência dos membros da comunidade, numa norma moral. Também os chamados deveres do homem para consigo próprio são deveres sociais”. Diante desta exposição verifica-se que Kelsen, não obstante negue à Moral o caráter social, na hipótese em que regula a conduta de um homem em face de si mesmo, a tem como um dever social

A moral como regulamentação da conduta interior;

Neste item Kelsen ressalta que a concepção de que o Direito serve a regular a conduta externa e a Moral serve a regular a conduta interna é errônea, pois ambas as normas servem a regular as condutas humanas internas e externas. Exemplifica este raciocínio alegando que “...quando uma ordem jurídica proíbe o homicídio, proíbe não apenas a produção da morte de um homem através da conduta de um outro homem, mas também uma conduta interna, ou seja, a intenção de produzir um tal resultado.”

Para Kelsen as normas que prescrevem condutas que correspondem às inclinações ou aos interesses egoísticos dos destinatários das normas são supérfluas, uma vez que o homem tende a seguir às suas próprias inclinações, sem a necessidade de portar-se segundo os comandos de tais normas. Neste sentido, ele destaca que: “...uma norma que prescreve uma determinada conduta humana, apenas tem sentido se a situação se a situação deve ser diferente daquela que resultaria do fato de cada qual seguir as suas próprias inclinações ou procurar realizar os interesses egoístas que atuariam na ausência da validade e eficácia de uma ordem social.”

Para este autor a Moral não prescreve senão que os indivíduos devem, em suas condutas, combater as suas inclinações, não realizar os seus interesses egoísticos, mas agir por outros motivos.

Como exemplo do que fora exposto por Kelsen, da tentativa de distinção entre Direito e Moral, podemos citar os atos de execução que um determinado soldado nazista, subordinado hierarquicamente ao seu comandante (durante a 2ª Grande Guerra Mundial) pratica, exterminando presos em campos de concentração. O seu ato é conforme o ordenamento jurídico daquele Estado, ou seja, é um ato lícito, mas é contrário à ordem Moral, por razões óbvias.

Finalizando este item, Kelsen assevera que: “...o conceito de moral não pode ser limitado à norma que disponha: reprime as suas inclinações, deixa de realizar os seus interesses egoísticos. Mas a verdade é que somente se o conceito de Moral for assim delimitado é que Moral e Direito se podem distinguir pela forma indicada: referir-se aquela a conduta interna ao passo que este também dispõe sobre a conduta externa”.

A moral como ordem positiva sem caráter coercitivo

Como visto no capítulo 1, o que, essencialmente, distingue a Moral do Direito é que enquanto este se utiliza do caráter coercitivo para que o preceito estabelecido na norma seja cumprido, ou se torne eficaz, a ordem Moral não possui tal poder. O que o descumprimento de uma ordem ou preceito Moral faz nascer no indivíduo é o aparecimento de um sentimento de desconforto, causado pela reprovação da comunidade onde o indivíduo está inserido.

Kelsen ressalta que uma ordem moral não prevê o estabelecimento de quaisquer órgãos centrais para a aplicação de suas normas. Da mesma forma, uma ordem jurídica primitiva, sem o estabelecimento de tal estrutura, a esta se assemelha.

O ponto principal no estabelecimento da distinção entre Direito é Moral, segundo Kelsen, não é o estabelecimento de quais condutas as duas ordens prescrevem ou proíbem, mas como elas prescrevem ou proíbem uma determinada conduta humana. No caso do direito, a conduta humana desejada é orientada pela possibilidade de imposição de um mal, em caso de seu descumprimento. Tal mal constitui o estabelecimento da coerção, elemento este que não se mostra presente nas ordens morais.

O Direito como parte da Moral

Kelsen destaca que o Direito é, por sua própria essência, moral. Isto porque a conduta que as normas jurídicas prescrevem ou proíbem também é prescrita ou proibida pelas normas da ordem Moral. Desta forma, se uma ordem social prescreve uma conduta que a Moral proíbe, ou proíbe uma conduta que a Moral prescreve, esta ordem não é Direito porque não é justa. Neste sentido, Kelsen afirma que o Direito pode ser moral, mas não tem necessariamente de o ser. No entanto admite-se a exigência de que o Direito deve ser moral, isto é, deve ser justo, pois esta é uma condição própria da idéia de Direito.

Diante do exposto até então percebe-se que existe uma íntima relação entre Direito e Moral, a ponto de diferenciarem-se apenas quanto a forma de aplicação de seus comandos. Finalizando esta concepção, Kelsen assevera que: “...quando e afirma que o Direito por sua própria essência tem um conteúdo moral ou constitui um valor moral, com isso afirma-se que o Direito vale no domínio da Moral, que o Direito é uma parte constitutiva da ordem moral, que o Direito é moral, e portanto, é por essência justo.

Relatividade do Valor Moral;

A Moral, em sua essência, é um valor tido como importante para uma determinada sociedade, capaz de assegurar, quando observado, uma relativa paz social. Ocorre que tais valores variam bastante, segundo aspectos temporais e espaciais, ou seja, o que é considerado justo para uma determinada sociedade pode não ser justo para outra sociedade, ou até mesmo o que é considerado justo em uma época pode não ser em outra época, ou ainda, o que é considerado justo para uma classe ou profissão pode não ser para outra (classe ou profissão), dentro de um mesmo povo.

Nesta direção Kelsen afirma que: “...nada há que tenha de ser havido por necessariamente bom ou mau, justo ou injusto em todas as possíveis circunstâncias, que apenas há valores morais relativos – então a afirmação de que as normais sociais devem ter um conteúdo moral, devem ser justas, para poderem ser consideradas como Direito, apenas pode significar que estas normas devem conter algo que seja comum a todos os sistemas de Moral enquanto sistemas de justiça”.

O valor Moral tanto é relativo que Kelsen recorda que, segundo a convicção de muitos, uma guerra pode ser considerada uma valor moral porque possibilita a comprovação das virtudes de uma nação. Desta forma, como não se tem como palpável a existência de uma moral absoluta (pois esta seria proveniente de uma autoridade supra-humana) toda ordem Moral é, apenas e tão somente, relativa. Apontando nesta direção, Kelsen preleciona que: “...quando não se pressupõe qualquer valor moral absoluto, não se tem qualquer possibilidade de determinar o que é que tem de ser havido, em todas as circunstâncias, por bom e mau, justo e injusto”.

Para Kelsen o que pode ser comum a todos os sistemas morais possíveis não é outra coisa senão a circunstância de eles serem normas sociais, ou seja, normas que prescrevem uma determinada conduta de homens – imediata ou mediatamente – a outros homens. Desta forma, a afirmação de que o Direito, é por sua natureza, moral, não quer dizer que ele tenha um determinado conteúdo, mas que ele é uma norma social que estabelece um “dever-ser”.

Como já exposto em linhas passadas, Kelsen volta a afirmar que o Direito e a Moral não é uma questão sobre o conteúdo do Direito, mas uma questão sobre a sua forma. Finalizando esta parte da discussão, Kelsen afirma que a existência de uma moral mínima não constitui requisito de validade das normas jurídicas, e que o valor de paz não representa um elemento essencial ao conceito de Direito.

Separação do Direito e da Moral

Constitui objeto principal desta obra a separação de todos os outros conhecimentos do conhecimento jurídico, ou seja, do Direito. É este o intuito principal do autor ao elaborar a sua teoria pura do Direito. Como exposto no capítulo 1, Kelsen não descarta a importância de tais ciências afins na análise das normas jurídicas e de sua efetividade, mas considera, por uma questão meramente metodológica, importante a separação não só do Direito e da Moral (como parte integrante da Ética), como também a separação do Direito e da Sociologia, e de outras ciências afins.

Acerca desta separação, Kelsen destaca que: “Quando uma teoria do Direito positivo se propõe a distinguir Direito e Moral em geral e Direito e Justiça em particular, para os não confundir entre si, ela volta-se contra a concepção tradicional, tida como indiscutível pela maioria dos juristas, que pressupõe que apenas existe uma única Moral válida – que é, portanto, absoluta – da qual resulta uma Justiça absoluta. A exigência de uma separação entre Direito e Moral, Direito e Justiça, significa que a validade de uma ordem jurídica positiva é independente desta Moral absoluta, única válida, da Moral por excelência, de a Moral”.

Para Kelsen, se se pretende fazer a separação entre Direito e Moral, não quer dizer que entre o Direito e a Moral, ou entre o Direito e a Justiça, não haja correspondência ou alguma afinidade, até porque o conceito de “bom” não pode ser determinado senão como “o que deve ser”, o que por sua vez corresponde a uma norma.

Tal distinção ocorre também porque a validade de uma ordem jurídica independe de estar situada dentro dos limites de uma ordem Moral. Quando ocorre de uma ordem jurídica estar em sintonia com uma ordem moral estar-se-á diante de uma situação ideal, mas não necessariamente tem que ser assim, até porque o valor moral muitas vezes é relativo dentro de uma sociedade, em razão, principalmente, das diferentes classes sociais e das diferentes profissões, como tratado anteriormente.

Justificação do Direito pela Moral

Para Kelsen, uma justificação do Direito positivo pela Moral é possível apenas quando entras as normas do Direito e da Moral possa existir um Direito moralmente bom e um Direito moralmente mau.

Neste diapasão, este autor frisa que: “A necessidade de distinguir o Direito da Moral e a ciência jurídica da Ética significa que, do ponto de vista de um conhecimento científico do Direito positivo, a legitimação deste por uma ordem moral distinta da ordem jurídica é irrelevante, pois a ciência jurídica não tem de aprovar ou desaprovar o seu objeto, mas apenas tem de o conhecer e descrever”. Com estas palavras, Kelsen quis dizer que não constitui objetivo do Direito fazer juízo de valor sobre o seu objeto. Tal tarefa pode pertencer a Moral.

O operador do Direito tem por escopo analisar as normas jurídicas, descartando, pela praticidade que se exige, divagações sobre o valor moral de seus preceitos. Dentro desta ótica, Kelsen ilustra que: “A tese, rejeitada pela Teoria Pura do Direito, mas muito espalhada pela jurisprudência tradicional, de que o Direito, segundo a sua própria essência, deve ser moral, de que uma ordem social imoral não é Direito, pressupõe, uma Moral absoluta, isto é uma Moral válida em todos os tempos e em toda a parte. De outro modo não poderia ela alcançar o seu fim de impor a uma ordem social um critério de medida firme, independente de circunstâncias de tempo e de lugar, sobre o que é direito (justo) e o que é injusto”.

Kelsen finaliza este item alegando que a ciência jurídica não tem de legitimar o Direito, não tem de justificar a ordem normativa que lhe compete. Sua função é, apenas e tão somente conhecê-la e descrevê-la.


3. Direito e Ciência

As normas jurídicas como objeto da ciência jurídica

As normas jurídicas, como bem se sabe, correspondem ao objeto da ciência jurídica, de modo que a conduta humana, segundo Kelsen, somente se enquadra como norma jurídica se estiver determinada nestas, como pressuposto ou conseqüência.

Teoria jurídica estática e teoria jurídica dinâmica

De forma bastante resumida, uma vez que estes temas serão objeto dos capítulos 4 e 5 desta obra, Kelsen explica que a teoria jurídica estática tem por objeto o Direito como um sistema de normas em vigor, ou sejam o Direito no seu momento estático, enquanto que a teoria jurídica dinâmica tem por objeto o processo jurídico em que o direito é produzido e aplicado, o Direito no seu movimento.

Norma jurídica e proposição jurídica

Para Kelsen, proposições jurídicas “...são juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem que, de conformidade com o sentido de uma ordem jurídica – nacional ou internacional – dada ao conhecimento jurídico, sob certas condições ou pressupostos fixados por este ordenamento, deve intervir certas conseqüências pelo mesmo ordenamento determinadas”. Já as normas jurídicas, ao contrário, não são juízos, são antes, de acordo com o seu sentido, mandamentos, e, como tais, comandos, imperativos, permissões e atribuições de poder ou competência. Em todo caso, como destaca Kelsen, não são instruções (ensinamentos).

Na distinção entre norma e proposição jurídica deve-se destacar a diferença entre a função do conhecimento jurídico e a função da autoridade jurídica que aplica o Direito, através de órgãos específicos do Estado. A ciência jurídica tem por missão conhecer – de fora – o Direito e descrevê-lo com base em sua experência cognitiva.

O âmago desta distinção é abordado por Kelsen quando este revela que: “A ciência jurídica, porém, apenas pode descrever o Direito; ela não pode, como o Direito produzido pela autoridade jurídica (através de normas gerais ou individuais), prescrever seja o que for”. Completando esta exposição, Kelsen põe a discussão que nenhum jurista pode negar a diferença básica existente entre uma lei publicada em jornal oficial e um comentário jurídico sobre esta hipotética lei.

Kelsen finaliza este item afirmando que a proposição jurídica que descreve a validade de uma normal penal que prescreve a pena de prisão para o furto apenas poderá traduzir que, se alguém comete furto, deverá ser punido. No entanto, o dever-ser da proposição jurídica não possui um sentido prescritivo, mas um sentido descritivo, uma vez que apenas a norma jurídica, enquanto Direito, possui a capacidade jurídica de exercer atos de coerção (caso necessários) para a aplicação de suas disposições, o que revela a sua natureza prescritiva.

Ciência causal e ciência normativa

Neste item Kelsen mostra a distinção existente entre a ciência normativa e a ciência causal, sendo a primeira um produto cultural, estabelecido pelos homens, visando uma determinada ordem e paz social, e a segunda um produto decorrente dos fenômenos naturais.

Para Kelsen a natureza é uma ordem das coisas ou um sistema de elementos que estão ligados uns com os outros como causa e efeito, ou seja, segundo um princípio designado de causalidade. Já a sociedade, constitui uma ordem normativa de conduta humana. No entanto, não se tem razão suficiente para afastar os atos humanos como sendo elementos da natureza, uma vez que o homem está inserido e faz parte do meio natural.

Contudo, existe uma necessidade de distinção entre as ciências da natureza e a ciência jurídica, pois segundo Kelsen: “Somente na medida em que o Direito for uma ordem normativa da conduta dos homens entre si pode ele, como fenômeno social, ser distinguido da natureza, como ciência social, ser separada da ciência da natureza”.

Causalidade e imputação; lei natural e lei jurídica

Este item é uma decorrência do item anterior, uma vez que os fatos da natureza são regulados pela relação causa e efeito (causalidade), enquanto que a conduta humana é lastreada pelo fenômeno da imputação, que consiste na determinação/especificação de uma conduta exigível. Quando se imputa algo a alguém significa dizer que aquela coisa se tem por obrigatória, sob pena da aplicação de uma sanção específica.

Kelsen destaca que o princípio da causalidade norteia a lei natural, ao passo que o princípio da imputação deve nortear a lei jurídica. E neste sentido, a distinção entre lei natural e proposição jurídica deve ser sustentada com firme decisão. Com “dever-ser” exprime-se usualmente a idéia do ser prescrito, não a do ser-competente (ser autorizado) ou a dor ser-permitido.

Para Kelsen, quando se afirma que uma determinada norma está “em vigor” ou tem “vigência” e que a mesma prescreve determinada conduta, a autoriza (para ela confere competência) ou a permite (positivamente) não pode significar que esta conduta efetivamente se realiza: ela pode apenas significar que tal conduta deve realizar-se.

Mais uma vez, Kelsen afirma que a proposição jurídica “pode” ser também designada de lei jurídica, na hipótese em que é aplicada por analogia a lei natural. Frise-se que a proposição jurídica “pode” e não “deve”, uma vez que a regra é que o dever-ser é atributo das normas jurídicas. Contudo, Kelsen lembra que esta conexão descrita na lei jurídica é, na verdade, análoga à conexão de causa e efeito expressa na lei natural – sendo, no entanto, diferente dela.

Sobre o fenômeno da imputabilidade Kelsen esclarece que: “Imputável é aquele que pode ser punido pela sua conduta, isto é, aquele que pode ser responsabilizado por ela, ao passo que o inimputável é aquele que – porventura por ser menor ou doente mental – não pode ser punido pela mesma conduta, ou seja, não pode ser por ela responsabilizado”. Em outras palavras, de forma mais clara ainda: “...a imputação não consiste noutra coisa senão conexão entre o ilícito e a conseqüência do ilícito”.

O princípio da imputação no pensamento dos primitivos

Kelsen demonstra crer que o princípio da imputação está na base da interpretação da natureza pelos homens primitivos. Isto porque, segundo ele, os primitivos não compreendiam os fenômenos da natureza com uma simples relação de causa e efeito, segundo o princípio da causalidade, pois a aceitação deste princípio é herança das sociedades modernas. Kelsen entende que:”O homem primitivo interpreta os fatos que aprende através de seus sentidos segundo os mesmos princípios que determinam as relações com os seus semelhantes, designadamente, segundo normas sociais”.

Este autor ressalta, ainda, que os homens primitivos apreciam ou julgam a sua conduta reciprocamente, por suas próprias normas consuetudinárias, uma vez que estes tem bem claro o senso comum do que é benéfico e do que é prejudicial. Estas sociedades primitivas acreditavam que tais normas provinham de uma autoridade supra-humana e que, por isso, deveriam ser obedecidas, pois tinham um valor moral absoluto. Segundo Kelsen, as normas mais antigas da humanidade são provavelmente aquelas que visam frenar e limitar os impulsos sexuais e agressivos.

Kelsen afirma que está na base da vida social dos primitivos a regra da retribuição (retaliação). Esta regra compreende tanto uma pena, como um prêmio. Neste sentido, o pressuposto e a conseqüência estão ligados um ao outro, não segundo o princípio da causalidade, mas segundo o princípio fundamental da imputação. Desta forma, se o indivíduo de um dado grupo se comporta bem, deve ser recompensado (premiado), ao passo que se um indivíduo se porta mal, deve ser punido.

Segundo a máxima do princípio retributivo, tais prêmios e penas são impostos, respectivamente, quando o indivíduo se conduz de acordo com a norma desejada ou quando se comporta de forma contrária ao preceito normado (consuetudinariamente). Como nesta época se ignora a idéia de Estado, tais penas e prêmios são aplicados por Deus (força supra-humana), sob a forma de castigos, más colheitas, insucesso na caça, derrotas em guerras, doenças, mortes – penas – e de boas colheitas, vitória nas guerras, saúde, longa vida, sucesso na caça – prêmios.

Para Kelsen, “Aquilo que, do ponto de vista da ciência moderna, é natureza, é, para o primitivo, uma parte de sua sociedade como uma ordem normativa cujos elementos estão ligados entre si segundo o princípio fundamental da imputação”.

O surgimento do princípio causal a partir do princípio retributivo

Segundo Kelsen, é mais provável que a lei da causalidade tenha surgido da norma da retribuição. “É o resultado de uma transformação do princípio da imputação, em virtude do qual, na norma da retribuição, a conduta não-reta é ligada à pena e a conduta reta é ligada ao prêmio”.

Kelsen cita que uma das primeiras formulações da lei causal é o célebre fragmento de Heráclito: “Se o Sol não mantiver no caminho prescrito (preestabelecido), as Erínias, acólitas da Justiça corrigi-lo-ão”. Aqui a lei natural aparece ainda como lei jurídica.

Em outras palavras, Kelsen aqui ressalta que a idéia de prevalência do princípio retributivo fez com os povos primitivos e até mesmo a sociedade do início do século XX acreditassem que se alguém tinha uma vida próspera era por que merecia, porque os seus atos tinham sido bons aos olhos de um ser supra-humano, que, por conseguinte, o havia abençoado e o oposto, que este ser supra-humano o havia amaldiçoado. Esta relação de prevalência do princípio retributivo, neste sentido, se confunde com o princípio causal (causa – boas condutas – efeito – bênçãos / causa – más condutas – efeito - maldições).

Ciência social causal e ciência social normativa

Para Kelsen, uma distinção básica existe apenas entre as ciências naturais e aquelas ciências sociais que interpretam a conduta recíproca dos homens, não segundo o princípio da causalidade, mas segundo o princípio da imputação; ciências que não descrevem como se processa a conduta humana determinada por leis causais, no domínio da realidade natural, mas como ela, determinada por normas positivas, por normas postas através de atos humanos, se deve processar.

Para Kelsen, devemos apenas considerarmos válida uma ordem normativa quando ela é globalmente considerada, eficaz; e que, quando um ordem normativa, particularmente uma ordem jurídica, é eficaz, isto é, quando a conduta humana que a regula, considerada de modo global, lhe corresponde, podemos afirmar: se os pressupostos que estão estatuídos nas normas de ordem social efetivamente se verificam, também as conseqüências que nestas normas são ligadas àqueles pressupostos se verificarão com toda a probabilidade; ou, no caso de uma ordem jurídica eficaz: se foi praticado um ilícito previsto pela ordem jurídica, também será provavelmente realizada a conseqüência do ilícito por aquela mesma ordem jurídica prescrita.

Kelsen, ao contrário do que afirmam e acreditam os representantes da chamada jurisprudência “realística” não aceita a idéia de que o Direito não é outra coisa senão uma profecia sobre como os tribunais decidirão, ou seja, que o Direito é uma ciência de Previsão. Em um trecho deste item Kelsen ressalta que: “A tarefa da ciência jurídica não é, em qualquer dos casos, fazer profecias sobre as decisões dos tribunais. Ela dirige-se não só ao conhecimento das normas jurídicas individuais, postas pelos tribunais, mas também a conhecimento das normas gerais, produzidas pelos órgãos legislativos e pelo costume, a respeito das quais a custo seria possível uma previsão, pois a Constituição normalmente apenas predetermina o processo da produção legislativa, e não o conteúdo das leis”.

Diferenças entre o princípio da causalidade e o princípio da imputação

Kelsen afirma que a forma verbal em que são apresentados tanto o princípio da causalidade como o princípio da imputação constitui um juízo hipotético onde um determinado pressuposto é ligado com uma determinada conseqüência. Para ele “O princípio da causalidade afirma que quando é A, B também é (ou será). O princípio da imputação afirma que quando A é, B deve ser”.

A diferença reside no fato que a imputação designa uma relação normativa: se tal fato descrito na norma ocorrer, um determinado fato jurídico deve ser aplicado como conseqüência.

O problema da liberdade

Sobre a distinção fundamental entre imputação e causalidade, Kelsen lança as bases para a discussão do problema da liberdade (da conduta humana). Para tanto ele, ressalta que sobre o fato de que há um ponto terminal da imputação, mas não um ponto terminal da causalidade, se baseia a oposição entre a necessidade, que domina na natureza, e a liberdade que dentro da sociedade existe e se mostra essencial para as relações normativas dos homens.

Para Kelsen, dizer que o homem não é livre significa que a sua conduta, considerada como fato natural, é, por força de uma lei da natureza, causada por outros fatos, isto é, tem de ser vista como efeito destes fatos e, portanto, como determinada por eles.

Kelsen afirma que livre é aquele que não está sujeito à lei da causalidade. Para ele: “Costuma afirmar-se: o homem é responsável, isto é, capaz de imputação moral ou jurídica, porque é livre ou tem uma vontade livre, o que, segundo a concepção corrente, significa que ele não está submetido à lei causal que determina a sua conduta, na medida em que sua vontade é, deveras, causa de efeitos, mas não é ela mesma o efeito de causas. Somente porque o homem é livre é que o podemos fazer responsável pela sua conduta, é que ele pode ser recompensado pelo eu mérito, é que se pode esperar dele que faça penitência pelos seus pecados, é que o podemos punir pelo seu crime”.

Para Kelsen “...a causalidade é, por sua própria essência, coação irresistível. O que em terminologia jurídica se chama coação irresistível é apenas um caso especial de coação irresistível, ou seja, aquele dada cuja existência a ordem jurídica não prevê qualquer responsabilidade por uma conduta pela qual, quando produzida por outras causas, o homem que atue por elas causalmente determinado é responsável”.

Kelsen informa que muitos autores crêem poder resolver o problema do conflito entre a liberdade e o princípio de uma causalidade, pela seguinte maneira: “...um indivíduo é moral ou juridicamente responsável por um evento quando este é provocado pelo seu ato de vontade ou pelo fato de ter ele ter omitido um ato de vontade que evitaria este evento. Não é responsável por um evento quando este, patentemente, não é provocado pelo seu ato de vontade ou pela omissão de um ato de vontade que evitaria o evento. Afirmar que o homem é livre não traduz senão a sua consciência de poder agir como quer (ou deseja)”.

Segundo Kelsen, para que um determinado indivíduo possa ser responsabilizado pelo ato de vontade que praticara, antes é necessário que o mesmo tenha consciência da ilicitude praticada. Diante deste fato, as ordens jurídicas modernas pressupõem um tipo médio de homem e um tipo médio de circunstâncias externas sob as quais os homens atuam, causalmente determinados.

Outros fatos, que não a conduta humana, como conteúdo de normas sociais

Segundo Kelsen, uma norma pode proibir uma determinada conduta humana que tenha um efeito marcadamente determinado (proibição do homicídio), mas também pode prescrever uma conduta humana que seja condicionada não apenas pela conduta de outro homem, mas por outros fatos, diversos da conduta humana, como por exemplo a norma moral do amor ao próximo: se alguém sofre, deves procurar liberta-lo do seu sofrimento; ou a norma jurídica: se alguém, por virtude de doença mental, é perigoso para a comunidade, deve ser compulsoriamente internado.

Na verdade, para Kelsen, a conseqüência não é imputada apenas a uma conduta humana, ou a conseqüência não é somente imputada a uma pessoa, mas também a fatos ou circunstâncias exteriores.

Normas categóricas

Kelsen ensina que normas categóricas são aquelas normas sociais que prescrevem uma determinada conduta humana sem fixar quaisquer pressupostos ou que as prescrevem em todas e quaisquer circunstâncias.

As normas categóricas estão em contraposição às normas hipotéticas. Podem ser classificadas como normas categóricas, por exemplo, as que prescrevem que não se deve matar o próximo, não se deve furtar ao próximo, não se deve mentir ao próximo. As normas que prescrevem uma simples omissão não podem ser normas categóricas.

Para Kelsen, uma ação positiva não pode ser prescrita incondicionalmente (sem a fixação de pressupostos), uma tal ação apenas é possível sob determinadas condições ou pressupostos. Isto mostra que as normas gerais de uma ordem social empírica, incluindo as normas gerais de omissão, apenas podem prescrever uma determinada conduta sob condições ou pressupostos bem determinados, e que, por isso, toda norma geral produz uma conexão entre dois fatos, conexão essa que pode ser descrita pelo enunciado segundo o qual, sob um determinado pressuposto, deve realizar-se uma determinada conseqüência.

Desta forma, apenas as normas individuais podem ser categóricas, uma vez que prescrevem, autorizam ou positivamente permitem uma determinada conduta de determinado indivíduo sem a vincular a determinado pressuposto. É o que ocorre quando um tribunal decide que um certo órgão tem que proceder a certa execução num determinado patrimônio (especificado), ou que um certo órgão deve pôr na prisão, por um determinado período de tempo, um certo réu.

Negação do dever-ser; o Direito como “ideologia”

Neste item Kelsen frisa que “A possibilidade de uma ciência normativa, isto é, de uma ciência que descreve o Direito como sistema de normas, é, por vezes, posta em questão com o argumento de que o conceito de dever-ser, cuja expressão é a norma, é sem sentido ou constitui tão-somente uma ilusão ideológica”.

A Teoria Pura do Direito, como ciência específica do Direito, concentra a sua visualização sobre as normas jurídicas e não sobre os fatos da ordem do ser, quer dizer: não a dirige para o querer ou para o representar das normas jurídicas, mas para as normas jurídicas como conteúdo de sentido.

Sobre esta questão ideológica do Direito, Kelsen afirma que: “Com efeito, a imputação não liga o ato de produção jurídica com a conduta conforme o Direito, mas o fato, determinado pela ordem jurídica como pressuposto, com a conseqüência pela mesma ordem jurídica fixada. A imputação é, da mesma forma a causalidade, um princípio orientador do pensamento humano e, por isso, é, tanto ou tampouco com aquela, uma ilusão ou ideologia, pois – para falar como Hume ou Kant – também aquela não é mais que um hábito ou categoria de pensamento”.

Este autor destaca, ainda, que só quando se entenda “ideologia” como oposição à realidade dos fatos da ordem do ser, isto é, quando por ideologia se entenda tudo que não seja realidade determinada por lei causal ou uma descrição desta realidade, é que o Direito enquanto norma é uma ideologia. Se por “ideologia” se entende uma representação não-objetiva, influenciada por juízos de valor subjetivos, os quais encobrem, obscurece ou sufoca o objeto do conhecimento e se se designa por “realidade”, não apenas a realidade natural, como objeto da ciência da natureza, mas todo o objeto do conhecimento da ciência jurídica, o Direito positivo como realidade jurídica, então também uma representação do Direito positivo se tem de manter isenta de ideologia.

Finalizando esta abordagem, Kelsen afirma que: “Se se considera o Direito positivo, como ordem normativa, em contraposição com a realidade do acontecer fático que, segundo a pretensão do Direito positivo deve corresponder a este (se bem que nem sempre lhe corresponda), então podemos qualificá-lo como “ideologia” (no primeiro sentido da palavra)”. Afirma ainda que: “...a Teoria Pura do Direito tem pronunciada tendência antiideológica. Comprova-se esta sua tendência pelo fato de, na sua descrição do Direito positivo manter este isento de qualquer confusão com um Direito “ideal” ou “justo”.


4. Estática Jurídica

Neste capítulo, Kelsen abordará as normas do direito positivo tal como postas aos membros de uma determinada sociedade. Tal capítulo pressupõe a base para o entendimento do capítulo seguinte, onde Kelsen irá expor a sua mais importante contribuição à ciência jurídica, quando aborda a estrutura hierárquica das normas jurídicas, que tanto influenciou o pensamento jurídico ocidental, principalmente após a segunda guerra mundial. De tal apresentação, surgiu a idéia da “Pirâmide de Kelsen”, que tem a Constituição em seu topo, a qual constitui o fundamento de validade das demais normas jurídicas.

De início, Kelsen aborda a questão das sanções do Direito nacional e do Direito internacional, discorrendo, a princípio, que as sanções aparecem sob duas formas diferentes: como pena e como execução (execução forçada). Segundo o mesmo, ambas constituem um mal, ou como queiram alguns (sob a forma negativa), a privação de um bem: no caso da pena capital, a privação da vida, no caso das penas corporais, outrora usadas (como a privação da vista, a amputação de uma mão ou da língua), a privação do uso de um membro do corpo, ou o castigo corretivo: a provocação de dores; no caso da pena de prisão, a privação da liberdade; no caso das penas patrimoniais, a privação de valores patrimoniais, especialmente da propriedade. Ainda segundo Kelsen, a privação de outros direitos pode ser cominada como pena: tal a perda dos direitos políticos, a demissão, etc.

Para Kelsen, ambas as espécies de sanções – pena e execução (civil) – são aplicadas tanto pela autoridade judicial como pela autoridade administrativa, em processo para o efeito previsto.

De outro lado, as sanções do Direito internacional geral não são, na verdade, qualificadas quer como penas, quer como execução civil, mas representam, tal como estas, uma privação compulsória de bens, ou seja, uma lesão, estatuída pela ordem jurídica, de interesse de um Estado por parte de um outro Estado.

Em outro momento, Kelsen destaca que o ilícito (que constitui a violação ao preceito estabelecido na norma positivada) não é negação, mas pressuposto do Direito. E continua, afirmando que tanto a concordância dos atos conforme as normas, como também a violação das mesmas (normas) constitui pressuposto do Direito, e não apenas a violação da norma, como se costuma pensar.

Ainda sobre este assunto, Kelsen destaca: “Não é qualquer qualidade imanente e também não é qualquer relação com uma norma metajurídica, natural ou divina, isto é, qualquer ligação com um mundo transcendente ao Direito positivo, que faz com que uma determinada conduta humana tenha de valer como ilícito ou delito – mas, única e exclusivamente o fato de ela ser tornada, pela ordem jurídica positiva, pressuposto de um ato de coerção, isto é, de uma sanção”.

Kelsen diz que a norma, ao contrário do indivíduo, não pode ser “lesada” pelo ato de coerção dirigido contra ele.

Quando trata do Dever jurídico e da norma jurídica, Kelsen faz questão de frisar que deve haver uma distinção entre dever jurídico e norma jurídica, pois uma norma jurídica é quem institui um dever jurídico.

O dever pressupõe obrigação, e tal obrigação é decorrência do estabelecimento de uma regra, feita através de uma norma. A sanção, por conseguinte, poderia ser aplicada tanto em casos de violação de tais normas (hipótese mais comum), como em casos de observância de determinadas normas (sanções-prêmios), em situações em que a própria norma tenha estabelecido tais recompensas, como estímulo à sua efetividade, como ocorre, com mais freqüência, na seara tributária.

Para Kelsen, existe uma diferença entre Dever jurídico e dever-ser, sendo o primeiro termo usado, exclusivamente, para definir uma ordem jurídica positiva, que não possui qualquer espécie de implicação moral, enquanto que o segundo termo (dever-ser) é usado sempre de forma associada a idéia de um valor moral, mesmo que tal valor seja relativo, já que não se deve admitir a validade de uma moral abosoluta.

Segundo Kelsen, devido é apenas o ato de coerção que funciona como sanção. São estas as suas palavras: “Se se diz que quem está juridicamente obrigado a uma determinada conduta “deve”, por força do Direito, conduzir-se do modo prescrito, o que com isso se exprime é o ser-devido – ou seja, o ser positivamente permitido, o ser autorizado e o ser prescrito – do ato coercitivo que funciona como sanção e é estatuído como conseqüência da conduta oposta”.

No que tange ao termo responsabilidade, Kelsen destaca que o indivíduo contra quem é dirigida a conseqüência do ilícito, é juridicamente responsável por ele. Para Kelsen, indivíduo obrigado e indivíduo responsável não são sinônimos. É-se obrigado a uma conduta conforme ao Direito e responde-se por uma conduta antijurídica.

Existe ainda a distinção entre responsabilidade individual e responsabilidade coletiva. A responsabilidade individual é aquela direcionada, de forma geral, a todo e qualquer indivíduo, sendo que a sua ocorrência, no caso concreto, realiza a individualização da conduta, e, respectivamente, da pena a ser aplicada. Já a responsabilidade coletiva constitui elemento característico da ordem jurídica primitiva e está em estreita conexão com o pensar e o sentir identificadores dos primitivos, pois à falta de uma consciência do eu, suficientemente acusada, o primitivo sente-se de tal modo uno com os membros de seu grupo.

Kelsen destaca ainda que existe uma distinção entre a responsabilidade pela culpa e pelo resultado. Para ele, quando a ordem jurídica faz pressuposto de uma conseqüência do ilícito uma determinada ação ou omissão através da qual é produzido ou não é impedido um evento indesejável (por exemplo, a morte de um homem), pode distinguir-se da hipótese em que o mesmo evento ou sucesso se verificou sem qualquer previsão ou intenção. No primeiro caso, fala-se em responsabilidade pela culpa, no segundo caso, de responsabilidade pelo resultado.

Em relação ao dever de indenizar, Kelsen ressalta que este deve ser entendido como uma responsabilidade, ou melhor, como uma obrigação de se ressarcir os prejuízos materiais ou morais causados a um indivíduo, por outro indivíduo. Tal prestação, a ser exigida de forma coercitiva pelo aparelho estatal, constitui uma forma de sanção.

Kelsen frisa que quando esta sanção não é dirigida contra o delinqüente, mas contra um outro indivíduo que está, com o delinqüente, numa relação pela ordem jurídica determinada, a responsabilidade tem sempre o caráter de uma responsabilidade pelo resultado. Desta forma, a responsabilidade tem o caráter de responsabilidade pela culpa, em relação ao delinqüente, e o caráter de responsabilidade pelo resultado, em relação ao objeto da responsabilidade.

Em relação a distinção entre Direito e dever, Kelsen aduz que usualmente contrapõe-se ao dever jurídico o direito como direito subjetivo, colocando este em primeiro lugar. Na descrição do Direito, o direito avulta tanto no primeiro plano, que o dever quase desaparece por detrás dele. Para se distinguir, tem o direito, como “direito subjetivo”, de ser distinguido da ordem jurídica, como “direito objetivo”. A situação em questão, para Kelsen, é esgotantemente descrita como o dever jurídico do indivíduo (ou dos indivíduos) de se conduzir por determinada maneira em face de outro indivíduo. Neste sentido, a função de uma ordem jurídica positiva (do Estado), que põe termo ao estado de natureza, é, de acordo com esta concepção, garantir os direitos naturais através da estatuição dos correspondentes deveres. Se se afasta a hipótese dos direitos naturais e se reconhecem apenas os direitos estatuídos por uma ordem jurídica positiva, então verifica-se que um direito subjetivo, no sentido aqui considerado, pressupõe um correspondente dever jurídico, é mesmo este dever jurídico.

Em relação a distinção entre direitos reais e direitos pessoais, Kelsen assevera que sob a influência da antiga jurisprudência romana costuma distinguir-se entre o direito sobre uma coisa (jus in rem) e o direito em face de uma pessoa (jus in personam). Tal distinção, segundo este, induz em erro, pois também o direito sobre uma coisa é um direito em face de pessoas.

O direito real subjetivo por excelência é a propriedade. É definida pela jurisprudência tradicional como domínio exclusivo de uma pessoa sobre uma coisa, e por isso mesmo, distinguida dos direitos de crédito que apenas fundamentam relações jurídicas pessoais.

Para Kelsen, as duas espécies de situações caracterizadas pela jurisprudência tradicional como relações jurídicas pessoais e relações jurídicas reais serão classificadas e distinguidas como direitos reflexos absolutos e direitos reflexos relativos. O direito reflexo de propriedade não é propriamente um direito absoluto; é o reflexo de uma pluralidade de deveres de um número indeterminado de indivíduos em face de um e o mesmo indivíduo com referência a uma e a mesma coisa, diferentemente de um direito de crédito que apenas é reflexo de um dever de um determinado indivíduo em face de um outro indivíduo também determinado.

Nesta análise, Kelsen apenas tomou em consideração o direito reflexo. Ele desempenha na teoria tradicional um papel decisivo, se bem que este “direito” de um nada mais seja do que o dever de um outro ou de todos os outros de se conduzirem, em face daquele, de determinada maneira.

Ao direito subjetivo de alguém, se refere a definição, encontrada na jurisprudência tradicional, segundo a qual o direito subjetivo é determinado como interesse juridicamente protegido. No entanto, este interesse da comunidade, ou melhor, a proteção deste interesse através do dever funcional dos órgãos aplicadores do direito, não é, em regra designado como direito subjetivo reflexo.

Quando trata do direito subjetivo como permissão positiva, Kelsen esclarece que a situação designada como titularidade de um direito ou direito subjetivo também pode consistir no fato de a ordem jurídica condicionar uma determinada atividade, por exemplo, o exercício de uma determinada indústria ou profissão, a uma autorização, designada como “concessão” ou “licença”, que é concedida, quer sob os pressupostos determinados pela ordem jurídica, quer segundo a livre apreciação do órgão competente. O exercício da referida atividade sem a autorização devida, emanada da autoridade competente, é proibido, quer dizer, està sujeito a uma sanção.

Quando aborda a questão dos direitos políticos, Kelsen destaca que os mesmos costumam ser definidos como a capacidade ou poder de influir na formação da vontade do Estado. Quando assim se fala, pensa-se, no entanto, na forma geral de aparição das normas jurídicas, que formam esta ordem nas leis. A participação dos súditos das normas na atividade legislativa, é a característica principal da forma democrática de Estado.

Para Kelsen, entre os direitos políticos são também contados os chamados direitos fundamentais, e os direitos de liberdade (isto é, o da inviolabilidade) da propriedade, a liberdade da pessoa, a liberdade de opinião, entre outros tipos de liberdades.

O poder jurídico descrito anteriormente como direito subjetivo – direito privado ou direito político – é apenas um caso particular da função da ordem jurídica que aqui designamos por atribuição de um poder ou competência ou autorização. Nesta direção, a função da ordem jurídica designada como atribuição de um poder ou competência refere-se somente à conduta humana. Só a conduta de um indivíduo é que é pela ordem jurídica autorizada. Ao indivíduo que pode realizar uma tal conduta é pela ordem jurídica atribuída a capacidade de se conduzir desta maneira.

Vale salientar ainda que o exercício do poder jurídico, como função jurídica é da mesma espécie que a função de um órgão legislativo, dotado pela ordem jurídica do poder de criar normas gerais, e que as funções dos órgãos judiciais e administrativos, dotados pela ordem jurídica do poder de criar normas individuais por aplicação daquelas normas gerais. A tais funções específicas, essenciais ao funcionamento do Estado e à garantia do Estado de Direito dá-se o nome de competência.

Em relação à organicidade, Kelsen explica, em síntese, que as atribuições de competências são atribuídas aos órgãos do Estado, e que os mesmos são essenciais para a realização dos objetivos daquele Estado, dentre eles o bem comum e a justiça social, o que é relativo, segundo os padrões culturais de uma determinada sociedade. Desta forma, cada órgão possui uma parcela de poder ou de competência, que lhe é próprio.

Em seguida Kelsen, destaca que doutrina tradicional designa como capacidade (de gozo) de direitos a capacidade de um indivíduo para ser titular de direitos e deveres jurídicos ou para ser sujeito de direitos e deveres. Para ele, no Direito moderno não há pessoas incapazes de direitos (como os escravos). No entanto, nem todas as pessoas possuem capacidade de exercício. Desta forma, os menores e os doentes mentais não possuem capacidade de exercício. Por isso, tais pessoas têm, segundo o Direito moderno, representantes legais aos quais compete exercitar, por elas, os seus direitos, cumprir os seus deveres e criar, por elas deveres e direitos através de negócios jurídicos. Convém destacar que tais pessoas não possuem, na verdade, capacidade de exercício, mas tem capacidade de direitos.

Kelsen explica que, em estreita conexão com os conceitos de dever jurídico e de direito subjetivo, está, segundo a concepção tradicional, o conceito de relação jurídica, sendo esta definida como relação entre sujeitos, quer dizer, entre o sujeito de um dever jurídico e o sujeito do correspondente direito ou como relação entre um dever jurídico e o correspondente direito. Dizer que dever e direito se correspondem significa que o direito é um reflexo do dever, que existe uma relação entre dois indivíduos dos quais um é obrigado a uma determinada conduta em face do outro.

Uma relação jurídica entre dois indivíduos, melhor, entre a conduta de dois indivíduos determinada por normas jurídicas, existe no caso de um direito subjetivo no sentido específico da palavra, quer dizer: quando a ordem jurídica confere ao indivíduo, em face do qual um outro está obrigado a conduzir-se de determinada maneira, o poder jurídico de, através de uma ação, iniciar um processo que conduzirá à norma individual, a estabelecer pelo Tribunal, pela qual é ordenada a sanção prevista pela norma geral e a dirigir contra o indivíduo que se conduz contrariamente ao dever. Neste caso existe uma relação jurídica entre o indivíduo dotado deste poder jurídico e o indivíduo obrigado.

Por fim, Kelsen aborda a questão do sujeito jurídico (pessoa), e diz que este, segundo a teoria tradicional, é aquela pessoa sujeita a um dever jurídico ou a uma pretensão ou titularidade jurídica. Aqui, deve-se ter em conta que a afirmação de que um indivíduo é sujeito de um dever jurídico, ou tem um dever jurídico, nada mais se significa senão que uma determinada conduta deste indivíduo é conteúdo de um dever pela ordem jurídica estatuído. Na seqüência, Kelsen define, segundo a teoria tradicional, e sob o seu ponto de vista, o conceito de pessoa física (homem enquanto sujeito de direitos e deveres – teoria tradicional; e como “portador” de direitos e deveres jurídicos, podendo funcionar como portador de tais direito e deveres não só o indivíduo, mas também outras entidades – definição de Kelsen), de pessoa jurídica (corporação), a pessoa jurídica como sujeito agente (capaz de exercer direitos e suportar obrigações), a pessoa jurídica como sujeita de deveres e direitos (quando figuramos a corporação como pessoa atuante (agente), mas também quando a representamos como sujeito de deveres e direitos, entendendo por “direito”, na esteira do uso tradicional da linguagem, não apenas um direito subjetivo no sentido técnico da palavra, no sentido de poder jurídico, portanto, mas também uma permissão positiva.

Em seguida, Kelsen aborda a questão da pessoa jurídica como conceito auxiliar da ciência jurídica. Aqui ele ressalta que quando se diz que a ordem jurídica confere a um indivíduo personalidade jurídica torna a conduta de um indivíduo conteúdo de deveres e direitos, e que é a ciência jurídica que exprime a unidade destes deveres e direitos no conceito de pessoa física, conceito do qual nos podemos servir, como conceito auxiliar, na descrição do direito, mas do qual não temos necessariamente de nos servir, pois a situação criada pela ordem jurídica também pode ser descrita sem recorrer a ele.

Por fim, Kelsen termina este capítulo afirmando que deve-se superar o dualismo de Direito no sentido objetivo e Direito no sentido subjetivo. Neste sentido são suas palavras: “A Teoria Pura do Direito” afasta este dualismo ao analisar o conceito de pessoa como a personificação de um complexo de normas jurídicas, ao reduzir o dever e o direito subjetivo (em sentido técnico) à norma jurídica que liga uma sanção a determinada conduta de um indivíduo e ao tornar a execução de sanção dependente de uma ação judicial a tal fim dirigida; quer dizer: reconduzindo o chamado direito em sentido subjetivo ao Direito objetivo”.


5. Dinâmica Jurídica

O fundamento de validade de uma ordem normativa: norma fundamental;

a) Sentido da questão relativa ao fundamento de validade;

Kelsen inicia este capítulo ressaltando que o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma. Neste sentido, uma norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é figurativamente designada como norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior. Tal norma superior confere à personalidade legiferante “autoridade” para estatuir normas. O fato de alguém ordenar seja o que for não é fundamento para considerar o respectivo comando como válido, ou seja, para ver a respectiva norma como vinculante em relação aos seus destinatários. Apenas uma autoridade competente pode estabelecer normas válidas; e uma tal competência somente se pode apoiar sobre uma norma que confira poder para fixar normas.

No entanto, a indagação sobre o fundamento de validade de uma norma não pode perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser posto em questão. Tal norma será designada aqui como norma fundamental (Grundnorm).

b) Princípio estático e princípio dinâmico;

Para Kelsen é possível distinguir dois tipos diferentes de sistema de normas: um tipo estático e um tipo dinâmico. As normas de um ordenamento do primeiro tipo, quer dizer, a conduta dos indivíduos por elas determinadas, é considerada como devida (devendo ser) por força de seu conteúdo: porque a sua validade pode ser reconduzida a uma norma cujo conteúdo pode ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento, como o particular ao geral. Neste contexto, Kelsen destaca que um sistema de normas cujo fundamento de validade e conteúdo de validade são deduzidos de uma norma pressuposta como norma fundamental é um sistema estático de normas, e o princípio segundo o qual se opera a fundamentação da validade das normas deste sistema é um princípio estático.

Já o sistema de normas do tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de que a norma fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora, ou uma regra segundo que prescreve como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental.

Kelsen frisa ainda que o princípio estático e o princípio dinâmico estão reunidos numa e na mesma norma quando a norma fundamental pressuposta se limita, segundo o princípio dinâmico, a conferir poder a uma autoridade legisladora e esta mesma autoridade ou uma outra por ela instituída não só estabelecem normas pelas quais delegam noutras autoridades legisladoras, mas também normas pelas quais se prescreve uma determinada conduta dos sujeitos subordinados às normas e das quais podem ser deduzidas novas normas através de uma operação lógica.

O fundamento de validade de uma ordem jurídica;

Kelsen informa que o sistema de normas que se apresenta como uma ordem jurídica tem essencialmente um caráter dinâmico. Sendo assim, uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, mas porque é criada por uma forma determinada – em última análise, por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta. Por isso, e somente por isso, pertence ela à ordem jurídica cujas normas são criadas de conformidade com esta norma fundamental. As normas de uma ordem jurídica têm de ser produzidas através de um ato especial de criação. São normas postas, quer dizer, positivas, elementos de uma ordem positiva.

À pergunta formulada por Kelsen – Qual o fundamento de validade de uma norma pertencente a uma determinada ordem jurídica? – ele próprio responde informando que seria a norma fundamenta desta ordem jurídica. Como essa norma é a norma fundamental de uma ordem jurídica, isto é, de uma ordem que estatui atos coercivos, a proposição que descreve tal norma, a proposição fundamental da ordem jurídica estadual em questão, diz: devem ser postos atos de coerção sob os pressupostos e pela forma que estatuem a primeira Constituição histórica e as normas estabelecidas em conformidade com ela. As normas de uma ordem jurídica cujo fundamento de validade comum é esta norma fundamental não são um complexo de normas válidas colocadas umas ao lado das outras, mas em uma construção escalonada de normas supra-infra-ordenadas umas às outras.

A norma fundamental como pressuposição lógico-transcendental;

Para Kelsen, na medida em que só através da pressuposição da norma fundamental se torna possível interpretar o sentido subjetivo do fato constituinte e dos fatos postos de acordo com a Constituição como seu sentido objetivo, quer dizer, como normas objetivamente válidas, pode a norma fundamental, na sua descrição pela ciência jurídica ser designada como condição lógico-transcendental desta interpretação. Segundo ele a Teoria Pura do Direito pergunta: como é possível uma interpretação, não reconduzível a autoridades metajurídicas, como Deus ou a natureza, do sentido subjetivo de certos fatos como um sistema de normas jurídicas objetivamente válidas descritíveis em proposições jurídicas? A resposta da Teoria Pura do Direito é: sob a condição de pressupormos a norma fundamental: devemos nos conduzir como a constituição prescreve, quer dizer, de harmonia com o sentido subjetivo do ato de vontade constituinte, de harmonia com as prescrições do autor da Constituição.

Neste sentido, a norma cuja validade é afirmada na premissa maior legitima, assim, o sentido subjetivo do ato de comando, cuja existência é afirmada na premissa menor, como seu sentido objetivo. Por exemplo: devemos obedecer às ordens de Deus. Deus ordenou que obedeçamos às ordens dos nossos pais. Logo, devemos obedecer às ordens de nossos pais.

A unidade lógica da ordem jurídica; conflito de normas;

Segundo Kelsen, diante da quantidade de normas existentes em nível infraconstitucional, não se pode negar a possibilidade de os órgãos jurídicos efetivamente estabelecerem normas que entrem em conflito umas com as outras. Um tal conflito de normas surge quando uma norma determina uma certa conduta como devida e uma outra norma determina também como devida uma outra conduta, inconciliável com aquela. Para Kelsen, uma contradição lógica entre duas afirmações consiste em que apenas uma ou a outra pode ser verdadeira; em que se uma é verdadeira a outra tem de ser falsa. Nesta linha de raciocínio, uma norma não é verdadeira nem falsa, mas válida ou não válida. Os princípios lógicos em geral e o princípio da não-contradição em especial podem ser aplicados às proposições jurídicas que descrevem normas de Direito e, assim, indiretamente, também podem ser aplicados às normas jurídicas.

Não é, portanto, inteiramente descabido dizer-se que duas normas jurídicas se “contradizem” uma à outra. E, por isso mesmo, somente uma delas pode ser tida como objetivamente válida. Dizer que A deve ser e que não deve ser ao mesmo tempo é tão sem sentido como dizer que A é e não é ao mesmo tempo. Um conflito de normas representa, tal como uma contradição lógica, algo de sem sentido.

Diante de um conflito aparente de normas, uma norma estabelecida em último lugar sobreleva à da norma fixada em primeiro lugar e que a contradiz, segundo o princípio lex posterior derogat priori.

Pode haver ainda um conflito entre duas normas individuais, como por exemplo, entre duas decisões judiciais, particularmente quando as duas normas foram postas por órgãos diferentes. Uma lei pode conferir competência a dois tribunais para decidir o mesmo caso, sem emprestar à decisão de um dos tribunais o poder de anular a decisão do outro. Para Kelsen, este conflito entre duas normas individuais não constitui um gravame em si mesmo, pois nunca haverá dois casos idênticos (no sentido mais restrito do conceito de igualdade) para que tenham que ser julgados da mesma forma. Além disso, o juiz tem plena liberdade para formar o seu convencimento.

A eficácia é estabelecida na norma fundamental como pressuposto da validade. Se o conflito se apresenta numa e mesma decisão judicial – o que a custo será possível, a não ser que o juiz tenha perturbações mentais -, então estamos perante um ato sem sentido e, portanto, não estamos sequer em face de uma norma jurídica objetivamente válida.

Legitimidade e efetividade;

As constituições escritas contêm em regra determinações especiais relativas ao processo através do qual, e através do qual somente, podem ser modificadas. O princípio de que a norma de uma ordem jurídica é válida até a sua validade terminar por um modo determinado através desta mesma ordem jurídica, ou até ser substituída pela validade de uma outra norma desta ordem jurídica, é o princípio da legitimidade. Este princípio só é aplicável a uma ordem jurídica estadual com uma limitação muito importante: no caso de revolução, não encontra aplicação alguma. Uma revolução no sentido amplo da palavra, compreendendo o golpe de Estado, é toda modificação ilegítima da Constituição, isto é, toda modificação da Constituição, ou a sua substituição por uma outra, não operadas segundo as determinações da mesma Constituição. Decisivo é o fato de a Constituição vigente ser modificada ou completamente substituída por uma nova Constituição através de processos não previstos pela Constituição até ali vigente. Em regra, por ocasião de uma revolução destas, somente são anuladas a antiga Constituição e certas leis politicamente essenciais. Uma grande parte das leis promulgadas sob a antiga Constituição permanece, como costuma dizer-se, em vigor. O que existe neste caso é a recepção de normas de uma ordem jurídica por outra.

A norma fundamental refere-se apenas a uma Constituição que é efetivamente estabelecida por um ato legislativo ou pelo costume e que é eficaz. Uma Constituição é eficaz se as normas postas de conformidade com ela são, globalmente e em regra, observadas e aplicadas.

Validade e eficácia;

Para Kelsen, a relação entre validade e eficácia é um caso especial da relação entre o dever-ser da ordem jurídica e o ser da realidade natural. Sobre o tema existem duas teses extremas, sendo uma delas representada pelo fato de que, entre validade como um dever-ser e a eficácia como um ser, não existe conexão de espécie alguma, que a validade do Direito é completamente independente de sua eficácia. O outro extremo é a tese de que a validade do Direito se identifica com a sua eficácia.

A solução proposta pela Teoria Pura do Direito para este problema é: “assim como a norma de dever-ser, como sentido do ato-de-ser que a põe, se não identifica com este ato, assim a validade de dever-ser de uma norma jurídica se não identifica com a sua eficácia da ordem do ser; a eficácia da norma jurídica como um todo e a eficácia de uma norma jurídica singular são – tal como o ato que estabelece a norma – condição da validade”.

Segundo Kelsen, as normas de uma ordem jurídica positiv valem (são válidas) porque a norma fundamental que forma a regra basilar da sua produção é pressuposta como válida, e não porque são eficazes; mas elas somente valem se esta ordem jurídica é eficaz, quer dizer, enquanto esta ordem for eficaz. Logo que a Constituição e, portanto, a ordem jurídica que sobre ela se apóia, como um todo, perde a sua eficácia, a ordem jurídica, e com ela cada uma das suas normas, perdem a sua validade (vigência).

Por fim, Kelsen ressalta que uma ordem jurídica é considerada válida quando as suas normas são, numa consideração global, eficazes, quer dizer, são de fato observadas e aplicadas. E também uma norma jurídica singular não perde a sua validade quando apenas não é eficaz em casos particulares, isto é, não é observada ou aplicada, embora deva ser observada e aplicada.

A norma fundamental do direito internacional;

Kelsen afirma que o Direito Internacional apenas é uma parte integrante da ordem jurídica estadual representada como soberana e cujo fundamento de vigência é a norma fundamental referida à Constituição eficaz. Ela é, como fundamento de vigência da Constituição estadual, ao mesmo tempo o fundamento de vigência do Direito internacional reconhecido, quer dizer, posto em vigência para o Estado, com base na Constituição estadual.

A norma do Direito internacional que representa este fundamento de vigência é usualmente descrita pela afirmação de que, de acordo com o Direito internacional geral, um governo que, independentemente de outros governos, exerce o efetivo domínio sobre a população de um determinado país, constitui um governo legítimo, e que o povo que vive nesse país sob um tal governo forma um Estado no sentido do Direito internacional – e isto sem curar de saber se este governo exerce esse domínio efetivo com base numa Constituição já anteriormente existente ou com base numa Constituição por ele revolucionariamente estabelecida.

Uma norma fundamental genuína não é uma norma posta, mas uma norma pressuposta. Ela representa o pressuposto sob o qual o chamado Direito internacional geral, isto é, as normas globalmente eficazes, que regulam a conduta de todos os Estados entre si, são consideradas como normas jurídicas que vinculam os Estados.

Teoria da norma fundamental e doutrina do direito natural;

Kelsen frisa aqui que a norma fundamental, determinada pela Teoria Pura do Direito como condição da validade jurídica objetiva, fundamenta a validade de qualquer ordem jurídica positiva. De acordo com a Teoria Pura do Direito, como teoria jurídica positiva, nenhuma ordem jurídica positiva pode ser considerada como não conforme à sua norma fundamental, e portanto, como não válida. O conteúdo de uma ordem jurídica positiva é completamente independente da sua norma fundamental.

Uma doutrina conseqüente do Direito natural distingue-se de uma teoria jurídica positivista pelo fato de aquela procurar o fundamento de validade do Direito positivo, isto é, de uma ordem jurídica globalmente eficaz, num Direito natural diferente do Direito positivo e, portanto, numa norma ou ordem normativa a que o Direito positivo, quanto ao seu conteúdo, pode corresponder mas também pode não corresponder; por tal forma que, quando não corresponda a esta norma ou ordem normativa, deve ser considerado como não válido. A possibilidade de um conflito entre o Direito natural e o Direito positivo, isto é, uma ordem coercitiva eficaz, implica a possibilidade de considerar como não válida uma tal ordem coercitiva.

A norma fundamental do direito natural;

Para Kelsen, a suposição de que uma teoria do Direito natural poderia dar uma resposta incondicional à questão do fundamento de validade do Direito positivo se baseia sobre uma ilusão. Uma tal doutrina vê o fundamento de validade do Direito positivo no Direito natural, quer dizer, numa ordem posta pela natureza como autoridade suprema colocada acima do legislador humano. Neste sentido, o Direito natural é também Direito posto, isto é, positivo.

E conclui, explicando que para ciência a natureza é um sistema de elementos determinados pela lei da causalidade. Ela não possui uma vontade e não pode, portanto, estabelecer normas. As normas somente podem ser assumidas como imanentes à natureza quando se admita que na natureza está a vontade de Deus. Mas, dizer que Deus, através da natureza como manifestação da sua vontade ordena aos homens que se conduzam de determinada maneira, é uma suposição metafísica que não pode ser aceita pela ciência em geral e pela ciência do Direito em particular, pois o conhecimento científico não pode ter por objeto qualquer processo afirmado para além de toda experiência possível.

A estrutura escalonada da ordem jurídica;

A Constituição;

Neste momento Kelsen ressalta que a relação entre a norma que regula a produção de uma outra e a norma assim regularmente produzida pode ser figurada pela imagem espacial da supra-infra-ordenação. A norma que regula a produção é a norm superior, a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior. A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A norma fundamental – hipotética – é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora. A Constituição é aqui entendida num sentido material. Esta Constituição pode ser produzida por via consuetudinária ou através d um ato de um ou vários indivíduos a tal fim dirigido, isto é, através de um ato legislativo. Tais Constituições podem ser escritas ou não escritas (consuetudinárias).

Legislação e costume;

Para Kelsen, as normas jurídicas gerais criadas pela via legislativa são normas conscientemente postas, quer dizer, normas estatuídas. Os atos que constituem o fato legislação são atos produtores de normas, são atos instituidores de normas; quer dizer: o seu sentido subjetivo é um dever-ser.

A Constituição também pode instituir como fato produtor de Direito um determinado fato consuetudinário. Este fato é caracterizado pela circunstância de os indivíduos pertencentes à comunidade jurídica se conduzirem por forma sempre idêntica sob certas e determinadas circunstâncias, de esta conduta se processar por um tempo suficientemente longo, de por esta forma surgir, nos indivíduos que, através de seus atos, constituem o costume, a vontade coletiva de que assim nos conduzamos.

Segundo Kelsen, uma distinção politicamente entre Direito legislado e Direito consuetudinário consiste no fato de aquele ser produzido através de um processo relativamente centralizado e este através de um processo relativamente descentralizado. As leis são criadas por órgãos especiais instituídos para este fim e que funcionam segundo o princípio da divisão de trabalho. As normas de Direito consuetudinário adquirem existência através de uma determinada conduta dos indivíduos sujeitos à ordem jurídica.

Lei e decreto;

Kelsen explica que as normas gerais que provêm não do parlamento, mas de uma autoridade administrativa, são designadas como decretos, que podem ser decretos regulamentares ou decretos-leis. Fala-se de lei em sentido formal em contraposição a lei em sentido material. Esta compreende toda a norma jurídica geral. Aquela abrange, quer toda e qualquer norma jurídica geral surgida em forma de lei, isto é, emitida pelo parlamento e publicadas por determinada maneira, quer, em geral, todo conteúdo que surja nesta forma.

Direito material e direito formal;

Kelsen explica que por Direito formal designam-se as normas gerais através das quais são regulados a organização e o processo das autoridades judiciais e administrativas, os chamados processo civil e penal e o processo administrativo. Por Direito material entendem-se as normas gerais que determinam o conteúdo dos atos judiciais e administrativos e que são em geral designadas como Direito civil, Direito penal e Direito administrativo, mito embora as normas que regula, o processo dos tribunais e das autoridades administrativas não sejam menos Direito civil, Direito penal e Direito administrativo.

As chamadas “fontes do direito”;

Para Kelsen, legislação e costume são frequentemente designados como as duas “fontes” do Direito, entendendo-se aqui por Direito apenas as normas gerais do Direito estadual. Mas as normas jurídicas individuais pertencem tanto ao Direito, são tão parte integrante da ordem jurídica, como as normas jurídicas gerais com base nas quais são produzidas. E, se tomarmos em linha de conta o Direito internacional geral, então não se pode considerar como “fontes” deste Direito a legislação, mas somente o costume e o tratado.

Ainda por “fonte” do Direito pode entender-se também o fundamento de validade de uma ordem jurídica, especialmente o último fundamento de validade, a norma fundamental.

Criação do direito, aplicação do direito e observância do direito;

Para Kelsen, atos de aplicação do Direito são aqueles através dos quais os atos de coerção estatuídos pelas normas jurídicas são executados, atos de observância do direito são aqueles decorrentes de uma conduta que evita uma sanção (o cumprimento do dever jurídico constituído através da sanção). Também o uso de uma permissão positiva pode ser designado como observância do direito. Quanto aos atos de criação do Direito, estes podem ser gerais, que subdivide-se, quanto a sua origem, em Direito legislado e Direito consuetudinário, e individuais, quando oriundos da aplicação do Direito geral ao caso concreto, por parte dos órgãos responsáveis pelo exercício da jurisdição (decisões judiciais, de caráter individual).

Jurisprudência;

Aqui Kelsen destaca o caráter constitutivo da decisão judicial, mostrando que a mesma é uma decorrência da aplicação de uma norma geral de Direito que fora criada pela via legislativa ou consuetudinária.

O tribunal não só tem que responder a quaestio facti como também a quaestio júris. Depois de realizadas estas duas averiguações, o que o tribunal tem a fazer é ordenar in concreto a sanção estatuída in abstracto na norma jurídica geral.

Uma decisão judicial, segundo Kelsen, não possui, como se supõe, uma simples caráter declaratório. O juiz não tem simplesmente de descobrir e declarar um direito, já de antemão firme e acabado, cuja produção já foi concluída. A função do tribunal não é simples “descoberta” do Direito ou júris-“dição” (“declaração” do Direito) neste sentido declaratório. A decisão do juiz possui um caráter constitutivo.

O negócio jurídico;

Para Kelsen, uma conduta pode ser havida como contrária ao negócio jurídico porque o sentido subjetivo do ato ou dos atos que formam um negócio jurídico é uma norma, porque o negócio jurídico é um fato produtor de normas. Na linguagem tradicional a palavra “negócio jurídico” é usada tanto para significar o ato produtor da norma como ainda a norma produzida pelo ato. O negócio jurídico típico é o contrato. Em um contrato as partes contratantes acordam em que devem conduzir-se de determinada maneira, em face da outra.

O negócio jurídico como fato produtor de Direito, confere aos indivíduos que lhe estão subordinados o poder de regular as suas relações mútuas, dentro dos quadros das normas gerais criadas por via legislativa ou consuetudinária, através de normas criadas pela via jurídico-negocial. O negócio jurídico é, tal como o deito da conduta contrária ao negócio jurídico e o delito da não-indenização do prejuízo or tal conduta causado, pressuposto da sanção civil.

Em relação aos contratos, Kelsen assevera que para que um contrato se conclua, tem de a declaração de uma parte ser dirigida à outra parte e aceita por esta na sua declaração dirigida àquela. O contrato consiste, portanto, como se costuma dizer, numa proposta ou oferta e na sua aceitação. Para que um contrato se realize devem existir declarações de vontade concordes das partes contratantes, declarações segundo as quais as partes querem o mesmo. Através deste fato é criada uma norma cujo conteúdo se determina através das declarações concordantes.

Administração;

Ao lado da legislação e da jurisdição é também menciona a administração como uma das três funções que, na teoria tradicional, são consideradas as funções essenciais do Estado. Legislação e jurisdição são funções jurídicas em sentido estrito, quer dizer, funções através das quais são criadas e aplicadas as normas da ordem jurídica estadual, consistindo a aplicação de uma norma jurídica na produção de uma outra norma ou na execução do ato de coerção estatuído por uma norma.

Esta ordem coercitiva é uma ordem jurídica “estadual” porque e na medida em que institui, para esta função jurídica, órgãos funcionando segundo o princípio da divisão de trabalho e, na verdade, designados imediata e mediatamente para a sua função – quer dizer, órgãos relativamente centrais -, é limitada no seu domínio territorial de validade a um espaço fixamente limitado – o chamado território do Estado – e é pressuposta como ordem suprema ou tão-somente subordinada à ordem jurídica internacional.

Conflito entre normas de diferentes escalões;

Kelsen destaca que uma “norma contrária às normas” é uma contradição nos termos; e uma norma jurídica da qual se pudesse afirmar que ela não corresponde à norma que preside a sua criação não poderia ser considerada como norma jurídica válida – seria nula, o que quer dizer que nem sequer seria uma norma jurídica. O que nulo não pode ser anulado (destruído) pela via do Direito.

Neste sentido, se a ordem jurídica, por qualquer motivo, anula uma norma, tem de considerar esta norma primeiramente como norma jurídica objetivamente válida, isto é, uma norma jurídica conforme o Direito.

Se um tribunal decide um caso concreto e afirma ter-lhe aplicado uma determinada nora jurídica geral, então a questão encontra-se decidida num sentido positivo e assim permanece decidida enquanto esta decisão não for anulada pela decisão de um tribunal superior. Se uma decisão judicial é atacável, ela pode ser anulada pela norma com força de caso julgado de uma decisão e última instância não só quando o tribunal de primeira instância faz uso da alternativa para determinar ele próprio – com validade provisória – o conteúdo da norma individual por ele criada, mas também quando, de conformidade com outra alternativa pela ordem jurídica estatuída, o conteúdo da norma individual criada pelo tribunal de primeira instância corresponde à norma geral que o predetermina.

A afirmação de que uma lei válida é “contrária à Constituição” é uma contradictio inadjecto; pois uma lei somente pode ser válida com fundamento na Constituição. Quando se tem fundamento para aceitar a validade de uma lei, o fundamento da sua validade tem de residir na Constituição. De uma lei inválida não se pode, porém, afirmar que ela é contrária à Constituição, pois uma lei inválida não é sequer uma lei, porque não é juridicamente existente e, portanto, não é possível acerca dela qualquer afirmação jurídica.

Resta saber a quem deve a Constituição conferir competência para decidir se, num caso concreto, foram cumpridas as normas constitucionais, se um instrumento cujo sentido subjetivo é o de ser uma lei no sentida da Constituição há de valer também como tal segundo o seu sentido objetivo.

Se todo tribunal é competente para controlar a constitucionalidade da lei e aplicar por ele a um caso concreto, em regra ele apenas tem a faculdade de, quando considere a lei como “inconstitucional”, rejeitar a sua aplicação ao caso concreto, quer dizer, anular a sua validade somente em relação ao caso concreto. Se o controle de constitucionalidade das leis é reservado a um único tribunal, este pode deter competência para anular a validade da lei reconhecida como “inconstitucional” não só em relação a um caso concreto, mas em relação a todos os casos que a lei se refira – quer dizer, para anular a lei como tal.

Kelsen ressalta ainda que as chamadas leis “inconstitucionais” são leis conformes à Constituição que, todavia, são anuláveis por um processo especial.

A questão da legalidade de uma decisão judicial ou da constitucionalidade de uma lei é, formada em termos gerais, a questão de saber se um ato que surge com a pretensão de criar uma norma está de acordo com a norma superior que determina a sua criação ou ainda o seu conteúdo. Quando esta questão deve ser decidida por um órgão para efeito competente, quer dizer, por um órgão que para tal recebe poder de uma norma válida, pode ainda levantar-se a questão de saber se o indivíduo que de fato tomou esta decisão é o órgão competente, isto é, o órgão que para tal recebeu poder da norma válida. Esta questão pode, por sua vez, dever ser decidida por um outro órgão que, por isso mesmo, é de considerar como um órgão de hierarquia superior.

Nulidade e anulabilidade;

Este tópico finaliza o capítulo em tela. Aqui Kelsen afirma que dentro de uma ordem jurídica não pode haver algo como a nulidade, que uma norma pertencente a uma ordem jurídica não pode ser nula mas apenas pode ser anulável. Uma norma jurídica em regra somente é anulada com efeitos para o futuro, por forma que os efeitos já produzidos que deixa para trás permanecem intocados. Desta forma, a lei foi válida até a sua anulação. Ela não era nula desde o início. Não é, portanto, correto o que se afirma quando a decisão anulatória da lei é designada como “designação de nulidade”, quando o órgão que anula a lei declara na sua decisão essa lei como “nula desde o início” (ex tunc).

Quando a ordem jurídica estabelece, por exemplo, que uma norma que não foi posta pelo órgão competente, ou foi posta por um indivíduo que sequer possui a qualidade de órgão, ou uma norma que possui um conteúdo que a Constituição exclui, devem ser considerada nulas a priori e que, portanto, não é necessário qualquer ato para as anular, necessita determinar quem há de verificar a presença dos pressupostos desta nulidade; e como esta verificação tem caráter constitutivo, como a nulidade da norma em questão é efeito desta verificação, como não pode ser juridicamente afirmada antes de realizada tal verificação, esta verificação significa, mesmo que se opere na forma de uma declaração de nulidade, a anulação, com efeito retroativo, de uma norma até então considerada válida.


6. DIREITO E ESTADO

Forma do Direito e forma do Estado

Para Kelsen a questão decisiva, do ponto de vista do indivíduo subordinado às normas, é se a vinculação se opera com a sua vontade ou sem a sua vontade - eventualmente mesmo contra a sua vontade. E aquela diferença que se costuma caracterizar como a oposição entre autonomia e heteronomia e que a teoria jurídica costuma verificar, essencialmente, no domínio do Direito do Estado. Aqui, ela aparece como diferença entre democracia e autocracia, ou república e monarquia; e é também neste domínio que ela fornece a divisão usual das formas do Estado.

Simplesmente, aquilo que se concebe como forma do Estado é apenas um caso especial da forma do Direito em geral. É a forma do Direito, isto é, o método de criação jurídica no escalão mais elevado da ordem jurídica, ou seja, no domínio da Constituição. Com o conceito de forma do Estado caracteriza-se o método de produção de normas gerais regulado pela Constituição.

Kelsen destaca ainda que a identificação da forma do Estado com a Constituição corresponde ao preconceito do Direito reduzido à lei. Mas o certo é que o problema da forma do Estado, como questão relativa ao método da criação do Direito, não só se apresenta ao nível da Constituição, e, portanto, não só se levanta relativamente à atividade legislativa, como também se põe a todos os níveis da criação jurídica e, especialmente, com referência aos diversos casos de fixação de normas individuais: atos administrativos, decisões dos tribunais, negócios jurídicos.

Direito público e privado

Neste tópico Kelsen esclarece que o Direito privado representa uma relação entre sujeitos em posição de igualdade - sujeitos que têm juridicamente o mesmo valor - e o Direito público uma relação entre um sujeito supra-ordenado e um sujeito subordinado - entre dois sujeitos, portanto, dos quais um tem, em face do outro, um valor jurídico superior. A relação típica de Direito público é a que existe entre o Estado e o súdito.

Para este autor a distinção entre Direito privado e público tem tendência para assumir o significado de uma oposição entre Direito e poder não jurídico ou semijurídico, e, especialmente, de um contraste entre Direito e Estado. Exemplo típico de uma relação de Direito público é o comando ou ordem administrativa, uma norma individual posta pelo órgão administrativo através da qual o destinatário da norma é juridicamente obrigado a uma conduta conforme àquele comando. Em contraposição, apresenta-se como típica relação de Direito privado o negócio jurídico, especialmente o contrato, quer dizer, a norma individual criada pelo contrato, através da qual as partes contratantes são juridicamente vinculadas a uma conduta recíproca.

O caráter ideológico do dualismo de Direito público e Direito privado

Para Kelsen, não se afigura de forma alguma paradoxal que a Teoria Pura do Direito, do seu ponto de vista universalista veja também no negócio jurídico privado, tal como no comando da autoridade, um ato do Estado, quer dizer, um fato de produção jurídica atribuível à unidade da ordem jurídica. Por esta forma, a Teoria Pura do Direito relativiza a oposição, tornada absoluta pela ciência jurídica tradicional, entre Direito privado e público, transforma-a de uma oposição extra-sistemática, quer dizer, de uma distinção entre Direito e não-Direito, entre Direito e Estado, numa distinção intra-sistemática; e precisamente porque, desse modo, também decompõe e destrói a ideologia que está ligada à absolutização da oposição em causa, comprova o seu caráter de ciência.

Este ainda ressalta que a doutrina de uma essencial distinção entre Direito público e privado enreda-se, além disso, na contradição de afirmar a liberdade (desvinculação) perante o Direito (Freiheit vom Recht) - que reclama para o domínio do "Direito" público enquanto domínio da vida do Estado - como princípio de Direito (Rechts- Prinzip), como a característica específica do Direito público.

Este dualismo não tem, porém, qualquer caráter teorético, mas apenas caráter ideológico. O sentido de tal doutrina traduz-se não só em declarar que uma vinculação grande dos órgãos governamentais e administrativos contrariaria a essência da sua função, mas também em declarar tal vinculação como eventualmente superável nos casos em que ela, apesar de tudo, exista. E esta tendência pode ser constatada não só nas monarquias constitucionais como também nas repúblicas democráticas.

Por outro lado, Kelsen destaca que a absolutização do contraste entre Direito público e privado cria também a impressão de que só o domínio do Direito público, ou seja, sobretudo, o Direito constitucional e administrativo, seria o setor de dominação política e que esta estaria excluída no domínio do Direito privado.

Para este autor o Direito "privado", criado pela via jurídica negocial do contrato, não é menos palco de atuação da dominação política do que o Direito público, criado pela legislação e pela administração.

Por fim, Kelsen preleciona que ao nível da produção de Direito geral, este sistema político-econômico tanto pode ter caráter democrático como autocrático. Os mais importantes Estados capitalistas do tempo do autor têm/tiveram, na verdade, constituições democráticas, mas o instituto da propriedade privada e uma produção de normas jurídicas individuais baseada no princípio da autodeterminação também são possíveis nas monarquias absolutas e têm de fato existido nelas.

O dualismo tradicional de Estado e Direito

Kelsen destaca que quando a teoria tradicional do Direito e do Estado contrapõe o Estado ao Direito como uma entidade diferente deste e, apesar disso, o afirma como uma entidade jurídica, ela estrutura esta sua idéia considerando o Estado como sujeito de deveres jurídicos e direitos, quer dizer, como pessoa, atribuindo-lhe ao mesmo tempo uma existência independente da ordem jurídica.

A teoria do Estado pressupõe que o Estado, enquanto unidade coletiva que aparece como sujeito de uma vontade e de uma atuação, é independente do Direito e até preexistente ao mesmo. Para Kelsen o Estado é, como entidade metajurídica, como uma espécie de poderoso macro-ánthropos ou organismo social, pressuposto do Direito e, ao mesmo tempo, sujeito jurídico que pressupõe o Direito porque lhe está submetido, é por ele obrigado e dele recebe direitos.

A função ideológica do dualismo de Estado e Direito

Neste tópico Kelsen assevera que o Estado deve ser representado como uma pessoa diferente do Direito para que o Direito possa justificar o Estado - que cria este Direito e se lhe submete. E o Direito só pode justificar o Estado quando é pressuposto como uma ordem essencialmente diferente do Estado, oposta à sua originaria natureza, o poder, e, por isso mesmo, reta ou justa em um qualquer sentido.

Assim o Estado é transformado, de um simples fato de poder, em Estado de Direito que se justifica pelo fato de fazer o Direito.

A identidade do Estado e do Direito

O Estado como ordem jurídica

Segundo Kelsen, é usual caracterizar-se o Estado como uma organização política. Com isto, porém, apenas se exprime que o Estado é uma ordem de coação. Com efeito, o elemento "político" específico desta organização consiste na coação exercida de indivíduo a indivíduo e regulada por essa ordem, nos atos de coação que essa ordem estatui.

Kelsen frisa que para ser um Estado, a ordem jurídica necessita de ter o caráter de uma organização no sentido estrito da palavra, quer dizer, tem de instituir órgãos funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho para criação e aplicação das normas que a formam; tem de apresentar um certo grau de centralização. O Estado é uma ordem jurídica relativamente centralizada.

Nem a ordem jurídica pré-estadual nem a ordem jurídica supra (ou inter)-estadual instituem tribunais que sejam competentes para aplicar as normas gerais aos casos concretos, mas conferem poder aos próprios súditos da ordem jurídica para desempenharem esta função e, especialmente, para executarem as sanções estatuídas pela ordem jurídica pela via da autodefesa.

Para este autor, o Estado, como comunidade social - de acordo com a teoria tradicional do Estado - compõe-se de três elementos: a população, o território e o poder, que é exercido por um governo estadual independente.

Neste sentido Kelsen frisa que não é possível mostrar qualquer espécie de interação anímica (espiritual) que, independentemente do vínculo, reúna todos os indivíduos pertencentes a um Estado por forma a que eles possam ser distinguidos de outros indivíduos pertencentes a outro Estado e entre si ligados por uma interação análoga, como se estes e aqueles formassem grupos separados.

Kelsen é bastante claro ao expor que a questão de saber se um individuo pertence a determinado Estado não é uma questão psicológica, mas uma questão jurídica.

A unidade dos indivíduos que formam a população de um Estado em nada mais pode ver-se do que no fato de que uma e a mesma ordem jurídica vigora para estes indivíduos, de que a sua conduta é regulada por uma e a mesma ordem jurídica. A população do Estado é o domínio pessoal de vigência da ordem jurídica estadual.

Já o território do Estado é um espaço rigorosamente delimitado. Não é um pedaço, exatamente limitado, da superfície do globo, mas um espaço tridimensional ao qual pertencem o subsolo, por baixo, e o espaço aéreo por cima da região compreendida dentro das chamadas fronteiras do Estado. Nenhum conhecimento naturalístico, mas só um conhecimento jurídico, pode dar resposta à questão de saber segundo que critério se determinam os limites ou fronteiras do espaço estadual, o que é que constitui a sua unidade. O chamado território do Estado apenas pode ser definido como o domínio espacial de vigência de uma ordem jurídica estadual.

Para Kelsen, a doutrina tradicional do Estado esquece que este não tem só uma existência espacial, mas também tem uma existência temporal, que, se o espaço é considerado como um elemento do Estado, também o tempo o deve ser, que a existência do Estado, assim como é limitada no espaço, também o é no tempo, pois os Estados podem surgir e desaparecer.

É o Direito internacional geral que determina o domínio espacial e temporal de vigência de cada ordem jurídica estadual, que delimita as ordens estaduais umas em face das outras e, assim, torna juridicamente possível a coexistência dos Estados no espaço e a sua sucessão no tempo.

O que faz com que a relação designada como poder estadual se distinga de outras relações de poder é a circunstância de ela ser juridicamente regulada, o que significa que os indivíduos que, como governo do Estado, exercem o poder, recebem competência de uma ordem jurídica para exercerem aquele poder através da criação e aplicação de normas jurídicas - que o poder do Estado tem caráter normativo.

O chamado poder estadual é a vigência de uma ordem jurídica estadual efetiva. O "poder" do Estado somente se pode manifestar nos meios de poder específicos que se encontram à disposição do governo: nas fortalezas e nas prisões, nos canhões e nas forças, nos indivíduos uniformizados como polícias e soldados.O poder do Estado não é uma força ou instância mística que esteja escondida detrás do Estado ou do seu Direito. Ele não é senão a eficácia da ordem jurídica.

Desta forma, o Estado, cujos elementos essenciais são a população, o território e o poder, define-se como uma ordem jurídica relativamente centralizada, limitada no seu domínio espacial e temporal de vigência, soberana ou imediata relativamente ao Direito internacional e que é, globalmente ou de um modo geral, eficaz.

O Estado como pessoa jurídica

Kelsen frisa que o problema do Estado como uma pessoa jurídica, isto é, como sujeito agente e sujeito de deveres e direitos é, no essencial, o mesmo problema que se põe para a corporação como pessoa jurídica. Também o Estado é uma corporação, isto é, uma comunidade que é constituída por uma ordem normativa que institui órgãos funcionando segundo o principio da divisão do trabalho, órgãos esses que são providos na sua função mediata ou imediatamente.

Neste sentido o Estado pode ser olhado como estando subordinado à ordem jurídica internacional que, tratando-o como uma pessoa jurídica, lhe impõe deveres e confere direitos. E, assim, tal como sucede em relação à corporação que se encontra subordinada à ordem jurídica estadual, também em relação ao Estado, como corporação submetida ao Direito internacional, pode fazer-se distinção entre deveres e direitos externos e internos: os primeiros são estatuídos pelo Direito internacional, os outros são estatuídos pela ordem jurídica estadual.

O Estado como sujeito agente: o órgão do Estado

Kelsen lembra que com efeito, nunca é o Estado, mas sempre e apenas um determinado indivíduo, quem atua, quem põe um determinado ato, quem desempenha uma determinada função. Somente quando representamos o Estado, enquanto pessoa agente, como uma realidade diferente do indivíduo, como uma espécie de super-homem, ou seja, quando hipostasiamos a construção auxiliar de pessoa, é que a questão de saber se existe um ato do Estado, uma função estadual, pode ter o sentido de uma questão dirigida à existência de um fato, é que a resposta à questão poderá ser que um determinado ato ou uma determinada função é ou não é um ato do Estado ou uma função do Estado.

Do ponto de vista de uma consideração centrada sobre o Direito, só pode ser concebida como função do Estado uma função definida na ordem jurídica, quer dizer, uma função jurídica no sentido estrito ou lato da palavra.

Kelsen se utiliza de uma metáfora, para dizer, a propósito de toda e qualquer função definida na ordem jurídica, que é o Estado, como pessoa, quem a realiza. Com efeito, com isso nada mais se diz senão que a função está determinada na ordem jurídica.

Em geral a legislação é representada como função do Estado, quer dizer, é atribuida ao Estado. Porém, muitos autores não procedem desta forma. Recusam-se a considerar a legiferação como função do Estado.

São livres de pensar como quiserem. Enganam-se, no entanto, se querem dizer com isso que a legiferação, diferentemente do que sucede com as outras funções, não é de fato realizada pelo Estado, que o Estado pode, na realidade, concluir tratados, punir crimes, administrar vias férreas, mas não pode fazer leis.

Para Kelsen se se analisa o uso lingüístico em questão, quer dizer, se se procura determinar sob que pressupostos são atribuídas ao Estado, na linguagem do Direito, certas funções definidas pela ordem jurídica nacional, quando se diz que o Estado realiza - através de um determinado indivíduo, como seu órgão - uma determinada função, verifica-se que, em geral, uma função definida pela ordem jurídica somente é atribuída ao Estado, somente é considerada como função do Estado, se é exercida por um indivíduo funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho e designado para essa função em conformidade com a mesma ordem jurídica, ou que um indivíduo só é considerado como órgão do Estado quando seja chamado ao exercício desta função através de um processo determinado pela ordem jurídica.

O Estado, como ordem social, é a ordem jurídica nacional (para a distinguir da internacional), acima definida. O Estado, como pessoa, é a personificação desta ordem.

Para este jurista, quando o Estado é representado como pessoa agente, ele tão-somente é, também, a personificação de uma ordem jurídica; não, porém, da ordem jurídica total, que regula a conduta de todos os indivíduos, que vivem dentro do seu domínio territorial de vivência - e, desse modo, constitui o Estado como uma comunidade jurídica a que pertencem todos estes indivíduos que vivem sobre um determinado território -, mas de uma ordem jurídica parcial que é formada por aquelas normas da ordem jurídica nacional estadual que regulam a conduta dos indivíduos que têm o caráter de órgãos, funcionam segundo o princípio da divisão do trabalho e são qualificados como "funcionários".

As funções atribuídas ao Estado dividem-se, segundo a tradicional teoria do Estado, em três categorias: legiferação, administração (incluindo a governação) e jurisdição. Todas três são funções jurídicas, quer sejam funções jurídicas no sentido estrito de funções de criação e aplicação do Direito, quer sejam funções jurídicas num sentido mais amplo que também inclui a função de observância do Direito.

Mas, visto que o costume, exatamente como a legislação, é um fato criador de Direito geral definido pela ordem jurídica, aquele poderia ser atribuído ao Estado com tão bom fundamento como esta. Se a criação de Direito consuetudinário não é atribuída ao Estado, é somente porque não é função de um órgão funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho, chamado a tal função através de uni processo especial.

Kelsen assevera que a atividade designada como administração estadual consta de duas partes, diferentes na sua estrutura jurídica. A função do governo, isto é, do chefe de Estado e dos membros do gabinete, dos ministros ou secretários de Estado assim como, em grande medida, dos órgãos da administração submetidos ao governo, é função jurídica específica no sentido estrito da palavra, a saber, criação e aplicação de normas jurídicas gerais e individuais, através das quais os indivíduos submetidos ao Direito, os súditos, são obrigados a uma determinada conduta, na medida em que à conduta oposta é ligado um ato de coerção cuja execução, porque é realizada por um órgão que funciona segundo o principio da divisão do trabalho, é atribuída ao Estado.

A atividade considerada como administração estadual representa uma realização imediata do fim do Estado. Com efeito, é uma conduta atribuída ao Estado que forma o conteúdo de deveres jurídicos. A função atribuída ao Estado não é função de criação e aplicação do Direito, mas função de observância do Direito. Os deveres cuja observância é atribuída ao Estado, que são considerados como função do Estado, são deveres de órgãos especialmente qualificados na sua posição jurídica - qualificados, a saber, como "funcionários" - e que atuam segundo o princípio da divisão do trabalho.

Para Kelsen o Estado se não limita a provocar uma determinada situação editando leis pelas quais os indivíduos que lhe estão submetidos são obrigados a uma conduta que representa esta situação, aplicando estas leis aos casos concretos e executando as sanções estatuídas por estas leis, mas ele próprio realiza essa situação por ele visada, quer dizer, a realiza através dos seus órgãos - ou seja, segundo o uso lingüistico dominante, a realiza por uma forma que lhe é atribuível. Tal o que sucede quando o Estado constrói e explora vias férreas, erige escolas e hospitais, fornece instrução, trata os doentes, em suma, quando desenvolve uma atividade econômica, cultural ou humanitária pela mesma forma que as pessoas privadas.Da mesma forma que a ordem jurídica parcial que constitui o Estado em sentido estrito, também o Estado como aparelho funcionarial, com o governo no topo, é uma parte integrante da ordem jurídica total que constitui o Estado em sentido amplo - o Estado cujos súditos formam o domínio pessoal de validade da ordem jurídica, cujo país forma o domínio territorial de validade da mesma ordem jurídica e cujo poder é a eficácia desta ordem jurídica - e, por isso, a atribuição ao Estado em sentido estrito, como referência à unidade daquela ordem jurídica parcial, implica a atribuição ao Estado em sentido amplo, como referência à unidade da ordem jurídica global.

Representação

Em síntese, para Kelsen "Representação" significa o mesmo que "atuação em vez ou no lugar de" (Vertretung). Diz-se: o incapaz não age por ele próprio, mas através do seu representante legal.

Kelsen crê encontrar a essência da representação no fato de a vontade do representante ser a vontade do representado, crê-se que o representante, através da sua atuação, não realiza a sua própria vontade mas a vontade do representado.

Em suma Kelsen quer dizer que com a representação, não se quer significar senão que o indivíduo que realiza a função está juridicamente, ou ético-politicamente apenas, vinculado a realizar esta função no interesse do indivíduo ou dos indivíduos aos quais, precisamente por isso, essa função é atribuída.

O Estado como sujeito de direitos e deveres

Para Kelsen os deveres e direitos do Estado como pessoa jurídica não são aqueles que são impostos ou conferidos ao Estado por uma ordem jurídica superior, o Direito internacional; são direitos e deveres que são estatuídos pela ordem jurídica estadual.

Deveres do Estado: dever estadual e ilícito estadual; responsabilidade do Estado

Para Kelsen, em essência, se se pressupõe um tal conceito, e especialmente o conceito aqui aceito, segundo o qual existe um dever jurídico de observar uma determinada conduta quando a ordem jurídica liga à conduta oposta um ato coercivo a título de sanção, então não existe normalmente qualquer dever jurídico atribuível ao Estado, mas apenas um dever ético-político.na realidade, nunca é o Estado como pessoa jurídica mas um indivíduo bem determinado quem cumpre ou viola o dever estatuído pela ordem jurídica, pode-se, no uso lingüístico, atribuir ao Estado um dever e a conduta que representa o seu cumprimento sem que também se lhe atribua a violação do dever; pode manter-se - no interesse da autoridade do Estado, ou seja, do seu governo - a concepção de que o Estado pode na verdade praticar - de conformidade com o dever - o lícito mas não - com violação do seu dever - o ilícito.

Com efeito, a ordem jurídica estadual pode autorizar um órgão do Estado a realizar uma conduta proibida pela ordem jurídica internacional, prescrevendo ou permitindo positivamente essa conduta. A conduta em questão apenas representa um delito para o Direito internacional, mas já não para o Direito estadual.

Fundamenta-se esta fórmula no fato de o Estado, que quer o Direito (porque o Direito é a sua "vontade"), não poder querer o ilícito (o não-Direito) e, por isso, não poder praticar o ilícito. Se um ilícito é praticado, só pode ser um ilícito do indivíduo que o cometeu através da sua conduta, mas não um ilícito do Estado, em relação ao qual este indivíduo apenas se comporta como órgão quando a sua conduta é autorizada pela ordem jurídica enquanto criação, aplicação, ou observância do Direito, mas não enquanto violação do Direito.

A violação do Direito cai fora da autorização ou competência conferida a um órgão do Estado e não é, por isso, atribuível ao Estado. Um Estado que praticasse o ilícito seria contraditório consigo mesmo.

Para Kelsen dizer que o Direito é a "vontade" do Estado, é "querido" pelo Estado, é uma metáfora com a qual se não exprime senão que a comunidade constituída pela ordem jurídica é o Estado, e que a personificação desta ordem jurídica é a pessoa do Estado.

E o ilícito não é - como se presume ao rejeitar a concepção de um ilícito estadual - a negação do Direito, mas, como já se mostrou, um pressuposto ao qual o Direito liga determinadas conseqüências.

Como o ilícito é um fato definido na ordem jurídica, pode ele muito bem ser referido à unidade personificada desta ordem jurídica, ou seja, pode ser atribuído ao Estado. Isso sucede, de fato, em certos casos. O princípio de que o Estado não pode praticar um ilícito não é mantido na linguagem correntemente usada sem importantes exceções.

Neste sentido, o Estado como pessoa jurídica pode, de acordo com o uso lingüístico dominante, praticar um ilícito, não cumprindo uma obrigação de prestar que lhe e imposta pela ordem jurídica estadual e, portanto, violando esse seu dever de prestar; mas a execução forçada do patrimônio do Estado, que a ordem jurídica estadual liga a este ilícito do Estado como sanção, não é interpretada como sendo dirigida contra a pessoa do Estado.

Direitos do Estado

Kelsen ensina que os direitos considerados direitos do Estado são direitos do indivíduo que, na sua qualidade de órgão do Estado, há de exercitar este poder jurídico.

Segundo este autor podemos atribuir o recebimento da prestação e o exercício do poder jurídico, em vez de à pessoa fictícia do Estado, aos indivíduos pertencentes à comunidade jurídica, quer dizer, podemos considerar os indivíduos que recebem a prestação não só como órgãos do Estado mas também como órgãos do povo que forma o Estado, isto é, dos indivíduos pertencentes à comunidade jurídica. Nessa medida, é possível considerar os direitos em questão como direitos coletivos destes indivíduos.

Kelsen assevera que se fala ainda de um direito do Estado a punir o delinqüente. Um tal direito - como direito reflexo - só existe quando exista um dever jurídico de suportar a pena, quer dizer, quando à conduta através da qual um indivíduo se subtrai a uma pena que lhe foi aplicada está ligada uma nova pena.

De especial importância são os direitos reais e, particularmente, os direitos de propriedade do Estado. Com efeito, estes formam o núcleo do patrimônio que se considera como patrimônio do Estado, o qual, como acima se mostrou, desempenha O principal papel na atribuição operada em relação ao Estado como aparelho burocrático de funcionários e, por conseguinte, também na atribuição daquela função que se designa como administração estadual imediata.

A chamada auto obrigação do Estado; o Estado de Direito

Segundo Kelsen a teoria tradicional designa por “auto-obrigação do Estado" uma situação de fato que consistiria em que o Estado, existente como realidade social independentemente do Direito, cria primeiramente o Direito e, depois, se submete - por assim dizer, de livre vontade - ao Direito.Só assim ele seria Estado de Direito.

Em primeiro lugar Kelsen ressalta que um Estado não submetido ao Direito é impensável. Com efeito, o Estado apenas é existente nos atos do Estado, que são atos postos por indivíduos e são atribuídos ao Estado como pessoa jurídica. E tal atribuição apenas é possível com base em normas jurídicas que regulam especificamente estes atos. Dizer que o Estado cria o Direito significa apenas que indivíduos, cujos atos são atribuídos ao Estado com base no Direito, criam o Direito.

De uma auto-obrigação do Estado apenas se poderia falar no sentido de que os deveres e direitos que são atribuídos à pessoa do Estado são estatuídos por aquela mesma ordem jurídica cuja personificação é a pessoa do Estado. Esta atribuição ao Estado, isto é, a referência à unidade de uma ordem jurídica e a personificação desta, daí mesmo resultante, é, como importa sempre acentuar, uma operação mental, um instrumento auxiliar do conhecimento. O que existe como objeto do conhecimento é apenas o Direito.

Para Kelsen se o Estado é reconhecido como uma ordem jurídica, se todo Estado é um Estado de Direito, esta expressão representa um pleonasmo. Porém, ela é efetivamente utilizada para designar um tipo especial de Estado, a saber, aquele que satisfaz aos requisitos da democracia e da segurança jurídica.

Centralização e descentralização

Para este autor uma comunidade jurídica centralizada (idealmente) é aquela cujo ordenamento consta única e exclusivamente de normas jurídicas que valem para todo o território do Estado, enquanto uma comunidade jurídica descentralizada (idealmente) é aquela cujo ordenamento consta de normas que apenas vigoram para domínios (territoriais) parcelares.

Dizer que uma comunidade jurídica se desmembra em regiões ou parcelas territoriais, significa que todas as normas ou apenas certas normas deste ordenamento apenas vigoram para territórios parcelares. Neste último caso, a ordem jurídica que constitui a comunidade jurídica é integrada por normas com diferentes âmbitos espaciais de validade.

Em caso de descentralização completa - e não descentralização simplesmente parcial - não pode haver, porém, além das normas válidas para domínios parciais, quaisquer normas válidas para todo o território. Como, porém, a unidade do território se determina pela unidade de validade das normas, parece questionável se, no caso ideal de pura descentralização, se pode falar ainda de um território global e de um ordenamento estadual. E que a descentralização somente pode existir na medida em que se trate de desmembramento de uma e mesma comunidade jurídica, de um e mesmo território.

Concluindo este raciocínio Kelsen destaca que é de se notar que não só a criação de normas jurídicas, mas também a sua aplicação, todas as funções estatuídas por uma ordem jurídica, em suma, podem, neste sentido dinâmico, ser centralizadas ou descentralizadas, quer dizer, ser realizadas por um único órgão ou por uma pluralidade de órgãos. A centralização no sentido dinâmico atinge o grau máximo quando todas as funções são realizadas apenas por um único órgão especialmente quando todas as normas de uma ordem jurídica, tanto as gerais como as individuais, são criadas e aplicadas por um e mesmo indivíduo. A descentralização em sentido dinâmico alcança o grau mais elevado quando todas as funções podem ser exercidas por todos os indivíduos subordinados à ordem jurídica.

A superação do dualismo de Direito e Estado

Neste tópico Kelsen aduz que uma vez reconhecido que o Estado, como ordem de conduta humana, é uma ordem de coação relativamente centralizada, e que o Estado como pessoa jurídica é a personificação desta ordem coerciva, desaparece o dualismo de Estado e Direito como uma daquelas duplicações que têm a sua origem no fato de o conhecimento hispostasiar a unidade (e uma tal expressão de unidade é o conceito de pessoa), por ele mesmo constituída, do seu objeto. Então, o dualismo de pessoa do Estado e ordem jurídica surge, considerado de um ponto de vista teorético-gnoseológico, em paralelo com o dualismo, igualmente contraditório, de Deus e mundo.

Desta forma a tentativa de legitimar o Estado como Estado "de Direito" revela-se inteiramente infrutífera, porque todo Estado tem de ser um Estado de Direito no sentido de que todo Estado é uma ordem jurídica.

Por fim, Kelsen frisa que esta superação metodológico-crítica do dualismo Estado- Direito é, ao mesmo tempo, a aniquilação impiedosa de uma das mais eficientes ideologias da legitimidade. Daí a resistência apaixonada que a teoria tradicional do Estado e do Direito opõe à tese da identidade dos dois, fundamentada pela Teoria Pura do Direito.


7. O ESTADO E O DIREITO INTERNACIONAL

A essência do Direito internacional

A natureza jurídica do Direito internacional

O Direito internacional é - de acordo com a habitual determinação do seu conceito - um complexo de normas que regulam a conduta recíproca dos Estados - que são os sujeitos específicos do Direito internacional.

Segundo a determinação do conceito de Direito que aqui propusemos, o chamado Direito internacional é Direito se é uma ordem coercitiva da conduta humana, pressuposta como soberana; se liga aos fatos por ele definidos como pressupostos atos de coerção por ele determinados como conseqüências e, portanto, pode ser descrito em proposições jurídicas, da mesma forma que o Direito estadual.

Para Kelsen as sanções específicas do Direito internacional são as represálias e a guerra. Por represália entende-se uma agressão à esfera de interesses de um Estado - noutras circunstâncias proibida pelo Direito internacional -, agressão essa que se realiza sem a vontade, ou melhor, mesmo contra a vontade desse Estado e, neste sentido, é um ato coercitivo, ainda que seja levada a cabo - por falta de resistência do Estado atingido - sem o emprego de coação física, isto é, sem o emprego da força das armas. No entanto, não está excluído o emprego da coação física.

As represálias podem, quando seja necessário, ser exercidas mesmo com o emprego da força armada. A diferença entre uma represália realizada com a força das armas e uma guerra é meramente quantitativa. A represália é uma agressão limitada à ofensa de determinados interesses, a guerra é uma agressão ilimitada à esfera de interesses de um outro Estado.

Kelsen esclarece que deve entender-se por "guerra" a ação, realizada por meio da força armada, que um Estado dirige contra outro, sem se atender ao fato de haver ou não reação contra aquele por meio de uma ação da mesma espécie, isto é, por meio de uma contra-guerra. Tal como as represálias, também a guerra é, ela mesma - quando não seja uma sanção - um delito. E este o chamado princípio do bellum justum.

Estas sanções consistem, tal como as sanções do Direito estadual, na privação compulsória da vida, da liberdade e dos outros bens, particularmente de bens econômicos dos indivíduos. Estas sanções do Direito internacional não se distinguem, quanto ao seu conteúdo, das do Direito estadual. Mas são dirigidas contra o Estado.

O Direito internacional como ordem jurídica primitiva

Segundo Kelsen o Direito internacional, como ordem coerciva, mostra, na verdade, o mesmo caráter que o Direito estadual. Distingue-se dele, porém, e revela uma certa semelhança com o Direito da sociedade primitiva, pelo fato de não instituir, pelo menos enquanto Direito internacional geral vinculante em relação a todos os Estados, quaisquer órgãos funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho para a criação e aplicação das suas normas.

Encontra-se ainda num estádio de grande descentralização.A formação das normas gerais processa-se pela via do costume ou através do tratado, ou seja, por intermédio dos próprios membros da comunidade, e não por meio de um órgão legislativo especial.

A construção escalonada do Direito internacional

Nesse sub-tópico Kelsen revela que entre as normas do Direito internacional tem particular importância a que usualmente é designada pela fórmula pacta sunt servanda. Ela autoriza os sujeitos da comunidade jurídica internacional a regular, através de tratados, a sua conduta recíproca, quer dizer, a conduta dos seus órgãos e súditos em relação aos órgãos e súditos dos outros. O Direito internacional pactício atualmente em vigor tem, à parte certas exceções, caráter meramente particular.

As suas normas não vigoram em relação a todos os Estados, mas apenas em relação a dois ou a um grupo maior ou menor de Estados. Constituem simplesmente comunidades parcelares. Com efeito, a função de um tal órgão criador de Direito internacional apóia-se, ela mesma, de novo, num pacto de Direito internacional, numa norma, portanto, que pertence ao segundo escalão do Direito internacional. Como este - o Direito internacional produzido pela via dos tratados internacionais - se apóia sobre uma norma do Direito internacional geral consuetudinário, sobre uma norma do estrato ou camada relativamente mais elevada, é mister que valha como norma fundamental pressuposta do Direito internacional uma norma que institua como fato gerador de Direito o costume constituído pela conduta recíproca dos Estados.

Imposição de obrigações e atribuições de direitos, pelo Direito internacional, de forma simplesmente mediata

Aqui Kelsen afirma que o Direito internacional impõe deveres e confere direitos aos Estados. Impõe aos Estados a obrigação de adotarem uma determinada conduta, na medida em que liga à conduta oposta as sanções acima referidas - represálias e guerra - e, assim, proíbe esta conduta, considerando-a delito, e prescreve a sua contraria. Difere de um direito subjetivo privado pelo fato de a sanção não dever ser primeiramente ordenada por uma decisão judicial e executada por um órgão funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho, e, por isso, o Estado relativamente ao qual o dever foi violado não tem o poder jurídico de instaurar um processo judicial dirigido à sanção, mas tem o poder jurídico de decidir ele próprio que, no caso em apreço, deve ser dirigida uma sanção contra um Estado que, em face dele, faltou à sua obrigação, e o de executar ele próprio essa sanção.

Para Kelsen a imposição de deveres e a atribuição de direitos ao Estado pelo Direito internacional têm o mesmo caráter que a imposição de obrigações e a atribuição de direitos a uma corporação pela ordem jurídica do Estado singular. O Direito internacional deixa à ordem jurídica de cada Estado a determinação deste indivíduo. A conduta deste indivíduo prescrita ou proibida pelo Direito internacional, a conduta que traduz a observância ou violação do dever e, portanto o mesmo dever, são atribuídos ao Estado, isto é, são referidos à unidade da ordem jurídica estadual, na medida em que aquela conduta é determinada por esta ordem jurídica como função do indivíduo que, no caso, funciona como órgão do Estado - função essa a realizar segundo o princípio da divisão do trabalho.

Desta forma, a afirmação de que a guerra e as represálias, como sanções do Direito internacional, são dirigidas contra o Estado, significa que o padecimento do mal destas sanções, que de fato é sofrido pelos indivíduos pertencentes ao Estado, é atribuído à pessoa do Estado. Neste sentido, as ações de combate que constituem o fato guerra devem, segundo o Direito internacional geral, ser dirigidas apenas contra os membros da força armada, que é um órgão do Estado. A atribuição do seu padecimento ao Estado pode, por conseguinte, exprimir que elas são dirigidas contra um órgão do Estado. Porém, não fica excluído que por estes atos sejam efetivamente atingidos indivíduos que não são membros do exército, e, com a técnica de guerra atual, nem mesmo é possível evitar que tal suceda.O que com isto se exprime é simplesmente a imposição tão-só mediata de deveres e a concessão, também tão-somente mediata, de direitos aos indivíduos pelo Direito internacional - imposição e concessão mediatizadas, na verdade, pela ordem jurídica de cada Estado.

Direito internacional e Direito estadual

A unidade do Direito internacional e do Direito estadual

Para Kelsen toda a evolução técnico-jurídica apontada tem, em última análise, a tendência para fazer desaparecer a linha divisória entre Direito internacional e ordem jurídica do Estado singular, por forma que o último termo da real evolução jurídica, dirigida a uma centralização cada vez maior, parece ser a unidade de organização de uma comunidade universal mundial, quer dizer, a formação de um Estado mundial.

A isto se opõe a concepção tradicional que pretende ver no Direito internacional e no Direito de cada Estado dois sistemas de normas diferentes, independentes um do outro, isolados um em face do outro, porque apoiados em duas normas fundamentais diferentes. Esta construção dualista - ou melhor, "pluralista", se levarmos em conta a pluralidade das ordens jurídicas estaduais - é, no entanto, insustentável, mesmo do ponto de vista lógico, quando tanto as normas do Direito internacional como as das ordens jurídicas estaduais devem ser consideradas como normas simultaneamente válidas, e válidas igualmente como normas jurídicas.

Não há qualquer conflito entre Direito internacional e Direito estadual

A concepção de que o Direito estadual e o Direito internacional são ordens jurídicas distintas uma da outra e independentes uma da outra na sua validade é essencialmente baseada na existência de conflitos insolúveis entre os dois. Uma análise mais aprofundada mostra, porém, que o que se considera como conflito entre normas do Direito internacional e normas de um Direito estadual não é de forma alguma um conflito de normas, que tal situação pode ser descrita em proposições jurídicas que de modo algum se contradizem logicamente. Um conflito dessa espécie é visto principalmente no fato de uma lei do Estado poder estar em contradição com um tratado de Direito internacional, como, v. g., quando um Estado está obrigado por tratado a conceder aos membros de uma minoria os mesmos direitos políticos que confere aos membros da maioria e, numa lei desse Estado, são retirados aos membros do grupo minoritário todos os direitos políticos, sem que tal contradição, no entanto, afete, quer a validade da lei, quer a do tratado.

Simplesmente, a este fato corresponde um outro perfeitamente análogo dentro da ordem jurídica estadual sem que, no entanto, se ponha por qualquer forma em dúvida, por tal motivo, a unidade desta. Também a chamada lei inconstitucional é uma lei válida e permanece tal sem que, por essa razão, se tenha de considerar a Constituição como anulada ou modificada. Também a chamada sentença ilegal é uma norma válida e permanece em vigor até ser anulada por uma outra sentença. Já acima claramente se mostrou que a “antinormalidade” de uma norma não significa que haja qualquer conflito entre a norma inferior e a norma superior, mas apenas traduz a anulabilidade da norma inferior ou a punibilidade de um órgão responsável.

As relações mútuas entre dois sistemas de normas

Kelsen assevera que a unidade entre Direito internacional e Direito estadual pode, no entanto, ser produzida de dois modos diferentes, do ponto de vista gnoseológico. E, quando consideramos ambos estes Direitos como ordenamentos de normas vinculantes simultaneamente válidas, não o poderemos fazer por qualquer outra forma que não seja abrangendo a ambos, por uma forma ou por outra, em um sistema descritível em proposições jurídicas não contraditórias.

Dois complexos de normas do tipo dinâmico, como o ordenamento jurídico internacional e um ordenamento jurídico estadual, podem formar um sistema unitário tal que um desses ordenamentos se apresente como subordinado ao outro, porque um contém uma norma que determina a produção das normas do outro e, por conseguinte, este encontra naquele o seu fundamento de validade.

A norma fundamental do ordenamento superior é, neste caso, também o fundamento de validade do ordenamento inferior. Se o Direito internacional e o Direito estadual formam um sistema unitário, então a relação entre eles tem de ajustar-se a uma das duas formas expostas. O Direito internacional tem de ser concebido, ou como uma ordem jurídica delegada pela ordem jurídica estadual e, por conseguinte, como incorporada nesta, ou como uma ordem jurídica total que delega nas ordens jurídicas estaduais, supra-ordenada a estas e abrangendo-as a todas como ordens jurídicas parciais. Ambas estas interpretações da relação que intercede entre o Direito internacional e o Direito estadual representam uma construção monista. A primeira significa o primado da ordem jurídica de cada Estado, a segunda traduz o primado da ordem jurídica internacional.

A inevitabilidade de uma construção monista
α) O reconhecimento do Direito internacional por cda Estado: o primado da ordem jurídica estadual

Para Kelsen os representantes de uma construção dualista consideram o Direito internacional como um sistema de normas jurídicas vinculantes que se encontram em vigor ao lado das normas do Direito estadual. Por isso, têm de dar resposta à questão de saber por que é que as normas do Direito internacional vinculam o Estado singular, que é que constitui o fundamento da sua validade. Ao responderem a esta questão, partem da validade da própria ordem jurídica estadual, pressuposta por eles como evidente. Quando, porém, se parta da validade de uma ordem jurídica estadual, surge a questão de saber como é que pode ser fundamentada, tomando este ponto de partida, a validade do Direito internacional.

Em tal hipótese, o fundamento da validade do Direito internacional tem de ser ancorado na ordem jurídica estadual. É o que se faz através da doutrina de que o Direito internacional apenas vigora em relação a um Estado quando seja reconhecido por este Estado como vinculante, e seja reconhecido tal como é configurado pelo costume no momento desse reconhecimento. Esta concepção é a dominante na jurisprudência anglo-americana e tem expressão nas modernas constituições que contêm preceitos segundo os quais o Direito internacional geral deve ser havido como parte integrante da ordem jurídica estadual - com o que o Direito internacional geral é reconhecido e é tornado parte integrante da ordem jurídica estadual cuja Constituição contenha um tal preceito.

Segundo o Direito internacional vigente, este é aplicável às relações de um Estado com uma outra comunidade apenas sob a condição de esta comunidade ser reconhecida, por este Estado, como Estado no sentido do Direito internacional. Na impostação da questão vai já implícita a suposição de que o fundamento de validade do Direito internacional tem de ser encontrado na ordem jurídica estadual, isto é, a admissão do primado da ordem jurídica do próprio Estado, ou seja, da sua soberania, ou, o que significa o mesmo, a aceitação da soberania do Estado relativamente ao qual está em questão a validade do Direito internacional.

Esta soberania do Estado é o fator decisivo para a admissão do primado da ordem jurídica estadual. Esta soberania não é qualquer qualidade perceptível - ou objetivamente cognoscível por qualquer outra forma -, um objeto real, mas é uma pressuposição: a pressuposição de uma ordem normativa com ordem suprema cuja validade não é dedutível de qualquer ordem superior. O Direito internacional, que do ponto de vista do primado da ordem jurídica estadual - ou da soberania do Estado - apenas vale na medida em que um Estado o reconhece como vinculante em relação a si, surge, por conseguinte, não como uma ordem jurídica supra-estadual, e também não como uma ordem jurídica independente da própria ordem estadual, isolada em face desta, mas - na medida em que seja Direito - como uma parte integrante da própria ordem jurídica estadual. Mas o Direito internacional não se deixa definir pelo objeto que as suas normas regulam.

Festa forma, para Kelsen o Direito internacional regula não só a conduta dos Estados, ou seja, não só regula mediatamente a conduta dos indivíduos, como também regula imediatamente a conduta desses mesmos indivíduos.Com efeito, se o Direito internacional apenas vale como parte integrante de uma ordem jurídica estadual, ele não pode ser uma ordem jurídica diferente daquela, independente dela na sua validade; e, nessa hipótese, não pode haver conflitos entre ambas, já mesmo porque ambas se apóiam - para nos exprimirmos na linguagem da jurisprudência tradicional - sobre a "vontade" de um e mesmo Estado.

β) O primado da ordem jurídica internacional

Neste tópico, em síntese, Kelsen destaca que se partirmos do Direito internacional como uma ordem jurídica válida, o conceito de Estado não pode ser definido sem referência ao Direito internacional. Visto desta posição, ele é uma ordem jurídica parcial, imediata em face do Direito internacional, relativamente centralizada, com um domínio de validade territorial e temporal jurídico-internacionalmente limitado e, relativamente à esfera de validade material, com uma pretensão à totalidade (Totalitãtsanspruch) apenas limitada pela reserva do Direito internacional.

γ) A diferença entre as duas construções monistas

No entender de Kelsen, o Direito internacional, cujo reconhecimento por parte de um Estado é, do ponto de vista do primado da ordem jurídica estadual, pressuposto da sua validade em relação a esse Estado, e que, portanto, somente vale como parte integrante de uma ordem jurídica estadual, é, quanto ao conteúdo, o mesmo Direito internacional que, do ponto de vista do primado da ordem jurídica internacional, vale como uma ordem jurídica supra-ordenada a todas as ordens jurídicas estaduais, as quais seriam ordens delegadas daquela.

A diferença entre as duas construções monistas das relações entre o Direito internacional e o Direito estadual respeita apenas ao fundamento da validade do Direito internacional, não ao seu conteúdo. Segundo a primeira, que tem o seu ponto de partida na validade de uma ordem jurídica estadual, o fundamento de validade do Direito internacional é a norma fundamental pressuposta por força da qual a fixação da primeira Constituição histórica do Estado, cujo ordenamento forma o ponto de partida da construção, é um fato gerador de Direito. Segundo a outra, que não toma o seu ponto de partida numa ordem jurídica estadual, mas no Direito internacional, o seu fundamento de validade é a norma fundamental pressuposta por virtude da qual o costume dos Estados é um fato gerador de Direito. O costume dos Estados é também um fato gerador de Direito nos quadros de um Direito internacional que apenas valha como parte integrante de uma ordem jurídica estadual. Porém, neste caso, ele não o é por força de uma simples norma pressuposta segundo a qual o costume dos Estados seria um fato gerador de Direito, mas por força de uma norma positivamente posta com o ato do reconhecimento, norma essa cujo fundamento de validade é, em última linha, a norma fundamental pressuposta da ordem jurídica estadual, ordem jurídica essa que forma o ponto de partida da construção, valendo o Direito internacional como parte integrante dela.

Por força do Direito internacional, que é sua parte integrante, a ordem jurídica estadual que forma o ponto de partida da construção é transmudada numa ordem jurídica universal que delega em todas as outras ordens jurídicas estaduais e compreende a todas. O resultado final é o mesmo que aquele a que conduz o primado da ordem jurídica internacional: a unidade gnoseológica de todo Direito vigente. Mas, enquanto o ponto de partida da construção, na hipótese do primado do Direito internacional, somente pode ser este mesmo Direito, o ponto de partida da construção, na hipótese do primado da ordem jurídica estadual, pode - como já notamos - ser qualquer ordem jurídica estadual - só o podendo ser, no entanto, uma de cada vez. E apenas quando a construção da relação entre Direito internacional e Direito estadual tome o seu ponto de partida numa ordem jurídica estadual é que se tem de chegar necessariamente à aceitação do primado desta ordem jurídica estadual - sim, só então é que este primado já é pressuposto.

Do fato de o Direito internacional se situar acima dos Estados, acredita-se que é possível concluir que a soberania do Estado é essencialmente limitada e, por essa via, se torna possível uma organização mundial eficaz. O primado do Direito internacional desempenha um papel decisivo na ideologia política do pacifismo. A soberania do Estado - que o primado do Direito internacional exclui por completo - é algo completamente diferente da soberania do Estado que é limitada pelo Direito internacional. Aquela significa: autoridade jurídica suprema; esta: liberdade de ação do Estado.

Para este autor a limitação desta opera-se através do Direito internacional precisamente do mesmo modo, quer este seja pensado como ordem jurídica supra-estadual, quer como ordem jurídica integrada na ordem jurídica estadual. Uma organização mundial eficaz é tão possível pela aceitação de uma construção como pela aceitação da outra. O Direito internacional positivo, porém, não põe quaisquer restrições à limitação da soberania do Estado como liberdade de ação do mesmo Estado. Por meio de tratado pode ser criada uma organização internacional a tal ponto centralizada que tenha ela própria caráter de Estado, por forma tal que os Estados contratantes que nela sejam incorporados percam o seu caráter de Estados. E, porém, uma questão de política a questão de saber até que ponto um governo estadual deve ou pode limitar a liberdade de ação do seu Estado através de tratados de Direito internacional. A resposta não pode ser deduzida, quer do primado do Direito internacional, quer do primado do Direito estadual.

Concepção do Direito e concepção de mundo

Assim como a concepção subjetivista parte do próprio Eu soberano para compreender o mundo e, deste modo, não pode conceber este como mundo exterior, mas apenas como mundo interior, como representação (idéia) e vontade do Eu, assim também a construção designada como primado da ordem jurídica estadual parte do próprio Estado soberano para apreender o mundo exterior do Direito, o Direito internacional e as outras ordens jurídicas estaduais, e só pode, portanto, conceber este Direito externo como Direito interno, como parte constitutiva da ordem jurídica do próprio Estado.

Do mesmo modo que a mundividência subjetiva, egocêntrica, conduz ao solipsismo, isto é, à concepção de que só o próprio Eu existe como ser soberano, e que tudo o mais apenas existe nele e a partir dele, e, assim, não pode sufragar a pretensão dos outros entes a serem também um Eu soberano, também o primado da ordem jurídica do próprio Estado conduz a que apenas este possa ser concebido como soberano, pois a soberania de um, isto é, do nosso próprio Estado, exclui a soberania de todos os outros Estados. Neste sentido, o primado da ordem jurídica do nosso próprio Estado pode ser designado como subjetivismo, ou mesmo como solipsismo do Estado. Também é possível comparar a oposição entre as duas construções jurídicas com a oposição existente entre a imagem geocêntrica, ptolomaica, do mundo e a imagem heliocêntrica, copernicana, do mesmo.

Assim como, segundo uma das construções, o nosso próprio Estado está no centro do mundo do Direito, assim, na imagem ptolomaica do mundo, a nossa Terra é situada num ponto central à volta do qual o Sol gira. Assim como, segundo a outra construção, o Direito internacional ocupa o centro do mundo jurídico, assim, na imagem copernicana do mundo, o Sol se localiza no centro à volta do qual gira a nossa Terra.

Aquele para quem a idéia da soberania do seu Estado é valiosa, porque se identifica com este na sua autoconsciência exaltada, preferirá o primado da ordem jurídica estadual ao primado da ordem jurídica internacional. Aquele, para quem a idéia de uma organização mundial é mais valiosa, preferirá o primado do Direito internacional ao primado do Direito estadual. Isso não significa, como já foi acentuado, que a teoria do primado da ordem jurídica estadual seja menos favorável ao ideal da organização mundial do que o primado da ordem jurídica internacional.

Desta forma, para Kelsen, a Teoria Pura do Direito, ao desmascarar estes sofismas, ao retirar-lhes a aparência de demonstrações lógicas que, como tais, seriam irrefutáveis, e ao reduzi-los a argumentos políticos aos quais se pode obviar com contra-argumentos da mesma espécie, desimpede o caminho para o livre desenvolvimento de um ou outro destes pontos de vista políticos, sem postular ou justificar qualquer deles. Como teoria, ela fica perante eles completamente indiferente.


Autor

  • Carlos Sérgio Gurgel da Silva

    Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pena Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Especialista em Direitos Fundamentais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (FESMP/RN), Professor Adjunto IV do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Advogado especializado em Direito Ambiental, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Geógrafo, Conselheiro Seccional da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Titular no Conselho da Cidade de Natal (CONCIDADE).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Carlos Sérgio Gurgel da. Reflexão analítica e síntese da obra 'Teoria Pura do Direito', de Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5602, 2 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69158. Acesso em: 25 abr. 2024.