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A Lei n. 12.015/09 e a incoerência da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual

A Lei n. 12.015/09 e a incoerência da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual

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Discute-se a validade da súmula 608 do STF, em vista da legislação acerca da ação penal cabível ao crime de estupro qualificado.

O presente artigo jurídico pretende analisar a incoerência da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual, uma vez que, com a modificação trazida no advento da Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009, uma série de implicações jurídicas também surgiram, implicações estas, que serão apontadas no decorrer deste artigo.

Antes da entrada em vigor da lei mencionada, os crimes que tratavam da dignidade sexual, antigo crime contra os costumes, previstos no Código Penal Brasileiro, tinham em sua natureza a ação penal privada a ser intentada para tais delitos, e, excepcionalmente, a pública incondicionada, sendo o Ministério Público, o responsável pela propositura desta ação.

No entanto, através da Lei nº 12.015/09, modificações significativas no que tange aos crimes sexuais foram trazidas e, com elas, também surgiram diversas implicações jurídicas, ora positivas (quando, por exemplo, observa-se o tratamento mais rígido quando se trata do crime de estupro de vulnerável) ora negativas.

Dentre o rol de repercussões negativas trazidas pela lei, está a mudança no tipo de ação penal a ser intentada no crime de estupro qualificado pela lesão corporal ou morte, haja vista que passam a ter em sua natureza a ação pública condicionada a representação, anteriormente intentados pela pública incondicionada, sem necessidade da manifestação da vítima para o oferecimento da denúncia.

Como observado, houve uma mudança significativa no tocante à ação penal que será aplicada nos crimes tratados nos referidos capítulos, quando da conduta do agente resultar lesão corporal grave ou morte; no entanto, quando se analisa à risca determinados tipos penais previstos nesses capítulos como, por exemplo, o estupro de vulnerável, observa-se que embora previsto no artigo 225 do Código Penal que a ação penal aplicada, se da conduta resultar morte ou lesão corporal grave, será a ação pública condicionada à representação; o legislador, ao redigir o parágrafo único do artigo 225 do Código Penal, estabeleceu exceções no que concerne a ação penal cabível aos crimes inseridos nesses capítulos, , uma vez que, se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável, a ação penal aplicada será a pública incondicionada, permanecendo da mesma forma que a redação dada antes do advento da Lei nº12.015/09.

No entanto, é possível observar o problema advindo através da lei mencionada no parágrafo anterior, vez que, quando se verifica a redação do artigo 225 do Código Penal Brasileiro, se extrai o entendimento, que se da conduta do agente resultar lesão corporal grave ou morte, a propositura da ação penal aplicada será condicionada à representação.

Acontece que a drástica mudança trazida no advento da Lei nº 12.015/09 trouxe consigo uma série de repercussões jurídicas que vão de encontro a princípios constitucionais extremamente relevantes, tais como o princípio da proibição da proteção deficiente, importante meio de efetivação do princípio da proporcionalidade (art.5º, LIV, da CF) e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF).

Foi observando a incoerência da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual, trazidas através da lei referida, que o Procurador Geral da República propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade, que obteve o número 4301, onde tinha como principais fundamentos que a mudança trazida pela lei nova poderia gerar efeito retroativo, uma vez que é mais benéfica ao réu, violando, além da dignidade da pessoa humana, o princípio constitucional da proporcionalidade, em sua espécie de vedação da proteção deficiente ao bem jurídico, que no caso em questão é a vida da vítima e sua integridade física e psíquica, bem como, a dignidade sexual.

Assim sendo, e tendo em vista a importância do debate relatado acima, no intuito de compreender as repercussões jurídicas que surgiram com o advento da Lei nº 12.015/09, utilizando-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade de número 4301, bem como, discussões doutrinárias, jurisprudenciais e legislação; o presente trabalho visa realizar uma análise detalhada de como os efeitos da nova lei poderão repercutir nas decisões judiciais posteriores a sua entrada em vigor.

Para tanto, no primeiro tópico o estudo analisará algumas generalidades dos crimes sexuais antes do advento da Lei nº 12.015/09, realizando em alguns casos, comparativos entre o regramento anterior e o atual, e observando como eram tratados tais crimes e como se dava a iniciativa da ação penal neles.

Em seguida, observar-se-á a Lei nº 12.015/09, a fim de verificar as mudanças ocorridas no tocante a ação penal cabível após seu advento, especificamente no crime de estupro qualificado, haja vista a modificação do seu entendimento anterior.

Por fim, será analisada a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4301, observando a incoerência da ação penal no regramento atual, bem como as implicações jurídicas que a mudança na ação penal pode trazer para decisões judiciais posteriores a sua entrada em vigor.


GENERALIDADES DOS CRIMES SEXUAIS ANTES DO ADVENTO DA LEI Nº 12.015/09

No dia de 07 de agosto de 2009, entrava em vigor a Lei nº 12.015/09, que trazia consigo diversas mudanças no Código Penal Brasileiro. Dentre as mudanças que ocorreram, o objeto de estudo do presente artigo se limitará ao seguinte dispositivo:

Art. 225.  Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

Parágrafo único.  Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.  (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009).

No entanto, antes de adentrar na controvérsia trazida com o dispositivo citado, faz-se necessária verificar como eram tratados os crimes sexuais no Código Penal Brasileiro, em momento anterior à lei objeto de estudo deste trabalho.

Inicialmente, o novo diploma legal modificou o que se constata no título VI da parte especial do Código Penal Brasileiro, como também o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei dos Crimes Hediondos, a fim de regular o agora conhecido por crimes contra dignidade sexual, anteriormente chamado por crimes contra os costumes, tendo em vista a sociedade da época preservar pelos costumes das pessoas, sendo este, o bem jurídico tutelado pelo título VI do Código Penal.

Os crimes contra os costumes traziam em sua redação, como por exemplo, no crime de estupro, que o indivíduo a quem se constrange é do sexo feminino, de maneira que o sujeito passivo do crime de estupro só poderia ser mulher.

No entanto, vale frisar que embora o sujeito passivo do crime fosse destinado a figura feminina, existiam na época, tipos penais que protegiam apenas as mulheres tidas como honestas, não sendo protegidas, por exemplo, as prostitutas.

Estabelecia o art. 213 do Código Penal a seguinte redação: "Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça", verifica-se que no seguinte dispositivo, uma vez que especificada a mulher como sujeito passivo, o constrangimento se configurava através da introdução do órgão genital masculino na cópula vaginal, dessa forma, não só se descrevia o sujeito passivo do delito, a mulher, como também caracterizava o homem como sujeito ativo.

A Lei nº 12.015/09 trouxe um avanço significativo no tocante aos sujeitos do artigo 213 do Código Penal, uma vez que não exige mais a mulher como sujeito passivo do delito, nem o homem como sujeito ativo, descrevendo seu caput da seguinte forma: “Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso’’, podendo ambos, dessa forma, encontrarem-se na condição de sujeito ativo, ou passivo.

Outro aspecto importante da nova lei foi a unificação do crime de atentado violento ao pudor ao crime de estupro, trazendo controvérsia se seria possível a aplicação de crime continuado nos delitos unificados, observando-se o art. 71 do Código Penal.

No entanto, em decisão proferida a respeito de pedido de Habeas Corpus que versava a respeito da controvérsia ora mencionada, a 5ª turma do STJ, apresentou:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. PROVAS PARA A CONDENAÇÃO. EXPERIÊNCIA DAS VÍTIMAS. CRIME HEDIONDO. LEI Nº 12.015/2009. ARTS. 213 E 217-A DO CP. TIPO MISTO ACUMULADO. CONJUNÇÃO CARNAL. DEMAIS ATOS DE PENETRAÇÃO. DISTINÇÃO. CRIMES AUTÔNOMOS. SITUAÇÃO DIVERSA DOS ATOS DENOMINADOS DE PRAELUDIA COITI. CRIME CONTINUADO. RECONHECIMENTO. IMPOSSIBILIDADE.

VII - Em razão da impossibilidade de homogeneidade na forma de execução entre a prática de conjunção carnal e atos diversos de penetração, não há como reconhecer a continuidade delitiva entre referidas figuras. Ordem denegada. (STJ- HC 104724 MS 2008/0085502-3/, 5ª Turma, relator Ministro JORGE MUSSI, 22 de junho de 2010).

Tal controvérsia foi discutida no julgamento do pedido de habeas corpus de um homem condenado a 15 anos de prisão por estupro e atentado violento ao pudor, na forma continuada.

Como posicionamento adotado para este trabalho, entende-se, não ser possível a aplicação da continuidade delitiva, conforme a Ministra Laurita Vaz declarou em Acordão de Recurso Especial n. 970127, em 7 de abril de 2011, “tendo as condutas um modo de execução distinto, não há a possibilidade de se reconhecer a continuidade delitiva entre a cópula vaginal e o ato libidinoso diverso, mesmo depois de o legislador tê-las inserido num só artigo de lei”. (STJ, Recurso Especial 970127, 5ª turma, relatora Ministra Laurita Vaz).

É válido frisar que embora o posicionamento adotado para este artigo jurídico seja o que entende a 5ª turma do STJ, a interpretação da Quinta Turma traz divergência com a Sexta Turma, visto que esta proferiu anteriormente decisões na qual os crimes de estupro e atentado violento ao pudor praticados contra a mesma vítima, na mesma situação, são crimes únicos segundo a interpretação da nova legislação, sendo possível assim, a aplicação da continuidade delitiva.

No que tange ao estupro de vulnerável, é imperioso reconhecer a preocupação do legislador em assegurar uma punição mais severa aos sujeitos ativos do delito, visto que, a antiga lei da presunção de violência, o legislador previa circunstância em que a vítima não tinha capacidade de consentir ou não tinha capacidade de resistir.

Com base nesses aspectos, existia uma presunção legal do uso de violência, uma vez que, se não havia capacidade para consentimento ou para resistência, se presumia que o ato praticado era violento.

A presunção era aplicada quando a vítima era menor de 14 anos, havendo a tendência dos doutrinadores em emprestar valor relativo, e não absoluto a tal presunção; do mesmo modo, agiam quando se tratava de vítima portadora de deficiência mental, ou não podendo a vítima oferecer resistência.

A nova lei se apresenta bastante clara e objetiva, buscando punir toda relação sexual ou ato considerado libidinoso praticado com ou sem consentimento do menor de 14 anos e das pessoas portadoras de necessidades especiais.

Porém, como mencionado no início deste estudo, o objetivo do presente artigo visa apresentar a incoerência da ação penal aplicada aos crimes previsto nos capítulos I e II, dos crimes contra dignidade sexual.

No anterior crime contra os costumes, tinha-se como ação penal aplicada, em regra geral, a ação penal privada, admitindo-se, entretanto, a ação penal pública condicionada a representação, ou incondicionada, a depender do que estivesse previsto na lei.

A ação penal utilizada antes do advento da Lei nº 12.015/09 trazia consigo indignação por parte da doutrina, uma vez que, majoritariamente, não concordavam que a vítima tivesse exclusivamente a decisão de iniciar a persecução penal, posto que, alguns crimes contra os costumes apresentavam o desejo do interesse público na devida punição dos agentes delitivos, devido à gravidade destes. Devido a isto, a doutrina alegava que o Estado deveria autorizar, que a ação penal aplicada para tais delitos, fossem de iniciativa do Ministério Público.

É de grande valia frisar que os crimes contra os costumes, como o estupro e o atentado violento ao pudor, eram tratados como crimes hediondos (artigo 1º, incisos V e VI, da lei 8.072/90), chegando o STF em HC de número HC 81.360/RJ, referir-se ao crime de estupro como um problema de saúde pública:

HABEAS CORPUS. ESTUPRO. CRIME HEDIONDO. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 1º, V E 2º, § 1º, AMBOS DA LEI Nº 8.072/90. [...]CONSEQUÊNCIAS BIOLÓGICAS, PSICOLÓGICAS E SOCIAIS DO ESTUPRO QUE FAZEM DELE UM COMPLEXO PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA [...] (STF, Habeas-corpus nº 81360, Primeira Turma, Ellen Gracie, Rio de Janeiro, RJ, 19 de dezembro de 2001).

Observando a preocupação narrada no parágrafo anterior, destaca Eugênio Pacelli de Oliveira (2008, p. 123), se a preocupação do Estado fosse realmente com os efeitos danosos que porventura pudessem atingir a vítima desses crimes pela divulgação dos fatos, "[...] bastaria que a lei os submetesse à persecução penal pública, condicionada à autorização da vítima ou seu representante legal".

Com o intuito de trazer uma resposta para a sociedade da época, o STF editou a Súmula de n. 608, a qual trazia em sua redação as seguintes palavras: “No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada’’. (BRASIL, STF, Súmula 608).

É importante frisar que, embora a Súmula 608 do STF tenha previsto a ação penal mais adequada para os crimes praticados mediante violência real, quais sejam, aqueles realizados com constrangimento físico, equivalente a coação física, não trouxe solução aos crimes praticados mediante violência presumida, uma vez que, caso a vítima falecesse no curso da ação penal, e não houvesse deixado sucessores, o acusado continuaria a se beneficiar, sendo extinta sua punibilidade, haja vista que não haveria ninguém para oferecer a queixa crime contra aquele. (CAPEZ, 2005, pp. 79/80).

Dessa forma, tendo em vista que a súmula 608, não trouxe solução no que concerne ao crime de estupro em que a vítima falecesse em decorrência dele, para definir qual a ação penal cabível se a mesma não deixasse sucessor, era necessário a interpretação sistemática do artigo 101 do Código Penal, o qual estabelece que quando as circunstâncias do tipo por si só já constituem crime, a ação penal deve ser incondicionada.


REALIDADE ATUAL DA AÇÃO PENAL NOS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL

 Antes de mais nada, é imperioso esclarecer qual o bem jurídico tutelado pelo título VI do Código Penal Brasileiro, qual seja, a liberdade sexual em sentido estrito e a dignidade sexual em sentido amplo. A dignidade sexual, é uma das espécies da dignidade da pessoa humana, devendo esta ser observada na interpretação de qualquer norma do ordenamento jurídico, inclusive as de caráter penal.

Renato Marcão e Plínio Gentil (2011, pp. 45 e 46) relatam que:

[...] a dignidade sexual é uma categoria de difícil apreensão e que deriva da noção maior de dignidade, atributo de todo ser humano reconhecido por convenções internacionais sobre direitos humanos e pela Constituição brasileira, que a considera fundamento da república. A adjetivação do conceito dignidade, com o qualificativo sexual, importa em reconhecer uma determinada dignidade, aquela em que o respeito alheio é devido ao sujeito no que se refere à capacidade deste se autodeterminar à atividade sexual.

Sendo assim, a dignidade sexual se dá através do respeito das pessoas ao indivíduo, no que concerne sua capacidade de fazer escolhas no tocante à relação sexual.

Já no que concerne a liberdade sexual, Renato Marcão e Plínio Gentil (2011, p. 46) elucidam:

Liberdade sexual é categoria mais concreta, que significa uma esfera de ação em que o indivíduo – e só ele – tem o direito de atuar, e atuar livremente, sem ingerências ou imposições de terceiros. A liberdade sexual diz respeito diretamente ao corpo da pessoa e ao uso que dele pretende fazer. Ao punir condutas que obriguem o indivíduo a fazer o que não deseja, ou a permitir que com ele se faça o que não quer com o próprio corpo, a norma penal está tutelando sua liberdade sexual.

Ou seja, a liberdade sexual se refere ao corpo do ser humano e como este pretende utilizá-lo, cabendo a este determinar o que fazer, não podendo ser imposto a ele manter relações sexuais contra sua vontade.           

Conforme abordado no tópico anterior, a Lei nº 12.015/09 trouxe uma série de mudanças significativas aos crimes contra a dignidade sexual,  no entanto, o que caminhava para ser um avanço legislativo, tornou-se um retrocesso no que tange a ação penal aplicada a tais crimes, mais especificamente no crime de estupro qualificado se da conduta resultar lesão corporal grave ou morte, visto que, trouxe na redação do artigo 225 do Código Penal, como deveria se proceder quanto aos crimes definidos nos capítulos I e II, dos crimes contra a dignidade sexual, os quais, teriam como ação penal aplicada, a pública condicionada à representação.

Destaca-se que na redação do artigo mencionado no parágrafo anterior, encontra-se um dos maiores retrocessos legislativos da época, haja vista que antes do advento da Lei em estudo, conforme interpretação do dispositivo 101 do Código Penal, os crimes sexuais que resultassem lesão corporal grave ou morte teriam como ação penal aplicada a pública incondicionada, não havendo dessa forma, ofensa a princípios constitucionais importantes.

É importante esclarecer, antes de adentrar minuciosamente ao objetivo desse tópico e continuar o estudo objeto deste artigo, as diferenciações entre as ações penais públicas incondicionadas e condicionadas a representação da ação privada, a fim de auxiliar o entendimento a respeito das modificações advindas no tocante a ação penal nos crimes sexuais, através da Lei nº 12.015/09.

Conforme Nestor Távora (2017, p.245) “a ação penal é o direito público subjetivo de pedir ao Estado-Juiz a aplicação do direito penal objetivo ao caso concreto”. Dessa forma, estabelece-se que o Estado através da jurisdição, deverá dizer o direito no caso concreto, reconhecendo-se ou não a pretensão. No entanto, para que o Estado exerça a jurisdição é necessário a provocação dos cidadãos.

A jurisdição penal, pode tanto ser provocada pelo Estado-Administração, através do Ministério Público, bem como, excepcionalmente, pelo particular, posto que a ação penal, quanto à iniciativa, pode ser pública ou privada (NICOLITT, 2010, p. 110).

Os tipos de ação penal de titularidade do Ministério Público podem ser públicos incondicionada, ou condicionada a representação, não sendo necessário naquela de manifestação de vontade da vítima ou de terceiros para ser exercida, enquanto está, necessita de tal requisito. Em regra, conforme preceitua Nestor Távora (2017, p. 259), “a ação penal pública incondicionada constitui regra em nosso ordenamento e será a ação cabível quando do silêncio da leia acerca da ação penal cabível”.

Entretanto, conforme mencionado, também é de titularidade do Ministério Público a ação penal pública condicionada a representação, ocorre que, tendo em vista existir uma ofensa à intimidade da vítima, é necessário o seu consentimento, denominado de representação, para a sua validade.

Segundo, Nestor Távora (2017, p. 265) :

A representação é uma condição de procedibilidade para que possa instaurar-se a persecução criminal. É um pedido autorizador feito pela vítima ou por seu representante legal. Sem ela, a persecução penal não se inicia. Não pode haver a propositura da ação, e também não pode sequer ser iniciado o inquérito policial, afinal, o legislador conferiu à vítima a faculdade de autorizar ou não o início do procedimento [...].

Existe ainda, para fins de classificação da ação penal, a ação penal privada, caracterizada pela transferência exclusiva ao particular, para que atue na defesa dos interesses que o cabem, isto porque, a ofensa a intimidade da vítima é atingida de forma demasiada. Preceitua Nestor Távora (2017, pag. 271) “ação penal de iniciativa privada tem assim o fito de proteger ofendido contra a “vitimização secundária” (ou efeito vitimador) [...]”.

Feitas tais considerações no tocante aos tipos de ação penal, observar-se-á agora o novo regramento da ação penal cabível aos crimes dos capítulos I (Dos Crimes contra a Liberdade Sexual) e II (Dos Crimes Sexuais contra Vulnerável), do título VI do Código Penal Brasileiro. Estabelece o artigo 225 do referido diploma legal, que os crimes contidos em tais capítulos proceder-se-ão através da ação penal pública condicionada a representação.

No aspecto geral, a Lei nº 12.015/09 trouxe um avanço significativo no que concerne a ação penal, tendo em vista que anteriormente tais crimes eram procedidos através da ação privada, cabendo apenas a vítima, a legitimidade para iniciar a persecução penal. Ocorre que, quando observada a ação penal a ser aplicada no crime contigo no artigo 213, § 1º, do Código Penal Brasileiro, tem-se um dos maiores retrocessos do legislativo, isto porque, no crime de estupro qualificado, antes intentado através da ação penal pública incondicionada, ou seja, sem a necessidade da manifestação da vítima para início da persecução penal, passou a ser condicionada à representação, sendo necessário tal requisito.

Apesar de não constar expressamente no Código Penal que nas formas qualificadas do crime de estupro caberia a ação penal pública incondicionada, com a análise, por exemplo, do artigo 101 do referido diploma legal, tem-se a interpretação que era dessa forma que deveriam proceder.

No entanto, com a atual redação, para dar início a persecução penal no crime de estupro qualificado pela lesão corporal ou morte, é necessária a manifestação da vítima em ver punido o agressor, tem-se assim, a representação.

O grande problema advindo pela nova redação é a seguinte, suponha-se, que um indivíduo premeditadamente, escolha uma vítima plenamente capaz e a estupre, e em decorrência da prática do referido ato a vítima venha a falecer, imagine-se ainda, que tal individuo tenha escolhido a vítima minuciosamente, de forma que, os parentes próximos desta, não mais existissem. De acordo com o novo tratamento dado a ação penal aplicada a referido delito, qual seja, estupro qualificado pelo resultado morte, seria necessária a representação da vítima, no caso em questão, falecida, passando-se assim o direto de representação conforme, art. 100, §4º, do Código Penal Brasileiro, ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão; Dessa forma, conforme Cleber Masson (2012, pág. 31) “a falha do legislador conduzirá à impunidade do criminoso”.

Imagine-se agora que um homem provedor do sustento do seu lar, no qual moram, sua esposa e seus filhos, resolve, ter relações sexuais com sua esposa sem o consentimento desta, e indignado pela recusa da esposa, em decorrência do ato sexual não consentido, venha-lhe causar lesões corporais graves. Suponha-se ainda, que por temer a subsistência dos seus filhos, haja vista não ter familiares e ser o agressor o único provimento de sobrevivência do lar, decida não o representar.

Na situação hipotética acima, também se averiguaria a impunidade do criminoso, podendo ser levantando o seguinte questionamento: a Lei nº 12.015/09, que primordialmente teria vindo com a pretensão de punir mais rigorosamente os sujeitos ativos dos delitos dos crimes contra a dignidade sexual, no tocante ao crime de estupro qualificado, teria o legislador a intenção de gerar tal controvérsia no que concerne a ação penal, causando assim a impunidade do agressor?

No intuito de responder tal questionamento, entendeu Paulo Rangel (2009, p. 301):

Não é crível nem razoável que o legislador tenha adotado uma política de repressão a esses crimes e tornado a ação penal pública condicionada à representação. Até mesmo pelo absurdo de se ter a morte da vítima no crime de estupro e não haver quem, legitimamente, possa representar para punir o autor do fato. O crime, sendo a vítima maior e capaz, ficaria impune. Com certeza, por mais confuso que esteja o Congresso Nacional com seus sucessivos escândalos, não foi isso que se quis fazer [...].

De toda sorte, alguns doutrinadores entendem que tal modificação na ação penal no tocante ao estupro qualificado, deve ser solucionada através da interpretação do art. 101 do Código Penal Brasileiro, o qual dispõe:

Quando a lei considera como elemento ou circunstâncias do tipo legal fatos que, por si mesmos, constituem crimes, cabe ação pública em relação àquele, desde que, em relação a qualquer destes se deva proceder por iniciativa do Ministério Público.

Isso porque entende-se que se os elementos que compõe o estupro qualificado, qual seja, morte e lesão corporal grave, se analisados de modo exclusivo, ou seja, observando o crime de homicídio art.121 do CP, tem-se que para o início da persecução penal terá como ação penal a pública incondicionada, bem como, assim ocorre com o crime de lesão corporal grave, por que então quando se tratando do estupro qualificado a ação penal deve ser pública condicionada a representação?

Diante da problemática, entende o autor Tourinho Filho (2012, p. 182) que, em regra, o crime de estupro é de ação pública condicionada, mas, se da violência resultar lesão grave ou morte, e considerando que tais circunstâncias, por si sós, constituem crimes cuja ação penal é de iniciativa do Ministério Público, dessa forma o estupro qualificado também será de ação penal pública incondicionada.

Outro aspecto que deve ser esclarecido sobre a Lei nº 12.015/09, é a possibilidade ou não de retroatividade da lei a fim de beneficiar o agente delituoso, isto porque, tem-se que, a lei em estudo, tem natureza híbrida ou mista no que tange à ação penal dos crimes contra a dignidade sexual, visto que, de um lado, ao tratar de ação penal, ela apresenta um caráter formalmente processual penal, porém, ao determinar que a ação penal nesses crimes deixa de ser privada para se tornar a todo tempo pública (incondicionada ou condicionada à representação do ofendido), alcança diretamente institutos tipicamente de direito material, tais como,  a renúncia, e a decadência,  estes causas de extinção da punibilidade do agente (artigo 107, incisos IV e V, do Código Penal), relacionados, portanto, ao direito de liberdade deste, devendo incidir o princípio da retroatividade da lei penal mais favorável.

Nesse sentido, entende Guilherme de Souza Nucci (2009, pp. 68-69):

O primeiro efeito é a suspensão do andamento das ações penais conduzidas pelo Ministério Público, por consequência da aplicação da Súmula 608 do STF, que hoje não mais pode subsistir. [...] logo, deve o magistrado, nesses casos, determinar a intimação da vítima, a fim de colher, de imediato (não há novo prazo de seis meses para tanto) a sua manifestação.

O grande problema advindo do pensamento do renomeado autor, no sentido de que seria necessário o consentimento da vítima para o início da persecução penal de forma imediata, consiste em por exemplo, se a referida vítima tiver falecido em decorrência do estupro praticado pelo agente, e não tiver familiares vivos a fim de exercer a representação? O agente delituoso seria beneficiado com a regra da retroatividade benéfica, haja vista que seria extinta sua punibilidade em decorrência da não manifestação da vítima ou dos seus familiares.

Dessa forma, tal entendimento poderia gerar prejuízos a vítima do crime, isto porque, não seria punido o agente delituoso, causando tal entendimento ofensa ao princípio do retrocesso social, conforme preceitua, Nicolitt (2010, p. 151): “Na caminhada dos direitos fundamentais não se pode retroceder no sentido de diminuir as funções prestacionais do estado que asseguram a dignidade humana”. 

A proibição de retrocesso social possui natureza de princípio, isto porque exibe um elemento finalístico, que se configura na garantia do nível de concretização dos direitos fundamentais sociais através de imposição da constituição. Portanto, não se admite sua descrição apenas como modalidade de eficácia jurídica das normas que envolvem direitos fundamentais.

A fim de finalizar o estudo deste tópico, resta o seguinte questionamento: com a modificação realizada na ação penal através da Lei nº 12.015/09, ainda permanece valida a Súmula 608 do STF?

Alguns doutrinadores, como por exemplo, Cleber Masson, Guilherme de Souza Nucci, Paulo Rangel, vêm apresentando resposta negativa no tocante a tal questionamento, isto porque, conforme mencionado no neste tópico deste artigo, a edição da súmula pelo STF, fora editada com o intuito de corrigir incoerências apresentadas no crime de estupro, haja vista, anteriormente ser tratado por ação penal privada.

No entanto, com o advento da Lei 12.015/09, conforme reitera Masson (2012, p. 32):

A Súmula 608 do Supremo Tribunal Federal, editada à época em que o estupro era crime de ação penal privada, perdeu seu fundamente de validade. Aliás, sua redação é manifestamente contrária ao art. 225, caput, do Código Penal. E, como se sabe, uma súmula não pode se sobrepor à lei, especialmente quando esta lhe for cronologicamente posterior.

No mesmo sentido, entendem Paulo Rangel (2009, p. 304-306) e Guilherme de Souza Nucci (2009, pp.62-63):

[...] Elimina-se a Súmula 608 do STF, vale dizer, em caso de estupro de pessoa adulta, ainda que cometido com violência, a ação é pública condicionada à representação. Lembremos ser tal Súmula fruto de Política Criminal, com o objetivo de proteger a mulher estuprada, com receio de alertar os órgãos de segurança, em especial, para não sofrer preconceito e ser vítima de gracejos inadequados. Chegou-se, inclusive, a criar a Delegacia da Mulher, para receber tais tipos de ocorrência. Não há razão técnica para a subsistência do preceito sumular, em particular pelo advento da reforma trazida pela Lei 12.015/2009. Unificaram-se o estupro e o atentado violento ao pudor e conferiu-se legitimidade ao Ministério Público para a ação penal, desde que a vítima concorde em representar. Mais que justo no cenário presente.

Diante dos posicionamentos dos autores citados, é possível compreender portanto, que devido a modificação feita pelo legislador no tocante a ação penal, a súmula n 608 do STF não possui mais validade, isto porque, com a Lei nº12.015/09 passou-se a prever expressamente a ação penal cabível aos crimes de estupro qualificado pela morte ou lesão corporal grave.

Feitas tais considerações, adentrar-se-á no estudo do último tópico do presente artigo, a fim de verificar quais os princípios constitucionais ofendidos pelas modificações na ação penal, advindas pela lei em estudo, bem como será analisada a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4301, observando-se os fundamentos utilizados para a sua propositura.


A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE nº 4301 E OS PRINCÍPIOS DA PROIBIÇÃO DA PROTEÇÃO DEFICIENTE E DA DIGNIDADE HUMANA

Diante da incoerência da ação penal apresentada nos tópicos anteriores, advinda pela Lei nº 12.015/09 no que tange aos crimes sexuais, especificamente, estupro qualificado por lesão corporal grave ou morte, o Procurador Geral da República propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade que obteve o número 4301, cujo pedido principal requer:

[...] a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, do caput do art. 225, do Código Penal (Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940), na redação que lhe foi conferida pela Le 12.015, de 7 de agosto de 2009, para excluir do seu âmbito de incidência os crimes de estupro qualificado por lesão corporal grave ou morte, de modo a restaurar, em relação a tais modalidades delituosas, a regra geral da ação penal pública incondicionada (art. 100 do Código Penal e art. 24 do Código de Processo Penal. (STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4301).

Os argumentos utilizados pelo Procurador Geral da República, fundamenta-se no fato de que a alteração da ação penal aplicada nas modalidades delituosas em estudo, configura ofensa a princípios como a dignidade da pessoa humana, bem como, ao princípio da proteção da proibição deficiente, sendo este, vertente do princípio da proporcionalidade.

Dentre as preocupações apontadas na ADI nº 4301, está a possibilidade de retroatividade da norma, tendo vista ser esta mais favorável ao agente delituoso; outra preocupação parte da premissa da não aplicação da súmula 608 do STF, visto que, diante da alteração da ação penal não se vislumbraria mais a sua utilidade.

Conforme trecho retirado da ADI nº 4301:

A ofensa aos princípios da proporcionalidade sob o prisma da proibição da proteção deficiente (ou insuficiente), e da dignidade da pessoa humana materializa-se, no caso, pelo empecilho à persecução penal nos crimes de estupro qualificado por lesão corporal grave ou morte, tornando vulneráveis bens jurídicos que da mais alta importância- vida e saúde- sem uma razão suficiente forte que justificasse a opção legislativa. (STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4301).

Dessa forma, tem-se que a modificação feita pelo legislador foi infeliz, uma vez que não observou a proteção eficiente ao bem jurídico tutelado, qual seja, a dignidade sexual, que, com alteração no que concerne a ação penal, poderia, em alguns casos, por exemplo, no estupro qualificado, causar a impunidade do agente delituoso.

Princípio da proibição da proteção deficiente

Segundo o entendimento do professor Luiz Flávio Gomes, há diferença entre missão e função do Direito Penal. As funções versam sobre o papel que efetivamente ele vem cumprindo, enquanto a missão equivale aquilo que se espera que ele proporcione.

Explica ainda Luiz Flávio (2007, p.222) que a verdadeira função Direito Penal é ser instrumento para a proteção de bens jurídicos relevantes tais como, vida, integridade física etc. e que, às vezes, algumas de suas funções, acabam sendo desnecessárias, tais como a função promocional e a função simbólica.

Conforme ressalta o autor (2007, p.223):

Toda norma penal, ou melhor, o Direito penal como um todo sempre cumpre funções promocionais e simbólicas. Isso é inerente à força coercitiva da norma penal. O problema, no entanto, não está no fato de que a norma penal tenha função promocional ou simbólica, o mal está em o Poder Público valer-se do Direito penal para cumprir só ou prioritariamente essas funções, iludindo todos os seus destinatários com promessas vãs.

Referida crítica feita pelo autor, pode ser visualizada na elaboração da súmula 608, do STF, onde através do apelo da sociedade foi editada, caracterizando a função simbólica, qual seja, aquela visualizada quando se criam leis penais primordialmente como forma de demonstrar ações de combate à criminalidade.

O princípio da proibição da proteção deficiente surge como fator delimitador da vedação de excessos em matéria criminal, também chamado como garantismo positivo, haja vista que a formulação garantista, analisa sobre seu aspecto negativo e objetiva proibir a incidência do Direito Penal e Processual Penal de forma tirana, no entanto, não anular a força desses.

Destaca-se ainda que como dito anteriormente, o princípio da proibição da proteção deficiente é um viés do princípio da proporcionalidade, sendo este usado também para pesar entre dois ou mais princípios constitucionais que estejam em divergência, estabelecendo, no caso concreto, qual deve prevalecer sobre o outro. Geralmente, é utilizado, por exemplo, para solucionar conflitos entre direitos individuais e o interesse público.

Conforme cita Lenio Streck (XXXII, p.180):

Trata-se de entender, assim, que a proporcionalidade possui uma dupla face: de proteção positiva e de proteção de omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando desproporcional o resultado do sopesamento (Abwägung) entre fins e meios; de outro, a inconstitucionalidade pode advir de proteção insuficiente de um direito fundamental-social, como ocorre quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativas para proteger determinados bens jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da Constituição, e que tem como consequência a sensível diminuição da discricionariedade (liberdade de conformação) do legislador.

É válido frisar que o processo penal, para ser eficiente, também deve garantir a harmonia do princípio da proibição da proteção deficiente com o princípio da proibição de excessos harmônica, não podendo pender para nenhum dos lados, sob pena de ferir preceitos constitucionais.

Na Ação Direta de Constitucionalidade nº 4301, verifica-se a proteção deficiente visto que, embora a Lei nº 12.015/09 tenha sido criada com o aparente intuito de tratar mais severamente os crimes sexuais, agiu no sentido contrário, quando alterou a forma de ser da ação penal nos crimes de estupro qualificado. Como consequência, conforme externado na inicial da ação constitucional, houve violação da dignidade da pessoa humana e do princípio constitucional da proporcionalidade na proteção dos bens jurídico-penais, o que deixou quase a exposto referidos interesses legalmente tutelados.

Diante disso é que se verifica a relevância do princípio da proporcionalidade na proteção dos direitos fundamentais como imperativos de tutela, especificamente em seu aspecto da proibição da proteção deficiente. Isto é, no momento em que o Estado se omite em seu dever de proteção dos direitos fundamentais, ou não o faz de forma eficiente, sua ação estará repleta de inconstitucionalidade por violar a proibição da proteção deficiente.

3.2 A dignidade da pessoa humana

A dignidade da pessoa humana, tem seu fundamento legal previsto na Constituição Federal art. 1, inciso III, a qual estabelece:

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento: [...]

III - a dignidade da pessoa humana; (BRASIL, CF/88, art. 1º, III).

Sendo assim, a dignidade da pessoa humana se molda na sociedade na medida da sua evolução, e dessa forma, atende as necessidades dos indivíduos.

De toda sorte, é possível considerar que o princípio da dignidade da pessoa humana possui extrema importância e se apresenta como gênero no qual dignidade sexual é espécie. Nesse sentido, entende-se que ao cometer qualquer crime contra a dignidade sexual, lesiona-se não só a liberdade sexual e dignidade sexual da vítima, mas também a dignidade humana desta, devendo o Estado oferecer proteção eficiente ao indivíduo para tal violação ao direito.

Nesse sentido, Flávia Piovesan diz que (2000, p. 92):

É no valor da dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa. [...]

É de grande importância esclarecer também que a dignidade humana é considerada um direito fundamental, visto que, deve ser protegida a fim de conceder a pessoa humana o mínimo de condição para sua sobrevivência.

Conforme Ingo Wolfgang Sarlet (2008, p.88):

A dignidade da pessoa humana, na condição de valor fundamental atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões. Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhes são inerentes, em verdade estar-se-á negando-lhe a própria dignidade.

Portanto, ao não observar o legislador quando alterou a ação penal no que concerne o estupro qualificado, verifica-se a ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana, quando tal alteração torna vulnerável a proteção ao bem jurídico tutelado pelo título VI do Código Penal Brasileiro, ou seja, a dignidade sexual e liberdade sexual (espécies do princípio mencionado anteriormente), uma vez que a proteção deficiente do estado para tais bens jurídicos, proporciona ao agente ativo do delito a impunidade.

A modificação traga pela Lei nº 12.015/09 no que concerne ao crime de estupro qualificado, quando não observou a proteção insuficiente do bem jurídico tutelado, favorecendo ao agente delituoso no sentido em que pode trazer benefício a este, não apenas proporciona a vítima uma violação da sua dignidade sexual, vida e integridade física, mas também a faz duplamente vítima, uma vez que vítima do seu agressor que a viola em sua dignidade humana, e ainda a faz vítima do próprio estado, visto ser insuficiente a proteção que deveria ser dada ao bem jurídico tutelado estudado no presente artigo jurídico.

Fere-se assim, o princípio da dignidade da pessoa humana duas vezes, vez que ora violado pelo agressor, ora violado pelo procedimento adotado pelo estado para a proteção insuficiente do bem jurídico, além de ferir a própria Constituição Federal, visto que, ao se fundamentar o texto constitucional na dignidade da pessoa humana, protegendo-a, coibi todas as ações que são contrárias à sua proteção.

Conforme Santos (2008, p.78):

A dignidade da pessoa humana constitui não apenas a garantia de que a pessoa não será objeto de ofensas ou humilhações, mas implica também, num sentido positivo, o pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo.

Cumpre registrar, que a Ação Direta de Inconstitucionalidade mencionada nos parágrafos anteriores, foi proposta no mesmo ano em que a Lei nº 12.015/09 entrou em vigor, porém até o presente ano 2017, não foi levada a julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, o que faz um total de 08 anos, ocorrendo sua última movimentação no ano de 2016.

Com a demora para o julgamento da referida ADI, se observa mais uma vez a violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, visto que, até o julgamento e a consolidação do posicionamento adotado pelo STF, no que concerne à ação penal aplicada ao crime de estupro qualificado, continuará a proceder-se através da ação penal pública condicionada a representação, o que poderá acarretar nos casos de morte da vítima sem representante legal para autorizar a continuação da persecução criminal pelo ministério público, a impunidade do agente delituoso e a consequente violação ao bem jurídico tutelado, qual seja, dignidade sexual, vida da vítima.

Afirma Sérgio Cavalieri Filho (2005, p.61):

“Entre os superiores princípios (valores) consagrados na Constituição de 1988, merece especial destaque o da dignidade da pessoa humana, colocado como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III). Temos hoje o que podemos chamar de direito subjetivo constitucional à dignidade. Ao assim fazer, a Constituição colocou o homem no vértice do ordenamento jurídico da Nação, fez dele a primeira e decisiva realidade, transformando os seus direitos no fio condutor de todos os ramos jurídicos. Isso é valor”.

Violando o princípio da dignidade da pessoa humana, viola-se, indiscutivelmente a constituição, por conseguinte, torna-se inconstitucional a aplicação da ação penal pública condicionada a representação ao crime de estupro qualificado por morte ou lesão corporal grave.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto e da problemática ora apresentada, viu-se que a Lei nº 12.015/09 trouxe grandes mudanças no que tange os crimes sexuais, sendo grandes progressos, sob determinados pontos de vista. No entanto, foi observado que entre outros aspectos a lei se mostrou obscura, principalmente no que concerne a modificação feita na ação penal cabível aos crimes de estupro qualificado, que passou a se proceder mediante ação pública condicionada a representação.

Ocorre que, como visto, com tal modificação criou-se a problemática jurídica no sentido de quem representaria a vítima no caso de estupro qualificado por morte, nos casos em que a mesma não tivesse familiares, bem como, foi observada a dificuldade de representação no caso de estupro qualificado pela lesão corporal grave praticado pelo (a) cônjuge ou companheiro (a).

Foi constatando tais problemas jurídicos expostos, que o Procurador Geral da República ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4301, com o requerimento da inconstitucionalidade parcial do caput do artigo 225 do Código Penal, que versa também, qual ação penal cabível aos crimes de estupro qualificado por morte ou lesão corporal grave, vez que, tal modificação realizada pela Lei nº 12.015/09, ocasiona uma violação aos princípios da dignidade da pessoa humana e o princípio da proibição da proteção deficiente, vertente do princípio da proporcionalidade.

Notou-se ainda, a discussão doutrinária a respeito da validade ou não da súmula 608 do STF, visto que uma vez previsto expressamente qual ação penal cabível ao crime de estupro qualificado, não haveria mais necessidade de permanecer válida.

É válido frisar, a problemática abordada no que tange a possibilidade de retroatividade da em estudo, tendo em vista ser esta mais benéfica ao agente delituoso que praticou o crime de estupro qualificado anteriormente a sua vigência, vez que, quando se passou a depender da representação da vítima para condição de procedibilidade do processo, os processos em curso anteriores a Lei 12.015/09, dependeriam da representação para sua validade.

É evidente que o delito de estupro, especialmente quando praticado em suas modalidades qualificadas, afeta não só a vítima e a sua família, mas toda a sociedade, devido ao seu alto grau de agressividade ao bem jurídico tutelado. Dessa maneira, não é viável deixar nas mãos do cidadão a escolha de ser conveniente ou não punir quem violar a lei. Por isso, é indispensável e urgente a aplicação de punição a um criminoso capaz de levar a vítima à morte após violar sua dignidade sexual.

 Seria uma ofensa ao princípio do retrocesso social deixar de punir o agente delituoso nos casos de estupro qualificado, por morte da vítima, nos casos em que esta não tiver deixado representante legal para representá-la. Isso porque, como visto no decorrer do artigo, o crime de homicídio por si só, se procede através de ação penal pública incondicionada, desse modo, é incongruente que o criminoso não seja punido por falta de representação da vítima ou de seu representante legal.

Conclui-se, portanto, diante da problemática jurídica apresentada, mais sensato é o entendimento de que, se em decorrência do estupro a vítima venha à óbito ou a ficar lesionada gravemente, a ação penal cabível deverá ser a ação penal pública incondicionada, sendo a persecução penal iniciada exclusivamente pelo Ministério Público, independentemente de iniciativa da vítima ou de seu representante legal, preservando dessa forma a dignidade da pessoa humana, bem como evitando a impunidade do agente delituoso.


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Autor

  • Maria Clara de Lima Gomes

    Graduada em Direito pelo Centro Universitário Tabosa de Almeida- Asces/Unita; Advogada, aprovada no XXV Exame da Ordem; Estagiária da Defensoria Pública do Estado de Pernambuco por 03 anos; Pós graduada em Direito Penal e Processo Penal Prático Contemporâneo pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Assessora de Magistrado no Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Maria Clara de Lima. A Lei n. 12.015/09 e a incoerência da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5768, 17 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69619. Acesso em: 25 abr. 2024.