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Aplicação da teoria da cegueira deliberada no crime de tráfico de drogas

Aplicação da teoria da cegueira deliberada no crime de tráfico de drogas

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Para a teoria da Cegueira Deliberada entende-se conveniente responsabilizar aquele que finge não enxergar a procedência ilícita de seus atos, como se não soubesse estar cometendo um crime para escusar-se da persecução penal.

1 INTRODUÇÃO

A Teoria da Cegueira Deliberada é um instituto subjetivo que possui relevante papel no âmbito processual penal norte-americano, pois possibilita a responsabilidade pela prática de uma infração penal daquele que podia ou devia saber da ilicitude do fato.

Por esta teoria entende-se conveniente responsabilizar aquele que finge não enxergar a procedência ilícita de seus atos, como se não soubesse estar cometendo um crime para escusar-se da persecução penal.

Incorporando-a ao ordenamento jurídico pátrio vigente, tem-se a aplicação da cegueira deliberada respaldada no dolo eventual aos crimes que admitem este elemento subjetivo, sendo equiparados para fins de aplicabilidade da norma penal brasileira.

O dolo eventual, por seu turno, consiste na assunção de praticar um crime, mesmo quando não se quer diretamente cometê-lo. Isto ocorre quando o agente mesmo não querendo o resultado, assume o risco de produzi-lo. Nesses termos, os elementos da cegueira deliberada são os mesmos que constituem o dolo eventual, pois o sujeito que pratica a conduta, mesmo não querendo cometer o crime, assume o risco de praticá-lo ao ignorar propositalmente a sua ocorrência e prosseguir à sua consumação.

Visto isso, pondera-se a relevância de estudar a possibilidade da ocorrência da cegueira deliberada no crime de tráfico de drogas previsto na Lei nº 11.343/06 como medida repressiva para combater as artimanhas de criminosos quando da exploração indevida de substâncias entorpecentes capazes de causar dependência física e psíquica, e violar direitos alheios.

É nítido que o crime em estudo vem sendo numerosamente praticado atualmente, carecendo de estratégias repressivas para resistir à luta incessante de erradicação da mercancia ilícita de drogas.

O dolo eventual é um dos elementos subjetivos caracterizadores do crime de tráfico, e diante disso, sustenta-se a viabilidade da Teoria da Cegueira Deliberada constituir elemento subjetivo à configuração do delito em estudo.

Desse modo, utilizando-se da metodologia de pesquisa, serão elucidados os institutos da Teoria da Cegueira Deliberada e do dolo eventual e a compatibilidade destes, a classificação do crime de tráfico, bem como o posicionamento acadêmico quanto à possibilidade da aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada no crime de tráfico de drogas.


2 DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA

2.1 Origem

A Teoria da Cegueira Deliberada fora instituída no ordenamento jurídico anglo-americano, tratando-se de um elemento subjetivo para atribuir imputabilidade diante da prática de infrações penais propositalmente ignoradas.

A instituição dessa teoria advém de países adotantes do sistema common law, isto é, um sistema jurídico onde o direito se baseia mais na jurisprudência e doutrina, que no texto legal.

A Teoria da Cegueira Deliberada ou Willful Blindness é também conhecida como a teoria da Instrução da Avestruz, isso porque, metaforicamente falando, o autor, da mesma forma que um avestruz, quando da prática da conduta suspeitamente criminosa enterra a cabeça em situações de perigo para que não veja ou escute más notícias.

A princípio, a teoria em comento tem sido utilizada pela Suprema Corte dos Estados Unidos, especificamente em ações de crimes de lavagem de dinheiro, ao punir aqueles que, tendo potencial para conhecer a ocorrência criminosa, optaram intencionalmente por não saber, para obter vantagem econômica.

Significa dizer, nesta esteira doutrinária, que o praticante do delito age implicitamente com a vontade e consciência ao cegar-se propositalmente diante da probabilidade do resultado, isto é, opera-se com dolo.

2.2 Conceito e aplicação

É por Rollemberg e Callegari (2015, p. 1) a conceituação desta teoria.

Em apertada síntese, a doutrina referida propõe a equiparação, atribuindo os mesmos efeitos da responsabilidade subjetiva, nos casos em que há o efetivo conhecimento dos elementos objetivos que configuram o tipo e aqueles em que há o desconhecimento intencional ou construído de tais elementares. Extrai-se tal conclusão da culpabilidade, que não pode ser em menor grau quando referente àquele que, podendo e devendo conhecer, opta pela ignorância.

No mesmo sentido, trata-se de uma teoria incorporada “em situações nas quais o agente finge não enxergar a ilicitude da procedência de bens, direito e valores com a intenção deliberada de auferir vantagens” (COSTA, 2014). Assim, enquadra-se o agente nessa modalidade subjetiva quando, defronte de uma infração penal, podendo, ou devendo saber, opta por rejeitá-la.

Um exemplo, traçando a linha doutrinária em questão, seria no caso de um deputado federal ter recebido e aplicado valor excessivo de recursos para sua campanha eleitoral sem antes apurar a origem do dinheiro. Após investigações acerca dos valores, descobre-se que o dinheiro é de origem espúria, e o político visando eximir-se da responsabilidade, afirma desconhecer a proveniência criminosa do montante recebido.

Nota-se que na exemplificação, as circunstâncias faziam presumir que o político tinha forte suspeita da procedência ilícita dos valores recebidos, e quando evitou estimá-los propositalmente para não obter o conhecimento pleno de sua origem, assumiu o risco de praticar o crime de lavagem de capitais.

Para reforçar o entendimento, “somente podemos falar em cegueira deliberada quando há a voluntariedade e intenção de se manter na ignorância, sendo possível apenas quando há a possibilidade de obter o conhecimento” (CALLEGARI; WEBER, 2014, p. 95). Pode-se afirmar, portanto, que a cegueira deliberada para ser configurada, deve as circunstâncias ilícitas à volta do infrator estar ao alcance de conhecimento deste, sem maiores obstáculos, fazendo com que o agente perceba ou suspeite da procedência ilícita da conduta por ele praticada. Ademais, para que se possa dizer que o caráter delitivo poderia ser percebido pelo agente, é preciso valer-se de elementos cognitivos que um homem médio deveria ter.

Todavia, é importante mencionar que a Suprema Corte americana (2000, apud CALLEGARI, WEBBER, 2014, p. 96), responsável pela instituição da cegueira deliberada, em seus julgamentos, traçou limites à sua aplicabilidade, salientando a necessidade da prévia verificação dos elementos que a integram para possibilitar a sua aplicação. Verifica-se:

Nós entendemos que estes requisitos dão à cegueira deliberada um campo apropriadamente delimitado que ultrapassa a imprudência e negligencia. Sob está formulação, o réu “deliberadamente cego” é aquele que deliberadamente desenvolve ações para evitar a confirmação de uma alta probabilidade de existência de conduta criminosa, sobre quem poder-se-á afirmar que possuía o conhecimento atual dos fatos críticos.

Da decisão, observa-se que o maior desafio da cegueira deliberada como sendo conduta dolosa é, em todos os casos, contornar os elementos da conduta culposa, pois a abstenção intencional do conhecimento pode confundir-se com um ingênuo desconhecimento.

Por isso, deve-se buscar distingui-las no caso concreto, de maneira a evitar a imputação equivocada do elemento subjetivo. 

Não obstante isso nota-se que a referida teoria tem importantíssimo papel no âmbito criminal internacional, de modo a atribuir a responsabilidade subjetiva pela prática de crimes que lesem bens jurídicos penalmente tutelados.

2.3 Do elemento subjetivo e equiparação no direito penal brasileiro

Os fatores da cegueira deliberada que levam à probabilidade do resultado são os mesmos que se fazem presentes no dolo eventual aplicado no direito penal brasileiro, tornando-os assemelhados.

O dolo eventual está contemplado no artigo 18, inciso I, do Código Penal e a adequação das circunstâncias subjetivas da cegueira a este instituto é certamente conveniente, como será analisado oportunamente.

Ainda, importante preceder que embora sejam institutos semelhantes, não impedem a semelhança com outros institutos, que também abarcam o elemento subjetivo, nos quais, também serão estudados e dissociados.

2.3.1 Do dolo eventual

Toda e qualquer conduta para integrar o tipo penal, além de estar previamente tipificada em lei, exige-se a demonstração do elemento subjetivo, ou seja, a consciente representação do resultado típico objetivo pelo agente ao praticar determinado delito.

 A cegueira deliberada, como já discorrida acima, equipara-se, na versão jurídica brasileira, ao dolo eventual, sendo assim assimilados tanto no componente subjetivo, quanto nos efeitos jurídicos provocados pela exteriorização do dolo, de haver a responsabilização criminal.

O direito penal brasileiro no tocante ao dolo adotou a teoria da vontade e do assentimento, interpretada no artigo 18, inciso I, do Código penal (BRASIL, 1940), dizendo ser o crime “doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”. O dolo eventual, por sua vez, encontra-se conceituado na última parte do inciso I e é explicado pela teoria do assentimento.

Em estudo, diz ser o dolo eventual “quando o agente, embora não querendo diretamente praticar a infração penal, não se abstém de agir e, com isso, assume o risco de produzir o resultado que por ele já havia sido previsto e aceito” (GRECO, 2010, p. 184). Complementando seu conceito, o dolo eventual “é a conduta daquele que diz a si mesmo “que aguente”, “que se incomode”, “se acontecer, azar”, “não me importo” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p. 498). Observa-se que no explanado não há um querer direto do resultado objetivo, mas sim, uma assunção do risco daquele, que foi previsto e aceito.

Pedro Jorge Costa (2015, p. 223), por sua vez, finaliza a definição do dolo eventual:

Então, o conceito de dolo eventual se trata, como se viu, de uma teoria de probabilidade. À primeira vista, uma teoria da probabilidade seria incompatível com a assunção do risco prevista no art. 18 do Código Penal para o dolo eventual. Porém, assim não é. Quem sem mais, age mesmo tendo posição privilegiada para a previsão de lesão ou perigo ao bem jurídico, a juízo de um observador externo, assume o risco de sua causação. Seu comportamento vem nesse sentido.

A partir daí, eis que surge a adequação da cegueira deliberada ao dolo eventual, que se colocados na mesma planilha jurídica, possuem os mesmos elementos subjetivos para a objetiva imputação penal. A diferença entre eles é, então, meramente nominal.

Sobre tal equiparação, Ramón Ragués i Vallés (2007, apud CALLEGARI; WEBER, 2014, p. 95) adverte que a cegueira “somente é equiparada ao dolo eventual nos casos de criação consciente e voluntária de barreiras que evitem o conhecimento de indícios sobre a proveniência ilícita de bens, nos quais o agente represente a possibilidade da evitação”.

Assim sendo, assimilando-se tais institutos, o risco do resultado infracional penal é aceito pelo sujeito, que estando diante da probabilidade do resultado e deliberando propositalmente o desconhecimento deste, atraiu para si, a responsabilidade penal.

2.3.2 Da culpa consciente

Como mencionado alhures, na aplicação da teoria da cegueira deliberada como dolo eventual, deve-se ater para não condenar uma conduta culposa, em dolosa, visto que, no nosso sistema penal, contemplam-se diversas espécies de responsabilidade subjetiva, o que pode tornar arriscada a sua utilização.

A diferença existente entre o dolo e a culpa está na previsibilidade do resultado. Porém, há um instituto culposo que pode confundir-se com o dolo, qual seja, a culpa consciente, e importante se faz a sua distinção com a figura dolosa.

Prevê o artigo 18, inciso II, do Código Penal (BRASIL, 1940) ser o crime “culposo, quando o agente deu causa ao resultado, por imprudência, negligência ou imperícia”. Extrai-se da redação dentre outras modalidades culposas, a culpa consciente, tendo que diante da prática infracional, não houve a previsibilidade do resultado.

Fala-se em culpa consciente “aquela em que o agente, embora prevendo o resultado, não deixa de praticar a conduta, acreditando, sinceramente, que este resultado não venha a ocorrer” (GRECO, 2010, p. 199). Percebe-se que nesta modalidade, embora seja previsto o resultado, que o risco não é querido, tampouco assumido pelo agente, por acreditar firmemente na sua inocorrência, dando, desta forma, causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. Assim, “a culpa consciente supõe comportamentos ou outros fatos que tornem menor a probabilidade da lesão ou perigo e não um mero elemento interno ao agente” (COSTA, 2015, p. 223).

São tais elementos que fazem distinguir-se a culpa consciente da cegueira deliberada como o dolo em questão, e por isso “é importante destacar que ignorância deliberada não se confunde com negligência, havendo aqui a mesma fronteira tênue, pelo menos do ponto de vista probatório, entre o dolo eventual e a culpa consciente” (MORO, 2010, p. 45).

Nesse diapasão, pode-se concluir que na cegueira há a intenção no que se refere à manutenção da ignorância e a assunção do risco perante o resultado, enquanto que na culpa consciente, o querer e a previsão ficam implícitos diante da equívoca certeza da não ocorrência do resultado. 

2.3.3 Do erro de tipo

Se a vontade no dolo pressupõe a consciência, não há de que se falar em erro quanto à procedência ilícita da conduta. Contudo, o desconhecimento irracional sobre a ilicitude do fato recai sobre as elementares do tipo penal e configura erro de tipo (essencial), no qual, isenta o agente de pena.

Em outras palavras, o erro de tipo nada mais é que “uma falsa percepção do fato, pois o autor acredita veementemente que está agindo corretamente, de uma forma não proibida pela lei” (DORIGON, 2017, p. 123). Assim, não se pode desejar o que se desconhece ou sequer representa.

 Dessa maneira, “se o erro sobre o elemento do tipo exclui o dolo, a contrario sensu, a representação é necessária para sua configuração” (COSTA, 2015, p. 13). Segundo Callegari, Weber (2015, p. 99) sendo o dolo excluído, não há de se dizer que a teoria da cegueira seja sua modalidade, pois nesta o desconhecimento do agente é intencional e existe a consciência da probabilidade do crime, ao passo que no erro de tipo, há uma falsa representação do elemento típico do delito, que exclui o dolo. E, portanto, são institutos que devem ser diferidos para que não haja a equivocada aplicação.

Nos mesmos parâmetros, incide a figura das descriminantes putativas, que derivam do erro de tipo e também excluem o dolo. Descriminante putativa “é a causa de excludente da ilicitude erroneamente imaginada pelo agente” (CAPEZ, 2012, p. 244). Em breve síntese, significa dizer que o agente acredita estar acobertado por uma das causas justificáveis do crime previstas no artigo 23 do CP, que excluem a ilicitude, o que também não é o caso da cegueira deliberada, pois a conduta intencionalmente ignorada não está sob qualquer justificativa de ilicitude.                

2.4 Da incidência em crimes nos países de direito continental

Em que pese a Teoria da Cegueira Deliberada pertencer a um sistema de lei comum, note-se a sua integração nos países de direito continental, cuja tradição é o texto legal.

A referida teoria, embora incorporada apenas em jurisprudência, está cada vez mais presente em decisões criminais de países que possuem como principal fonte do direito, a lei. Um dos mentores dessa aplicação doutrinária é o Supremo Tribunal Espanhol, que a tem utilizado em crimes de receptação, tráfico de drogas e lavagem de dinheiro, neste último como no “leading case STS 4.934/2012, julgado em 9 de julho de 2012.” (CALLEGARI, WEBER, 2014, p. 93).

No direito penal brasileiro, pode-se dizer que a cegueira deliberada não é tão novel a ponto de não conhecê-la, pois seu emprego se deu em condenações pela Suprema Corte em um dos maiores escândalos de corrupção da história, qual seja, na ação penal nº 470 – Mensalão.

Atualmente, em tempos de Operação Lava-Jato, a aplicação de tal teoria é sucessiva, visto que a equiparação da cegueira deliberada ao dolo eventual fundou-se na admissibilidade deste para a configuração dos crimes de lavagem de dinheiro. E nestes delitos, a aplicação da cegueira deliberada destaca-se com o juiz da operação Lava-Jato, Sergio Fernando Moro, que robustece sua utilização ao proferir decisões penais condenatórias. Veja-se:

Em síntese, aquele que realiza condutas típicas à lavagem, de ocultação ou dissimulação, não elide o agir doloso e a sua responsabilidade criminal se escolhe deliberadamente permanecer ignorante quanto à natureza dos bens, direitos ou valores envolvidos na transação, quando tinha condições de aprofundar o seu conhecimento sobre os fatos. (PARANÁ, 2017)

Ainda na esfera jurídica brasileira, o Egrégio Tribunal Regional Federal da 4º Região, em suas decisões hodiernas, já se utilizou do conceito desta teoria para crimes de uso de documento falso, contrabando e descaminho, além do referido crime de tráfico de drogas. Confere-se:

DIREITO PENAL. CONTRABANDO. DESCLASSIFICAÇÃO PARA DESCAMINHO. IMPOSSIBILIDADE. CIGARROS. DESCAMINHO. MERCADORIAS DESCAMINHADAS. VALOR ELEVADO DE IMPOSTOS ILUDIDOS. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIFICÂNCIA. CRIME ÚNICO. CONCURSO FORMAL. AFASTADO EX OFFICIO. CRIME CONTRA AS TELECOMUNICAÇÕES. ART. 70 DA LEI Nº 4.177/62. CONCURSO MATERIAL. ERRO DE TIPO. INOCORRÊNCIA. TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA.1. O Supremo Tribunal Federal tem decidido repetidamente que, em se tratando de cigarro a mercadoria importada com elisão de impostos, não há apenas uma lesão ao erário e à atividade arrecadatória do Estado, mas também a outros interesses públicos como a saúde e a atividade industrial internas, configurando-se contrabando, e não descaminho. 2. Esta Corte, ao revisar o critério da aplicabilidade do princípio da insignificância, em face do posicionamento firmado no Supremo Tribunal Federal, firmou entendimento no sentido de ser inaplicável o princípio da insignificância nos casos em que dentre as mercadorias importadas incluem-se cigarros, porquanto afora a falta de registro no órgão nacional de controle (ANVISA), a atividade ilícita em questão também atinge o erário, a indústria, a saúde, bem como o disposto no art. 3º, §§ 2º e 3º, da Lei 9.294/96 merecendo assim gradação elevada de reprovabilidade. 3. Consoante entendimento do Supremo Tribunal Federal - adotado por esta Corte -, aplica-se o princípio da insignificância no crime de descaminho quanto o total dos tributos iludidos (IPI e II), não supera o valor legalmente instituído na esfera administrativa como limite mínimo para fins de execução fiscal que, atualmente, encontra-se no patamar de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), conforme a Portaria nº 75/2012 do Ministério da Fazenda. 4. Segundo a teoria da cegueira deliberada - por vezes também denominada de 'doutrina do ato de ignorância consciente' ou 'teoria das instruções de avestruz' -, o agente finge não enxergar a possibilidade de ilicitude da procedência de bens, com o intuito de auferir vantagens. O dolo configurado, nesse caso, é o dolo eventual: o agente, sabendo ou suspeitando fortemente que ele está envolvido em negócios escusos ou ilícitos, e, portanto, prevendo o resultado lesivo de sua conduta, toma medidas para se certificar que ele não vai adquirir o pleno conhecimento ou a exata natureza das transações realizadas para um intuito criminoso, não se importando com o resultado. 5. Esta Corte tem entendido que descabe a aplicação do concurso formal entre contrabando e descaminho para os delitos anteriores a mudança legislativa, visto que se trata de delito único, com uma conduta na qual o agente transporta mercadorias proibidas de ingressar no país, enquanto outras, não proibidas, ingressam no território nacional com ilusão de tributos. (RIO GRANDE DO SUL, 2017).

Tal decisão, dentre outras, demonstram a concretização da teoria da cegueira deliberada no ordenamento jurídico de sistema civil law, e sua aplicação segue cada vez mais explícita diante da incessante prática de infrações penais.

2.4.1 Da transferência da common law para civil law e sua problematização

A discussão que se coloca no campo jurídico é da compatibilidade da utilização de uma teoria oriunda de um sistema jurídico diverso do adotado pelos países de direito continental.

Cumprindo discrepar tais institutos, o termo common law, como já abordado alhures, significa lei comum, que se refere a um sistema jurídico herdado da Inglaterra, cuja aplicação do direito está centrada mais em decisões das tribunas do que dos atos legislativos e executivos. A expressão civil law, por sua vez, significa lei civil, tratando-se de um sistema jurídico romano-germânico, em que a aplicação do direito se baseia nos textos legais positivados.

Alguns sustentam que por serem sistemas diversos há limitações da aplicação da cegueira deliberada, de modo que afastaria a sua incidência, haja vista que no sistema common law, capta-se com mais detalhe os elementos que integram a subjetividade do agente, e que leva à literalidade de sua aplicação.

Sobre o assunto, já tem abordado Pedro Jorge Costa (2015, p. 264):

As figuras se enquadram em sistemas jurídicos bastante distintos no que se refere à imputação subjetiva. No direito continental, a distinção se resume a dolo ou imprudência, com subdivisões dentro dessas modalidades. Nos sistemas de common law, há mais modalidades explicitamente reconhecidas e independentes umas das outras de mens res, tipo subjetivo. [...] Por isso, o sistema anglo-americano consegue captar com mais precisão os estados mentais do agente do que nos sistemas continentais. Todavia, sendo mais amplos os conceitos dos sistemas continentais, nele não ocorrem algumas lacunas de punibilidade do sistema de common law.

Da mesma forma, Francis Rafael Beck (2001, apud CALLEGARI, WEBER, 2014, p. 95-96) refere que para a aplicabilidade da cegueira deliberada é preciso analisá-la pormenorizadamente antes de qualquer transferência para o nosso ordenamento jurídico, pois não se pode tolerar a sua aplicação sem antes compreender o que ela realmente representa.

Tal como refere os entendimentos, é de se concordar no tocante à diferença dos sistemas nos modos de classificarem a subjetividade do agente, bem como na necessária apuração da íntegra dos elementos subjetivos que estarão em discussão sobre o crime praticado, para que não sejam confundidos.

Entretanto, observa-se que na aplicação de sistemas civil law a teoria que é oriunda da common law é equiparada ao dolo eventual, que por razão está previsto no nosso diploma legal. O agente não é condenado diretamente pela teoria da cegueira deliberada, mas sim pelo dolo eventual, o que afastaria a ilegalidade de tal. Ou seja, não se pune a conduta de uma nova modalidade subjetiva contrária à lei, mas sim circunstâncias subjetivas que se assimilam a um elemento subjetivo legalmente previsível.

Nessa lógica, em recente decisão penal condenatória, Moro decidiu que:

Esclareça-se que não se trata de dolo sem representação. O agente representa a elevada probabilidade de que os valores envolvidos constituem produto de crime e que, se persistir na conduta de ocultação ou dissimulação, corre o risco de lavar produto de crime. O agente não é punido pela ignorância deliberada, ou seja, por sua escolha em não aprofundar o seu conhecimento. Esse elemento serve apenas como prova da representação da probabilidade da origem criminosa dos valores, ou seja, ele escolhe não aprofundar o seu conhecimento, pois de antemão tem presente o risco do resultado delitivo e tem a intenção de realizar a conduta, aceitando o resultado delitivo como probabilidade. (PARANÁ, 2017)

Do mesmo pensamento e não menos importante, Moro (2010, p. 43) em sua obra leciona que a cegueira deliberada e o dolo eventual são similares e igualmente culpáveis, pois na cegueira deliberada, o proposital desconhecimento infere na cognição do ilícito e incide na previsão do resultado.

Como se vê, apesar de não estar tão pacificada a aplicabilidade da doutrina da cegueira deliberada no sistema de direito continental, é de se concordar que a adequação desta ao dolo eventual já encontra revestimento de decisões penais condenatórias do direito pátrio.


3 DO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS, ART. 33 DA LEI Nº 11.343/06

3.1 Fundamentos constitucionais

Em breve sinopse, cumpre advertir que a repressão da exploração indevida da droga, é, primordialmente, revestida de constitucionalidade, tendo em vista que as normas previstas na Carta Magna buscam manter a ordem estatal e assegurar os direitos fundamentais para a vida em sociedade.

Assim aludido no artigo 3º, inciso II da Constituição Federal (BRASIL, 1988), objetiva-se, primordialmente, a garantia do desenvolvimento nacional, o que se entende visar, dentre outros escopos, o combate ao enriquecimento ilícito e embaraços à ordem nacional, também resultantes do crime de tráfico de entorpecentes.

Partindo-se dos lemas, o repúdio ao narcotráfico está previsto no artigo 5º, inciso XLIII da Constituição Federal, ao ser considerado inafiançável e insuscetível de graça ou indulto, além de também sê-lo equiparado a crime hediondo e receber os rigores penais contidos no artigo 2º, caput, da Lei nº 8.072/90.

Ademais, nossa Carta Magna (BRASIL, 1988) prevê no artigo 144, § 1º, II que à Polícia Federal caberá “prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins [...]”, bem como no artigo 243, parágrafo único, esclarece que “todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei” (BRASIL, 1988).

No mesmo sentido, consoante artigo 109, V, será também da competência federal os crimes previstos em tratados e convenções internacionais, isso porque, não só o Brasil, como também outras nações, lutam contra o tráfico ilícito de drogas, e mediante tratados e convenções, mais precisamente, a Convenção de Viena de 1969, unem-se pelos mesmos ideais.

Outrossim, propõe-se também, manter a ordem social, dentre esta, a saúde pública, em que contempla o artigo 196, caput,  sendo ela um “direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução de doenças e de outros agravos [...]” (BRASIL, 1988). E, a família, que por seu turno, está prevista no artigo 226, sendo considerada a base da sociedade, e que também é desestruturada ante a prática do crime de tráfico de drogas.

Destarte, hodiernamente, nota-se a luta incessante para combater a exploração indevida de drogas, bem como a de outros crimes que por ela são desencadeados, expondo-se a risco demais bens jurídicos penalmente tutelados e essenciais à vida em sociedade.

3.2 Previsão legal

O crime de tráfico de drogas está previsto em Lei especial, de nº 11.343/06, na qual, o legislador conferiu maior relevo, tendo como uma de suas finalidades legais a repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas.

Tipifica o artigo 33, caput, da Lei nº 11.343 (BRASIL, 2006) como crime de tráfico de drogas, quem:

Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

Inobstante não ostentar o artigo 33 a nomenclatura “tráfico de drogas”, “pode-se utilizar como subsídio a interpretação dada pela jurisprudência na vigência da Lei nº 6.368/76, que sempre entendeu que o tráfico abrangeria apenas as condutas dos artigos 12 e 13” (LIMA, 2014, p. 721). Hoje, compreendidos no artigo 33, caput e § 1º da nova Lei de Drogas.

 Visto isso, buscar-se-á elucidar o crime de tráfico de drogas, fazendo-se a sua classificação e discorrendo-se sobre os efeitos legais às condutas que se enquadram a este tipo penal.   

3.3 Classificação

Cuida-se de crime de perigo, “cuja consumação se dá com a exposição do valor protegido a uma situação de perigo, a uma probabilidade de dano” (ESTEFAM, 2010, p. 198), sendo esse abstrato ou presumido, pois o legislador previu a consumação antecipada, pelo simples fato de ser a ofensa ao bem jurídico presumida, sem depender da prova de que a conduta do agente tenha efetivamente produzido a situação de perigo prevista no tipo penal. Assim, a prática de um ou alguns dos verbos acima descritos importam na tipicidade formal.

É norma penal em branco heterogênea, dado que o artigo 2º da Lei nº 11.343 (BRASIL, 2006) considera “como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”.

Portanto, necessita de complementação normativa, onde a regulamentação advém da Portaria da Anvisa (1998), vinculada ao Poder Executivo, que em seu anexo I especifica quais são as drogas consideradas ilícitas, quando exploradas indevidamente. Importa salientar que, quaisquer dessas condutas praticadas, cujo objeto (droga) não estiver catalogado na referida portaria, não constituirá crime de tráfico de drogas, ainda que atestada a capacidade da substância de suscitar dependência física ou psíquica. Nesse caso (em análise concreta) poderia a conduta amoldar-se em outros tipos penais, de contrabando ou descaminho, previsto nos artigos 334 e 334-A do Código Penal, ou então, a outro tipo de tráfico, como no disposto no inciso I, que se analisará a seguir.

Do mesmo modo, por se tratar de norma penal em branco, se retirada uma substância da lista “que se dê através de uma pesquisa com a consequente de que a droga é inofensiva ao sistema nervoso central, tem efeito retroativo para descriminalizar aquela conduta, que anteriormente, era punida” (BALTAZAR, 2010, p. 660).

Trata-se de crime equiparado a hediondo, consoante previsão do artigo 2º da Lei nº 8.072/1990, sendo-lhe aplicados os rigores do referido artigo, tais como, a insuscetibilidade de fiança, graça e indulto e demais inflexibilidades quanto ao cumprimento da pena fixada (§§ 1º a 4º). O bem jurídico tutelado, por sua vez, é a saúde pública, portanto denomina-se crime vago, pois o sujeito passivo é a coletividade, isto porque atinge um número indeterminado de pessoas em sociedade.

Analisando os verbos núcleos do tipo (dezoito, ao todo), tem-se “importar”, que é trazer a droga para dentro do território nacional; “exportar”, levá-la para fora do território nacional; “remeter”, significa enviar para algum lugar ou alguém; “preparar”, consiste na combinação de elementos para a formação da droga; “produzir”, é criar, dar origem a algo inexistente; “fabricar”, é produzir em maior proporção, por meio industrial, ou seja, com auxílio de maquinários e demais instrumentos destinados à sua produção; “adquirir”, é obtê-la mediante troca, compra ou a título gratuito (doação); “vender”, alienar por determinado preço; “expor à venda”, exibir a droga à mercancia; “oferecer”, sugerir a alguém que se adquira ; “ter em depósito”, manter a coisa à sua disposição, em lugar reservado; “trazer consigo”, transportar junto ao corpo; “guardar”, custodiar, proteger; “prescrever”, receitar; “ministrar”, administrar; “entregar a consumo”, confiar a alguém para usar, gastar; “fornecer”, abastecer o estoque. Ademais, “todas as condutas passam a ter, em conjunto, o complemento ainda que gratuitamente, sem cobrança de qualquer preço ou valor. Logo é indiferente haver ou não o lucro, ou mesmo o intuito de lucro” (NUCCI, 2014, p. 329).

O elemento normativo das condutas consiste na expressão “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”, tipificando-se o delito caso o modus operandi do agente estiver em desacordo com as disposições legais e as regulamentares do Poder Público.

Tais condutas podem ser praticadas por qualquer pessoa, o que implica em crime comum. Exige-se somente o dolo (direto ou eventual), fazendo-se necessário à configuração do delito a vontade e consciência do agente em praticar ao menos um dos núcleos verbais constantes no artigo 33. A modalidade culposa, por sua vez, não constitui elemento apto à configuração do crime.

O presente delito é de ação múltipla ou conteúdo variado, ou seja, para a configuração penal basta a prática de qualquer um dos dezoito verbos nucleares da norma repressiva incriminadora, sendo que se realizada mais de uma conduta, prevalecerá a mais grave. Na lição de Capez (2013, p. 699), por se considerar tipo misto alternativo, a prática de duas ou mais condutas previstas no tipo, configurar-se-á crime único, ou então concurso material, dependendo das condições de tempo e espaço em que se consumar o delito.

A consumação do crime se dá quando realizada quaisquer das condutas tipificadas. A tentativa é perfeitamente possível em algumas modalidades instantâneas, quando não forem atos preparatórios de outras. Contudo, nas modalidades permanentes (expor à venda, ter em depósito, transportar, trazer consigo e guardar), a tentativa é de difícil configuração, ou até mesmo impossível, visto que antes destas, outras já se consumaram. Como por exemplo: o agente é surpreendido transportando cocaína, tentou fornecer a droga, mas antes já transportava o entorpecente, bastando este último, para a caracterização do delito.

Pode-se observar que o objetivo do legislador, ao mencionar as diversas modalidades previstas no tipo penal, foi de conferir maior proteção social, visando, com isso, o combate ao tráfico ilícito de drogas.

3.4 Formas equiparadas ao tráfico

Além do crime previsto no artigo 33, caput, outros lhe são equiparados no § 1º, incisos I, II e III do mesmo tipo penal, aos quais são atribuídas as mesmas penas mencionadas em outras modalidades (algumas repetidas do artigo 33), dependendo do objeto do crime.

3.4.1 Do tráfico de matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas

Segundo o § 1º do artigo 33 da Lei nº 11.343 (BRASIL, 2006) incorrerá nas mesmas penas do referido artigo quem:

Importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas.

A figura típica em análise repete as mesmas condutas do caput, portanto possui as mesmas características (vide item 2.2), contudo, difere o objeto do crime, que nessa refere-se à matéria-prima (substância principal utilizada, ainda que eventualmente à produção ou extração de drogas), insumo (elemento participante, não indispensavelmente à produção de drogas), produto químico (substância química pura ou composta destinada à preparação da droga).

Não obstante serem mencionados os elementos destinados à produção, preparação ou composição de drogas, o tipo penal, por seu turno, não exige que tais substâncias sejam destinas exclusivamente a esta finalidade, mas também aquelas que, de forma casual, se prestem ao destino de elaboração de drogas. E neste caso, para comprovar a materialidade delitiva, mister se faz a realização do exame pericial do tóxico, para atestar que o produto retido era destinado, ainda que eventualmente, à preparação de drogas.

Assim, exemplificando, o éter sulfúrico e a acetona “constituem matéria-prima indispensável à preparação de droga, sendo irrelevante constarem ou não na lista do Ministério da Saúde” (CAPEZ, 2013, p. 711).

Nos mesmos ditames, há quem sustente que se a matéria-prima destinada à produção da droga possuir, de per si, o princípio ativo, poderá enquadrar-se ao artigo 33, caput, e se efetivada a preparação do entorpecente, o crime atingirá o seu exaurimento, ao qual será utilizado nas circunstâncias judiciais, para agravar a pena base. Não nos parece adequada essa corrente, visto que como já dito anteriormente, pelo princípio da estrita legalidade, não sendo a droga regulamentada pela ANVISA, estar-se-á diante da atipicidade da conduta, e se esta prosperar em crime, caracterizar-se-á analogia in malam partem ao réu, o que não é admitido pelo direito penal pátrio.

Além do mais, para que se tenha a figura típica, é desnecessária a intenção do agente em destinar a matéria-prima, o insumo ou o produto químico à produção de droga, bastando, portanto, que este saiba terem eles capacidade para tal, pois ao contrário, estará diante da atipicidade do delito. Assim, basta que os elementos “tenham as condições e qualidades químicas necessárias para, mediante transformação, adição etc., resultarem em entorpecentes ou drogas análogas”. (GOMES, 2008, p. 189).

Já no tocante ao concurso de crimes ou continuidade delitiva, vale dizer que o agente que importa a droga propriamente dita, e faz o mesmo com a matéria-prima destinada à preparação de drogas, incorre nas formas do concurso de delitos, dependendo das condições de tempo e espaço.

3.4.2 Da semeadura, cultivo ou colheita de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas

O inciso II da Lei nº 11.343 (BRASIL, 2006), dispõe que incorrerá também nas mesmas penas do caput, quem “semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas”.

Quanto aos verbos mencionados nesse dispositivo, semear, é lançar sementes ao solo para germinarem; cultivar, é fertilizar a terra para prosperar a plantação; e colher, é retirar aquilo produzido pela planta. Todos vêm acompanhados do elemento normativo “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”, pois se em conformidade com os preceitos, haverá a atipicidade da conduta. A classificação deste crime consiste na mesma do artigo 33 (vide item 2.2). O objeto do crime, por sua vez, são as plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas (já estudada no item 2.3.1). E da mesma maneira do inciso antecedente, para a caracterização do delito, pouco importa se as plantas possuem ou não o princípio ativo, bastando que sejam destinadas à preparação de drogas e que o agente saiba a sua potencialidade.

Assim, a prática de mais de uma conduta, constitui crime único. Lima (2014, p. 733) adverte que:

Na hipótese de o agente semear determinada área rural, cultivar as plantas e depois fazer sua colheita para a preparação de drogas, haverá crime único. No entanto, se as condutas forem praticadas em contextos distintos – por exemplo, após a colheita de certas plantas, o agente dá início a novo ciclo de plantio – o ideal é dizer que responderá por diversos crimes do art. 33, § 1º, inciso II, em continuidade delitiva.

Na vigência da lei anterior (Lei nº 6.368/76), muito se discutia sobre a tipificação da conduta daquele que cultivava, semeava ou colhia plantas destinadas à preparação de drogas de pequena quantidade. Postos diferentes entendimentos, para uns, a conduta era enquadrada ao crime de tráfico de drogas (artigo 12, caput, da antiga lei), por equiparação. Para outros, a conduta, utilizando-se da analogia in bonam partem, amoldava-se para o uso próprio (artigo 16, caput, da antiga lei). Entretanto, para uma terceira corrente, tratava-se de uma lacuna penal, pois o tráfico objetivava-se a mercancia, ao qual resultava na atipicidade do fato.

A nova Lei de Drogas findou essa discussão e, visando combater a exploração de drogas, distinguiu o usuário, do traficante. Portanto, o dispositivo passou a tipificar em seu artigo 28, § 1º, o cultivo e a colheita de plantas destinadas à preparação de drogas de pequena quantidade.

3.4.3 Da utilização de local ou bem para fins de tráfico

Nos termos do inciso III do artigo 33 da Lei nº 11.343 (BRASIL, 2006) equipara-se para todos os efeitos ao tráfico de drogas, incorrendo às mesmas penas, quem:

Utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.

O dispositivo prevê a utilização tanto de local (relacionado ao imóvel) como de bem de qualquer natureza (referente ao bem móvel), daquele que tem a propriedade (poderes de uso, gozo, disposição e reinvindicação), a posse (exercício de um ou alguns dos poderes inerentes à propriedade), administração (gestão), guarda (manter sob os cuidados) ou vigilância (tomar conta). Fogem do tipo os locais públicos de uso comum (como praças, praias, parques, etc.), pois é impossível exercer algum poder sobre o bem público.

Nada obstante não prever o inciso a detenção do agente sobre bem ou local, “não desnatura o delito a precariedade da posse ou detenção do agente sobre o local, bastando que possa dele se utilizar ou tenha condições de consentir que outro o utilize” (GOMES, 2008, p. 194). Assim, basta que a conduta do agente propicie a exploração de drogas.

 O legislador, também, tipifica a conduta daquele que consente que outra pessoa do bem ou local se utilize. Assim, se um locatário (de que tem a posse direta da casa), autorizar que terceiro a utilize para comercializar a droga, subsumirá ao tipo acima descrito. Sendo todas as condutas acompanhadas da expressão ainda que gratuitamente, é prescindível o lucro.

Os verbos núcleos do tipo mencionam utilizar, que indica permanência, isto é, a consumação se protrai no tempo, o que permite o flagrante delito, e consentir, que por sua vez é instantâneo, consuma-se no momento em que a pessoa autoriza a comercialização de drogas. No primeiro, a tentativa é de difícil configuração, ao passo que no segundo, a tentativa é perfeitamente possível. Não exigem a habitualidade.

 O delito em estudo é crime próprio, haja vista que só poderá ser cometido por aquele possuidor da qualidade descrita no inciso. Entretanto, não se enquadra ao tipo penal aquele que facilita a utilização do bem por terceiro, ao qual pratica o crime do § 2º, do artigo 33 (induzimento, instigação ou auxílio ao uso indevido de drogas).

Importa enfatizar que a utilização de bem ou local de quem tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente para que outrem dele se utilize para uso indevido (previsto na lei antiga), não mais constitui crime, tendo se operado verdadeira abolitio criminis, “logo, a novel figura delituosa só restará tipificada se o local for utilizado ou cedido para o tráfico de drogas” (LIMA, 2014, p. 735). Nesse caso, a disponibilidade de local ou bem para o consumo da droga, poderá se subsumir no § 2º do artigo 33 (induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga).

3.5 Do tráfico privilegiado, artigo 33, § 4º

Com o advento da nova Lei de drogas nº 11.343/06, a figura do tráfico de drogas passou a compreender uma benesse, prevista no § 4º do artigo 33, dispondo o seguinte:

Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direito, desde que o agente seja primária, de bons antecedentes, não se dedique ás atividades criminosas nem integre organização criminosa. (BRASIL, 2006)

Cuida-se de novatio legis in mellius, isto é, benéfica ao réu, sendo passível de retrocesso, porém, sua aplicação limita-se aos ditames da súmula 501 do Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2013), no sentido de ser vedado ao juiz fazer a combinação da lei antiga com a nova.

O privilégio aludido nada mais é que mera causa especial de diminuição de pena prevista no tipo penal, pois não houve alteração abstrata à pena (mínima e máxima), apenas previsão de diminuição da pena aplicada (de um sexto a dois terços) na terceira fase da dosimetria.

Além do mais, importante sublinhar que a expressão vedada conversão em penas restritivas de direitos não mais integra o tipo, pois foi suspensa pelo Senado Federal, mediante a Resolução nº 5 de 2012, que, passou a permitir a conversão das penas restritivas de direitos.

Os requisitos são cumulativos, ou seja, o agente para receber o decote do quantum da pena, deverá preencher os pressupostos de primariedade, bons antecedentes, não dedicação às atividades criminosas e não integração em organização criminosa. Assim, enquadrando-se o agente nos quesitos mencionados, resta obrigatório ao magistrado a aplicação da benesse, porém, a seu critério (desde que fundamentadamente) o quantum da fração da pena, seguindo os moldes do artigo 42 da Lei nº 11.343/06.

Em que pese incidir a benesse ao crime de tráfico de drogas, recentemente, mais precisamente em junho de 2016, o Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2016) no Habeas Corpus nº 118533 decidiu afastar a hediondez do artigo 33, § 4º. Logo, da imperiosa decisão, o traficante privilegiado não está mais sujeito aos rigores repressivos da Lei de Crimes Hediondos.

3.6 Questões relevantes no crime de tráfico de drogas

3.6.1 Do princípio da insignificância

O princípio da insignificância, extraindo-se do princípio penal da intervenção mínima, incide na atipicidade material do crime, em razão da mínima ofensividade ao bem jurídico tutelado, de modo a não ocupar o judiciário com bagatelas.

Atualmente crescem as decisões dos tribunais superiores no sentido de afastar a aplicabilidade do princípio da insignificância na conduta daquele que tem apreendida pequena quantidade de droga, visto que, por se tratar de crime de perigo abstrato, prescinde da comprovação de que a conduta do agente causou efetivo risco ao bem jurídico tutelado. Sendo assim, ainda que a droga represente em pequena quantidade, desde que tenha o princípio ativo alistado pelo Poder Executivo, configurará o crime de tráfico.

Em contrapartida, há quem sustente a inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato em face do princípio insignificância, porém, é de se ater que, “a favor do perigo abstrato pesa o argumento de que o legislador não é obrigado a esperar que a conduta se transforme em uma situação de perigo concreto, real, para só então puni-la” (CAPEZ, 2013, p. 700), pois assim, estaria ignorando o começo de um futuro não distante de um tráfico significativo e extremamente nocivo à sociedade.

Nesse tecer, convém dizer que o perigo abstrato conferido pelo legislador ao crime de tráfico não viola o princípio da presunção de inocência, tendo em vista que o poder judiciário permite ao réu, diante da deflagração da ação penal, alegar toda matéria de defesa, garantindo o contraditório e a ampla defesa.

Com isso, é cristalina a inaplicabilidade do princípio da insignificância no narcotráfico, levando, portanto, a conduta do agente à configuração delitiva, ainda que o tóxico represente em pequena quantidade.

3.6.2 Do flagrante preparado

Seria este outro ponto polêmico à configuração do crime de tráfico de entorpecentes diante do flagrante preparado, no qual, o agente é incitado pela autoridade policial ou qualquer outra pessoa, a cometer o crime, incorrendo em flagrante delito.

A súmula 145 do Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 1964) menciona que “não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta improbidade do objeto, é impossível consumar-se o crime”. Nessa esfera jurisprudencial, vale dizer que à persecução penal do crime de tráfico não será o agente submetido, quando a sua conduta vier a ser estimulada para que se configure o crime.

Entretanto, por se tratar o tipo como misto alternativo, se o agente é flagrado cometendo uma das condutas permanentes (transportar, guardar, trazer consigo, ter em depósito, expor à venda), não prosperará a súmula 145, e restará caracterizado o crime, tendo em vista que por constituírem progressão das outras condutas, cujas são preexistentes, “a atuação policial estará legitimada à prisão em flagrante e à persecução penal, sem que se possa falar em flagrante forjado ou preparado” (LIMA, 2014, p. 729).

Dessa feita, é constitucional a restrição da liberdade do agente que é flagrado praticando uma das condutas descritas no artigo 33, caput e § 1º, se já houver condutas preexistentes àquelas.

3.7 Da competência para processar e julgar o crime de tráfico

Como regra, a competência para processar e julgar os crimes determina-se pelas circunstâncias referidas no artigo 69 do Código de Processo Penal.

Assim, diante da prática do crime de tráfico de drogas, para fixar-se a competência, deve-se observar as circunstâncias que se deram a infração penal, de modo a determinar qual organismo será competente para processar e julgar tal crime.

Conforme redação do artigo 70 da Lei nº 11.343 (BRASIL, 2006) “o processo e o julgamento dos crimes previstos nos arts. 33 a 37 desta lei, se caracterizado ilícito transnacional, são de competência da Justiça Federal.”

Neste sentido, comprovada a transnacionalidade do delito, a competência será da Justiça Federal, assim como regulamenta a súmula 528 do Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2015) em que competirá “ao juiz federal do local da apreensão da droga remetida do exterior para via postal processar e julgar o crime de tráfico internacional”.

Por outro lado, quanto à competência estadual, como esta é considerada residual, firmar-se-á caso não configurado quaisquer indícios de transnacionalidade do crime de tráfico.


4 DA POSSIBILIDADE DA APLICAÇÃO DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA NO CRIME DE TRÁFICO

4.1 Da importância pela teoria finalista da ação

Se a ignorância deliberada pressupõe o dolo eventual, todas as implicações do injusto penal adequam-se à sua aplicação, vez que, sendo um elemento subjetivo de cognição e probabilidade, herda os efeitos inerentes ao fato ilícito.

Assim, no que diz respeito à conduta delitiva, tem-se que na teoria finalista da ação, adotada pelo direito penal brasileiro, o intermediário da conduta e do resultado antijurídico é o dolo, pois toda ação humana é motivada pela vontade do sujeito, que é dirigida a um determinado fim, ou melhor, “a ação compõe-se de um comportamento exterior, de conteúdo psicológico, que é a vontade dirigida a um fim, da representação ou antecipação mental do resultado pretendido” (BITENCOURT, 2013, p. 289).

Com isso, o direito penal passa a estudar dois prismas da conduta humana, sendo a subjetividade quanto à motivação da ação e a objetividade quanto ao fim visado, ou seja, o resultado típico da conduta exteriorizada. E, por esse motivo, todas as condutas típicas (salvo algumas exceções, que permitem a culpa) exigem a configuração do dolo para que possibilite a cominação da pena.

Nesse sentido, para a teoria finalista da ação é importante integrar a conduta delitiva propositalmente ignorada no crime de tráfico de drogas, pois possibilita analisar a vontade e consciência do indivíduo para a construção da culpabilidade ou responsabilidade penal.

4.2 Da possibilidade mediante exigibilidade de conduta diversa

Percebe-se que, a cegueira deliberada não se trata de inovação de elemento subjetivo do sistema normativo penal, mas sim, de circunstâncias que se adequam a outro elemento subjetivo já previsto na Carta Repressiva, e sendo assim, aplicam-se a esse instituto todos os efeitos legais suscitados pela conduta criminosa.

Destarte, o direito penal brasileiro utilizando-se da teoria finalista da ação, visa capitar a motivação do injusto penal para se valer das medidas repressivas a ele inerentes. E, considerando a culpabilidade elemento que busca a configuração do delito, relevante é verificar os membros que o integram, para melhor análise do dolo.

Para tanto, importa esclarecer que culpabilidade não se confunde com culpa, pois essa prevista no artigo 18, II do Código Penal é elemento subjetivo excepcional para a caracterização delitiva, e só será aplicada quando a lei expressamente a prever, ao passo que aquela, está relacionada à responsabilização criminal do sujeito, quando da manifestação de consciência e vontade diante do injusto penal. Portanto, são elementos autônomos e não podem ser confundidos. Isso porque, o tipo penal de tráfico de drogas não contempla a modalidade culposa e sua configuração se perfaz mediante análise dos componentes do dolo.

Assim, no âmbito da culpabilidade, a inexigibilidade de conduta diversa consiste na realização da conduta quando não era legalmente exigível comportamento diverso. Ao contrário, “só há culpabilidade quando, devendo e podendo o sujeito agir de maneira conforme ao ordenamento jurídico, realiza conduta diferente, que constitui o delito. Então, faz-se objeto do uso de culpabilidade” (JESUS, 1993, p. 420).

Dessa feita, para efeito na cegueira deliberada, há exigibilidade de conduta diversa quando o resultado é previsto pelo sujeito, e este, podendo agir de outro modo, cria obstáculos para não evitá-lo.

Não haverá culpabilidade, portanto, quando o sujeito estiver acobertado da justificativa exculpante, isto é, quando a lei não exigia conduta diversa ao tempo de sua ação, como é o caso da coação (física e moral) irresistível e da obediência hierárquica abordados no artigo 22 do Codex Penal, cuja vontade do agente é viciada.

Eis então que surge a dúvida quanto à obediência hierárquica: suponha-se que o sujeito, prevalecendo-se de sua função, recebe determinado mandado (não manifestamente ilegal) de seu superior e visa o seu cumprimento, mas, devido à maneira que se revela o comando, suspeita e tem condições de saber que a ordem é ilícita. Entretanto, ignora propositalmente tal suposição para cumpri-la. Poderia neste caso alegar a causa exculpante pela obediência hierárquica?

Entende-se que não, pois se comprovado que o subalterno ao receber a ordem e dispor-se a cumpri-la, presumia e evidenciava a sua ilegalidade, não estará acobertado pela justificativa exculpante, uma vez que ao tempo do cumprimento era exigível conduta diversa, pois “tem não apenas o direito, mas também o dever legal de não cumpri-la, denunciando a quem de direito o abuso de poder a que está sendo submetido” (BITENCOURT, 2013, p. 488).

Logo, em se tratando do delito de tráfico de drogas mediante cegueira deliberada, é convenientemente culpável o sujeito que devendo e podendo agir quando lhe era exigível conduta diversa, opta intencionalmente em se cegar diante do ilícito e operar-se em desconformidade com a lei.

4.3 Da aplicação contemporânea pelo direito penal brasileiro

A despeito de ser uma teoria que provoca discussão pela (ou não) responsabilidade criminal, não se pode evitar que a utilização da cegueira deliberada vem ampliando as interpretações e condenações penais.

Dessa forma, encontra-se explicitamente em decisões criminais, desde as de primeiro grau, até as de grau superior, sendo um excelente mecanismo para demonstrar a consciência e vontade daquele que podendo, não tomou o devido cuidado para evitar o tráfico.

Tomando como exemplo prático, pense-se na seguinte situação: o sujeito é contratado para conduzir um veículo da cidade de Salto Del Guairá, no Paraguai, até a cidade de Novo Mundo, no Mato Grosso do Sul, e para executar o serviço receberia a quantia de R$ 15.000,00 (quinze mil reais) e, para auferir a importância convencionada, preferiu não tomar conhecimento do produto ou objeto que estava a transportar.

Momento após o início do percurso, mais precisamente na Ponte da Amizade, o indivíduo é surpreendido por policiais federais, que no momento da abordagem vasculham o interior do veículo e encontram 50 kg da substância cannabis sativa, mais conhecida como maconha. O indivíduo alega o desconhecimento da substância entorpecente.

Assim, levando-se a efeito a Teoria da Cegueira Deliberada no exemplo retro mencionado, o sujeito não poderá esquivar-se da imputabilidade penal, pois as circunstâncias à sua volta faziam presumir a procedência ilícita de sua conduta.

Primeiro porque o lugar que se deu a condução do veículo, isto é, o Paraguai, é conhecido pela grande influência de importação e exportação de drogas. Segundo porque o valor convencionado é excessivo para uma mera condução de um veículo entre fronteiras com elevado índice de tráfico. E terceiro porque diante de todas essas evidências, o agente optou, deliberadamente por ignorá-las, assumindo o risco de praticar ato delituoso. Em resumo, a verificação dessas circunstâncias vale-se da percepção que qualquer homem médio deve possuir.

Nesse viés, consolidando o exemplo prático, já decidiu o Tribunal Regional Federal da 4º Região:

DIREITO PENAL. TRÁFICO INTERNACIONAL DE DROGAS. ART. 33 DA LEI Nº 11.343/06. DOSIMETRIA DA PENA. CAUSA DE DIMINUIÇÃO DO ART. 33, § 4º, DA LEI Nº 11.343/06. FRAÇÃO FIXADA EM 1/3. TRÁFICO INTERNACIONAL DE MUNIÇÕES. ART. 18 DA LEI Nº 10.826/03. INOCORRÊNCIA DE ERRO DE TIPO. TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA. DOLO EVENTUAL CONFIGURADO. DOSIMETRIA DA PENA. MUNIÇÃO DE USO RESTRITIO. INCIDÊNCIA DA CAUSA DE AUMENTO DE PENA DO ART. 19 DA LEI Nº 10.826/03. CONCURSO FORMAL DE CRIMES. INTELIGÊNCIA DO ART. 70 DO CÓDIGO PENAL. REGIME INICIAL SEMIABERTO. INTELIGÊNCIA DO ART. 33, § 2º, ALÍNEA 'B', DO CÓDIGO PENAL. IMPOSSIBILIDADE DE SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR MEDIDAS RESTRITIVAS DE DIREITOS. INTELIGÊNCIA DO ART. 44, I, DO CÓDIGO PENAL. 1. O vetor natureza da droga e o vetor quantidade da droga, ambos previstos no artigo 42 da Lei 11.343 podem ser usados na primeira ou na terceira fase de dosimetria da pena, naquela ensejando aumento da pena-base, nesta fazendo incidir fração de redução menor que a máxima quando da avaliação do quantum da causa especial de diminuição de pena prevista no § 4º do artigo 33 da Lei nº 11.343/06. 2. Todo o conjunto probatório leva a crer que o réu poderia prever e conscientemente criou o risco de produzir um resultado típico posto que: sabia tratar-se de drogas parte da mercadoria transportada; receberia quantia elevada para realizar o frete do entorpecente; e é de conhecimento público e notório que a região de fronteira com a República do Paraguai é palco costumeiro de crimes desta natureza (tráfico internacional de armas, munições). Nessa seara, pertinente a construção jurisprudencial e doutrinária do direito anglo-saxão no que se refere à teoria da cegueira deliberada (willfull blindness doctrine). O dolo configurado, nesse caso, é o dolo eventual. 3. Havendo laudo pericial no sentido de comprovar a restritividade de uso das munições transportadas pelo acusado, aplicável a causa de aumento do art. 19 da lei nº 10.826/03. 4. Configurado o concurso formal de crimes, aplica-se a pena mais grave acrescida de 1/6 (um sexto), nos termos do art. 70 do Código Penal. Relativamente às penas de multa, ambas são aplicadas distinta e integralmente, nos termos do art. 72 do Codex Penal.5. Restando a pena privativa de liberdade definitivamente fixada em 07 (sete) anos de, o regime inicial para cumprimento da reprimenda é o semiaberto, nos termos do art. 33, §2º, alínea 'b', bem como mostra-se impraticável a substituição da sanção corporal por penas restritivas de direitos, nos termos do art. 44, inciso I, do Código Penal. (RIO GRANDE DO SUL, 2016).

Percebe-se que não há, na nossa prática jurídica, qualquer impedimento da cegueira deliberada, quando presentes os requisitos da probabilidade criminosa. Por isso, segundo Pedro Jorge Costa (2015, p. 267-268), devido à correspondência do sistema pátrio vigente por meio do dolo eventual à cegueira deliberada, esta poderia ter aplicação autônoma no nosso sistema, haja vista que a maioria dos casos de ignorância deliberada é mesmo de dolo eventual.

Como se vê, embora em processo de pacificação na jurisprudência pátria, o emprego da cegueira deliberada no crime de tráfico de drogas é medida fundamental contra meios de obstrução por criminosos para escusar-se da cominação penal.

4.4 Da prova da cegueira deliberada

Tratando-se de elemento subjetivo, a análise probatória da cegueira deliberada far-se-á indiretamente, por meios que buscam encontrar o estado mental justificável ao tempo da conduta ilícita, adequando-se tais elementos à análise do dolo eventual.

Logo, admite-se “a tese pela qual quem representa uma probabilidade, lógica, alta de produção do resultado, e ainda assim, pratica a conduta apta à sua causação, assume os riscos” (COSTA, 2015, p. 239). Por essa razão, a prova da cegueira deliberada constituirá método argumentativo para a verificação das circunstâncias que ao tempo do fato revelaram a intenção do indivíduo em permanecer na ignorância e o fez suportar os riscos por ela suscitados.

Todavia, deve-se todo o cuidado ao utilizá-la, para não empregá-la em indícios que possam configurar erro de tipo ou culpa. Assim, por ser um instituto peculiar, impondo-se minuciosa aplicação, exige-se que as circunstâncias estejam devidamente comprovadas nos autos, pois caso contrário, afrontaria o princípio de estado de inocência.

Assim, para fins de imputabilidade no crime de tráfico, constatando que era abundantemente possível o conhecimento do indivíduo acerca da conduta ilícita sem maiores obstáculos, não há falar em exclusão da tipicidade ou culpabilidade, pois para que se possa alegar a imprevisibilidade do resultado “é preciso que se tenha tomado todo o cuidado, que pessoas diligentes costumam ter, no exercício de sua atividade; só assim, poder-se-á dizer que os direitos alheios não foram violados por seus próprios atos” (PESSINA, 2006, p. 43-44).

À vista disso, observa-se que a verificação da cegueira deliberada prevalece-se dos mesmos elementos que buscam configurar o dolo eventual, pelos quais o sujeito assume os riscos de praticar qualquer crime quando constatada a sua consciência diante da probabilidade criminosa de sua conduta.


5 CONCLUSÃO

Ao compreender-se o instituto da Teoria da Cegueira Deliberada e a sua adequação ao dolo eventual, percebe-se a importância de sua configuração para o sistema normativo penal quando empregada ao tempo da conduta manifestamente criminosa.

A sua aplicabilidade constitui excelente mecanismo para obstar os artifícios dos traficantes, bem como a procedência do crime por indivíduos que intencionalmente invocam a “cegueira” para sucederem aos atos infracionais, alegando posteriormente não terem tido conhecimento do tão perceptível crime de tráfico.

A Teoria da Cegueira Deliberada não se trata de elemento subjetivo estranho ao nosso ordenamento jurídico, pois como já devidamente demonstrado, suas circunstâncias representam o dolo eventual, que por sua vez, está previsto no Código Penal, o que afasta a ilegalidade de sua aplicabilidade.

Desse modo, se o tipo do artigo 33 da Lei nº 11.343/06 buscou repreender todas as hipóteses de praticar o crime de tráfico, permita-se dizer que em nada poderia opor-se ao se admitir a responsabilidade (desde que observado os preceitos constitucionais e legais) daquele que propositalmente obsta o conhecimento do ilícito quando tem condições de evitá-lo, assumindo audaciosamente o risco de praticar o delito.

Por outro lado, notadamente, o crime de tráfico de drogas vem ocupando cada vez mais espaço na política criminal, tendo em vista o crescente número de apreensões e prisões. Assim, à medida que a sociedade evolui, o direito penal deve acompanhá-la, adequando-se este aos fatos corriqueiramente ocorridos, quando suscetíveis de tipificação ou interpretação penal. São mudanças imprescindíveis à manutenção dos direitos e garantias fundamentais de uma sociedade, assim assegurados pela nossa Constituição Federal.

Nada mais é do que se valer do princípio da proporcionalidade, em que o Estado pondera os direitos individuais conforme os anseios da sociedade, isto é, visando reprimir a conduta vulgarmente ilícita para resguardar outros direitos fundamentais, que por ela estão sendo violados.

Conclui-se, por derradeiro, pela viabilidade da aplicação da Teoria da Cegueira deliberada no crime de tráfico de drogas, para aplicar a lei penal àquele que prefere não tomar o devido cuidado para evitar a traficância e provoca eminente prejuízo à saúde, à ordem e à segurança pública.


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