Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/71209
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

O direito sucessório na união estável

análise civil-constitucional acerca do direito sucessório do companheiro supérstite

O direito sucessório na união estável: análise civil-constitucional acerca do direito sucessório do companheiro supérstite

Publicado em . Elaborado em .

Estuda-se o regime de direito sucessório entre companheiros, com análise da decisão do STF que, em 2017, equiparou casados e conviventes em união estável.

Resumo; 1. Introdução; 2. Conceito de Família; 3. As Modalidades de Família na Contemporenaidade; 3.1. O casamento; 3.2. União Estável; 3.3. Poliafetiva; 3.4. Monoparental; 3.5. Pluriparental; 3.6. Anaparental; 3.7. Reconstituídas; 4. União Estável; 4.1.Histórico da União Estável; 4.2. Conceito e Elementos de Constituição da União Estável; 4.2.1 União estável como entidade familiar; 4.2.2. União entre homem e mulher ; 4.2.3. Affectio Maritalis; 4.2.4. Publicidade; 4.2.5. Estabilidade; 4.2.6. Continuidade; 4.2.7. Ausência de impedimentos legais; 5. Direito Sucessório na União Estável; 5.1. Direito Sucessório no Casamento; 5.1.1. Direito real de habitação; 5.1.2. Concorrência do cônjuge sobrevivente com os demais herdeiros;   5.2. Direito Sucessório dos Companheiros Supérstites no Código Civil de 2002; 5.2.1. O artigo 1.790 do Código Civil; 6. Recursos Extraordinários 646.721 e 878.694 e a Inconstitucionalidade do art. 1790 do Código Civil; 6.1. Análise Constitucional dos Votos e Participação do Instituto Brasileiro do Direito de Família e da Associação de Direito de Família e das Sucessões; 7. Conclusão; Referências

RESUMO: O Direito Sucessório dos companheiros, ou seja, daqueles que vivem em uma União Estável está regulado pelo art. 1.790, do Código Civil de 2002, declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. É importante analisar o motivo desta declaração de inconstitucionalidade, que igualou o direito sucessório entre companheiros e cônjuges, aqueles que vivem em matrimônio, para entender verdadeiramente o sentido da proteção à família, e é isso o que se pretende com este trabalho: esclarecer se a decisão é acertada ou não com base nos princípios constitucionais da proteção da família e o princípio da dignidade da pessoa humana, entendendo quais os prejuízos ou benefícios de uma decisão que iguala os direitos dos companheiros aos dos cônjuges no que tange ao direito sucessório, reconhecendo-os como herdeiros necessários, afastando qualquer insegurança jurídica, que seria prejudicial à proteção das entidades familiares. Desta forma, este trabalho é de grande importância para aqueles que melhor desejam compreender o tema, permitindo um melhor entendimento e esclarecimentos sobre o assunto.

Palavras-chaves: Sucessão; Família; União Estável.


1 INTRODUÇÃO

A União estável é a união contínua, duradoura, pública, com o objetivo de constituir família entre duas pessoas e a sua conversão em casamento deve ser facilitada pela lei.

Muito se discute na doutrina acerca da inconstitucionalidade do direito sucessório do companheiro que sobrevive, sendo levantada por muitos autores, entendendo-se por sucessão, a transmissão de bens e/ou direitos pelo falecimento.

O art. 1.790 do Código Civil em vigor regula a sucessão dos companheiros em união estável, apresentando diferenças consideráveis no que diz respeito a sucessão no casamento. Este dispositivo prevê a concorrência do companheiro com os descendentes e outros parentes sucessíveis do falecido, independentemente do regime de bens adotados pelos companheiros.

Essa disposição tem gerado grande insegurança jurídica, pois as jurisprudências dos tribunais, seguindo entendimentos doutrinários, têm deixado de aplicar esse dispositivo por considerá-lo inconstitucional.

A Constituição Federal traz os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade como princípios fundamentais e, além disso, coloca a proteção da família em um patamar elevado, considerando a família como a base da sociedade.

A insegurança jurídica deve ser afastada e, dessa forma, deve o dispositivo mencionado ser analisado com um viés civil e constitucional para afastar a insegurança jurídica que tem se revelado.

O presente trabalho tem como objetivo a análise civil e constitucional do art. 1.790 do Código Civil, recentemente declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, analisando os votos proferidos pelos Ministros nas decisões que a precederam, visando informar aos leitores acerca do tema, utilizando-se para tanto do apoio de literatura especializada no tema, bem como pesquisas em sítios eletrônicos e afins, sendo dividido em seis capítulos.

O segundo capítulo visa demonstrar o conceito de família, visando demonstrar que a união estável é entidade familiar, e como tal merece proteção do Estado; o terceiro capítulo, com viés informativo, apresenta as modalidades de famílias aceitas pela doutrina como existentes no dia atual; já o quarto, aborda a união estável, seu conceito e requisitos de constituição e o quinto o direito sucessório nesta modalidade de entidade familiar; o sexto capítulo analisa a decisão do STF que declarou inconstitucional o art. 1.790 do CPC, que como será visto, é o que regulava o direito sucessório nesta entidade familiar. Por fim, é apresentada a conclusão, contextualizando a análise feita no capítulo sexto com o problema apresentado.


2 O CONCEITO DE FAMÍLIA

Desde os primórdios de sua existência, independentemente da teoria que seja adotada para se explicar o surgimento do homem no planeta, o homem busca viver em grupamentos.

O objetivo primordial do homem era o de produzir alimentos para sobrevivência e se reproduzir, sendo que, desde os homens pré-históricos, há relatos de que o homem, que já vivia em grupos, se juntava a um grupo mais reduzido, onde cada pessoa teria uma determinada função. Surgindo daí a primeira noção de família: um homem e uma mulher unidos com o intuito de sobreviver e reproduzir, proteger e cuidar da prole.

Friedrich Engels, em sua obra[1], divide a evolução da família em algumas etapas. Nos primórdios, não havia definição dos laços de ascendência, sendo comum existirem diversos pais e mães em uma tribo, sendo comum o incesto entre pais e filhos e também entre irmãos. O sentimento de ciúmes do homem, considerado o macho, faz surgir as primeiras ideias acerca do casamento, e daí, surgem os casamentos em grupo, reduzindo de certo forma a animalização do homem.

Como aponta o autor, mesmo após o surgimento dos casamentos em grupo, a promiscuidade era atrelada a ideia de família, sendo permitido o incesto entre irmãos. Entre pais e filhos não mais se permitia este ato.

O autor divide as famílias de acordo com o tempo em Punaluana, Sindiásmica e Monogâmica. Nas Famílias consideradas Panaluanas, temos a ideia do casamento em grupo, onde o incesto passou a ser gradativamente proibido. Já, nas Famílias Sindiásmicas, surge a proibição do incesto. Nesta época, eram comuns o rapto e os casamentos arranjados. A fidelidade e monogamia era um dever apenas das mulheres. Os homens, em regra, possuíam várias esposas. O autor coloca as Famílias Sindiásmicas como o limite entre a Barbárie e o Estado.

Vale ressaltar que neste período, as mulheres detinham certo respeito, uma vez que elas definiam as relações consanguíneas, muitas vezes escolhendo até mesmo o marido. Porém, os homens, vendo que suas riquezas eram repassadas apenas para os descendentes genéticos da mulher, passam a oprimi-las, surgindo o Heterismo, onde o homem prevalece.

Daí, surgem as famílias monogâmicas, onde o homem é o centro da família, entendendo-se a família como unidade de produção de riquezas e de reprodução, ideia esta que perdurou por um longo período, trazendo traços do passado e com estes a ideia do homem como chefe da família.

Até o século passado, quando vigorou o Código Civil de 1.916, a família ainda era tida como uma unidade de produção e reprodução. A única forma de constituição da família era o casamento, de um homem e uma mulher, dando um viés heteroparental, matrimonializado e institucionalizado à ideia de família. (ENGELS, 1984)

A legislação civil vigente a época, refletindo a Constituição até então vigente, em seu art. 233, previa que o marido era o chefe da sociedade conjugal, competindo-lhe a representação da família, o que dava a família um viés hierarquizado.

O homem era o chefe da família. À mulher era dada a função de cuidar da casa e de sua prole. Os filhos eram divididos em legítimos, ilegítimos, incestuosos ou adulterinos. Os legítimos eram os tidos como fruto do casamento. Estes gozavam da total proteção estatal. Os filhos ilegítimos eram aqueles havidos em relações fora do casamento. Estes filhos poderiam ser reconhecidos pelos pais, conjunta ou separadamente, porém só teriam seus direitos equiparados aos filhos havidos em um casamento se os seus pais contraíssem casamento. Os filhos incestuosos e os filhos adulterinos não poderiam ser reconhecidos.

A sociedade evoluiu, e naturalmente, juntamente com a evolução social vem a evolução do Direito. A Constituição de 1988 pôs fim à ideia ultrapassada que se tinha acerca da família e deu a ela uma nova roupagem.

A família, que antes era matrimonializada, institucional, hierarquizada, unidade de produção e reprodução, se tornou a família baseada no afeto, a família plural, coexistindo diversos modelos distintos de família, estes protegidos e regulados pela lei.

Na atual concepção de família, não existe um chefe da família e sim uma comunhão plena de vidas, sendo que a chefia cabe ao casal, sendo este casal heteroafetivo ou homoafetivo.

Como bem observado por Farias e Rosenvald (2008, p.3)

Sobreleva, assim, perceber que as estruturas familiares são guiadas por diferentes modelos, variantes na perspectiva espácio-temporal, pretendendo atender às expectativas da própria sociedade e às necessidades do próprio homem.

Pode ser afirmado que família é o agrupamento formado pela união de pessoas com o intuito de subsistência, sobrevivência, proteção e afeto. Há quem diga que a família é formada com intuito de reprodução e proteção tanto do casal, quanto de sua prole. O conceito de família muda de pessoa para pessoa, de tempos em tempos, de acordo com a realidade do direito vigente à época. O certo é que a família é considerada pela Constituição Federal de 1988 como a base da sociedade.

No modelo atual de família, a união de afetos, a solidariedade, a comunhão de vidas, seja no casamento, seja em uma união estável, seja de um pai ou uma mãe com seu filho, seja na união homoafetiva, é que forma a família, e tudo isto com base no direito, que visa proteger a família.

Pode-se chegar a esta conclusão a partir dos princípios constitucionais básicos que repercutem direta e claramente sobre as relações familiares. Dentre estes, podemos destacar o principio da solidariedade, o princípio da igualdade, e o princípio da afetividade.

O primeiro princípio, o da solidariedade, repercute nas relações familiares e surge o que se pode chamar de Princípio da Solidariedade Familiar.

A solidariedade social pode ser tida como objetivo fundamental do Estado Brasileiro, conforme o art. 3º, I, da Constituição Federal, buscando-se a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Por óbvio, esta solidariedade repercute na família  (TEIXEIRA et. al.,2008, p.41).

Compactuando com este mesmo entendimento, Dias (2013, p.69) afirma que

Ao gerar deveres recíprocos entre os integrantes do grupo familiar, safa-se o Estado do encargo de prover toda a gama de direitos que são assegurados constitucionalmente ao cidadão. Basta atentar que, em se tratando de crianças e adolescentes, é atribuído primeiro à família, depois à sociedade e finalmente ao Estado o dever de garantir com absoluta prioridade os direitos inerentes aos cidadãos em formação (CF 227). Impor aos pais o dever de assistência aos filhos decorre do princípio da solidariedade (CF 229).[...]

[...] A lei civil igualmente consagra o princípio da solidariedade ao prever que o casamento estabelece plena condições de vidas (CC 1.511). Também a obrigação alimentar dispõe deste conteúdo (CC 1.694).

O princípio da igualdade, outro princípio fundamental previsto na Constituição da República expressamente em seu art. 5º, caput, reflete explicitamente nas relações familiares.

Como mencionado, o homem era tido como o chefe da família e a mulher era tida como inferior ao homem, inclusive com relações a seus direitos e deveres. Com o advento da Constituição, homens e mulheres passam a ser iguais em direitos e deveres, o que reflete diretamente nos direitos e deveres inerentes da constituição da entidade familiar.

O art. 226, §5º da Constituição da República traz esta premissa de igualdade ao estabelecer que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher, e neste caso, por sociedade conjugal deve-se entender a união decorrente tanto do casamento como da união estável.

O Código Civil de 2002, refletindo o que dispõe o art. 226 da Constituição, dispõe em seu art. 1.511 que o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.

Além da igualdade entre cônjuges, a Constituição Federal, em seu art. 227, §6º, traz o princípio da igualdade entre os filhos. A injusta diferenciação entre os filhos havidos ou não na constância do casamento deu lugar a igualdade de direitos e de qualificações, sendo vedada qualquer discriminação.

Como afirmam Farias e Rosenvald (2008, p. 41),

[...], vale afirmar que todo e qualquer filho gozará dos mesmos direitos e proteção, seja em nível patrimonial, seja mesmo na esfera pessoal. Com isso, todos os dispositivos legais que, de algum modo, direta ou indiretamente, determine tratamento discriminatório entre os filhos terão de ser repelidos do sistema jurídico.

O princípio da igualdade pode ser verificado em várias outras situações no que tange ao Direito de Família, como por exemplo, na possibilidade de ambos os cônjuges poderem alterar seus nomes quando do casamento, adotando um o nome patronímico do outro do outro; na possibilidade de os cônjuges ou companheiros poderem estabelecer livremente o planejamento familiar, podendo estabelecer o regime de bens e dispor sobre assuntos inerentes a entidade familiar constituída; etc.

Mister ressaltar, que, conforme afirma Dias (2013, p. 69), “o princípio da igualdade não vincula somente o legislador. O intérprete também tem de observar suas regras. [...] o juiz não deve aplicar a lei de modo a gerar desigualdades”.

O terceiro, e não menos importante princípio basilar que rege as relações sociais, refletindo por óbvio nas relações familiares, é o princípio da afetividade.

Como afirma Fachin (2003, p.1), com a vigência do novo Código Civil, “[...] são valorizadas as relações de mútua ajuda e afeto, com índices cada vez maiores de uniões não matrimonializadas”.

O casamento como única entidade familiar, com o objeto de produzir e reproduzir dá lugar a modelos de entidades familiares baseados no afeto, mudando-se até mesmo os paradigmas do casamento.

Este princípio pode ser vislumbrado principalmente no que diz respeito ao reconhecimento da união homoafetiva, ou seja, das uniões entre pessoas do mesmo sexo, decorrentes da decisão proferida pelo STF no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4227 e da Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF) 132, que teve como relator o Ministro Ayres Britto.

Em seu voto, o Ministro relator ressaltou

merecem guarida os pedidos formulados pelos requerentes de ambas as ações. Pedido de “interpretação conforme à Constituição” do dispositivo legal impugnado (art. 1.723 do Código Civil), porquanto nela mesma, Constituição, é que se encontram as decisivas respostas para o tratamento jurídico a ser conferido às uniões homoafetivas que se caracterizem por sua durabilidade, conhecimento do público (não-clandestinidade, portanto) e continuidade, além do propósito ou verdadeiro anseio de constituição de uma família.

Ainda afirmou inteligentemente que

[...] o sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. É como dizer: o que se tem no dispositivo constitucional aqui reproduzido em nota de rodapé (inciso IV do art 3º) é a explícita vedação de tratamento discriminatório ou preconceituoso em razão do sexo dos seres humanos. Tratamento discriminatório ou desigualitário sem causa que, se intentado pelo comum das pessoas ou pelo próprio Estado, passa a colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos” [...].           

Continuando, ressaltou o aspecto da realização pessoal e da felicidade das uniões, sejam elas de pessoas do mesmo sexo ou sejam elas de sexos distintos.           

[...] se as pessoas de preferência heterossexual só podem se realizar ou ser felizes heterossexualmente, as de preferência homossexual seguem na mesma toada: só podem se realizar ou ser felizes homossexualmente[...].

Concluindo, o Ministro deu interpretação Constitucional ao art. 1.723 do Código Civil para que dele fosse excluída qualquer significado que não permita o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como sendo entidade familiar.

[...]Pelo que dou ao art. 1.723 do Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”.[...]

Da brilhante decisão do Ministro Ayres Britto, pode-se perceber que a felicidade e o afeto são muito mais expressivos do que qualquer interpretação literal que se possa fazer de algum dispositivo que negue direitos baseados nestes sentimentos.

Além disto, outro ponto em que pode ser percebida uma grande influência do princípio da afetividade é no que tange à Paternidade Afetiva que impõe que pai não é só aquele que emprestou seu material genético para que a criança fosse concebida. Pai é aquele que dá afeto, amor, carinho, que cumpre seus deveres para com seus filhos, não sendo necessariamente o pai biológico.

Hoje, tanto na doutrina quanto na jurisprudência de tribunais, é perfeitamente possível um reconhecimento de paternidade pautada na posse do estado de pai, ou seja, se em um caso concreto for provado que o homem age de tal forma que faça com que seja visto como o pai da criança, pela própria criança e pelos que os circundam, este será reconhecido juridicamente como pai.

Com base nisso, têm-se julgado improcedentes ações negatórias de paternidade em que o pai registral guarda relações de afeto para com o filho.

Além destes princípios, existem outros vários que regulam as relações familiares.

Farias e Rosenvald (2008, p. 12), afirmam que a família pode ser compreendida em três sentidos: em sentido amplíssimo, amplo ou restrito.

Em sentido amplíssimo, família seria a relação que interliga diferentes pessoas que compõem um mesmo núcleo afetivo, incluindo até mesmo empregados domésticos. Para exemplificar, os autores citam o art. 1.412, §2º do Código Civil, que menciona que “no conceito de necessidades familiares estão abarcadas, até mesmo, aquelas provenientes das pessoas do serviço doméstico.” (p.13).

Em sentido amplo, família seria a união afetiva entre as pessoas e seus parentes e cada um entre si. Já em sentido restrito, família seria o conjunto de pessoas unidas afetivamente e sua prole. Para Dias (2013, p.33), é impossível definir família sem incidir em um vício de lógica. Enfim, afirmam que o Código não enclausura um único conceito de família.

O certo é que nosso ordenamento jurídico tenta definir família, e, sendo bastante ou não, é o conceito aceito hoje em dia, que devem ser analisados conforme os princípios constitucionais mencionados anteriormente.

O Estatuto da Criança e do Adolescente reconhece a existência de três espécies de família: a natural, a extensa e a substituta. a) família natural: assim entendida a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes (art. 25, caput, ECA); b) família extensa: aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade (art. 25, parágrafo único, ECA); c) família substituta: para a qual o menor deve ser encaminhado de maneira excepcional, por meio de qualquer das três modalidades possíveis, que são: guarda, tutela e adoção.

A Lei Orgânica da Assistência Social (lei nº 8.742/93) em seu parágrafo 1º do art. 20 modificada pela lei nº 12.435/2011 também traz uma definição do que vem a ser família para os fins previdenciários a que a Lei se destina: “Para os efeitos do disposto no caput, a família é composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo texto.”

Entender o conceito de família e entender que ela é tida pela Constituição como base do Estado, e por isso merece a proteção de todos, é de suma importante para o estudo deste trabalho, principalmente para entender que a União Estável, como qualquer outra modalidade de família, é entidade familiar e como tal merece a proteção Estatal, não podendo ser hierarquicamente inferior a nenhuma outra modalidade.


3 AS MODALIDADES DE FAMÍLIA NA CONTEMPORANEIDADE

Como mencionado no final do capítulo anterior, a união estável é uma modalidade de entidade familiar. Atualmente, vários são os modelos de constituição de família reconhecidos pela doutrina e pela jurisprudência.

Nos dias atuais, como dito, vários são os modelos de família. Porém, nem sempre foi assim. A família teve seus traços alterados conforme se evoluía a humanidade e o direito.

Com o surgimento da Igreja, visando regular as relações humanas, surgiu o casamento. A ideia de casamento era que este era indissolúvel por ter sido proveniente da vontade divina. A função principal da família era o de procriar e de produzir riquezas.          

Tendo isso como parâmetro, varias legislações viam o casamento como a única forma de constituição de família, sendo este a união entre um homem e uma mulher, com o intuito de crescer e multiplicar, gerando riquezas. O homem, visto como um ser superior, tinha o total domínio sobre a mulher.        

Claramente, o Código Civil de 1916 teve grande influencia desta ideia patrimonialista de casamento, prevendo que o casamento era a única forma legitima de constituição de família, sendo indissolúvel, assim como a igreja previa.

O primeiro passo importante para que o casamento deixasse de ser visto como uma forma de produção de riquezas e de reprodução oi o surgimento da Lei do Divórcio, no ano de 1977, onde se previa a possibilidade da dissolução do casamento. Apesar de leis anteriores preverem a dissolução da sociedade conjugal, estas não previam o real vínculo do matrimônio.

Com a constituição de 1988 e a humanização da família, reflexo do foco dado aos princípios fundamentais como, por exemplo, o da dignidade da pessoa humana, o da igualdade, o da solidariedade, a ideia de família tornou-se muito mais ampla e o casamento deixou de ser a única forma de constituição de família.

O casamento não deixou de existir, o que houve foi sua flexibilização. O enfoque patrimonial, que lhe era inerente, o deixou de ser, passando o casamento representar a plena comunhão de vidas entre duas pessoas. Com isto surgiram novas modalidades de constituição de família, todos baseados no afeto.

Neste capítulo serão apresentados traços gerais sobre as modalidades de família atualmente reconhecidas, sendo elas: o casamento; a família poliafetiva; a família monoparental; a pluriparental; a anaparental; e, a reconstituída. À União Estável é reservado capítulo específico, por ser a modalidade de entidade familiar base deste trabalho.

3.1 O Casamento

 Como já dito, por muito tempo o casamento foi a única forma de constituição de família, confundindo-se com esta. Quando surgiu, ligado em laços religiosos, a principal função do casamento era a de regular a relação sexual entre duas pessoas, tendo caráter patrimonial.           

A função primeira do casamento era a de regular aquela primeira noção de família, a união entre um homem e uma mulher com o objetivo de produzir riquezas e reproduzir, criando deveres e direitos estritamente de caráter patrimonial para estas relações, além do cuidado da prole.           

O casamento só veio se flexibilizar após o advento da Constituição de 1988, deixando de ser a única forma de constituição da família e sendo adequado aos princípios constitucionais.

O casamento, como afirma Farias e Rosenvald (2008, p.92), “o casamento tem de servir às pessoas. Ele é meio [...] através do qual as pessoas desenvolvem a sua personalidade plena e almejam [...] a felicidade.”           

O casamento, então, é o instrumento pelo qual as pessoas buscam a plena comunhão de vidas, atingindo a felicidade. Alguns defendem que esta definição seria eudaimonista, sendo que a felicidade não é o fim do casamento, sendo a sobrevivência e o sexo os fins reais. Não será tratada desta discussão aqui, haja vista não ser este o foco deste trabalho.           

O casamento é regulamentado pelos arts. 1.511 à 1582 do Código Civil.           

Apesar de a constituição ter dado uma visão humanizada ao casamento, o que pode ser percebido é que sua realização ainda trás muitas formalidades, o que faz com que doutrinadores como Paulo Lins e Maria Berenice Dias afirmem que o casamento trata-se de um contrato de adesão. Esta ideia é reforçada pela solenidade exigida na realização do casamento onde se faz necessário que os nubentes digam “sim” à autoridade competente, e, só assim, consideram-se casados.           

Não cabe neste trabalho a análise da natureza jurídica do casamento. Esse assunto é de grande extensão e objeto de discussões acaloradas na doutrina, podendo ser objeto até mesmo de um trabalho completo.           

O certo é que o Código Civil, apesar de posterior à Constituição Federal de 1988, ainda trouxe diversos deveres de caráter meramente patrimonial para a regulamentação do instituto do casamento, além de diversas regras complexas acerca do regime de bens entre os cônjuges e até mesmo as próprias solenidades excessivas para a realização do casamento, o que faz com que as pessoas, querendo estabelecer comunhão de vidas, mas buscando evitar as excessivas formalidades para realização do casamento, busquem constituir alguma das outras modalidades de família, e principalmente a união estável.

3.2 União Estável

 O casamento era indissolúvel, mas o afeto entre os cônjuges não. Dessa forma, ao acabar o afeto, as pessoas, buscando a felicidade, acabavam por constituir novas famílias. Porém, estas novas famílias não tinham qualquer amparo legal.

Apesar da evidente existência da uma entidade familiar, nem a lei e nem as pessoas reconheciam estas uniões como legítimas, tendo em vista que o casamento era considerado a única forma legitima de constituição de família, e dessa forma, não era reconhecido nenhum direito a estas uniões.           

Com o passar dos tempos e com o surgimento de várias demandas judiciais no sentido de reconhecer estas uniões como família, estas uniões foram cada vez mais ganhando força e passaram a ser aceitas pela sociedade, porém, com resistência legal.           

Com a força que foram ganhando estas uniões, a Constituição acabou por incluí-las como espécie de entidade familiar, dando o nome de união estável.

Este modelo de entidade familiar será tratado com mais afinco em capítulo específico, tendo em vista ser o principal ponto para o desenvolvimento do tema-problema deste trabalho. 

3.3 Poliafetiva 

Como demonstrado anteriormente, o afeto e a solidariedade são bases de toda e qualquer entidade familiar. Daí surgiu uma grande polêmica quando um Cartório de Notas no Rio de Janeiro registrou uma união estável entre dois homens e uma mulher.       

Neste trabalho não será analisada sobre a validade ou não dessas uniões uma vez que este não é o foco central, porém cabe registrar algumas opiniões sobre o tema.

Dias afirma:

Desde que o IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família evidenciou ser o afeto o elemento identificador da entidade familiar, passou-se a reconhecer que o conceito de família não pode ser engessada no modelo sacralizado do matrimônio. Apesar dos avanços, resistências ainda existem. Assim, há que se reconhecer como transparente e honesta a instrumentalização levada a efeito, que traz a livre manifestação de vontade de todos, quanto aos efeitos da relação mantida a três. Lealdade não lhes faltou ao formalizarem o desejo de ver partilhado, de forma igualitária, direitos e deveres mútuos, aos moldes da união estável, a evidenciar a postura ética dos firmatários. Não há como deixar de reconhecer a validade da escritura.  (DIAS, 2012)

Depreende-se que para Dias, o afeto deve ser sempre o que orienta a família. Se há afeto em uma relação entre três pessoas, não há que se falar em impedimento para registro de tal relação, uma vez que isto seria interferir na livre manifestação de vontade de todos os envolvidos na relação, não havendo quebra de lealdade, pois, ambos tem o desejo em partilhar direitos e deveres, devendo ser reconhecida a validade deste tipo de escritura.          

Outros autores, que tratam a monogamia como um princípio basilar do direito de família, afirmam que chamar este tipo de união de união estável, seria apenas uma forma de estelionato jurídico, procurando-se validar relacionamentos poligâmicos, inclusive, afirma-se que este tipo de união é contrária a própria dignidade dos envolvidos, destruindo a família. É o que afirma Silva:

[...], deve ser notada a sedução que reside na utilização de expressões como "poliamor" ou "poliafeto". [...], a expressão poliafeto é um engodo, um estelionato jurídico, na medida em que, por meio de sua utilização, procura-se validar relacionamentos com formação poligâmica.

[...]

Com efeito, não há como se admitir, observados os contornos sociais e jurídicos brasileiros, que o casamento e a união estável deixaram de ser monogâmicos. Em países africanos, como na Tanzânia e em Guiné, ou, ainda, em países de religião muçulmana, há a aceitação da poligamia, mas seus costumes são muito diversos dos brasileiros.

A escritura lavrada em Tupã de nada servirá a essas três pessoas. É inútil porque não produz os efeitos almejados, uma vez que a Constituição Federal, a Lei Maior do ordenamento jurídico nacional, atribui à união estável a natureza monogâmica, formada por um homem ou uma mulher e uma segunda pessoa (CF, art. 226, § 3º).

O reconhecimento notarial afronta a dignidade das três pessoas envolvidas (CF, art. 1º, III), servindo como elemento de destruição da família, que é considerada elemento basilar da sociedade brasileira (CF, art. 226, caput).

A bigamia constitui crime, tipificada como o novo casamento realizado por pessoa casada (Código Penal, art. 235). Logo, se o direito brasileiro não tolera o casamento bígamo, por semelhante razão — embora sem a tipificação criminal porque o diploma penal é anterior à consideração constitucional da união estável — não se admite entidade familiar formada por três ou mais pessoas.

A escritura do trio não tem eficácia jurídica, viola os mais básicos princípios familiares, as regras constitucionais sobre família, a dignidade da pessoa humana e as leis civis, assim como contraria a moral e os costumes da nação brasileira. (SILVA, 2012)

O ponto principal da discussão gira em torno da monogamia, que é tida por alguns como princípio basilar do direito de família e por outros como uma orientação a ser seguida.

A discussão sobre o tema é muito acalorada tanto na doutrina quanto na jurisprudência, o que ensejaria um trabalho inteiro para discussão do tema, porém, como este não é o foco deste trabalho, não será feita uma análise aprofundada sobre este. O certo é que se a monogamia for tida como princípio, ou não, influenciará na conclusão final sobre o assunto.

3.4 Monoparental           

Família monoparental é aquela formada por qualquer dos pais com seus filhos.

Esta espécie de modelo familiar vem se tornando cada vez mais comum na realidade diária da sociedade.           

Mister ressaltar que o filho pode ser biológico ou não. Neste caso, o filho pode ser advindo de uma gestação ou ser adotado, ou, até mesmo gerado por inseminação artificial. A origem da filiação pouco importa para a proteção deste modelo familiar que é reconhecido pela Constituição da República, em seu artigo 226, parágrafo 4º (quarto).

3.5 Pluriparental 

Família Pluriparental, conforme Dias, é a formada entre parentes colaterais, não havendo diferença do grau de parentesco entre eles. Um exemplo colocado é o dos tios que vivem com seus sobrinhos. (DIAS, 2008, p. 90 e 91)

3.6 Anaparental

 Este é um modelo de família que demonstra claramente que o afeto nos dias atuais é uma base muito concreta para a constituição de qualquer família.           

Pode-se afirmar que família anaparental é:

[...] a família sem pai e sem mãe. Pais morreram e os filhos têm por tutores os avós. Estes novos arranjos são as denominadas famílias sócio-afetivas, que se fundam no afeto, dedicação, carinho e ajuda mútua, transformando estas convivências em verdadeiras entidades familiares. Essa realidade é crescente no Brasil, mas não ganhou a devida atenção dos estudiosos do direito e nem do próprio Estado. Muitos irmãos passam a conviver juntos após o falecimento de seus pais, um cuidando do outro, formando por esforço mútuo patrimônio comum.

[...]

A família anaparental não se restringe somente aos parentes.  Há o exemplo de amigas aposentadas e até viúvas que decidem compartilhar a velhice juntas, convivência que se caracteriza pela ajuda material, emocional e pelo sentimento sincero de amizade sem conotação sexual. (MAGALHÃES, 2017)

Dessa forma, para que haja família anaparental, vê-se que não há necessidade de existência de vínculo consanguíneo. O vínculo afetivo, por si só, já dá sentido a esta modalidade de família. Nem mesmo a conotação sexual é necessária. Basta simplesmente o sentimento de solidariedade mútua, auxílio material e, frisa-se, o afeto.

3.7 Reconstituidas

 A família reconstituída é aquela formada por um dos ascendentes com seu descendente e outra pessoa que também já tinha família constituída anteriormente.           

É o caso de uma mulher que foi casada, e tem um filho advindo do casamento, que se relaciona com outro homem também divorciado e que tem filhos.           

O principal efeito deste modelo familiar é o parentesco por afinidade, e decorre do art. 1.595 do Código Civil.


4 UNIÃO ESTÁVEL

 O casamento era indissolúvel, mas o afeto entre os cônjuges não. Dessa forma, ao acabar o afeto, as pessoas, buscando a felicidade, acabavam por constituir novas famílias. Porém, estas novas famílias não tinham qualquer amparo legal.           

Apesar da evidente existência da uma entidade familiar, nem a lei e nem as pessoas reconheciam estas uniões como legítimas, tendo em vista que o casamento era considerado a única forma legitima de constituição de família, e dessa forma, não era reconhecido nenhum direito a estas uniões.           

Com o passar dos tempos e com o surgimento de várias demandas judiciais no sentido de reconhecer estas uniões como família, estas uniões foram cada vez mais ganhando força e passaram a ser aceitas pela sociedade, porém, com resistência legal.

Com a força que foram ganhando estas uniões, a Constituição de 1988 acabou por incluí-las como espécie de entidade familiar, dando, ao concubinato puro, como eram conhecidas, o nome de união estável.

4.1 Histórico da União Estável

Observa Pereira (2001, p. 15) que “a união livre entre homem e mulher sempre existiu e sempre existirá”.

A felicidade é o fim último dos humanos. Desta forma, natural que sempre busquem ser felizes. Desta busca de uma felicidade surgem as uniões livres.

As uniões livres ou estáveis podem ser verificadas desde a Grécia antiga. Neste sentido, Dias (1988, p. 19, in PEREIRA, 2001 p. 15-16)[2], afirma que

A velha história grega está crivada de concubinatos célebres, na devassidão da vida íntima dos filósofos, escultores, poetas, notadamente Friné, belíssima entre as belas, que arrastou Paxísteles, servindo-lhe de modelo às suas arquiteturas de Vênus, ao mesmo tempo que se tornava amante de Hipérides, notável orador que a defendeu no pretório, por acusação de impudícia (...). Destacam-se, na voz da história, célebres concubinas, que tiveram nobre atuação na cultura dos gregos, notadamente Aspásia, que ensinou retórica, em aulas próprias, a grande número de alunos, inclusive velhos gregos (...). Antes de viver com Péricles, Aspásia tornara-se concubina de Sócrates, e depois da morte deste, de Alcebíades...

        Entre os gregos, as uniões concumbinárias eram reconhecidas até mesmo pelas leis da época. Na Roma antiga, era comum a existência de concubinatos também, porém, não gerava qualquer efeito jurídico.

Da Idade Média, onde a influência religiosa era grandiosa, até a idade Moderna, era altamente combatido pela Igreja este tipo de união. Contudo, estas uniões, nem que fosse às escondidas, nunca deixaram de existir, o que demonstra que o homem sempre a buscou, buscando satisfazer a si, fugindo das normas ditadas pelas leis e pela própria Igreja, no que tange ao casamento.

"Muitas vezes, a história do concubinato é contada como história de devassidão, ligando-se o nome da concubina à prostituta [...]” (PEREIRA, 2001, p. 15). No mesmo sentido, Dias (2013, p. 173) afirma que os vínculos afetivos fora do casamento sempre existiram, mesmo com a rejeição social e legislativa a estas.

Sobre a União Estável no Brasil, Pereira (2001, p. 19) afirma que

Aqui, o desenvolvimento e evolução de um “direito concubinário” são muito recentes, apesar de uma existência como fato social marcante. Muitos civilistas omitiram ou excluíram de seus estudos esse assunto, alegando ser juridicamente irrelevante. Outros proclamara a imoralidade dessas relações e outros simplesmente relegaram-nas ao plano do ilegítimo. Contudo, foi o próprio Supremo Tribunal Federal que fincou o esteio para a evolução da construção jurisprudencial e doutrinária, acerca das Súmulas 380 e 382.

Dias (2013, p.173), afirma que o Código Civil de 1916 omitiu-se sobre o tema, visando proteger o matrimônio, que até então era a única forma de constituição de família, restando por punir as relações extramatrimoniais.

Apenas a partir da década de 60 é que teve início a construção de uma doutrina concubinária com uma série de decisões sobre o tema. Porém, as decisões tinham cunho apenas patrimonial. (DIAS, 2013, p. 173)

Ainda segundo Dias, (2013, p. 174), a justiça passou a reconhecer a existência de uma sociedade de fato. Com o passar do tempo, as uniões extramatrimoniais passaram a merecer a aceitação da sociedade, o que levou a Constituição de 1988 a reconhecê-las como método de constituição de família.

Deste fato, surgiram duas vertentes do concubinato: A união estável e o concubinato propriamente dito. Quando duas pessoas, impedidos de casar, passam a ter relações eventuais, como, por exemplo, uma pessoa casada que relaciona-se com outra que não sua esposa, considera-se concubinato. Este conceito é estabelecido pelo art. 1.727 do Código Civil.

Ao concubino são limitados alguns direitos, principalmente de cunho patrimonial, para resguardar o casamento.

Quanto a união estável, no que tange à seu conceito e seus requisitos, será tratada no próximo tópico..

 4.2 Conceito e Elementos de Constituição da União Estável

 O legislador do Código Civil de 2002, em seu art. 1.723, que estabelece “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”.

Como se observa do mencionado dispositivo legal, o legislador não trás um conceito específico de união estável, trazendo os seus requisitos de constituição, que são de necessária verificação, diferenciando um namoro sério de uma união com o objetivo de constituir família.

Para melhor compreender o tema, primeiramente serão abordados os requisitos de constituição da união estável, para, ao fim deste item, ser apresentada uma tentativa conceitual.

4.2.1 união estável como entidade familiar

O primeiro, e mais importante, aspecto do conceito de união estável é o fato de ser reconhecida como entidade familiar. Este reconhecimento é a elas estabelecido pela própria Constituição Federal em seu art. 226, §3º. Como entidade familiar, assim como qualquer outra, deve ter especial proteção do Estado.

As Constituições da República anteriores a de 1988 nem sequer mencionavam a união estável, o que fazia com que não fossem reconhecidas muitas vezes, o que fazia com que os conviventes batessem às portas do judiciário para ter alguns direitos reconhecidos, o que levou a atual Constituição, adequando-se a realidade social, reconhecer a União Estável como uma entidade familiar, equiparando-a ao casamento em muitos aspectos.

O Código Civil de 1916 também não mencionava nada sobre o tema. O Código Civil de 2002 refletiu a Constituição Federal no reconhecimento do instituto da União Estável como entidade familiar, traçando normas gerais sobre o tema.

4.2.2 União entre homem e mulher

 Em uma interpretação literal do art. 1723 do Código Civil de 2002, entende-se que apenas a união entre homem e mulher seria considerada para fins de se declarar a existência de uma união estável. Porém, a interpretação literal deste dispositivo legal é capaz de gerar injustiças imensuráveis.

Os laços afetivos são essenciais para que seja possível a vida em sociedade bem como para que se possa viver em família. Este fator pode ser vislumbrado principalmente no que diz respeito ao reconhecimento da união homoafetiva, ou seja, das uniões entre pessoas do mesmo sexo, decorrentes da decisão proferida pelo STF no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4227 e da Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF) 132, que teve como relator o Ministro Ayres Britto.

Em seu voto, o Ministro relator ressaltou

merecem guarida os pedidos formulados pelos requerentes de ambas as ações. Pedido de “interpretação conforme à Constituição” do dispositivo legal impugnado (art. 1.723 do Código Civil), porquanto nela mesma, Constituição, é que se encontram as decisivas respostas para o tratamento jurídico a ser conferido às uniões homoafetivas que se caracterizem por sua durabilidade, conhecimento do público (não-clandestinidade, portanto) e continuidade, além do propósito ou verdadeiro anseio de constituição de uma família.

Ainda afirmou inteligentemente que

[...] o sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. É como dizer: o que se tem no dispositivo constitucional aqui reproduzido em nota de rodapé (inciso IV do art 3º) é a explícita vedação de tratamento discriminatório ou preconceituoso em razão do sexo dos seres humanos. Tratamento discriminatório ou desigualitário sem causa que, se intentado pelo comum das pessoas ou pelo próprio Estado, passa a colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos” [...].

Continuando, ressaltou o aspecto da realização pessoal e da felicidade das uniões, sejam elas de pessoas do mesmo sexo ou sejam elas de sexos distintos.

[...] se as pessoas de preferência heterossexual só podem se realizar ou ser felizes heterossexualmente, as de preferência homossexual seguem na mesma toada: só podem se realizar ou ser felizes homossexualmente[...].

Concluindo, o Ministro deu interpretação Constitucional ao art. 1.723 do Código Civil para que dele fosse excluída qualquer significado que não permita o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como sendo entidade familiar.

[...] Pelo que dou ao art. 1.723 do Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”.[...]

Da brilhante decisão do Ministro Ayres Britto, pode-se perceber que a felicidade e o afeto são muito mais expressivos do que qualquer interpretação literal que se possa fazer de algum dispositivo que negue direitos baseados nestes sentimentos.

Diante desta decisão, qualquer preconceito ou polêmica existente à época foi deixada de lado, e conclui-se que a união estável não é constituída apenas entre pessoas de sexo diferente, mas também entre pessoas do mesmo sexo.

4.2.3 Affectio Maritalis

Affectio Maritalis, Animus Familiae, ou Animo de Constituir família, é o elemento mais importante de constituição da União Estável. É ele que difere um namoro sério de uma União Estável.

Como bem observa Farias e Rosenvald (2008, 393), “trata-se, efetivamente, da firme intenção de viver como se casados fossem”.

Diferenciar namoro sério de união estável tem sido uma das maiores dificuldades nos dias atuais, utilizando-se o intérprete este requisito para diferenciá-los.

Sobre o tema, bem observa Dias:

Hoje a dificuldade maior é reconhecer se o vínculo é namoro ou constitui união estável. Chega-se a falar em namoro qualificado, na tentativa de extremar as situações. [...] Com a evolução dos costumes, a queda do tabu da virgindade, a enorme velocidade com que se estabelecem os vínculos afetivos, ficou difícil identificar se o relacionamento não passa de um simples namoro ou se é uma união estável. Até porque, mais das vezes, um do par acha que está só namorando e o outro acredita estar vivendo em união estável. (2013, p.181)

Farias e Rosenvald (2008, p.393), afirmam que

Não se pode negar que, em concreto, a prova da intenção de constituir família pode se apresentar de difícil caracterização, especialmente quando um dos conviventes vier anegá-la, tentando desqualificar a entidade familiar. [...] Sem dúvida, o casal-convivente é reconhecido no meio social como marido e mulher, identificados pelos mesmos sinais exteriores de um casamento. Por isso, sem a pretensão de esgotar as (múltiplas) possibilidades, é possível detectar a união estável, dentre outras hipóteses, através da soma de projetos afetivos, pessoais e patrimoniais, de empreendimentos financeiros com esforço comum, de contas conjuntas bancárias, declarações de dependência em imposto de renda, em planos de saúde e em entidades previdenciárias, a frequência a eventos sociais e familiares, eventual casamento religioso (o chamado casamento eclesiástico) etc.

Para melhor demonstrar esta dificuldade, serão apresentadas a seguir algumas decisões judiciais dos mais diversos Tribunais sobre o tema.

TJ-BA - Apelação APL 00115418520098050103 BA 0011541-85.2009.8.05.0103 (TJ-BA), Data de publicação: 22/01/2014

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. AUSÊNCIA DOS ELEMENTOS CONFIGURADORES. CONTINUIDADE E NOTORIEDADE. NÃO REVELADOS. INTERRUPÇÕES. INSTABILIDADE DA RELAÇÃO. INSEGURANÇA. ANIMUS DE CONSTITUIR FAMÍLIA. NÃO DEMONSTRADO. COMPROVAÇÃO DE MERA RELAÇÃO DE NAMORO. -Da análise dos autos não há prova de que a relação havida entre a autora e o réu tenha sido notória, contínua e duradoura, nem restou evidenciado o animus de constituir família, comprovando-se, assim, mera relação de namoro. -A via eleita pela autora para partilha do bem adquirido pelo réu não se mostrou adequada, já que não reconhecida a união estável.

TJ-RO - Apelação APL 00037494420118220004 RO 0003749-44.2011.822.0004 (TJ-RO), Data de publicação: 10/12/2015

Ementa: Apelação cível. Ação de reconhecimento e dissolução de união estável cumulada com partilha de bens post mortem. União estável. Requisitos. Ausência. Caracterização de simples namoro. Não havendo nos autos evidências sólidas de que a apelante convivia maritalmente com o falecido, bem como não ficando demonstrado o animus de constituir família, com convivência pública, contínua e duradoura, afasta-se a possibilidade de reconhecimento da união estável.

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO ORDINÁRIA PARA CONCESSÃO DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO - IPREMU - PENSÃO POR MORTE - UNIÃO ESTÁVEL - REQUISITOS NÃO PREENCHIDOS - ÔNUS DA PROVA - SENTENÇA MANTIDA

1. Em relação à união estável o novo Código Civil exigiu para o seu reconhecimento, da mesma forma como na Lei n° 9.278/96 (Regula o §3º do art. 226 da Constituição Federal), a convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família (artigo 1.723 do CC/2002).

2. Em que pese o longo tempo de namoro entre a requerente e o falecido, tratando-se, de fato, de um relacionamento público, contínuo e duradouro, pelo que dos autos consta, não é possível afirmar, com a segurança que se espera em demandas como a presente, que existia o elemento anímico necessário ao reconhecimento da união estável, qual seja, o objetivo de constituir família.

3. Negar provimento ao recurso.  (TJMG -  Apelação Cível  1.0702.14.053334-1/001, Relator(a): Des.(a) Teresa Cristina da Cunha Peixoto , 8ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 10/03/2016, publicação da súmula em 29/03/2016)

 É mister ressaltar que se no caso concreto for verificada a ausência deste requisito, a união estável não será sequer reconhecida.

4.2.4 Publicidade

 Para comprovação da existência de uma união estável se faz necessária que esta seja pública e notória no círculo social de convivência dos companheiros, apresentando-se como se casados fossem. (FARIAS e ROSENVALD, 2008, p.396-397)

Dias critica o emprego do vocábulo “Público” por parte do legislador, afirmando que, na verdade, o que se espera é que a união seja notória, afirmando que “a publicidade denota a notoriedade da relação no meio social frequentado pelos companheiros [...]”. (2013, p.180)

Vale ressaltar que a ausência de publicidade da união pode ser um empecilho para o reconhecimento desta como uma União Estável.

4.2.5 Estabilidade

 Apesar de o legislador estabelecer que para que a união estável seja reconhecida como tal deva esta ser duradoura, não é estabelecido prazo mínimo para tal, sendo necessário, no caso concreto, a análise dos demais requisitos, somados ao tempo de convivência para que seja possível dizer se a união pode, ou não, ser reconhecida como estável.

Como bem observam Farias e Rosenvald (2008, p. 395), “[...]. Não se exige, como visto alhures, prazo mínimo de convivência dependendo a caracterização da união estável das circunstâncias concretas de cada caso”.

A continuidade, outro requisito, está diretamente ligado a este requisito, sendo certo que para algo ser considerado como estável, deve haver uma certa continuidade.

4.2.6 Continuidade

 Não quis o legislador impor ao casal que vivam perpetuamente juntos ao afirmar que continuidade é um dos requisitos essenciais da união estável.

Como observam Farias e Rosenvald (2008, p. 396), “significa que o relacionamento permanece, transpassa o tempo, não sofrendo interrupções constantes. Por óbvio, não é qualquer interrupção que compromete a constituição da entidade familiar.”

Vale ressaltar que será o interprete, caso a caso, que declarará se determinada união é continua e duradoura, analisando os fatos e provas acostados aos autos do processo.

4.2.7 Ausência de impedimentos legais

 A união estável é reconhecida após a soma destes requisitos observados, caso a caso, pelo juiz. Neste sentido, como mencionado, na ausência de um dos requisitos, não se constitui a união estável. Porém, além da presença dos requisitos mencionados, por força do parágrafo 2º do art. 1.723 do CC, é necessária a observância ao art. 1.521 do CC, que dispõe:

Art. 1.521. Não podem casar:

I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;

II - os afins em linha reta;

III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;

IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;

V - o adotado com o filho do adotante;

VI - as pessoas casadas;

VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.

Como se pode observar, neste espeque, o regramento do casamento é o mesmo aplicado à união estável, devendo ser observado pelo juiz no caso concreto.  Neste dispositivo legal estão presentes as causas impeditivas ao casamento, ou seja, estando o casal enquadrado em algum destas hipóteses, o casamento não pode ser levado à registro, e logo não existirá. E da mesma forma, a união estável não será passível de reconhecimento.

A primeira e a segunda causa de impedimento estão ligadas ao parentesco. Se uma pessoa for filho, enteado, pai, padrasto, mãe, madrasta, sogro ou sogra, nora ou genro da outra, não poderá ser reconhecida a união estável.

A terceira causa se dá quando de um lado há um adotante e do outro quem foi cônjuge do adotado (a mãe ou o pai adotivo com a nora ou genro), ou o adotado com quem o adotou. Esta causa impeditiva acaba por ser uma redundância na medida em que o inciso I e II do art. 1.521 já veda o casamento entre ascendentes e descendentes e afins em linha reta, sendo o parentesco natural (sanguíneo) ou civil (qualquer outra forma de parentesco que não o consanguíneo).

A quarta causa, também ligada ao parentesco, estabelece o impedimento do casamento entre irmãos e entre tios e sobrinhos.

No caso dos irmãos, não importará se eles forem unilaterais ou bilaterais, existindo, de toda forma o impedimento para que se casem. É isto que dá ensejo ao quinto impedimento, ou seja, o impedimento de que o adotado case com o filho do adotante, que soa como redundância à quarta causa, considerando que o parentesco, neste sentido, é considerado tanto o natural quanto o civil, como observado no inciso I, do dispositivo mencionado.

A sexta, e mais óbvia das causas, é quando a pessoa já é casada. Neste caso estamos diante de um concubinato impuro, que é chamado apenas de concubinato pelo Código Civil. Mister ressaltar que se a pessoa casada comprovar a separação de fato ou estiver separada judicialmente, esta causa não impedirá o reconhecimento da união estável pelo fato de os deveres do casamento já terem cessado.

A última causa visa impedir que a pessoa que tentou matar ou matou o cônjuge da outra, case ou constitua união estável com esta.

Ressalta-se que as causas suspensivas do casamento, previstas no art. 1.523 do CC, não impedem que a união estável seja reconhecida.


5 DIREITO SUCESSÓRIO NA UNIÃO ESTÁVEL

Durante a vida, são adquiridos diversos bens e direitos. Porém, com o decurso do tempo a saúde se debilita e é chegada a hora reservada a todos: a morte.

Este é um momento triste para toda a família, perder um ente querido nunca é fácil. Mas esta é a hora em que todo o patrimônio (bens e direitos) adquirido pela pessoa  é dividido entre os seus herdeiros e/ou cônjuge ou companheiro meeiro. A este momento é dado o nome de sucessão, que nada mais é que a transmissão dos bens e direitos adquiridos em vida aos sobreviventes herdeiros do falecido. É a transmissão da herança.

Percebe-se que o direito sucessório decorre diretamente do direito a herança, garantido pela Carta Magna, que em seu art. 5º, XXX dispõe expressamente:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXX - é garantido o direito de herança;

O direito de sucessão é o reflexo do direito de herança, e tem previsão no Código Civil Brasileiro de 2002, tendo um Livro específico para tratar do assunto, sendo este o Livro V, o último do Código Civil.

O objeto deste trabalho é a análise do Direito Sucessório na União Estável, mais precisamente acerca da recente decisão do STF que julgou inconstitucional o art. 1.790 do Código Civil, porém, para isto, primeiro deve ser entendida como se dá a sucessão no instituto do casamento, para, após, ser apresentada a sucessão entre companheiros.

5.1 Direito Sucessório no Casamento

 No momento do falecimento de uma pessoa, tudo que esta adquiriu em vida é transmitido ao seu núcleo familiar.

Se verificada a árvore genealógica do falecido, verifica-se a existência de parentes em diversos graus e de linhas diferentes. Visando limitar a sucessão para evitar qualquer problema que possa advir de uma enorme gama de sujeitos, o legislador  brasileiro criou a figura dos herdeiros necessários.

O Código Civil traz como herdeiros necessários os descendentes, ascendentes e o cônjuge, como herdeiros necessários. Diante da nova interpretação dada pelo STF à sucessão dos companheiros, entende-se que o companheiro também é considerado herdeiro necessário.

O Código Civil também estabelece uma regra quanto à ordem de sucessão. Em seu art. 1.829, estabelece:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III - ao cônjuge sobrevivente;

IV - aos colaterais.

Sobre o assunto, Diniz (2011, p. 140) afirma que:

 (...) A lei, ao fixar essa ordem, inspirou-se na vontade presumida do finado de deixar seus bens aos descendentes ou, na falta destes, aos ascendentes, sem olvidar, em ambos os casos, a concorrência com o cônjuge sobrevivo; não havendo nenhum dos dois, ao consorte sobrevivente, e, na inexistência de todas essas pessoas, aos colaterais, pois na ordem natural das afeições familiares é sabido que o amor primeiro desce, depois sobe e em seguida dilata-se.

Como se depreende da leitura do art. 1829 do CC, o cônjuge sobrevivente pode ser encontrado em terceiro lugar na regra da sucessão legítima, ressalvada a concorrência deste com os descendentes ou com os ascendentes do falecido. Mas não foi sempre assim.

Antes de 1907, o cônjuge sobrevivente era colocado em quarto lugar na ordem de sucessão hereditária. O legislador previa a seguinte ordem de vocação hereditária: os descendentes, ascendentes, colaterais consanguíneos até o décimo grau, cônjuge sobrevivente e a Fazenda Pública.

O decreto Nº 1.839, de 31 de dezembro de 1907, alterando a ordem de sucessão hereditária, alçou o cônjuge sobrevivente ao terceiro lugar da linha sucessória. Desta forma, ficou estipulado que a ordem hereditária seria: descendentes, ascendentes, cônjuge sobrevivente, colaterais até o sexto grau e a Fazenda Pública. Esta ordem foi mantida pelo Código Civil de 1916.

O Código Civil de 2002 constitucionalizou o Direito Civil, erigindo a família a um patamar mais importante. Com esta alteração, vislumbra-se que em caso de uma pessoa casada falecer sem deixar descendentes ou ascendentes, o cônjuge herdará totalmente o patrimônio.

Como bem observa Dias (2013, p.58),

Em qualquer regime de bens – até no da separação convencional, como no regime da separação obrigatória -, falecendo um dos cônjuges, o sobrevivente adquire a qualidade de herdeiro exclusivo se não existirem herdeiros antecedentes. Seria absurdo condicionar a sucessão ao regime de bens. Haveria a possibilidade de a herança ser reconhecida como jacente, isto é, herança sem dono, mesmo que o falecido fosse casado. Mas não há tal risco, pois só é admitida a devolução da herança na inexistência de cônjuge sobrevivente. (CC 1.844).

Além de herdeiro, o cônjuge sobrevivente pode ser meeiro, a depender do regime de bens adotados quando da celebração do casamento.

É importante não confundir o instituto da sucessão com o da meação. Enquanto o Direito Sucessório, que é o conjunto de regras que regulam a sucessão, a meação é regulada pelo Direito de Família. A sucessão se dá no momento do falecimento do cônjuge e a meação consiste na proteção do patrimônio comum adquirido pelo casal antes do falecimento.

Como saber, em um caso concreto, se se está diante de um caso de meação ou de sucessão? Na verdade, é bem simples, basta observar o regime de bens adotados no momento do casamento.

Quando o casamento é celebrado sem qualquer manifestação das partes quanto ao regime de bens adotado, é aplicado o regime legal que, por força do art. 1.640 do Código Civil, é o da comunhão parcial de bens.

Quando o casamento se dá na comunhão parcial de bens, os bens adquiridos na constância do casamento, excetuando-se os arrolados no art. 1.659 do CC, são objetos de meação, o que quer dizer que a metade ideal destes bens são pertencentes ao cônjuge sobrevivente antes mesmo do falecimento, e devem ser preservados.

Neste caso, se o cônjuge falecido não tinha bens exclusivos, o sobrevivente recebera a metade de todo o patrimônio, e o restante será transmitido aos herdeiros necessários restantes.

Se além de adquirir bens em comum com o sobrevivente, o falecido já tivesse patrimônio exclusivo, além de meeiro dos bens adquiridos em comum, o sobrevivente será herdeiro, em concorrência com os demais herdeiros necessários.

Além do regime legal da comunhão parcial de bens, existem diversos outros regimes que podem ser convencionados pelos cônjuges mediante pacto antenupcial ou que a lei pré-estabelece em determinados casos.

O regime da comunhão universal de bens, regime que era considerado o regime legal pelo Código Civil de 1916, é um dos regimes que podem ser convencionados livremente entre os cônjuges. Neste regime, todos os bens adquiridos antes do casamento e durante, pertence a ambos os cônjuges em condomínio.

Desta forma, ressalvadas as hipóteses do art. 1.668 do CC, o cônjuge sobrevivente será meeiro da totalidade dos bens, sejam eles adquiridos antes ou após o casamento.

Outro regime, que pode ser livremente convencionado entre os cônjuges, é o regime da participação final nos aquestos. Este regime é dotado de grande complexidade, razão pela qual não se vislumbra, pelo menos não se tem conhecimento de casamentos celebrados sob este regime. Neste caso, a meação também deve ser observada para todos os fins.

No que tange ao regime da separação de bens, verifica-se a existência de duas espécies, a separação convencional de bens e o regime da separação obrigatória, ou legal, de bens. A primeira espécie, como o próprio nome pressupõe, decorre da convenção entre o casal.

Neste caso, pressupõe-se que os cônjuges queiram comungar suas vidas mas não os seus patrimônios, razão pela qual são considerados exclusivos os patrimônios de ambos. Desta forma, o cônjuge sobrevivente se torna herdeiro do patrimônio do cônjuge falecido, concorrendo com os demais herdeiros necessários.

Assim entendeu o STJ, no julgamento do REsp 1.472.945, que julgou equivocado o entendimento anterior firmado no REsp 992.749, e é como tem entendido atualmente.[3]

Já o regime da separação obrigatória de bens é aplicado quando se verifica alguma das hipóteses mencionadas no art. 1.641 do Código Civil, que dispõe:

Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;

II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos;

III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.

Pela simples leitura do art. 1.829, I, do Código Civil, poderíamos dizer que não há sucessão entre os cônjuges casados sob o regime da separação legal de bens, porém, o entendimento firmado pela súmula 377 do STF é no sentido de que há comunicabilidade dos bens adquiridos na constância do casamento, o que gera o direito ao cônjuge sobrevivente na meação destes bens.

Mesmo com este entendimento ainda há controvérsias na doutrina e jurisprudência acerca deste tema, considerado um paradoxo por muitos. Controvérsia esta que não será aqui levantada por não ser objeto desta pesquisa.

Sobre a questão da meação, vale destacar o entendimento de Maria Berenice Dias (2013, p. 55):

No regime da comunhão universal a meação se calcula sobre todo o patrimônio. Nos demais compreende a metade dos bens adquiridos durante o convívio. Esta divisão só não tem cabimento no regime da separação convencional, pois não há bens comuns.

No que se refere ao regime da separação convencional de bens, tem-se a Súmula 377 do STF, a qual garante a comunicabilidade dos bens adquiridos na constância do casamento. Logo, tem-se a meação do viúvo.

5.1.1 Direito real de habitação

Outro direito que decorre diretamente do direito sucessório é o direito real de habitação. Sobre este direito, dispõe o artigo 1.831 do Código Civil de 2002:

Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.

Verifica-se que o Código Civil de 2002 garantiu ao cônjuge sobrevivente direito real de habitação independente do regime de bens do matrimônio. O direito de habitação concede ao cônjuge sobrevivente a posse direta do bem.

Vale frisar também que o imóvel deve ser destinado à residência da família e o único imóvel inventariado. Esta última regra, como observa Paulo Lôbo, pode ser relativizada a depender do caso concreto.

Nesse sentido, Lôbo (2014, p. 127):

Se tiver deixado mais de um imóvel residencial, a lei presume que não haverá prejuízo para o cônjuge sobrevivente, pois disporá de outra opção equivalente de moradia. Evidentemente, que cada caso é um caso. Se, como frequentemente ocorre, o imóvel habitado pela família é o mais valorizado, inclusive afetivamente, tendo o outro imóvel residencial reduzido valor ou localização desvantajosa para o cônjuge sobrevivente, essa circunstância não impede a incidência do direito real de habitação sobre o primeiro. O fim social da norma legal é assegurar ao cônjuge sobrevivente a permanência no local onde conviveu com o de cujus, que é o espaço físico de suas referências afetivas e de relacionamento com as outras pessoas.

5.1.2 Concorrência do cônjuge sobrevivente com os demais herdeiros

 O Código Civil reconhece o cônjuge como herdeiro necessário. Além disto, inclui o cônjuge em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, prevendo, porém, a hipótese d o cônjuge sobrevivente concorrerá com os descendentes e ascendentes na sucessão.

Como já dito anteriormente, a depender do regime de bens adotado quando do casamento, o cônjuge sobrevivente se torna meeiro do patrimônio deixado pelo falecido. Porém, é mister ressaltar que além de meeiro, o cônjuge viúvo pode ser herdeiro em concorrência com os demais herdeiros necessários.

Nos casos em que o bem for exclusivo do falecido, o viúvo pode vir a ser meeiro e herdeiro juntamente com os descendentes e ascendentes daquele, ou simplesmente herdeiro.

Em um primeiro momento, o cônjuge sobrevivente concorrerá com os descendentes do falecido, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens, ou, se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares. Controvérsia gira em torno do reconhecimento do cônjuge casado em regime de separação convencional de bens como herdeiro necessário.

Para Francisco Cahali, o viúvo é herdeiro nestes casos (2014, p.129). Para Maria Helena Diniz, no regime da separação convencional, não há o que se falar em meação, herança ou direito de concorrência sucessória ou em direito a exercer inventariança, pois os bens de cada um, quaisquer que sejam e adquiridos a qualquer tempo, são exclusivos (2013, p.57). Era assim que entendia o STJ com o julgamento do REsp 992.749, onde afirmou-se que "se o casamento foi celebrado pelo regime da separação convencional, significa que o casal escolheu conjuntamente a separação do patrimônio. Não há como violentar a vontade do cônjuge após sua morte, concedendo a herança ao sobrevivente”.

Contudo, de modo diverso entendeu o Ministro Ricardo Villas Boas Cuêva ao julgar o REsp 1.472.945, entendendo que

O artigo 1.829, I, do Código Civil de 2002, utilizado como fundamento central do recurso especial, versa sobre a concorrência do cônjuge com os descendentes na sucessão hereditária, nos seguintes termos:  "Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente , salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; (...)" (grifou- se).   A qualidade de herdeira necessária ostentada pela viúva restou reconhecida pelo acórdão recorrido à luz da supramencionada legislação e com base na seguinte fundamentação, que merece ser mantida incólume:   "(...) Nos casos de falecimento ab intestato (sem deixar testamento), ante a ausência de disposição final, feita pelo autor da herança, a sucessão se dá pela ordem legítima, ou seja, a vocação hereditária segue as disposições do Código Civil, consoante o art. 1829 e seguintes. Nesse sentido, dispõe o inciso I do art. 1829:  Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte : I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;   Como se vê, o dispositivo legal deixa expresso que, como regra geral na sucessão legítima, o cônjuge sobrevivente concorre com os herdeiros, ressalvados, tão somente, os casos expressamente referidos - casamento pelo regime da comunhão universal, da separação obrigatória ou da comunhão parcial quando o autor da herança não houver deixado bens particulares. Neste caso, a viúva foi casada pelo regime da separação convencional, hipótese que, portanto, não se enquadra entre as exceções da parte fmal do artigo supracitado . Outrossim, não há que se falar em subsunção da separação convencional como eventual espécie da separação obrigatória, pois os próprios conceitos são antagônicos, ou seja: aquilo que é obrigatório não possui abertura para convenção, pois é uma imposição legal .Ademais, por se tratar de norma excepcional, não se admite a interpretação extensiva de dispositivo que limita direitos sob pena de afronta à segurança jurídica. De fato, como a literalidade do texto legal não afasta a condição de herdeiro do cônjuge sobrevivente, casado pela separação convencional, não pode o intérprete fazê-lo, sob pena de surpresa indevida aos particulares, gerando insegurança às relações civis . Nesse ponto, cumpre afastar a alegação da agravante quanto à suposta pacificação da matéria pelo Egrégio STJ, por ocasião do REsp n° 992.749⁄MS, onde houve a exclusão da viúva em sucessão hereditária, haja vista que se trata de julgamento sem efeito vinculante além das partes do próprio processo.

Desta forma, o STJ entende que, atualmente, o cônjuge sobrevivente que era casado sob o regime da separação convencional de bens pode ser considerado herdeiro necessário. É neste sentido também que é fixada no enunciado 270 da III Jornada de Direito Civil, do CJF, como afirma Fachardo:

O Enunciado 270 da III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em dezembro de 2004 dispõe que o inciso I do artigo 1.829 do Código Civil, assegura ao cônjuge sobrevivente direito de concorrência com os descendentes do de cujus se foram casados sob o regime da separação convencional de bens ou, sob os regimes da comunhão parcial de bens ou participação final nos aquestos, desde que o falecido possuísse bens particulares, caso em que a concorrência se dá somente em relação a estes bens, e a meação do falecido ser partilhada em caráter exclusivo entre os descendentes.

Sobre a concorrência, é de suma importância mencionar o disposto no art. 1.832 do CC, que dispõe:

Em concorrência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer.

Se o viúvo concorrer com os descendentes do falecido na sucessão, ele deverá sempre herdar uma quota igual aos demais descendentes. Na hipótese de uma família numerosa, o viúvo que tiver filhos em comum com o falecido não poderá receber quota inferior a um quarto da herança.

Neste sentido, afirmam Cahali e Hironaka (2012, p. 201):

E assim nos posicionamos pela interpretação objetiva do texto: sendo a prole só do falecido, a participação é uma; mas se o sobrevivente for ascendente dos herdeiros com quem concorrer, está abrangida a situação híbrida, devendo, pois, ser reservada sua parcela mínima de ¼ na herança, pois não fala a lei em ascendente de todos os herdeiros com quem disputar, ou único ascendente dos sucessores.

Sendo herdeiro necessário, o cônjuge sobrevivente pode sofrer determinadas restrições, como afirma Lôbo (2014, p. 122):

Por ser herdeiro necessário, o cônjuge pode sofrer restrições decorrentes de disposições testamentárias deixadas pelo de cujus, que estabeleçam inalienabilidade, impenhorabilidade ou incomunicabilidade sobre os bens que correspondam à legítima do cônjuge sobrevivente. Tais restrições, no entanto, apenas são válidas e eficazes se houver justa causa, que o testador tenha declarado no testamento. Havendo impugnação da justa causa, cabe ao juiz decidir se ela é razoável.

Quanto à concorrência do cônjuge sobrevivente com os ascendentes do falecido, não há divergências. O legislador não impôs qualquer condição para esta concorrência, podendo dizer que independentemente do regime de bens haverá concorrência entre ascendentes e descendentes.

Neste sentido, é fácil estabelecer as quotas cabíveis a cada um. Se o cônjuge concorrer com o pai e a mãe do falecido, cada um herdará 1/3 da herança. Se concorrer com um dos dois, caberá metade para cada um.

Inexistindo concorrentes, o cônjuge sobrevivente herdará a totalidade da herança.

5.2 Direito Sucessório dos Companheiros Supérstites no Código Civil de 2002

O Código Civil de 2002, apesar de ter sido publicado em 2002, é decorrente de um projeto de lei anterior ao vigor da Constituição Federal de 1988, o que fez com que diversos pontos presentes no projeto fossem alterados.

Nas aulas de Direito Civil, não é raro ouvir que o Novo Código Civil já nasceu com ideias ultrapassadas, principalmente no que tange ao instituto da União Estável.

O ponto principal desta pesquisa é o Direito Sucessório na União Estável, tema controvertido, que recebeu nova roupagem após a Suprema Corte julgar o art. 1.790 do Código Civil inconstitucional.

Não é atual a afirmativa na doutrina de inconstitucionalidade do art. 1.790, que regula o Direito Sucessório na União Estável. Contudo, apenas em maio de 2017, o STF julgou inconstitucional o dispositivo mencionado.

Para análise dos motivos que ensejaram a declaração de inconstitucionalidade do referido dispositivo legal, é necessário dispor como se da a sucessão na união estável regulada por este.

5.2.1 O artigo 1.790 do Código Civil

 O Código Civil de 1916, em seu texto original, nada previa acerca do direito sucessório do companheiro, isso porque não tinha o instituto da união estável o cunho de entidade familiar.

O antigo código tinha um cunho extremamente religioso, reconhecendo como única forma de constituição de família o casamento, não sendo reconhecidos nem o companheiro e nem a união estável.

Muitas vezes, aqueles que tinham objetivo de constituir família, mas optavam por não casar, eram tratados com desprezo. Estes eram considerados concubinos, e no sentido pejorativo da palavra, principalmente a mulher, que era a mais descriminada.

A Constituição Federal de 1988, atendendo os anseios populares e a realidade da época, reconheceu a União Estável como entidade familiar, o que mudou totalmente a visão que se tinha acerca da união estável no ordenamento jurídico.

Apesar de o Código Civil de 1916, que continuava em vigor, em nada ter sido alterado, decisões judiciais reconheciam as uniões estáveis e os direitos dela provenientes.

O grande problema da época é que o companheiro não era considerado herdeiro necessário e muito menos meeiro. Visando regulamentar os direitos sucessórios do companheiro, em 29 de dezembro de 1994, entrou em vigor a lei 8.971, que visava regulamentar o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão.

O art. 1º da referida lei previa:

Art. 1º A companheira comprovada de um homem solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo, que com ele viva há mais de cinco anos, ou dele tenha prole, poderá valer-se do disposto na Lei nº 5.478, de 25 de julho de 1968, enquanto não constituir nova união e desde que prove a necessidade.

Parágrafo único. Igual direito e nas mesmas condições é reconhecido ao companheiro de mulher solteira, separada judicialmente, divorciada ou viúva.                                                                                   

Já o art. 2º dispõe da sucessão. Se tivessem filhos em comum, a companheira teria direito ao usufruto de quarta parte dos bens do falecido. Na hipótese de a companheira concorrer com os ascendentes do falecido, esta teria direito a usufruto da metade dos bens do falecido. Se não existissem descendentes ou ascendentes do falecido, o companheiro poderia herdar toda a herança.

A companheira, como se pode ver, não herdava os bens mas sim o usufruto a estes bens. Contudo, esse usufruto só perduraria até o momento em que ela não adquirisse nova união estável.

Em 1996, mais precisamente em 10 de maio daquele ano, entrou em vigor a lei 9.278, que regulamentava o parágrafo 3º do art. 226 da Constituição da República de 1988. Esta lei regulamentava os direitos sucessórios dos companheiros em seus artigos 5º e 7º. In verbis: 

Art. 5° Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito.

§ 1° Cessa a presunção do caput deste artigo se a aquisição patrimonial ocorrer com o produto de bens adquiridos anteriormente ao início da união.

§ 2° A administração do patrimônio comum dos conviventes compete a ambos, salvo estipulação contrária em contrato escrito.


Art. 7° Dissolvida a união estável por rescisão, a assistência material prevista nesta Lei será prestada por um dos conviventes ao que dela necessitar, a título de alimentos.

Parágrafo único. Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família.

Esta lei dava a possibilidade de os companheiros pactuarem o regime de bens da união em contrato escrito além de reconhecer que, salvo estipulação em contrário, os bens adquiridos durante a união, por um dos companheiros ou por ambos, seriam considerados de ambos, em condomínio e em partes iguais, e em caso de falecimento, o sobrevivente teria o direito real de habitação, perdurando até seu falecimento ou constituição de nova união ou casamento, relativamente ao imóvel em que residia a família.

O Código Civil de 2002, inovou no sentido de regulamentar o direito sucessório dos companheiros, contudo falhou, e muito, em diversos aspectos, pelo fato de seu projeto ter sido anterior ao da Constituição Federal de 1988.

O Código Civil atual, não reconheceu o companheiro como herdeiro necessário. Além disto, incluiu o companheiro apenas após os colaterais na ordem de vocação hereditária. Desta forma, conclui-se que o legislador reconhece a união estável como entidade familiar com o intuito de demonstrar a importância suprema da família, no sentido de que apenas o casamento garantiria o direito sucessório pleno ao companheiro.

Dito isto, a pergunta que se faz é: será que esta era a ideia da constituição ao inserir a união estável como entidade familiar? Fazer da união estável um casamento de segunda classe e, implicitamente, forçar os companheiros a se casarem para que, tão somente, possam fazer jus ao seu direito de herança em sua totalidade? Pelo menos é o que faz concluir o art. 1.790 do CC, que será analisado por menores a seguir, cabendo, antes, analisar os demais direitos sucessórios decorrentes da união estável.

Como visto, a depender do regime de bens adotado no casamento, quando do falecimento do outro cônjuge, o sobrevivente recebe sua meação da herança.

Na união estável, a ideia é a mesma. O artigo 1.725 do Código Civil dispõe que: Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens. Maria Berenice Dias destaca que o companheiro sobrevivente tem direto à meação dos bens adquiridos na constância da união estável. (2013, p. 55).

Quanto ao direito real de habitação, percebe-se que o legislador foi omisso, o que gerou grande discussão doutrinária acerca do tema. Para Lôbo, o Código Civil não revogou a Lei 9.278/1996, neste sentido. Segundo o autor

[...] não houve revogação expressa ou implícita da Lei 9.278, nesse ponto, pois o Código Civil, no art. 1.31, ao explicitar o direito do cônjuge não o fez de modo exclusivo. [...] o Código Civil trata do direito real de habitação do cônjuge, mas não exclui o do companheiro. O Código Civil não regulou toda a matéria relativa ao direito real de habitação, pois o art. 1.831 é desdobramento do art. 1830, quanto ao direito sucessório do cônjuge. (2014, p. 146)

Dias (2013, p. 79), entende, de igual forma, que não houve a revogação da legislação anterior, afirmando que

O Código Civil garante ao cônjuge sobrevivente direito real de habitação independentemente do regime de bens do casamento (CC 1.831). Porém, olvidou-se de reconhecer o mesmo benefício ao companheiro sobrevivente. O cochilo da lei, no entanto, não permite afastar o direito do companheiro de permanecer na posse do bem que servia de residência à família. Dois fundamentos autorizam sua concessão. O primeiro é de ordem constitucional. Reconhecidos o casamento e a união estável como entidades familiares merecedoras da especial proteção do Estado (CF 226, § 3º), não se justifica tratamento diferenciado em sede infraconstitucional. Descabe distinguir ou limitar direito quando a Constituição não o faz. Fora isso, a lei que regulou a união estável expressamente assegura o direito real de habitação ao companheiro sobrevivente (L 9.278/96 7º). Desse modo, a omissão do Código Civil não significa que foi revogado o dispositivo que estendeu ao companheiro o mesmo direito concedido ao cônjuge. São normas que não se incompatibilizam. Esta é a orientação que tem prevalecido nos tribunais.

Cahali, por sua vez, entende que houve a revogação, tanto no que diz respeito ao direito real de habitação, previsto no art. 7º da Lei 9.278/96, quanto no que tange ao usufruto vidal, previsto no art. 2º da lei 8.971/94, em favor do companheiro sobrevivente, pelo simples fato de o art. 1.790 do CC estabelecer as condições para a participação na sucessão, não cabendo interpretação ampliativa do dispositivo, restringindo-se a sucessão do companheiro àquelas condições previstas no dispositivo, não sendo possível falar em outra hipótese que não estas, sendo este regramento incompatível com as legislações anteriores. (2014, p. 220).

A Constituição Federal de 1988 coloca tanto o casamento quanto a união estável em posição de entidades familiares, afirmando ainda que a família merece especial proteção do Estado, sendo a base da sociedade. Porém, na ordem legal, o próprio Estado priva o companheiro de seus plenos direitos, praticamente impondo a realização do casamento. Esta discrepância é apenas uma entre as várias gafes cometidas pelo legislador do Código Civil, demonstrando o quão antigo em ideologias é o Código Civil.

Se a constituição coloca as duas entidades familiares em um mesmo patamar, não é a lei infraconstitucional que tem o papel de diferenciá-las, mas como visto, não o que ocorre na prática. Neste sentido, podemos destacar o que afirma Zeno Veloso:

A lei não está imitando a vida, nem está em consonância com a realidade social, quando decide que uma pessoa que manteve a mais íntima e completa relação com o falecido, que sustentou com ele uma convivência séria, sólida, qualificada pelo animus de constituição de família, que com o autor da herança protagonizou, até a morte deste, um grande projeto de vida, fique atrás de parentes colaterais dele, na vocação hereditária [4]

Além da problemática narrada, outra impropriedade do Código Civil de 2002, é o seu art. 1.790, julgado inconstitucional, que regulava a sucessão do companheiro sobrevivente. O art. 1.790 do Código Civil dispõe, in verbis:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

O caput do art. 1.790 prevê, expressamente, que o companheiro participará da sucessão do falecido quantos aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável.

O caput do dispositivo nem sequer se preocupa com o regime de bens adotado pelos companheiros, afirmando que a sucessão será apenas dos bens adquiridos onerosamente e na constância da união.

Vale ressaltar que o companheiro, pela letra do Código Civil, não é herdeiro necessário, não fazendo jus a legitima, e por isso o art. 1.790 dispõe que só haverá herança dos bens adquiridos onerosamente, na constância da união. Mas se o próprio Código estabelece que na união estável são aplicáveis os dispositivos referentes ao regime da comunhão parcial de bens, não faz sentido o companheiro concorrer com os outros herdeiros no que, em tese, faria parte de sua meação.

Dias (2013, p. 75), afirma que

Desse modo, quando se pensa na divisão da herança, é necessário antes excluir a meação do companheiro sobrevivente, que corresponde à metade do que foi adquirido onerosamente no período de convivência. A outra metade é que constitui o acervo hereditário: a meação do falecido e mais os seus bens particulares (os adquiridos antes da união e mais os recebidos por doação ou herança). Aos herdeiros necessários é reservada a legítima, que corresponde à metade da herança. A outra metade é a parte disponível de que seu titular pode dispor por meio de testamento. Como o companheiro não é herdeiro necessário – por injustificadamente não ter sido inserido na ordem de vocação hereditária -, não tem direito à legítima.

O Código Civil exclui o companheiro do rol dos herdeiros necessários, reconhecendo-o como herdeiro legítimo, e nem muito menos tem direito à meação dos bens adquiridos durante a União, concorrendo com os demais herdeiros, e, apenas no caso de não existirem quaisquer parentes sucessíveis é que o companheiro, pela letra do art. 1790, receberá a totalidade da herança.

Gama afirma que o companheiro não é herdeiro necessário, afirmando ser a inclusão do cônjuge neste status representa o prestígio do legislador ao casamento, que considera ser autêntica e efetiva fonte de união, e por isso facilita que as uniões informais se tornem formais. [5]

Amin, de forma contrária, defende que o companheiro deva ser reconhecido como herdeiro necessário uma vez que o direito de suceder é inafastável e que há reserva de cotas ao companheiro[6].

Dias defende a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/02 por diferenciar o casamento e a união estável no que diz respeito ao Direito Sucessório, não havendo defesa à família, fazendo o contrário, retirando direitos e vantagens dos companheiros (DIAS, 2013, p. 72-73).

É mister ressaltar que a Constituição não diferenciou qualquer forma de Constituição de Família, colocando todas as formas em igual patamar, o que faz com que esta distinção tratada pelo Código Civil seja questionada.

Pereira entende que esta diferenciação faz entender que a União Estável seria uma família de segunda classe. Neste sentido, podemos mencionar um trecho do voto do Ministro Fachin no julgamento do Recurso Extraordinário 878.694/MG:

Não há família de primeira e segunda classes, porque não há cidadãos de primeira e segunda classes. A pluralidade familiar apreendida pelo texto constitucional é expressão da pluralidade moral que a Constituição de uma República livre, justa e solidária tem como princípio vetor. Eleger como dotado de primazia um ou outro modelo de família conjugal seria eleger morais particulares de alguns cidadãos como dotadas de superioridade sobre as morais particulares de outros.

Desta forma pode-se afirmar que o legislador, ao diferenciar o direito sucessório entre cônjuges e companheiros estaria gerando uma hierarquização entre as pessoas que escolhem se casar e entre os que escolhem viver em união estável, o que na sistemática constitucional vigente não é possível.

Ademais, a exclusão do companheiro do rol dos herdeiros necessários pode trazer inúmeros prejuízos na ordem sucessória. Um destes, é o fato de que o companheiro só receberá a herança na integralidade se não houver parentes sucessíveis e se o companheiro falecido não dispor de sua totalidade, o que é possível pela sistemática do Código Civil considerando não ser obrigatória a observância da preservação da legítima no caso dos companheiros, estando presente esta obrigação apenas no que diz respeito aos herdeiros necessários.

Além disto, a distinção entre e cônjuges e companheiros da uma ideia de que o casamento seria superior, o que obrigaria, indiretamente os companheiros a contraírem matrimônio, tendo em vista que de certa forma os direitos decorrentes do casamento seriam mais amplos, o que deve ser evitado na atual visão constitucional de igualdade entre as entidades familiares.


6 RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS 646.721 E 878.694 E A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1790 DO CÓDIGO CIVIL

 Para melhor elucidar a questão, seguem abaixo as ementas dos dois Recursos Extraordinários.

                       

RE 646.721, RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO

Ementa : DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. APLICAÇÃO DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL À SUCESSÃO EM UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. INCONSTITUCIONALIDADE DA DISTINÇÃO DE REGIME SUCESSÓRIO ENTRE CÔNJUGES E COMPANHEIROS.

1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável, hetero ou homoafetivas. O STF já reconheceu a “inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico”, aplicando-se a união estável entre pessoas do mesmo sexo as mesmas regras e mesas consequências da união estável heteroafetiva (ADI 4277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05.05.2011)

2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nº 8.971/1994 e nº 9.278/1996 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e da vedação do retrocesso.

3. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública.

4. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/ 2002.

RE 878.694; RELATOR ROBERTO BARROSO

Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO REPERCUSSÃO GERAL. INCONSTITUCIONALIDADE DA DISTINÇÃO DE REGIME SUCESSÓRIO ENTRE CÔNJUGES E COMPANHEIROS.

1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável.

2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988.

3. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente, e da vedação do retrocesso.

4. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. 5. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”.

Neste capítulo, serão apresentados os trechos mais pertinentes dos votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, para, a posteriori, análise destes, o que permitirá a se chegar a uma conclusão sobre o tema e sobre o problema levantado neste trabalho.

Ambos os Recursos foram julgados firmando a tese de que é ilegítima a desequiparação entre os cônjuges e os companheiros, afirmando ser incompatível com a Constituição Federal a hierarquização entre entidades familiares, como o que era proposto pelo Código Civil ao reconhecer direitos e garantias aos cônjuges e não fazê-lo aos companheiros.

No caso do RE 878.694,

a recorrente vivia em união estável, em regime de comunhão parcial de bens, há cerca de 9 anos, até que seu companheiro veio a falecer, sem deixar testamento. O falecido não possuía descendentes nem ascendentes, mas apenas três irmãos. Diante desse contexto, o Tribunal de origem, com fundamento no art. 1.790, III, do CC/2002, limitou o direito sucessório da recorrente a um terço dos bens adquiridos onerosamente durante a união estável, excluindo-se os bens particulares do falecido, os quais seriam recebidos integralmente pelos irmãos. Porém, caso fosse casada com o falecido, a recorrente faria jus à totalidade da herança. (RE 878.694/MG)

Como se pode perceber, a distinção entre cônjuge e companheiros gerou prejuízo à parte recorrente, limitando sua cota da herança, sendo que, se casada fosse, esta receberia a totalidade da herança.

Neste sentido, o Ministro Relator Roberto Barroso, explica que no Brasil o regime sucessório é dotado de dois graus distintos de proteção: o forte e o fraco. O fraco diz respeito à parte disponível da herança, tendo o seu autor a faculdade de dispor  desta parte, respeitando-se os limites legais. Já o forte, impede a disposição da legítima, visando proteger os parentes de grau mais próximo.

Ainda nas palavras de Barroso, e possível afirmar que até o Código Civil de 2002, o direito sucessório dos companheiros vinha ganhando contorno através de algumas leis esparsas, o que, segundo o Ministro, foi interrompido pelo Código Civil ao diferenciar os direitos dos Cônjuges e Companheiros, como feito no art. 1790.

Barroso comunga da ideia de que o Código Civil não tenha previsto o Direito Real de Habitação ao companheiro, o fazendo para o Cônjuge, abrandando os requisitos da lei 9.278/96, nada dizendo sobre os companheiros.

Não pode ser deixado de lado a análise feita pelo Ministro no que tange a impossibilidade de hierarquização das entidades familiares:

Os quatro elementos tradicionais de interpretação jurídica – o gramatical, o teleológico, o histórico e o sistemático – podem auxiliar na solução desta matéria. Examina-se, em primeiro lugar, a interpretação semântica, também referida como gramatical, literal ou filológica. Trata-se do ponto de partida do intérprete, sempre que exista uma norma expressa acerca da questão que lhe caiba resolver. Embora, naturalmente, o espírito e os fins da norma sejam mais importantes que a sua literalidade, é fora de dúvida que os sentidos mínimo e máximo das palavras figuram como limites à atuação criativa do intérprete. Pois bem: a norma aqui analisada estabelece, de forma inequívoca, que a família tem especial proteção do Estado, sem fazer qualquer menção a um modelo familiar que seria mais ou menos merecedor desta proteção. Veja-se: o texto do art. 226, seja em seu caput, seja em seu § 3º, não traça qualquer diferenciação entre o casamento e a união estável para fins de proteção estatal. Se o texto constitucional não hierarquizou as famílias para tais objetivos, o legislador infraconstitucional não deve poder fazê- lo.

Em segundo lugar, a interpretação teleológica reforça a inexistência de hierarquia entre ambas as formas de constituição familiar. A interpretação teleológica tem como objetivo a realização dos fins previstos na norma, a concretização, no mundo dos fatos, do propósito abrigado na Constituição. Quais seriam, então, os fins visados pelo art. 226? Parece inequívoco que a finalidade da norma é garantir a proteção das famílias como instrumento para a própria tutela de seus membros. Como já se expôs, se o Estado tem como principal meta a promoção de uma vida digna a todos os indivíduos, e se, para tanto, a família desempenha um papel essencial, é natural concluir que o dever estatal de proteção não pode se limitar às famílias constituídas pelo casamento, estendendo-se a outras entidades familiares igualmente formadas pelo afeto e pelo desejo de comunhão de vida, e igualmente capazes de contribuir para o desenvolvimento de seus integrantes. Daí poder-se concluir que a Constituição impede a discriminação entre indivíduos unicamente como resultado do tipo de entidade familiar que formam. Todos os indivíduos, sejam eles cônjuges ou companheiros, têm direito a igual proteção legal.

Em terceiro lugar, a interpretação histórica do dispositivo constitucional aponta para o mesmo resultado. A partir dos anais da Constituinte de 1987/1988, percebe-se que a inspiração da norma do art. 226 da CF/1988 foi inclusiva, e não segregativa. Não se buscou dividir as famílias em classes de primeira e segunda ordem. Muito pelo contrário, o objetivo foi ampliar a proteção estatal às diversas configurações familiares (biológicas e afetivas) existentes de fato na sociedade, mas juridicamente desamparadas até então. Tudo isso com o objetivo de assegurar que todos possam ser igualmente respeitados e protegidos, independentemente da formalização de suas uniões pelo matrimônio. Nesse sentido, a defesa de uma hierarquia entre casamento e união estável vai de encontro à vontade originária do constituinte, em nítida interpretação involutiva.

Por fim, a interpretação sistemática traz uma importante contribuição para a análise do ponto. Como se sabe, o sistema constitucional, como qualquer outro, pressupõe unidade e harmonia. A interpretação sistemática situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo a conexão própria com outras normas, de modo a evitar contradições e antinomias. No caso em exame, cabe verificar as interações entre o caput e os parágrafos do art. 226, bem como de outros dispositivos constitucionais que tratam dos papeis da família.

Ainda segundo o Ministro Barroso, o art. 1790 do CC, além de inconstitucional por gerar uma indevida hierarquia entre entidades familiares, também o é por atentar contra os princípios da dignidade da pessoa humana, tanto na dimensão de valor intrínseco, quanto na dimensão da autonomia, o princípio da vedação ao retrocesso, e o princípio da proporcionalidade pela proteção deficiente conferida ao companheiro pelo Código Civil.

Por fim, o Ministro decidiu da seguinte forma:

Ante o exposto, dou provimento ao recurso para reconhecer de forma incidental a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002, por violar a igualdade entre as famílias, consagrada no art. 226 da CF/1988, bem como os princípios da dignidade da pessoa humana, da vedação ao retrocesso e da proteção deficiente. Como resultado, declaro o direito da recorrente a participar da herança de seu companheiro em conformidade com o regime jurídico estabelecido no art. 1.829 do Código Civil de 2002.

O Ministro Fachin votou com o Relator, o Ministro Barroso, afirmando:

Tal qual acutíssimamente posto no voto do Ministro Roberto Barroso, a hermenêutica constitucional conduz a uma equiparação, em prestígio ao princípio da isonomia (art. 5º, I, e art. 226, §3º, da Constituição da República), dos regimes sucessórios dos cônjuges e companheiros, de modo a reconhecer-se, incidentalmente, no presente recurso extraordinário, a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002.

Da mesma forma, o Ministro Teori Zavascki acompanhou o relator, afirmando:

Substancialmente, há aqui, parece-me, nessa discriminação, uma irrazoabilidade que não é compatível com a Constituição. Então, eu vou acompanhar o Relator, o Ministro Luís Roberto, inclusive quanto à formulação da tese e à modulação de efeitos.

A Ministra Rosa Weber acompanhou também o relator, e levantou estatística relevante relacionada a dados do IBGE de 2012. Ipsis litiris:

Oportuno destacar, aqui, dados do IBGE de 2012 (os recentes números igualam as uniões decorrentes de casamentos e/ou uniões estáveis), reveladores de que em dez anos o número percentual de pessoas em relações estáveis subiu de 28,6% para 36,4%, representando o equivalente a 1/3 do número de casamentos no país, enquanto reduzido o percentual de pessoas unidas através do casamento civil e religioso (49,4% para 42,9), do casamento apenas religioso (4,4% para 3,4%), e do casamento apenas civil (17,5% para 17,2%). Com relação às pessoas do mesmo sexo, em 2014, foram registradas 4.854 uniões, representando um aumento de 31% em relação aos números registrados no ano anterior, sendo 50,3% entre mulheres, e 49,7% entre homens. Relevantes, igualmente, os números relativos ao divórcio 5 e aos “recasamentos ” , que potencializam a união entre pessoas de qualquer sexo, uma vez que a tendência humana, como seres gregários, é a de se unirem em novas relações que precisam ser reguladas, considerando, ainda, a morte como elemento inafastável da vida.

Na construção de seu voto, a Ministra relembra o quadro evolutivo dos direitos das mulheres no Brasil, ressaltando a grande influência do Direito Português, do Direito Romano e do Direito Germânico no desenvolvimento do Direito Civil brasileiro no Século XX. A Ministra ressaltou o árduo caminho percorrido pelo Direito das mulheres no que tange à igualdade entre elas e os homens.

No que tange ao art. 1790 do CC/02, a Ministra cita Sílvio de Salvo Venosa[7], afirmando que

o art. 1.790 do Código Civil transmite a impressão de que o legislador teve “rebuços” em classificar o companheiro ou companheira como herdeiros, no intuito de “evitar críticas sociais”, valendo-se de eufemismo para dizer que “o consorte da união estável ‘participará’ da sucessão, como se pudesse haver um meio termo entre herdeiro e ‘mero participante’ da herança. Que figura híbrida seria essa senão a de herdeiro!”

Ademais, a Ministra continua afirmando que

O dispositivo normativo previsto no art. 1.790 do Código Civil, além do vício da inconstitucionalidade, também padece de outras insuficiências, como aponta a doutrina, até por não prever uma situação corriqueira, qual seja, a existência tanto de filhos comuns quanto de filhos de um só dos companheiros. Em interpretação literal da norma, se o companheiro (a) supérstite concorrer na sucessão com filhos comuns do casal, ele (a) herdará por igual, tendo direito a uma cota equivalente à atribuída ao filho, mas, se por outro lado, houver concorrência com descendentes somente do (a) autor (a) da herança, exclusivos dele (a), terá direito apenas à metade do que couber a cada um deles. Já para a hipótese de hibridismo, quando há concorrência tanto de filhos comuns quanto de filhos de apenas um dos companheiros, o Código não apresenta solução.

A Ministra conclui seu voto com a seguinte observação:

A pergunta que precisa ser feita, a propósito, refere-se à razoabilidade da distinção que desiguala (e, portanto, inserida a discussão no campo do princípio da igualdade) a sucessão entre companheiros e cônjuges. De uma maneira relativamente singela, observo que ambas são entidades familiares, ainda que em um caso as formalidades sejam maiores, mas o que está em evidência é o fato de que ambas são consideradas família, segundo o art. 226 da Constituição.

A partir desta observação, não se encontra motivo razoável para tratar de maneira desigual tais entidades familiares, inocorrente permissão constitucional para privilegiar o casamento em confronto com a união estável. Anoto que a Constituição de 1988 é anterior ao Código Civil em vigor, datado de 2002, mas o núcleo central deste reside na década de 1969, data de nomeação de Miguel Reale para coordenar o projeto de modificação do código.

Seguindo, votou o Ministro Luiz Fux, que acompanhou integralmente o voto do Relator Barroso, e da mesma forma votou o Ministro Celso de Mello e a Ministra Carmem Lúcia.

Através de Voto-Vista, o Ministro Dias Toffoli entendeu ser Constitucional o art. 1790 do Código Civil. O Ministro entendeu não haver falta de igualdade entre cônjuge e companheiro, considerando que casamento é uma coisa e união estável é outra, o que autorizaria a diferença de regimes jurídicos. Neste sentido, o Ministro afirmou:

Há que se garantir, portanto, os direitos fundamentais à liberdade dos integrantes da entidade de formar sua família por meio do casamento ou da livre convivência, bem como o respeito à autonomia de vontade para que os efeitos jurídicos de sua escolha sejam efetivamente cumpridos.

Além disto, o Ministro afirmou existir sim justificativa para a distinção, citando a exposição de motivos do art. 1790, que diz:

as diretrizes imprimidas à elaboração do Projeto, fiéis nesse ponto às regras constitucionais e legais vigorantes, aconselham ou, melhor dizendo, impõe um tratamento diversificado, no plano sucessório, das figuras do cônjuge supérstite e do companheiro sobrevivo, notadamente se ocorrer qualquer superposição ou confusão de direitos à sucessão aberta.

Ademais, o Ministro ainda afirmou que

Certo é que a norma civil apontada como inconstitucional não hierarquizou o casamento em relação à união estável, mas acentuou serem eles formas diversas de entidades familiares, nos exatos termos da exegese do art. 226, § 3º, da Constituição Federal.

E concluiu afirmando:

Havendo, no futuro, efetivas e reais razões fáticas e políticas para a alteração dessa norma, o espaço democrático para esses debates há de ser respeitado, qual seja, o Congresso Nacional, onde deverão ser discutidas as alternativas para a modificação da norma e seus respectivos impactos no ordenamento social.

O Ministro Marco Aurélio, relator do RE 646.721, também votou pelo não provimento do Recurso Extraordinário, acompanhando o voto do Ministro Dias Toffoli. O Ministro, assim como Toffoli, entende que em momento algum a Constituição equipara os dois Institutos, sendo que o único ponto comum entre os dois é o fato de serem entidades familiares. O Ministro ainda afirma que:

Presentes as balizas constitucionais, o Código Civil, bem ou mal, disciplinou tratamentos jurídicos correspondentes, não cabendo ao intérprete substituir a opção do legislador para igualá-los, onde a Carta da República não o fez. Conforme consignado pelo ministro Dias Toffoli, em voto-vista proferido no exame do extraordinário de nº 878.694, relator o ministro Luís Roberto Barroso, em 30 de março de 2017, a questão foi objeto de debates pelo legislador quando da tramitação do projeto.

O Ministro se pauta, assim como Toffoli, na exposição de motivos dos legisladores ao elaborarem o Código Civil, que optaram por diferenciar a União Estável do Casamento, afirmando que o número de matrimônios é maior que o número de uniões estáveis existentes, atribuindo aos dispositivos do Código Civil que tratam da união estável um caráter tutelar, protegendo o que consideram ser uma Institucionalização de um costume.

Ademais, Aurélio continua, afirmando que:

A sucessão do companheiro, destarte, não pode ser considerada menos ou mais vantajosa, por exemplo, pelo fato de que ele herda dos bens adquiridos a título oneroso durante a convivência, ao passo que o cônjuge herda dos bens particulares do falecido. Tudo dependerá do modo como o patrimônio foi conquistado. O legislador, ao regulamentar a sucessão na união estável, adotou um critério diferente do utilizado para o casamento: neste, o propósito foi não deixar o cônjuge desamparado, quando não tivesse direito à meação, naquela, foi permitir que o companheiro herdasse apenas do patrimônio para cuja aquisição tenha contribuído. São critérios diversos, sem dúvida, mas não necessariamente melhores ou piores entre si. Talvez não tenham sido a escolha mais adequada que o legislador poderia ter tomado (e com certeza não são critérios perfeitos), mas também não podem ser considerados, por este único motivo, inconstitucionais.

O Ministro encerra seu voto firmando ser Constitucional o art. 1790 do CC, pautando-se também no princípio da autonomia da vontade, afirmando que a equiparação dos institutos seria violação a este princípio.

Vencidos os Ministros Dias Toffoli e Marco Aurélio, o STF deu provimento ao RE, fixando a seguinte tese: “É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002.”

Antes da análise do voto dos Ministros, cumpre mencionar como votaram no RE 646.721, no qual firmou-se tese idêntica ao julgamento do RE 878.694.

O RE 646.721, teve como relator o Ministro Marco Aurélio, que cuidou de transferir seu entendimento deste para o RE 878.694, que votou pelo não provimento do recurso pelos motivos expostos acima. O Ministro Barroso levantou divergência, votando pelo provimento do recurso, sendo acompanhado pelo Ministro Luiz Fux, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber, e pela Ministra Carmem Lúcia.

O Ministro Ricardo Levandowski acompanhou o voto do Ministro Marco Aurélio, afirmando que no caso deveria ser dada interpretação segundo o princípio do in dubio pro legislatore, afirmando que o legislador diferenciou os dois Institutos ao afirmar no parágrafo 3º do art. 226 da Constituição que a conversão da união estável em casamento deveria ser facilitada.

Por fim, foi provido o recurso, firmando a tese de que: “É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002”, tese idêntica à firmada quando do julgamento do RE 878.694.

6.1 Análise Constitucional dos Votos e Participação do Instituto Brasileiro do Direito de Família e da Associação de Direito de Família e das Sucessões

 Para que seja feita uma análise constitucional dos votos, é imprescindível a análise do que afirmam o IBDFAM e a ADFS quando participaram como amicus curiae nos Recursos em análise, e é o que passará a ser apresentado, para posteriormente ser possível a referida análise.

O IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, presidido pelo doutrinador Rodrigo da Cunha Pereira, na oportunidade, representado pelos procuradores Maria Berenice Dias e Ronner Botelho Soares, pleitearam seu ingresso como amicus curiae em ambos os Recursos, aqui objeto de análise, firmam entendimento no sentido de que a diferenciação entre os regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros é inconstitucional uma vez que haveria hierarquia entre cônjuges e companheiros firmada pelo Código Civil, pelo que é inconstitucional o art. 1.790 do CC.

A ADFS – Associação do Direito de Família e das Sucessões, representada por sua presidente Regina Beatriz Tavares da Silva também requereu seu ingresso como amicus curiae em ambos os REs, de modo diverso, entende ser constitucional o art. 1790 do CC, tendo em vista que a Constituição Federal não vedou a referida diferenciação no que tange a diversidade de direitos sucessórios, entendendo que o princípio da liberdade e autonomia da vontadade deve ser observado, afirmando, ainda, que em muitos casos a união estável funciona como uma preparação para o casamento.

Como já debatido muitas vezes ao longo deste trabalho, a hierarquização das entidades familiares é violação fatal à Constituição Federal que busca eliminar a hierarquização havida antes de sua promulgação, como a que se dava entre o casamento e a própria união estável ao longo da evolução do Direito de Família. E é nessa ideia que se pauta o Ministro Barroso defender que a distinção no âmbito do Direito Sucessório seria uma afronta ao art. 226, afirmando em seu voto que “parece inequívoco que a finalidade da norma é garantir a proteção das famílias como instrumento para a própria tutela de seus membros.“

O Ministro Barroso afirmou que além de atentar contra a proteção a família, tal distinção atentaria contra a própria dignidade da pessoa humana, e além disto, nas palavras do Ministro Fachin, a distinção entre cônjuge e companheiro firmada pelo Código Civil de 2002 atentaria contra o princípio da isonomia.

A Ministra Rosa Weber, em seu voto, demonstrou, pautada em estatísticas do IBGE que o número de uniões Estáveis vem aumentando consideravelmente, com a consequente queda do número de casamentos.

Analisando a estatística do IBGE, Censo de 2010[8], demonstra também um aumento no número de divorciados, passando de 1,7% para 3,1%, representando quase o dobro.

Ademais, observando-se as Estatísticas do Registro Civil de 2016, levantadas pelo órgão, em 2016 foram registrados 1.095.535 (um milhão, noventa e cinco mil e quinhentos e trinta e cinco) casamentos, representando uma queda de 3,7% quando comparado com 2015, sendo que em 20 das 27 Unidades da Federação houve redução no número de registros de casamentos. (https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/135/rc_2016_v43_informativo.pdf)

Esta queda demonstra que o casamento, que antes era a principal fonte de constituição de família vem perdendo força ao longo dos tempos, e como podemos perceber pelo voto da Ministra, o número de uniões estáveis vem aumentando, representando, quando do estudo, 1/3 do número de casamentos existentes.

Se o número de Uniões Estáveis vem aumentando e o de casamentos diminuindo, o argumento da ADFS, no sentido de que a União Estável representaria uma preparação para o casamento, não merece prosperar. O que percebe-se através da própria pesquisa do IBGE é que, se considerado proporcionalmente, as pessoas tem preferido manter Uniões Estáveis a casamentos.

A Ministra Weber retoma a ideia defendida pela doutrina estudada no sentido de que o Código Civil de 2002 tem bases em 1969, o que teria feito com que ele já nascesse com ideias ultrapassadas, pelo que apontou a irrazoabilidade da distinção entre cônjuges e companheiros no que tange ao regime sucessório.

Os Ministros Dias Toffoli, Marco Aurélio e Lewandowski votaram, em ambos os recursos extraordinários, pela constitucionalidade do dispositivo legal. Os Ministro se pautam basicamente no princípio da liberdade, da autonomia da vontade entre os pares e no argumento de que em momento algum a Constituição Federal equiparou os dois Institutos, e por isso é plenamente possível a distinção gerada.

Um dos argumentos do Ministro Marco Aurélio é o de que o número de casamentos é superior ao de uniões Estáveis. Realmente, o número é maior, mas como já dito, enquanto o casamento vem perdendo forças, as uniões Estáveis vêm ganhando força, já equivalendo a 1/3 do número de casamentos, além de o crescimento proporcional ser bem superior, considerando que enquanto as uniões aumentam, os casamentos diminuem de número.

Diante dos votos narrados, podemos perceber que enquanto os Ministros que votaram pela Inconstitucionalidade do art. 1790 do CC defendem que a distinção violaria o princípio da dignidade da pessoa humana uma vez que violaria a proteção à família, desprotegendo o companheiro para proteger o Cônjuge, os que votaram pela Constitucionalidade do referido dispositivo afirmam que igualar companheiros e cônjuges atentaria contra o princípio da autonomia da vontade. Se assim o fosse, estaríamos diante de uma colisão entre dois princípios: de um lado o princípio da dignidade da pessoa humana; do outro, o da autonomia da vontade, e isso seria impossível, considerando que o princípio da autonomia da vontade decorre do princípio da dignidade da pessoa humana, assim como o princípio da proteção à família. Como assevera Celso Antônio Bandeira Mello (2013, p. 54),

Princípio (...) é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.

Álvaro Villaça Azevedo, sobre o princípio da autonomia e da liberdade expõe:

Esta concepção demonstra que a autonomia e a liberdade integram a dignidade. Assim, cada direito fundamental contém uma expressão da dignidade, isto é, de autonomia e de liberdade. O direito à vida garantido constitucionalmente no art. 5º, caput, CF/88, por conseguinte, pressupõe não apenas o direito de existir biologicamente. Se o direito à vida é um direito fundamental alicerçado na dignidade humana, a vida assegurada pela Constituição é a vida com autonomia e liberdade. (2010, p. 13)

No Direito de Família, o Princípio do respeito da dignidade da pessoa humana representa-se como mecanismo de manutenção e proteção à família e proteção à integridade dos membros desse grupo, a partir da condição de respeito e da manutenção dos direitos de personalidade (VILAS-BÔAS, 2010).

Então, se o princípio da dignidade da pessoa humana deve servir como proteção à família, não se pode, com base nos princípios da autonomia da vontade e/ou o princípio da liberdade promover uma distinção que vá prejudicar de alguma forma uma entidade familiar em detrimento da outra. Aí seria como o legislador afirmar: já que você escolheu, e o fez por que o quis, se você for prejudicado por isso o problema é seu, já que existe outra forma melhor de constituir família. Se assim o for, há sim uma hierarquia entre as entidades familiares, o que torna acertada a decisão do STF quanto a igualar os efeitos do direito sucessório à cônjuges e companheiros a fim de evitar prejuízos no âmbito da proteção à família, que é considerada pela Constituição Federal a base da sociedade.


7 CONCLUSÃO

 No desenvolvimento deste trabalho, tratou-se do direito sucessório do companheiro sobrevivente nos terrenos da união estável. Como visto, a União Estável é a união pública, contínua e duradoura de duas pessoas, objetivando constituir família, sendo que estas duas pessoas vivem como se casadas fossem. Sendo entidade familiar, merece proteção

O direito sucessório do companheiro está regulado no art. 1.790 do Código Civil de 2002, declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em decorrência das decisões proferidas nos Recursos Extraordinários 646.721 e 878.694, que determinaram que o companheiro fosse tido como herdeiro necessário, assim como o cônjuge, dando-se interpretação constitucional ao art. 1.826 do CC.

O estudo do tema permite que estudiosos na área tenham material de consulta, além de aprofundar sua pesquisa sobre o tema, além de permitir um estudo, ainda que sucinto, das entidades familiares, princípios constitucionais aplicáveis, bem como sobre a própria união estável, seus requisitos e as polêmicas doutrinárias sobre o tema. O trabalho também teve como finalidade a resolução do problema levantado, que era a análise do regime sucessório do companheiro na união estável, que era tratado de forma diferenciada do cônjuge, e buscou refletir acerca de uma possível desvantagem sofrida por quem escolhia viver em união estável, e se isto era contrário ao atual regime constitucional, analisando os votos proferidos nos Recursos Extraordinários mencionados.

Ao final do trabalho, este demonstrou que o Código Civil, apesar de entrar em vigência no ano de 2002, por ter um projeto anterior ao da Constituição Federal de 1988 e passar por inúmeras reformas, nasceu com ideias ultrapassadas, não atendendo o ensejo atual da sociedade, como deve ser o direito. Isso acabou influenciando diretamente na diferenciação dada pelo Código Civil com relação ao direito sucessório entre companheiros e cônjuges, e como visto, isso acabou gerando uma indevida hierarquia entre entidades familiares, prejudicando o companheiro em situações, por vezes, semelhantes aos dos cônjuges, o que é inaceitável perante a proteção dada pela Constituição a família, base da sociedade;

Ao contrário do que afirmaram os ministros que votaram pela Constitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, afirmando que Casamento e União Estável são diferentes entidades familiares, e que por assim serem é permitido ter diferentes tratamentos, e que quem escolhe um ou o outro o faz porque o quer, concluiu-se que este tratamento diferenciado criaria sim hierarquia entre um e outro, na medida em que, como mencionado no parágrafo anterior, traria prejuízos ao companheiro que vivesse uma mesma situação de um cônjuge sobrevivente, e que em determinados casos onde o cônjuge receberia toda a herança, o companheiro concorreria até mesmo com herdeiros colaterais do falecido.

O exposto demonstra a importância da decisão do STF ao igualar os regimes sucessórios de ambas as entidades familiares, que o fez com base nos princípios da proteção da família e da dignidade da pessoa humana, visando resguardar os direitos do companheiro.


REFERENCIAS

ADI 4227/DF; Rel. Min. Ayres Britto; Publicado no DJe em 14/10/2011; Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635> ; Acesso em 10/12/2017;

ADPF 132/RJ; Rel. Min. Ayres Britto; Publicado no Dje em 14/10/2011 Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633>; Acesso em 10/12/2017;

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Parecer Jurídico Autonomia do paciente e Direito de Escolha de Tratamento médico sem transfusão de sangue mediante o novo código de ética médica- resolução CFM 1931/09. São Paulo 8 de Fevereiro de 2010.

BRASIL; Código Civil; Lei N. 10.406, De 10 De Janeiro De 2002; Brasília, DF, 2002.

BRASIL; Constituição Federal de 1988; Brasília, DF, 1988.

BRASIL; Decreto Nº 1.839, de 31 de dezembro de 1907; Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1900-1909/decreto-1839-31-dezembro-1907-580742-republicacao-103783-pl.html>; Acesso em 7/1/2018;

BRASIL; Estatuto da Criança e do Adolescente; Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990; Brasília, DF, 1990;

BRASIL; Lei Orgânica da Assistência Social; Lei Nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993.

CAHALI, Francisco Jose; HIRONAKA,Giselda Maria Fernades Novaes; Direito das Sucessões; 5. Ed. rev. São Paulo, SP : Revista dos Tribunais, 2014.

DIAS, Maria Berenice; Manual de direito das famílias; São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013;

__________________; Manual das Sucessões; São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008;

__________________; Artigo - Escritura de União Poliafetiva: possibilidade; Disponível em: <https://arpen-sp.jusbrasil.com.br/noticias/100173615/artigo-escritura-de-uniao-poliafetiva-possibilidade-por-maria-berenice-dias>; Acesso em 11/11/2017;

DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.), Direito de Família e o novo Código Civil, 3ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

ENGELS, Friedrich; A origem da Família, da Propriedade e do Estado; 9ª Ed, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984

FACHIN, Luiz Edson. Direito além do novo código civil: novas situações sociais, filiação e família. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, 2003.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; Direito das famílias : de acordo com a lei n. 11.340/06 - lei Maria da Penha e com a lei n. 11.441/07 - lei da separação, divorcio e inventario extrajudiciais; Rio de Janeiro, RJ : Lumen Juris, 2008.

LOBO, Paulo; Direito civil : sucessões; 2 ed.; São Paulo, SP : Saraiva, 2014.

MAGALHÃES, C.; Família anaparental. Disponível em:  <https://familiasefamiliasblog.wordpress.com/2017/02/22/familia-anaparental/>; Acesso em 13/12/2017;

MELLO, Celso Antônio Bandeira de; Curso de Direito Administrativo; 30ª Ed. - São Paulo, Malheiros Editores, 2013; p. 54

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

SILVA; Regina Beatriz Tavares da; ‘União poliafetiva’ é um estelionato jurídico; Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI165014,81042-Uniao+poliafetiva+e+um+estelionato+juridico>; Acesso em: 13/12/2017

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leit; et al; Manual de direito das famílias e das sucessões; Belo Horizonte : Mandamentos; Del Rey, 2008.           

VILAS-BÔAS, Renata Malta. A importância dos Princípios Específicos do Direito das Famílias. . Acesso em: 1 abr. 2015.


Notas

[1] ENGELS, Friedrich; A origem da Família, da Propriedade e do Estado; 9ª Ed, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984

[2] CANTU, Cesare et al. Apud DIAS, Adahyl Lourenço. A concubina e o direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1988, p.19

[3] O STJ entendeu que o artigo 1.829, inciso I, do Código Civil de 2002 confere ao cônjuge casado sob o regime de separação convencional de bens a condição de herdeiro necessário, que concorre com os descendentes do falecido independentemente do período de duração do casamento, com vistas a lhe garantir o mimo para uma sobrevivência digna.

[4] Zeno Veloso, Do direito sucessório dos companheiros. In: Maria Berenice Dias; Rodrigo da Cunha Pereira (Coord.), Direito de família e o novo código civil, 2005, p. 249

[5] GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; Direito Civil, v. 7, 152, apud DIAS, Maria Berenice, Manual das Sucessões; 2013, p. 76.

[6] AMIN, Andréa Rodrigues, Direito das Sucessões, 125, apud DIAS, Maria Berenice, Manual das Sucessões; 2013, p. 76.

[7] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. Direito das Sucessões. 15ª Ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 160.

[8] Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2013-agencia-de-noticias/releases/14298-asi-censo-2010-unioes-consensuais-ja-representam-mais-de-1-3-dos-casamentos-e-sao-mais-frequentes-nas-classes-de-menor-rendimento.html



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARRASCO, Erick Gonçalves. O direito sucessório na união estável: análise civil-constitucional acerca do direito sucessório do companheiro supérstite. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5720, 28 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71209. Acesso em: 18 abr. 2024.