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Direito à religião no Estado laico – estudo de caso

Direito à religião no Estado laico – estudo de caso

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Estado laico não é um estado ateu. É, sim, estrutura de poder político que não professa apenas uma religião, respeita a liberdade de crença e todas as manifestações de fé de sua gente.

Nos dias atuais o tema religião imiscuiu-se nos assuntos de Estado como não se via há muitos anos.  Desde a denominação da coligação eleitoral que identificou a campanha do candidato vencedor à presidência da República: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, até as referências religiosas do próprio candidato vencedor, que fez questão de abrir suas falas citando uma passagem bíblica - “João 8,32 – Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” - as questões políticas do povo brasileiro têm sido relacionadas a motes religiosos.

Visto por um lado como fundamentalismo religioso, e por outro, como estratégia de marketing político, ou ainda como resgate de valores morais do povo brasileiro nos princípios da fé cristã, há uma presença, no ideário político, de um discurso calcado em preceitos religiosos que, à luz da sociologia, tem força coercitiva maior que as normas legais positivadas.

O que se tem perguntado, nesse momento, é se essa ascensão religiosa na política não estaria tendente a impor uma corrente de fé ao povo brasileiro que, tradicionalmente se fez em diversas crenças. O sincretismo religioso, caso seja tutelado pelo Estado, ou a unificação da fé em torno de uma só manifestação, é, sem dúvida, uma afronta às nossas diversas origens culturais.

No passado, o sincretismo religioso foi usado para impor o domínio português sobre o negro escravizado, de maneira a romper os laços com terras ancestrais e “adotar” a fé cristã da Casa Grande. O mesmo já havia sido feito com o indígena nos primeiros anos da colonização por toda a América Latina. Não era uma miscigenação de culturas, mas sim, a religião como instrumento de dominação.

Fato é que a religiosidade, em alta neste novo período da história política brasileira, tem sido o diferencial de outras guinadas ideológicas do estado nacional ao longo dos anos, desde proclamação da República em 1889. Há que se dimensionar, no futuro breve, o alcance desta interseção.

Política e religião já foram uma só entidade quando, na Constituição de 1824 (artigo 5º), fora oficializado o estado confessional, instituído o padroado que submeteu a igreja católica ao controle do Império do Brasil.   

Mesclando modelos da monarquia inglesa com ferramentas do discurso iluminista do Século XVIII, preservando valores da tradição portuguesa e mirando as liberdades civis das revoluções francesa (1789) e americana (1776), coube a Dom Pedro I outorgar a Constituição do Império, a mais longeva do país, e ter os seus princípios firmados nos preceitos emanados dos livros sagrados do cristianismo. Pelos ingredientes postos à disposição, a Constituição de 1824 é, de fato, um caleidoscópio de idéias.

A laicidade do estado brasileiro, no entanto, é fruto do positivismo do final do Século XIX que, no pensamento de Auguste Comte, inspirou a República de “ordem e progresso” inserido em nossa Bandeira Nacional.

Todavia, antes mesmo da instauração de uma nova forma de governo, Dom Pedro II, por meio do Decreto 1.114 de 11 de setembro de 1861, instituiu o casamento civil, oferecendo tutela jurídica à união conjugal concebida fora dos umbrais da igreja católica, religião oficial do Império.

A inovação proposta pelo segundo imperador traduz não em uma “tolerância” do Estado à diversidade religiosa, mas no reconhecimento oficial de que a pluralidade de povos que compunham o Brasil estaria a exigir do Estado o reconhecimento de outras tendências religiosas, para além das práticas oficiais.  Um avanço, sem dúvida.

O casamento Civil de pessoas “não católicas”, que veio a ser regulamentado pelo Decreto 3.069 de 17 de abril de 1863, reafirmou que o Império, embora confessional e declarado católico em sua Constituição, se via na obrigação de oferecer garantia de direitos àqueles que não professavam a religião oficial.

Separada a Igreja do Estado, de maneira oficial na Constituição de 1891 (§ 7º do Art. 72), a religiosidade passou a ser prática social e não mais instrumento oficial de transmissão de crença, preceitos e ritos de um determinado grupo, como forma de manter a ordem política. Ademais, nesse contexto, os dogmas espirituais professados pelas religiões cristãs estavam em sentido oposto à corrente filosófica positivista que inspirava os líderes republicanos.

Algumas reminiscências deste período religioso do estado ainda pululam a vida civil nacional, quando temos, na gama dos oito feriados nacionais legalmente instituídos (Lei 662/1949 e Lei 6.802/1980 – ambas recepcionadas pela CF de 1988), dois deles são nitidamente religiosos (Dia de Natal e dia de Nossa Senhora Aparecida). Isso sem descer à legislação municipal que institui seus dias de feriados, mormente, atrelados aos santos de devoção.

Na prática a separação estado/religião não corresponde exatamente ao que diz o texto legal, posto que as igrejas (no plural) continuam a ser relevantes fatores de poder político compondo, inclusive, bancadas parlamentares nas Casas Legislativas, como fazem os segmentos representativos da economia em defesa dos seus interesses.

Já no contexto do mundo sem fronteiras, originado da globalização dos anos 1980, a Constituição de 1988, em um momento de confraternização dos vários povos que formam a nação brasileira, consagrou a pluralidade como característica nacional e reafirmou não apenas a laicidade do Estado (art. 19, I), mas também a possibilidade de tutela estatal às várias manifestações religiosas (Art. 5º, VI), inaugurando uma era de respeito à diversidade.

Respeito e Diversidade. Estas são as palavras chaves deste ensaio, no momento em que o Brasil vive o confronto de ideias e mudanças de rumos político-ideológicos, desafiando até mesmo a permanência da “Constituição Cidadã” e plural de 1988.

Os fatos que foram notícia nos primeiros dias de 2019 retratam bem essa convivência (ou conflito) Igreja/sociedade e Estado/religião no cenário nacional.

A prisão de um médium em Goiás, tido para muitos como um ícone de fé, a valoração midiática de princípios de moral religiosa e a adoção de valores tradicionais como fundamento de políticas públicas esboçado por alguns integrantes do novo governo federal mostram a efusão (e confronto) de idéias que apresenta esse momento da história do país e a sua pluralidade.

A questão político-religiosa, neste contexto, é tão desafiadora que se chega ao paradoxo de se apresentar um governo rotulado de “direita” que tem pensamentos (e discurso) de moral cristã, como se o cristianismo fosse uma ideologia político-partidária. Enfim, isso não é o objeto desta discussão, pois demandaria um estudo mais aprofundado.

Neste cenário de polarização estado/religião, em outra ponta, em um episódio que quase passou despercebido à grande mídia, a juíza Caroline Rosa Vieira, do Tribunal de Justiça da Bahia (Comarca de Nazaré), em decisão que merece reverência, ressaltou a pluralidade religiosa do povo brasileiro, quando determinou o cumprimento de rituais de Candomblé às exéquias de Maria Stella de Azevedo Santos, conhecida como Mãe Stella de Oxóssi.

A nosso sentir, conjugando preceitos de direito civil a princípios constitucionais, o caso Mãe Stella de Oxóssi superou as balizas das decisões legalistas, indo àquele campo cinzento do “espírito das leis” (sem trocadilho), a entender que a norma serve a um povo que define, por si, seu destino, suas crenças e valores.  Vamos ao caso.

No dia 27 de dezembro de 2018, na cidade de Nazaré das Farinhas, faleceu a Sra. Maria Stella de Azevedo Santos, aos 93 anos de idade. O episódio ganhou mídia nacional pela importância cultural da finada, incansável defensora de sua crença e das suas origens ancestrais, contrária ao sincretismo religioso e líder praticante do Candomblé.

Na sociedade, a falecida, pelo que consta dos autos, vivia em união estável devidamente documentada e à sua companheira legal para fins civis competia, segundo normas vigentes (art. 12 do CC), reivindicar para si as obrigações post mortem.

Assim o velório de Mãe Stella de Oxóssi deu inicio na cidade de Nazaré das Farinhas, previsto o sepultamento para o Cemitério Nosso Senhor dos Aflitos, naquela cidade.

Ocorre que Maria Stella de Azevedo Santos, ou Mãe Stella de Oxóssi, em vida exerceu a liderança de uma comunidade religiosa de matriz africana, sendo escolhida, em 19 de março de 1976, como a quinta iyalorixá do Ilê Axé Opó Afonjá, na cidade de Salvador.

Para quem não é familiarizado com as religiões de matriz africana, necessário se faz um parêntese exemplificativo. A função de iylorixá é uma espécie de sumo-sacertode do grupo religioso (mãe-de-santo), líder máximo de um Terreiro (ilê).  Autoridade religiosa digna das maiores reverências. E aí está a celeuma.

A falta de consenso entre a responsável legal da falecida (que insistiu em realizar o velório na cidade de Nazaré) e os preceitos de sua religião (que exigia que o velório fosse realizado no Terreiro, em Salvador) levou o caso ao Judiciário, em um embate sem precedentes que se travou acerca do domínio sobre o corpo morto da líder religiosa e seus possíveis “direitos” a um ritual fúnebre nos moldes de sua fé.

Pelas disposições da religião de matriz africana, as exéquias de seus líderes são realizadas com rituais próprios, em locais de culto adequado, em cerimônias fúnebres que acontecem com a presença física do corpo do falecido, no Terreiro onde exercia suas funções religiosas.

A realização do velório fora do Terreiro e sepultamento sem que se cumpram os rituais funéreos, acompanhados pela egbé (a comunidade do Terreiro), afronta a religiosidade do falecido e dos seus parceiros na fé e, mais que isso, interfere na vida pós-morte do pranteado.

O caso chegou ao Judiciário e de acordo com a Inicial apresentada nos autos, na cerimônia fúnebre de uma mãe-de-santo o corpo é velado no Terreiro que regia porque é nesse momento em que se inicia o ritual de passagem conhecido por axexê, sendo aí também oportunidade em que são tomadas decisões importantes dentro do culto, como o destino dos objetos sagrados da pessoa morta.

A realização do velório nos moldes dos preceitos religiosos é, pois, um momento sagrado da fé professada, que não pode ser obstado ou impedido, haja vista disposições da Constituição Federal que assegura a liberdade de culto. Mais que um direito do morto, é um direito da comunidade de reverenciar os seus mortos.

Desta forma, realizar o velório e sepultamento de um líder religioso fora dos seus rituais significaria não apenas negar a ela (a morta) o direito de passar pelas honrarias fúnebres de sua religião, mas também poderia comprometer o funcionamento religioso de toda uma comunidade, afrontando a dignidade de sua crença.

Em petição apresentada ao juízo de Nazaré das Farinhas (Processos nº 8000796-64.2018.8.05.0176 e 8000797-49.2018.8.05.0176), a Sociedade Cruz Santa do Axé Opô Afonjá (razão social do Terreiro que era dirigido espiritualmente pela falecida), por seus representantes legais requisitaram o envio do corpo de Mãe Stella para o Terreiro que regia, exigindo do Estado a prestação jurisdicional que assegurassem aos parceiros na fé o direito de cultuarem seu líder morto e, ao falecido, o direito de merecer as exéquias próprias dos rituais da fé que professou em vida.

Confrontando o Código Civil (artigo 12) que dá direito ao familiar de exercer os ritos mortuários, com as disposições da Constituição Federal que asseguram a pluralidade religiosa e o respeito às suas manifestações, optou a magistrada por conferir eficácia à norma constitucional, determinando a remessa do corpo para a cidade de Salvador, onde fora sufragado pela comunidade religiosa e lá enterrado, conforme preceitos do Candomblé.

A decisão, por certo, inusitada, haverá de compor a literatura nacional no rol daqueles feitos singulares da crônica jurídica.

O que soa como novidade, porém, está na valorização das nossas origens plúrimas, de sociedade eclética, na isonomia, na liberdade de crença e culto, no respeito à diversidade cultural, enfim, um aprendizado sobre a sociologia brasileira que já há muito superou os limites da Casa Grande e Senzala.

Em sua decisão, a juíza invocou a proteção ao patrimônio cultural do Terreiro (e do povo brasileiro, por que não?), reafirmando, por influência reversa, as diversas posições legislativas em defesa da cultura afro-brasileira e do reconhecimento da igualdade racial, já antes previstas na Constituição Federal de 1988.

A ela os nossos aplausos.  

Inegável o fato histórico de que a nação brasileira se fez sob estandartes da fé cristã, estampada nas velas das embarcações portuguesas que aqui aportaram. Todavia, outros barcos atracaram nesses mesmos portos e aqui desembarcaram outras crenças, outros deuses, todos abrigados sobre as mesmas asas de que nos fala o refrão do Hino da República:

“Liberdade! Liberdade!

 Abre as asas sobre nós

 Das lutas na tempestade

 Dá que ouçamos tua voz.”

O Estado Democrático, enquanto guardião das liberdades civis, não pode ser instrumento de repressão a esta ou àquela crença religiosa. Assim, espera-se que os novos dias sejam plenos de liberdade para cultuar (ou não) uma divindade a seu modo, dentro da fé de cada um.


Autor

  • Israel Quirino

    Advogado, professor de Direito Constitucional; Mestre em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local. Especialista em Administração Pública. Escritor membro efetivo da Academia de Letras Ciências e Artes Brasil.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUIRINO, Israel. Direito à religião no Estado laico – estudo de caso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5679, 18 jan. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71409. Acesso em: 23 abr. 2024.