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O direito de resistência e desobediência civil como instrumento da cidadania

O direito de resistência e desobediência civil como instrumento da cidadania

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Em que medida o direito de resistência e a desobediência civil podem ser qualificados como direito fundamental? Afinal, não é o povo o legítimo detentor do poder?

 Introdução

Desde os primórdios dos tempos o homem, através das primeiras formas de agrupamento, passou a ter certa organização e ele, por sua própria natureza, tende a aceitar algumas coisas e a rejeitar a outras. Baseados no direito natural e no senso comum de justiça as pessoas entendem que certas normas ou procedimentos não são adequados e assim resistem à implantação dos mesmos.

Gandhi, Luther King e Henry Thoreau, por exemplo, foram homens que reconheceram as prerrogativas da ordem estatal, desde que rejeitados os atos considerados abusivos, contra os quais caberia a resistência civil como instrumento de conquista de direitos. Eles, além da teoria, contribuíram com suas experiências práticas, dando a vida pela causa que defendiam. Necessário se faz ressaltar que, em muitos assuntos, há bons teóricos que nada têm a ver com o que pregam.

É muito comum encontrar-se homens que servem tão bem ao sistema e ao governo que chegam a receber reconhecimentos de medalhas e as exibem como se fossem as melhores gratificações existentes. Infelizes, esquecem que as medalhas, na verdade, nada valem, porque o reconhecimento verdadeiro não existe, ele apenas é usado para defender o interesse do sistema e os homenageados sentem-se honrados sem contribuir com nada para a sociedade, pelo contrário, na maioria das vezes, recebem esse “fingido reconhecimento” por trabalhos desastrosos para a sociedade.

Será levado em consideração o exemplo de homens que lutaram por seu povo e por suas convicções (Martin Luther King Jr., Mahatma Gandhi), bem como a obra de Henry Thoreau. Do Brasil, além de artigos e ensaios de pesquisadores, foram utilizadas para a pesquisa, sobretudo, as obras de Nelson Nery Costa, Machado Paupério e Maria Garcia.

Neste trabalho visa-se resolver ao seguinte problema: As manifestações e objetivos da desobediência civil, analisando-se os requisitos que a norteiam, podem ser aplicados à realidade brasileira, à luz da Constituição Federal de 1988? Caso possam, destinam-se de modo eficiente à busca pela cidadania como direito fundamental?

Esse artigo pretende demonstrar a relação direta existente entre a desobediência civil e a cidadania na influência do ordenamento jurídico brasileiro. Justifica-se a importância desse tema para a conservação do Estado Democrático de Direito que é fruto de uma duradoura conquista que ainda não se estagnou no espaço e tempo. Nesse sentido, o Estado deve conceder aos indivíduos, por ele governados, a participação política e o pleno exercício da cidadania, verdadeira condição para o exercício dos poderes sociais e políticos do cidadão frente ao Estado (Poder Público) devendo, para tanto, acatarem aos limites constitucionais estabelecidos como fundamento para o exercício do direito de desobediência civil. Verifica-se a importância da discussão, também em âmbito legislativo, visto que em nosso ordenamento não há lei expressa referente ao tema.

A metodologia utilizada desdobra-se teoricamente na técnica da pesquisa bibliográfica e no apoio de artigos científicos e sites especializados.


Direito de Resistência: Aspectos Históricos

PAUPÉRIO (1978, p. 11-13), fornece-nos o conhecimento histórico acerca do direito de resistência como resultado da insuficiência de sanções jurídicas direcionadas aos governantes que ultrapassassem os limites do poder, a eles outorgado pelos governados:

Frequentemente as sanções jurídicas organizadas contra o abuso do Poder não são suficientes para conter a injustiça da lei ou dos governantes, pois, estes, quando extravasados de seus naturais limites, muitas vezes não podem ser contidos por normas superiores que já não respeitam. Por isso, reconhece-se aos governados, em certas condições, a recusa da desobediência.

Ele identifica na recusa à obediência um tríplice aspecto: a oposição às leis injustas, a resistência à opressão e a revolução. Pela oposição às leis injustas, explica, concretiza-se a repulsa de um preceito determinado ou de um conjunto de prescrições em discordância com a lei moral – essa resistência é de iniciativa individual ou de um grupo limitado; pela resistência à opressão concretiza-se a revolta contra a violação, pelos governantes, da ideia de direito do qual o Poder procede, cujas prerrogativas exercem. Pela revolução, concretiza-se a vontade de estabelecer uma nova ordem em virtude da falta de ressonância da ordem vigente na sociedade.

Na primeira hipótese, está em jogo a relação entre duas regras; na resistência à opressão, é a atitude dos governantes por correlação com a ideia do direito que lhes legitima a autoridade e na última hipótese, a revolução, a oposição entre duas ideias de direito. Procurando localizar as raízes históricas do direito de resistência, Machado Paupério registra o Código de Hamurabi que previra a rebelião como castigo ao mau governante que não respeitasse aos mandamentos e as leis. Na Grécia fica o registro de Sófocles, na sua obra mais famosa, Antígona, de que há certas leis não escritas, superiores a todas as outras, mediante as quais se concede a possibilidade de desobedecer às demais, quando forem colidentes. Essa peça grega mostra-nos, no diálogo travado entre Ismene e Antígona, a revolta desta contra o decreto do rei Creonte que não deixara sepultar seu irmão Polinice. Em Roma, comenta, nenhuma doutrina se encontra a respeito, mas vem consignar, na Idade Média, um registro de nota. PAUPÉRIO (1978, p. 41):

Das conhecidas questões de Farinaccius (nº XII, 88-91) depreende-se, aliás, que já o direito romano não desconhecia inteiramente a legalidade da resistência. Caso o magistrado, faltando à justiça, já não se reputa magistrado e passa a não ser mais que um sujeito particular, do mesmo modo como nos é dado resistir à violência que qualquer particular nos faz, lícito semelhante nos será também resistir à injustiça do magistrado e seus oficiais, pois, obrando injustamente, não têm, repito mais autoridade que se meros particulares fossem.

Conclui PAUPÉRIO (1978, p.77), que a Idade Média reconhecera sempre que o dever de obediência dependia da legitimidade da ordem dada e o direito de resistência, ainda que pelas armas, seria válido quando a ordem vigente perdesse o reconhecimento (da sociedade) que lhe legitimava a autoridade, considerando-se meros atos de violência quaisquer injunções impostas através da força.

Já COSTA (1990), refere o direito de julgar as ações do governo, levando suas origens à teoria política Tomista, pela qual o homem, aristotelicamente considerado animal social e político, necessita de um governo, pois se: “entre os membros de um corpo, um é o principal, que a todos move como o coração, ou a cabeça, cumpre, por conseguinte, que em toda multidão haja um regitivo. Daí o dever de obediência ao soberano: esta ordem das coisas, todavia, podia ser considerada injusta. Neste caso, o súdito não poderia agir individualmente, já que não se devia “proceder contra a perversidade do tirano por iniciativa privada, mas sim pela autoridade pública” – ou seja, as medidas necessárias a se evitar um governo injusto “dependiam do próprio poder público: a institucionalização da hereditariedade, que garantia a unidade do território; a organização das cortes em seções especializadas e o Parlamento, que expressava as forças sociais dominantes.”

Conforme PAUPÉRIO (1978, p. 69-70), algumas análises na obra de Tomás de Aquino entendem que ele reconhecia o direito de resistência, partindo do pressuposto de que “o levante contra o tirano não chegava a constituir sedição, mas a resistência ou a repressão da repressão da sedição”.

Para LAFER (1998), a teoria Tomista potencializa um direito de resistência quando contempla uma reação, um direito de revolução contra um regime tirano que ultrapasse o terreno da reciprocidade existente entre governantes e governados, isto é, que desequilibre esta relação.

De maneira diversa entende COSTA apud. PAUPÉRIO (1997), ao afirmar que em Tomás de Aquino o dever de obediência deriva da necessidade de se criar um Estado organizado, capaz de empreender um governo que mantivesse os homens em paz. Assim, mesmo em situações injustas promovidas pelo tirano devia-se a ele o dever de obediência para evitar males maiores, como a anarquia, por exemplo. PAUPÉRIO (1997, p.55) define que, “se não for [...] excessiva a tirania, aconselha Santo Tomás a não investir contra ela, pois é preferível tolerá-la branda por algum tempo a expor-se a perigos mais graves que a própria tirania.” Em vez da resistência, defendeu mais diretamente “o direito de julgar as ações dos governos”. Somente se permite resistir quando for o melhor para o bem comum da sociedade; quando necessário para a proteção da ordem social conforme as exigências da natureza humana. A ideia da injustiça e justiça estaria vinculada à ideia de uma lei natural escrita por Deus na natureza física e social, a qual o homem poderia captar através da razão. Já a lei humana se apresenta como produto dos homens em sociedade, mas que por ter sua inspiração na lei natural deverá ser obedecida. Na visão Tomista o direito de resistência só seria legítimo quando a tirania fosse excessiva, e tal resistência contra o tirano não deveria consistir numa iniciativa particular, mas sempre pública (coletiva), desde que esgotados todos os outros meios.

Conforme (COSTA, 1990), há registros históricos do direito de resistência em dois institutos da idade média. O primeiro refere-se ao dever de fidelidade germânica, a commendatio que estabelecia os limites da relação entre os senhores e vassalos. Estes deveriam obedecer fielmente àqueles, mas havendo violações aos limites obrigacionais, por parte dos senhores, gerava-se o direito de resistir por parte dos vassalos. O segundo, beneficium, “determinava aos tiranos que se orientassem pelos fundamentos do cristianismo, estabelecidos pela igreja, sob pena de sofrerem uma desobediência justificada.”

Com o advento do iluminismo, a racionalidade invade o mundo moderno, em todas as suas manifestações. Nesse contexto é proposta uma teoria racional para o nascimento do Estado, denominada contratualismo, conforme BOBBIO, BOVERO (1996). De acordo a esse mito fundante, os homens viviam livres e iguais no estado de natureza, local onde possuíam direitos natos e imutáveis. No entanto, devido à precariedade, insuficiência ou guerra – a depender da abordagem – que os indivíduos se encontravam no estado de natureza, um estado negativo, levou-os a constituírem a sociedade política e o Estado através de um pacto, um contrato. Vista sob este ângulo, a sociedade se legitima no consenso.

A construção foi colocada por John Locke com máxima precisão. Para este, no momento da passagem para a sociedade civil, os indivíduos alienaram uma parcela de sua liberdade a um poder centralizado, que teria a função de protegê-los e garantir aos mesmos um tranquilo uso de seus direitos, sobretudo o uso da propriedade privada. Tem-se assim, que o consentimento dá legitimidade ao governo e gera um grau de reciprocidade entre este e o povo, resultando na relação civil entre governante e governados. Estes devem, ao primeiro, obediência enquanto aquele deverá respeitar os direitos essenciais dos governados, tais como a liberdade, propriedade e vida, sob pena de estar degenerando a sociedade civil. Segundo BOBBIO (1997), a falta de liberdade, a conquista, a usurpação, a tirania ou a dissolução do governo, proporcionaria uma crise da sociedade que tornaria possível um retorno ao estado de guerra. Ou seja, segundo NODARI (1999, p. 154):

A violação deliberada da propriedade (vida, liberdade, bens) e o uso contínuo da força [...] colocam o governo em estado de guerra contra a sociedade e os governantes em rebelião contra os governados, conferindo assim o legítimo direito ao povo de resistência à opressão...

A importância de Locke na construção do instituto de resistência ganha enorme importância, haja vista o fato do mesmo ter sido um dos principais mentores da estrutura estatal-burguesa, enfatizando a liberdade e a propriedade como valores máximos a serem opostos contra o Estado protegidos de sua ingerência autoritária. John Locke afirma que no estado de natureza cada homem é juiz de suas próprias causas e, por serem os homens imparciais e buscarem seu próprio interesse, a lei natural não é suficiente para suprir essa necessidade jurisdicional. “O fim maior e principal para os homens unirem-se em sociedade e submeterem-se a um governo é, portanto, a conservação de sua propriedade” (LOCKE, 1998).

Conforme (BOBBIO, 1997, p. 239):

Como a sociedade civil nasce de uma crise no estado de natureza, a sua crise torna possível o retorno àquele estado. Locke admite, dessa forma, o direito de resistência em determinadas situações como quando o governo subverte as causas para as quais foi criado e se ofende a lei natural.

Em Hobbes BOBBIO, BOVERO (1996 p.81-82), devido ao caráter totalitário do Estado, apenas a vida não é alienada ao mesmo no momento do contrato. Segundo a visão absolutista de Hobbes, ainda que o Estado, na figura do soberano, não conseguisse garantir a paz e a vida de seus súditos, o mau governo acarretaria, não num fundamento à resistência dos súditos, mas no retorno da sociedade civil ao estado de natureza.

Aos poucos o jusnaturalismo moderno passa a depositar no indivíduo a razão de ser do Estado e do direito, construção que culmina na positivação constitucional do direito de resistência à opressão BOBBIO (1992). Em consequência disso, surgem declarações de direitos que asseguram direitos individuais como a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que, em seu artigo 2º prescreve: “A finalidade de toda associação é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem; esses direitos são a liberdade, a segurança e a resistência à opressão.” Apud. Nelson N. Costa, (1990, p. 20).


Direito à Desobediência Civil: Histórico

O direito de resistência ganhou reconhecimento, ao longo da história, como um mecanismo eficiente diante das condutas opressivas dos governantes. Todavia, sua possibilidade de atuação era limitada, pois exigia como principal requisito a expressão da vontade da maioria (COSTA, 1990, p.25).

Os Estados Unidos da primeira metade do século XIX estavam em guerra contra o México. Henry David Thoreau, crítico da guerra e da escravidão, encontrou uma forma peculiar de resistir e protestar: decidiu não pagar os impostos porque considerava não ser justa a utilização dos impostos para financiar a escravidão e a guerra injusta contra o México. Thoreau é autor do ensaio “Desobediência Civil”, em que faz uma defesa da desobediência civil individual como forma de oposição legítima frente a um Estado injusto. A recusa ao pagamento de impostos levou Thoreau à prisão, mas o seu protesto consciente de resistência política tinha por objetivo fazer valer o seu direito de cidadania e interferir no processo de tomadas de decisões pelo Estado com o fito de manter a coesão social interna e em relação ao México. Com ele, pode-se dizer que o direito de resistência evoluiu para a categoria de desobediência civil, pela qual a minoria tinha possibilidade, quando oprimida, de enfrentar o governo na busca de melhores condições. Assim, deu maleabilidade e dinamismo à resistência, transformando-a em verdadeiro instrumento de cidadania, de modo que reencontrou sua capacidade de oposição à opressão COSTA (1990, p.5). Segundo ele, o critério da maioria, no qual se assenta a democracia, deve ser refutado em razão de não necessariamente se identificar com o senso de justiça. O motivo porque se permite a maioria governar encontra-se justamente em sua maior força física.

Assim, para THOREAU (1999, p. 13):

A razão prática porque se permite que uma maioria governe, e continue a fazê-lo por um longo tempo, quando o poder finalmente se coloca nas mãos do povo, não é a de que esta maioria esteja provavelmente mais certa, nem a de que isto pareça mais justo para a minoria, mas sim a de que a maioria é fisicamente mais forte.

Para ele, o caráter opressivo da lei não é atenuado pela proveniência democrática, calcada nas regras da maioria. O respeito à lei deve se firmar na consciência do indivíduo, de modo que a desobediência à norma, quanto esta se colide às consciências individuais, configura um dever ético do cidadão. Isto porque “A lei jamais tornou os homens mais justos e, por meio de seu respeito por ela, mesmo os mais bem-intencionados transformaram-se diariamente em agentes da injustiça (THOREAU, 1999).

Deste modo, a obediência às leis e práticas do governo não impunha a concordância que decorre da imposição da maioria sobre uma minoria, mas sim de uma avaliação individual que deveria negar a autoridade do governo quando este tivesse caráter injusto, não importando que fosse a expressão da vontade da maioria, visto que esta nem sempre agia da melhor maneira. Enfim, a desobediência demonstra-se como a única saída a ser adotada pelos indivíduos quando “se depararem com legislação e práticas governamentais que não procurassem agir pelos critérios da justiça, ou contrariassem os princípios morais do indivíduo” THOREAU (1999, p. 32).

Thoreau se propõe a resolver a seguinte indagação: “Leis injustas existem, devemos conter-nos em obedecer a elas ou esforçar-nos em corrigi-las, obedecer-lhes até triunfarmos ou transgredi-las desde logo?” THOREAU (1999, p. 23).

Conclui pelo dever de desobedecer, mesmo que disso resultasse o aprisionamento, que deveria ser encarado como mérito pessoal. Isto é, quando os governos agem injustamente fazem da prisão o único lugar digo para um homem justo THOREAU (1999, p. 31).

A prisão, neste caso, serviria para mobilizar a opinião pública a adotar a mesma atitude e o próprio governo a mudar a sua postura ARAUJO (1994).

Segundo COSTA (1990, p.33), Thoreau deu uma nova dimensão à resistência proposta pelos liberais, pois insere desobediência civil na tarefa de efetivação de reivindicações específicas. Afirma que a desobediência civil é o único caminho para democratizar o Estado liberal, por meio de reformas capazes de vigorar de maneira efetiva, mediante realizações especializadas e periódicas.

Mahatma Gandhi inspirou-se nas ideias de Thoreau para liderar a reação pacífica contra a dominação inglesa da índia. Gandhi introduziu novas noções ao conceito de desobediência civil, pois, para ele, a desobediência civil era um instrumento adequado à defesa dos direitos de cidadania, em todos os níveis, notadamente em face dos abusos do Estado e do capitalismo inglês. Duas premissas teóricas fundaram a sua concepção de desobediência civil, segundo apontamentos de MONTEIRO (2003), quais sejam: a) a desobediência passiva, por meio de movimentos de reivindicação não violenta; b) política de não cooperação pelos boicotes a determinados produtos a fim de atingir os interesses dos produtos capitalistas e conquistar direitos sociais.

As construções de Thoreau influenciaram o principal responsável pela independência da Índia, defensor fervoroso da desobediência civil, Mohandas Karamachad Gandhi. (1869-1948).

Para Gandhi, a desobediência era um direito inalienável do homem, sendo o seu exercício um eficaz meio de convencer o poder estatal quanto às injustiças e desacertos de suas políticas sociais. A proposta adotada por Gandhi se diferenciava da de Thoreau, no que tange a prever a desobediência civil como um ato coletivo, que tende ao sucesso quando realizado por um número expressivo de pessoas. Para ele somente a ahimsa ou, não-violência, seria uma atuação política profícua na conquista das mudanças necessárias em um mundo moldado sob a cultura da intolerância e do arbítrio LAFER (1988, p. 188).

Para Gandhi, a desobediência às leis consiste num mecanismo da cidadania para modificar, de modo pacífico, a ordem governamental e jurídica COSTA (1990, p.35).

Segundo COSTA (1990, p.42), Gandhi pregava que a resistência civil “é o meio mais eficaz de expressão da alma e de maior eloquência para protestar contra a manutenção do poder de um Estado nocivo.” Para Gandhi, a “desobediência civil é o direito imprescritível de todo cidadão. Ele não saberá renunciá-lo sem deixar de ser homem” GANDHI, apud Nelson Costa (1990, p.34). Suas ideias estavam direcionadas a acabar com a legislação discriminatória contra o povo da Índia, que estava sob domínio do Império Britânico ARAUJO (1994 p.14-17). Acreditava que a Índia não estava suficientemente preparada para a satyâgraha, resistência pacífica realizada através de protestos não violentos. Através de campanhas de desobediência civil e de não cooperação (asahayoh; por exemplo, boicotava a compra do produto inglês) exigia a saída das forças do Império Britânico. Eis que em 1948 todo este processo culminou na independência da Índia.

Martin Luther King foi o líder da resistência civil negra contra o racismo nos Estados Unidos – racismo que negava os direitos civis e políticos aos negros. Luther King exercia o direito de desobediência civil também de forma pacífica, eis que era a forma viável de oposição e resistência à insurreição e à violência. O fez em favor dos direitos da população negra dos Estados Unidos nas décadas de 50 e 60, época de intensa segregação racial em hospitais, escolas e restaurantes. Apesar da Constituição, estabelecer a igualdade de todos perante a lei, a segregação continuou, até mesmo no campo jurídico, somente em 1954 foi declarada a sentença de inconstitucionalidade da segregação nas escolas. Para King o terreno do judiciário, exclusivamente, se fazia insuficiente. Era necessária a construção de uma organização civil. Encontrou em Thoreau e Gandhi a chave para montar um movimento de resistência não-violenta. Considerava que a desobediência civil não realizada em nossa correspondente ao mais alto nível de protesto não violento. “Ela deveria ser aberta, e, acima de tudo, ser levada a cabo por grandes massas e completamente sem violência.” COSTA (1990, p.31).

O líder negro de reação pacífica à antissegregação racial teorizava que a desobediência civil era o mais alto nível de protesto não violento COSTA (1990, p.42), e, segundo MONTEIRO (2003, p.68), a reação radical e opressora, pelo governo, à desobediência civil em massa, tornaria ainda mais evidente a opressão e a injustiça exercidas pelas autoridades estatais. Dessas manifestações práticas de desobediência civil é possível sintetizar, teoricamente, duas acepções: uma, a desobediência individual consciente; outra, a desobediência civil coletiva qualificada.

Na primeira experiência vivida e difundida por Thoreau, o exercício do direito de desobediência expressa à prerrogativa de um direito civil individual, que é o direito de protestar, de reagir, de resistir às leis injustas e aos governos não democráticos que violam direitos civis. A segunda, expressa um direito transindividual, difuso ou coletivo de resistir ou de desobedecer de forma igualmente pacífica leis injustas (no todo ou em parte), bem como de reagir às injustiças e desacertos das políticas antissociais. Mesmo na sua face contratualista, em que a desobediência civil era cara ao pensamento liberal clássico, ela podia ser concebida como essencial ás liberdades, portanto, um direito fundamental do homem de resistir à opressão.

Isso está presente, inclusive, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) – a primeira carta universalista que positiva o núcleo dos direitos fundamentais. Destaca o Artigo 2º da declaração que a finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos imprescritíveis do homem, que são a liberdade, a segurança e a resistência à opressão.

Por outras palavras, hodiernamente, o direito de resistência à opressão corresponde à nova denominação jurídica: direito de resistência e desobediência civil como um legítimo direito à preservação dos direitos de primeira, segunda e terceira geração, conforme a clássica divisão oferecida por John Rawls.

Pode-se afirmar diante do que se expôs, que o direito à desobediência civil não consiste em ato de negação à ordem jurídica, mas, ao revés, em exercício de direito que visa precipuamente defender os direitos fundamentais da cidadania que estão albergados na ordem jurídica.

Feitas as considerações teóricas iniciais e traçada, de modo sucinto, a evolução histórica do direito de resistência, hoje denominado desobediência civil, exige-se, por quesito metodológico, a definição conceitual como forma de compreensão do núcleo teórico desse tema em epígrafe.


A Desobediência Civil e o Direito de Resistência: Conceituações.

Machado Paupério faz distinção entre direito de resistência e direito de desobediência civil. Para ele, o direito de desobediência engloba o direito de resistência porque, na acepção, desobediência é gênero do qual a resistência à opressão é espécie. A mesma linha teórica é adotada por Maria Garcia (2004, p. 257), para quem a desobediência civil é gênero da espécie direito de resistência. A autora afirma que a desobediência civil pode ser conceituada como uma forma particular de direito de resistência.  Já para (COSTA, 1990, p. 47), a desobediência civil deve ser considerada como uma evolução teórica e prática do direito de resistência, sendo, por conseguinte, a desobediência civil uma espécie de direito de resistência, este, como gênero. Tal posição é a adotada por este trabalho.

Independentemente da falta de consenso entre os autores, seja quanto ao gênero ou quanto à espécie qualificadora, pode-se afirmar que, no sentido geral, a desobediência civil é uma forma de protesto a um poder político constituído, seja o Estado ou não, desde que seja notadamente considerado opressor pelos “desobedientes”. 


 Conceito de Desobediência Civil

É de (LAFER, 1988, p. 200-201) o conceito de desobediência civil como a ação que objetiva a inovação e a mudança da norma por meio da publicidade do ato de transgressão, visando demonstrar a injustiça da lei:

Esta transgressão à norma, na desobediência civil, completa - é vista como cumprimento de um dever ético do cidadão – dever que não pretende ter validez universal e absoluta, mas que se coloca como imperativo pessoal numa dada situação concreta e histórica.

(THOUREAU, 1999), afirma que o Estado deve reconhecer o indivíduo como um poder superior e independente, do qual derivam o poder e a autoridade do Estado. Thoreau justificava a desobediência como o único comportamento aceitável para os homens, quando se depararem com legislação e práticas governamentais que não procurem agir mediante critérios de justiça ou contrariem os princípios morais dos indivíduos.

Segundo (GARCIA, 1994), a desobediência civil pode ser classificada como um direito fundamental, pois está diretamente ligada à concretização da cidadania. Constrói a justificativa da desobediência baseada na ideia de que a cidadania requer instrumentalização ampla e efetiva; portanto, o seu exercício não se exime de direitos e garantias expressamente expostos na constituição. Reforça a classificação da desobediência civil como um direito fundamental, ao citar o art. 1º parágrafo único da C.F/88 onde diz: “Todo poder emana do povo”. Diante deste dispositivo constitucional, defende a ideia de que o cidadão detém a soberania popular e, portanto, o poder de elaborar a lei e de participar da tomada de decisão, a respeito de seu próprio destino. Avança ainda mais em sua tese ao dizer que o cidadão, por conta do dispositivo constitucional supracitado, tem a prerrogativa de deixar de cumprir a lei ou desobedecer a qualquer ato de autoridade, sempre que o referido ato se mostre conflitante à ordem constitucional, direitos ou garantias, constitucionalmente assegurados.


Manifestações Práticas da Desobediência Civil

A negação de Henry David Thoreau a cumprir suas obrigações tributárias é um bom exemplo de manifestação prática de desobediência civil. Ele desobedeceu à lei de seu Estado com o intuito de protestar contra a guerra empreendida no México, na época financiada com os impostos da população, e contra a escravidão. Para Thoreau era moralmente inaceitável colaborar com um governo escravocrata que empreendia a violência contra os seus vizinhos. Ele pregava que o Estado desvirtuava até o homem mais bem-intencionado que a ele se submetia, quando o obrigava a servir ao exército e a financiar guerras mediante o pagamento dos seus impostos. Com suas ideias, Thoreau valorizou o homem, colocando-o num patamar acima do Estado, destacando os homens como seres dotados de consciência e de moral e não como um súdito cego que deve obediência incondicional ao Estado. Ao ser preso, por sua desobediência, Thoreau registrou diversas reflexões acerca do Estado na sua obra “A Desobediência Civil”, (THOREAU, 2002, p. 30) ele refletia:

Não pude deixar de sorrir perante os cuidados com que fecharam a porta e imaginaram trancar as minhas reflexões [...]. De fato, o perigo estava contido nessas reflexões. Já que eu estava fora de seu alcance, resolveram punir o meu corpo. [...] Percebi que o Estado era um idiota, tímido como uma solteirona, às voltas com a sua prataria, incapaz de distinguir seus amigos dos inimigos. Todo respeito que tinha pelo Estado foi perdido e passei a considerá-lo apenas uma lamentável instituição.

Mohandas Karamchand Gandhi desenvolveu uma filosofia de luta não violenta denominada satyagraha. A expressão é oriunda do sânscrito e pode significar “ater-se á verdade”. Gandhi foi um político que primou pela ética e pelo espírito de conciliação construtiva, mas firme na decisão de libertar o seu país. Ele defendia o uso da não cooperação pacífica, por isso defendia o uso de protestos pacíficos, greves, jejuns e boicotes aos produtos ingleses. Defendia que ninguém devia comprar produtos ingleses e sim produzir em casa o que fosse para a sua necessidade. Os britânicos quase faliram com a perda de um mercado importante para seus produtos (MARQUES, 2009).

Após marchar por 480 quilômetros, tendo saído ao alvorecer de 12 de março de 1930, em Ahmedabad, que Gandhi chegou em 6 de abril a Dandi, na costa oriental da Índia. Por lá, de maneira ilegal, extraiu sal do mar e leiloou uma pedra por 1.600 rúpias. Tal ato foi ilegal porque Gandhi estava desafiando o monopólio do governo colonial britânico sobre a extração do sal e a odiada taxação que incidia sobre o seu comércio.

Na ida para Ahmedabad, Gandhi partiu com 79 seguidores e um caminhão carregado com roupas tecidas a mão para dar aos pobres no caminho. Além de extrair o sal, eles pretendiam tomar eventuais estoques existentes, se a polícia permitisse. Ao chegar, Gandhi entrou no mar para um banho de purificação. Foi quando pegou uma pedrinha de sal. Antes, a polícia havia destruído os depósitos de sal deixados pela maré e misturaram lama ao sal.

Ram Das, filho de Gandhi, foi preso nesse mesmo dia por vender sal ilegalmente. A desobediência civil acabou por levar 60 mil pessoas à cadeia, dentre elas alguns líderes nacionalistas. Gandhi também foi detido em 5 de maio de 1930, no auge dos protestos em todo o país. Preso, ele se tornou um problema maior do que quando estava solto. E, apesar das divergências, entre hindus e muçulmanos, seu poder não parava de crescer. Com o tempo, a independência da Índia, conduzida no espírito do Satyagraha, foi inevitável. Finalmente, ela foi conquistada em agosto de 1947, conforme o registro do site Acervo O Globo (2013).

Eu tenho um sonho: o de que, um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos dos antigos escravos e os filhos dos antigos senhores de escravos poderão se sentar juntos à mesa da fraternidade.” Essa frase resume o famoso discurso intitulado: “Eu tenho um sonho”, proferido pelo líder negro na marcha em Washington ocorrida em Agosto de 1963 que, pacificamente, reuniu milhares (entre 200-300 mil) de manifestantes. Segundo (PINTO, 2018), Martin Luther King Jr. (1929- 1968) marcou um dos principais momentos da luta contra a opressão racial nos EUA. Filho de um pastor batista, King segui os passos do pai, também se transformando num pastor, chegando a angariar um doutorado em teologia pela Universidade de Boston em 1955.

Em 1964, aos 35 anos, tornou-se o mais jovem ganhador do Prêmio Nobel da Paz, em razão de sua luta contra a segregação racial nos EUA. A forma de luta pregada por Luther King era pacifista, inspirada na desobediência civil empreendida por Gandhi.

Na luta encabeçada por Luther King, destaca-se o boicote ao transporte coletivo da cidade de Montgomery no estado do Alabama. A responsável pelo início desse boicote foi Rosa Parks, que se recusou a ceder o seu assento no ônibus a um homem branco. No dia 1º de dezembro de 1955, Rosa foi presa. No dia seguinte ela foi solta, após Edgar Nixon, presidente da sede local do NAACP (Associação Nacional Para o Progresso de Pessoas de Cor), conforme o significado da sigla em inglês, pagar a fiança dela que custou o equivalente a atuais U$ 14,00 (quatorze dólares). Nixon e outros ativistas civis decidiram usar o caso de Parks para chamar a atenção do público à segregação racial vigente. O boicote durou 282 dias. Mais de 40 mil usuários negros do transporte público de Montgomery deixaram de utilizar os ônibus para a locomoção. Nesse período a liderança de Luther King se destacou. Em 1956, a Suprema Corte Norte Americana julgou inconstitucional a segregação racial em transportes públicos. Luther King apoiou inúmeras greves e marchas pacíficas. Entre 1957 e 1968, chegou a rodar cerca de seis milhões de milhar proferindo os seus discursos. Foi preso por mais de vinte vezes. As ações lideradas por Luther King resultaram ainda no direito ao voto dos negros no Alabama.


Do Direito à Liberdade e Obrigatoriedade das Normas

Concernente aos seres humanos, enquanto tendentes a viver em sociedade, aplica-se a necessidade da edição de norma para a garantia da convivência entre os indivíduos, as quais devem, necessariamente, ser obedecidas.

Assim, a Constituição e as leis constituem garantias para o homem social, sobretudo às liberdades públicas. Historicamente, há concepções variadas acerca da ideia de liberdade, inclusive quanto à efetiva existência da mesma em relação ao homem no contexto social.

Garcia (2004, p.16) defende a liberdade enquanto um bem aspirado por todos os homens seja de modo consciente ou não. Para ela a liberdade é o direito dos direitos, o qual dá aos demais a razão de ser.

Já Mill (1859, p.33), assegura que a interferência de um homem na liberdade de outro pode ocorrer somente pela autoproteção da sociedade, ou seja, visando o interesse coletivo. Para o desenvolvimento das reflexões acerca da desobediência civil é fundamental a compreensão da liberdade como direito essencial para o exercício da cidadania e soberania popular. Do mesmo modo, é relevante a compreensão da relação entre obediência, autoridade e liberdade.

Garcia (2004, p. 43-50) resume o pensamento de Hannah Arendt, que diferencia a autoridade do poder, na medida em que atribui à primeira legitimidade, pois é reconhecida mediante uma validade social convencionada, enquanto ao segundo fixa uma atuação ilegítima na medida em que opera pelo uso da força ou violência.

Nesse contexto, o que difere a autoridade do poder é o reconhecimento social que legitima a obediência. Assim, a obediência à autoridade é um dever legal. Mas, com relação ao poder, a sociedade pode escolher entre oferecer a obediência ou se opor, já que a imposição do mesmo decorre do uso da força.

Desse modo, a autoridade existe apenas onde há legitimidade, de modo que a obrigatoriedade da obediência às leis decorre da legitimidade das mesmas. A existência de normas legítimas é necessária para a manutenção da liberdade dos indivíduos e da sociedade, ainda que importem na restrição a algumas condutas.

Conforme Locke (1994, p.50), a lei é condição da liberdade: “onde não há lei não há liberdade”. Para Montesquieu (2000, p.166), a liberdade política envolve “fazer o que se deve querer”, ou seja, num contexto social, liberdade consiste em poder fazer aquilo que a lei permite. Segundo Rosseau (2014, p.51), a vida em sociedade exige o sacrifício de todos os seus membros, de modo que um não pode violar o direito do outro. Assim, a liberdade não é incompatível com a autoridade. Logo, a obediência sem o uso da força ou violência, exceto em situações excepcionais, está diretamente relacionada à legitimidade da atuação do Estado, pois se verifica um grau de consenso na sociedade à mesma.

Por conseguinte, o direito de um Estado, legitimamente constituído, tem o condão de assegurar e compatibilizar a liberdade dos indivíduos ao interesse coletivo. Em razão disso, vale o enfoque às leis consideradas injustas. Como esse juízo de valor ocorre? Essa abordagem serve como fundamento para o exercício político dos cidadãos que se opõem a elas, mediante a aplicação prática da desobediência civil.       


      A Importância do Artigo 5º parágrafo 2º da Constituição Federal Brasileira.

A Constituição Federal Brasileira apresenta em, seu bojo, diversos direitos e garantias fundamentais. A princípio, é importante diferenciar os direitos das garantias, que é explicada por Alexandre de Moraes (2002):

“Ao separar as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos; estas, as garantias [...]”. Os direitos fundamentais são basicamente os direitos humanos positivados na ordem constitucional. É exatamente a prerrogativa do cidadão de poder exercer sua liberdade e exigir condutas específicas do Estado. Já as garantias fundamentais atuam como forma de socorrer esses direitos em caso deles sofrerem alguma violação.

Segundo (GARCIA, 2004, p. 297) as garantias podem ser classificadas em defesas jurisdicionais ou não jurisdicionais.

Dentre os primeiros, a garantia de acesso aos tribunais, a garantia de recurso contencioso, o direito de acesso à justiça administrativa, o direito de suscitar a “questão” da inconstitucionalidade ou de ilegalidade, a ação de responsabilidade e o direito popular. Dentre os meios de defesa não jurisdicionais aos direitos fundamentais, refere o direito de resistência [...].

Assim, o instituto da desobediência civil, como evolução teórica e prática do direito de resistência, surge como um mecanismo para garantir aos seus cidadãos a aplicação de seus direitos constitucionais. O art. 5º § 2º da Constituição Federal Brasileira de 1988 consagra a seguinte disposição: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Este dispositivo demonstra que o enunciado dos direitos e garantias fundamentais não é completo, nem se apresenta como numerus clausus. Assim, para (GARCIA, 2004, p.236-239):

[...] os direitos e garantias a que se refere o art. 5º § 2º, são aqueles compreendidos ou contidos implicitamente, no regime nos princípios constitucionais ou que venham a constar dos tratados internacionais firmados. [...]- de tal sorte, pela dicção do § 2º do art. 5º tais direitos e garantias vêm integrar o elenco constante do texto constitucional, podendo ser exigidos ou exercidos, independentemente de norma expressa. Esses direitos e garantias têm existência assegurada, portanto, no universo constitucional, em consequência dos mesmos estarem inter-relacionados ao regime e princípios adotados pela constituição, todos consagrados no § 2º art. 5º, norma agasalhadora, ampla e protetiva do sistema constitucional.

Portanto, este dispositivo se refere a direitos e garantias que são contidos ou compreendidos como implícitos no regime, nos princípios e nos tratados internacionais firmados. É possível identificar dentro dessa magnitude, certos direitos ou garantias que se provem concebíveis dentro do sistema de regime e princípios adotados pela Constituição, sendo factível a adição, entre tais direitos e garantias fundamentais, o direito à desobediência civil.

O regime adotado pela Constituição é o republicano que, de acordo com Garcia (2004, p.236) compreende na realidade “[...] todo o quadro da estrutura estatal definida no artigo 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal constituindo-se em Estado Democrático de Direito [...]”. O regime republicano significa aquele que é Res pública- coisa do povo- “[...] do qual emerge a cidadania e a participação popular nas decisões políticas [...]” Observa Monteiro (2003, p. 155). É esse regime com todos os seus significados que justificam a adoção de demais direitos e garantias, ainda que não expressos na Constituição.

Dentre estes outros direitos e garantias fundamentais que a Constituição permite, encontramos a desobediência civil, que é plenamente explicada através do regime republicano e dos princípios constitucionais, sobretudo pelo princípio da cidadania e soberania popular, cuja importância será abordada no próximo capítulo deste trabalho.

Brandão (2003, p.78) analisa que a ação desobediente representa a “[...] intervenção popular direta no exercício da autoridade pública [...]” com isso fica claro a efetividade do princípio da cidadania, e conclui ainda “[...] a desobediência civil é garantia (direito-garantia) que detém caráter eminentemente assecuratório e desempenha papel instrumental em relação aos direitos fundamentais [...]”.


A Injustiça das Leis e a Participação Política dos Cidadãos

A consciência sobre a injustiça da norma, bem como o direito e também dever de participação política do cidadão, além dos ideais de liberdade e cidadania, inspirou as reflexões acerca da desobediência civil.

Referindo-se ao pensamento de Hannah Arendt, Garcia (2004, p.241) menciona que o verdadeiro conteúdo da liberdade não está nas conquistas de igualdade, direito de reunião, de petição, ou as liberdades que associamos aos governos constitucionais. Isso constitui produto da libertação, mas não se confunde com o conteúdo da liberdade, que significa participação nas coisas públicas ou admissão ao mundo político.

Como opção política, a liberdade relaciona-se, na esteira do pensamento de Thoreau, ao convencimento ou convicção, e não à “servidão voluntária”.

Embora o homem seja “um ser destinado à liberdade”, refere Garcia (2004, p. 243), quando em sociedade defronta-se com a autoridade, com o poder do Estado, com a organização decorrente da coexistência social, com a própria lei.

Uma das características do constitucionalismo moderno e do regime democrático é a participação popular, direta ou indireta, no exercício do poder, o que efetiva o exercício da cidadania. A maneira indireta de participação popular envolve a eleição de representantes (artigo 1º, parágrafo único, C.F), os quais, dentre outras coisas, atuam no processo legislativo de modo que se presume que a lei decorre diretamente da soberania popular (artigo 14, C.F). A Constituição da República também contempla a iniciativa popular (artigo 14, inciso II, C.F). Em nossos dias, o Estado de Direito explica a supremacia do princípio da legalidade. Todavia, ao longo da história, as leis perderam o seu prestígio por se desvincularem do ideal da justiça, passando de instrumento de garantia do interesse público a mecanismo destinado à satisfação de interesse de grupos, classes ou partidos. Ressalte-se o que ocorreu durante o auge do positivismo jurídico quando, por exemplo, a Alemanha nazista em seu proposto terceiro reich, aprovou de modo “legítimo” as leis que determinavam a política social racial eugênica em nome de uma raça ariana “pura”, bem como as demais políticas que desencadearam o extermínio em massa denominado Holocausto.

Como refere Arendt (2003, p.64), tratando das vicissitudes do sistema político norte-americano na década de 1960 e que, mutatis mutandis, não deixam de ressoar em muitas nações nos dias atuais, “sintoma claro da desintegração é uma progressiva evasão da autoridade governamental [...] causada pela incapacidade do governo em funcionar adequadamente, de onde brotam as dúvidas dos cidadãos sobre sua legitimidade.” Com efeito, as constantes afrontas à Constituição pelo próprio poder público e a politização das leis, que conduziu a sua multiplicação irracional e a instabilidade do Direito, fizeram com que as normas perdessem credibilidade, já que são alteradas facilmente e sem qualquer preocupação com o bem comum e com a justiça (GARCIA, 2004, p. 246).

Garcia (2004, p.285) trata da perda de confiança nas leis ao longo da história, na medida em que o Parlamento sofreu mudanças significativas em sua estrutura, deixando de haver a representação do povo por pessoas independentes para surgira vinculação a partidos, desaparecendo a confiança na objetividade e neutralidade dos órgãos legislativos. Em consequência, em muitos casos as leis acabam não se aproximando da ideia de justiça ou até mesmo se convertendo em instrumento de injustiça.

Segundo Arendt (2013, p.75 e 83), os cidadãos assumiram o compromisso moral, fundado no contrato social, de cumprir a lei, pois advém de seu próprio consentimento. Contudo, toda promessa é restringida por suas limitações essenciais: o não surgimento de uma circunstância inesperada e a manutenção da reciprocidade inerente a toda promessa. Assim, o fracasso das autoridades quanto à confecção de leis justas configuraria a quebra do compromisso, antes realizado, e autorizaria a desobediência civil.

Ressalte-se que, para a autora, a desobediência civil significativa é aquela praticada por certo número de pessoas com identidade de interesses, e não por um indivíduo apenas, que poderia ser considerado excêntrico. Afirma que os contestadores civis seriam “minorias organizadas, delimitadas mais pela opinião comum do que por interesses comuns, e pela decisão de tomar posição contra a política do governo mesmo tendo razões para supor que ela é apoiada pela maioria.” (ARENDT, 2013, p.55).

A ideia de Arendt acerca da desobediência civil contrapõe, em certa medida, à de Thoreau, que pregava a desobediência civil “individual” como forma de oposição legítima frente a um estado injusto. No mesmo sentido, defende Garcia que o indivíduo, na qualidade de cidadão, com a garantia das prerrogativas de cidadania, poderia agir individualmente, como partícipe efetivo no exercício da decisão política.

Não obstante, a desobediência civil, ainda que seja classicamente um instrumento de minorias, realmente tem expressão quando praticada por um grupo, sendo improvável a efetividade da desobediência civil individual como forma de mudança da lei ou de preservação ou restauração do ordenamento.

Arendt faz, ainda, importantes distinções acerca da desobediência civil e da desobediência criminosa. A primeira consiste num ato público de descumprimento da lei, sem violência, em benefício de determinado grupo, que pode servir tanto para mudanças necessárias e desejadas como para a preservação e restauração dos direitos fundamentais e do equilíbrio dos poderes governamentais. A desobediência criminosa, de outro lado, é a violação clandestina muitas vezes violenta e motivada por interesses individualistas (ARENDT, 2013, p. 67-69).

A desobediência civil não se confunde, ainda, com a revolução, pois o contestador civil aceita a autoridade e a legitimidade das leis, enquanto o revolucionário rejeita esse sistema (ARENDT, 2003, p.70).

Segundo (LUCAS, 2003), posição também aceita neste trabalho, a desobediência civil é, de certa forma, contrária ao que propõe explicitamente a nossa legislação, mas não ao sistema, pois ela pode ocorrer indiretamente, como, por exemplo, no direito à liberdade de expressão e de pensamento amparada pela Constituição Federal de 1988. Mesmo diante de todo um estudo não é possível afirmar que esta modalidade se encontra no âmbito lícito ou ilícito, por isso cada caso deve ser analisado segundo suas particularidades para perceber se há realmente uma tentativa de desobedecer para modificar determinadas leis ou se há apenas anarquia e transgressão das leis, pretensamente justificadas sob o manto da desobediência civil.

Garcia (2004, p. 261-262) defende a desobediência civil como forma de participação popular, argumentando a insuficiência dos mecanismos existentes para a proteção da cidadania (expressão máxima do direito à liberdade), bem como a inviabilidade de intervenção direta do cidadão no processo legislativo e no controle de constitucionalidade da lei. Caracteriza-se pelo non agere diante da lei ou do ato emanado da autoridade, ou de ação, em desobediência ou de um agir em prol da participação política. Para a autora “o cumprimento das leis desarrazoadas, injustas, surrealistas, por vezes, não é obediência, mas servidão, degradação e envolve o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.”

Segundo Bobbio (1998, p. 335-336), a desobediência civil é uma forma particular de desobediência, que objetiva mostrar publicamente a injustiça da lei para induzir o legislador a mudá-la, caracterizando-se por se tratar de um fenômeno de grupo e marcado pela não-violência. O autor apresenta três circunstâncias que autorizariam a desobediência: a lei injusta, a lei ilegítima (emanada de autoridade incompetente) e a lei inválida ou inconstitucional. E conclui: “se é verdade que o legislador tem direito à obediência, também é verdade que o cidadão tem o direito de ser governado com sabedoria e com leis estabelecidas.”

Conclui-se, portanto, que a desobediência civil é uma forma de participação política, por meio de resistência ou de contraposição do cidadão à lei considerada injusta ou ofensiva aos direitos e garantias estabelecidos na ordem constitucional, objetivando a alteração da norma ou a restauração do ordenamento anterior.

Por sua vez, o exercício da desobediência civil se reveste das seguintes características:

{C}a)      {C}Trata-se de ato organizado, decorrente da convicção e reflexão de um grupo de cidadãos, ainda que constituam uma minoria; b) ato pacífico, não violento; c) ato público, expresso, em contraposição à violência clandestina da lei; d) tem por objetivo a alteração da norma ou a restauração do ordenamento anterior, e não a destruição do Estado.


A Importância dos Princípios da Soberania Popular e da Cidadania para a Fundamentação da Desobediência Civil.

A Constituição brasileira concebe a soberania popular e a cidadania como fundamentos da República Federativa do Brasil nos incisos I e II do artigo seu 1º. A soberania popular e a cidadania são princípios que norteiam o Estado Democrático de Direito, sem o qual tal Estado não teria fundamento. E são esses conceitos de tamanha importância par ao Estado Democrático que justificam a desobediência civil.

Dessa correlação, percebe-se que a desobediência civil não é sem importância, muito pelo contrário, é um instituto basilar para uma efetivação de direitos fundamentais garantidos ao cidadão. É através da resistência que o cidadão pode se opor a atos que contrariem a justiça, claro que não se deve negar a importância das vias judiciais para a resolução de conflitos, porém, quando estes faltarem ou se mostrarem insuficientes, a desobediência civil deverá ser acionada.

A soberania é a pedra angular da democracia de participação, assim se refere Bonavides (2003, p. 42). Além disso, é constitucionalmente assegurada no parágrafo único do artigo 1º “Todo poder emana do povo” e no artigo 14 “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos.” Não existem dúvidas quanto à importância que a soberania popular tem em relação à justificativa constitucional para a desobediência civil, porque se fundamenta no poder do povo como corpo político.

Monteiro (2003, p. 122) afirma que: “[...] a doutrina da soberania popular conferirá a fonte de todo poder político ao povo, povo como corpo, associação política fundadora do Estado, não admitindo qualquer exclusão da participação na formação da vontade geral.”

A cidadania conceitua Moraes (2002, p. 50) “[...] representa um status e apresenta-se simultaneamente como objeto e um direito fundamental das pessoas.”

Neste cenário, é fácil concluir que a desobediência civil aparece como um importante instrumento de freio às ações estatais abusivas ou às normas de natureza não democrática, justificadas através do princípio da cidadania adotado por constituições democráticas como a brasileira.

A desobediência civil é um recurso existente para os cidadãos lutarem contra lesões a seus direitos fundamentais, o cidadão e somente ele é quem tem o poder de exercer os direitos políticos em sua plenitude com o intuito de construir uma nova política e um novo Estado que se preocupe com o bem-estar da sociedade.

A cidadania vivenciada na atualidade, quando nos referimos ao Brasil, está ligada apenas ao voto que, abrindo-se um parêntese, é obrigatório, não refletindo plenamente a ideia de cidadania, pois esta passa pelas eleições, mas não pode se limitar a elas. A constituição é clara ao afirmar que todo poder emana do povo, então o que emana do povo não é apenas a possibilidade de eleger um candidato o que, infelizmente, ocorre na realidade brasileira atual.

Ressalte-se ainda que todo o poder, ou seja, toda a estrutura do Estado tem origem no povo. E este tem como direito e dever a observação dessa estrutura, cabe ao povo observar se o que está sendo desenvolvido através das políticas públicas está ou não satisfazendo a sociedade, e mais, se essas políticas são estão sendo de favorecimentos pessoais, porque se assim for será injusto e caberá ao povo resistir a tais atos além de lutarem pela modificação, seja do ato de autoridade ou da lei, é através dessa consciência que se estará resguardando os direitos fundamentais defendidos pela Constituição Federal.


A Desobediência Civil como Direito Fundamental

Os direitos fundamentais expressos na Constituição Federal estão distribuídos no título II que vai do artigo 5º ao artigo 17 em um rol que, embora relativamente extenso, no entanto não é exaustivo. A própria Constituição dá ampla abertura a outros direitos fundamentais, desde que estejam de acordo com o Estado Democrático de Direito.

Os direitos e garantias instituídos subdividem-se em: direitos individuais e coletivos; direitos sociais; nacionalidade; direitos políticos e partidos políticos.

A doutrina analisada por Moraes (2002, p. 59) apresenta a classificação de direitos fundamentais em gerações, os direitos de primeira segunda e terceira gerações. Os de primeira geração são os direitos e garantias individuais e políticos, os de segunda geração são os direitos sociais, econômicos e culturais e os de terceira geração são os direitos de solidariedade ou fraternidade. Contudo, Bonavides (2003a, p.58) analisa um direito o qual ele define como de quarta geração que é o direito à democracia, importante no desenvolvimento do país, através de uma democracia participativa.

Analisando a desobediência civil como sendo um importante instrumento de cidadania, que tem a finalidade de modificar a legislação ou práticas governamentais de maneira pacífica, portanto, sem o uso da força, apenas com a atuação dos cidadãos, em minoria ou não, embasados nos princípios jurídicos do sistema vigente, sem a pretensão de substituir a ordem posta por outra, sendo suas ações todas realizadas dentro da legalidade jurídica, visando à satisfação dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados, podemos concluir que essa ação está plenamente garantida em nossa ordem constitucional. É uma maneira democrática de participação porque admite ao povo, que é o legítimo detentor do poder, participar do processo político de modo mais direto.

Partindo de princípios analisados como o da cidadania, soberania popular, princípios democráticos com todos os seus efeitos, além de outros como os da dignidade da pessoa humana e liberdade, podemos nos referir à desobediência civil como um direito fundamental facultado ao povo utilizar quando um direito esteja sendo violado ou que o poder público esteja sendo omisso ou mesmo injusto, direito resguardado pelo parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal.

Assim, esse instituto encontra-se baseado não apenas na teoria política e constitucional, mas também na Lei Maior e, sobretudo, nos princípios constitucionais. As leis são, sem dúvida, imprescindíveis para a sociedade, e quando estas são injustas ou quando tolhem o direito de alguns, deixam, é óbvio, de atingir o seu objetivo. É neste entendimento também que se defende o direito de resistência como fundamental porque visa proteger a Constituição e seus princípios essenciais. E o mais importante está na legitimidade existente no instituto, visto que parte diretamente da sociedade sem precisar de intermediários, como ocorre com outros mecanismos formais de participação popular direta, a exemplo do plebiscito e do referendo, assegurados na Constituição, mas que precisam de autorização do Congresso Nacional para a realização dos mesmos.

Se uma lei está em desacordo à Constituição e seus princípios, nada mais justo que se busque a sua correção. É fundamental a desobediência civil porque esta se propõe a efetivar mandamentos constitucionais, buscando por justiça e indo de encontro a atos abusivos.

É indispensável lembrar que o ordenamento jurídico brasileiro possui vários meios institucionalizados para a correção de injustiças ou leviandades ao direito, tais como o direito de petição, habeas corpus, mandado de segurança individual e coletivo, dentre outros. Todavia, como referido, eles podem não ser efetivos ou serem inoperantes. Daí nasce para o cidadão o legítimo direito de utilizar outros instrumentos na busca por justiça, ainda que não institucionalizados, como é a desobediência civil, tendo em vista direitos do mais alto grau terem sido lesados.

A desobediência civil é direito fundamental decorrente do: “[...] regime republicano de governo, e pelo princípio democrático e princípio da cidadania, elencados entre os princípios fundamentais do Estado Brasileiro [...]”, analisa Garcia (2004, p.296).

Através desse instituto, o povo, legítimo detentor do poder, toma para si a possibilidade de se manifestar quando houver injustiças ou abusos da lei ou de atos que firam a sociedade, a Constituição ou os direitos fundamentais, sobretudo o da dignidade da pessoa humana, que norteia todos os demais.

Não somente por isso, a desobediência civil é um direito fundamental, mas também por efetivar princípios constitucionais como o da igualdade, isto porque visa à participação de todos, inclusive a de minorias excluídas politicamente. Além disso, o direito de desobediência civil existe essencialmente para garantir outros direitos, neste aspecto só existirá a desobediência civil quando um direito essencial for violado e quando os “remédios” legais às injustiças não se mostrarem suficientes.


Precedente de Desobediência Civil na Seara Ambiental 

As normas ambientais frequentemente estabelecem restrições ao uso dos espaços ambientalmente protegidos e de seus recursos naturais, com vistas a assegurar a sua preservação. É o que ocorre, por exemplo, com as unidades de conservação da natureza, regulamentação atualmente estabelecida na lei 9.985/2000, cujo fundamento constitucional se encontra no artigo 225 parágrafo 1º nos incisos I, II, III e VII da Constituição Federal.

Conforme o artigo 2º inciso I da lei 9.985/2000, as unidades de conservação são espaços territoriais, incluindo seus recursos ambientais, instituídos pelo Poder Público com objetivos de conservação sob regime especial de administração. Por imperativo constitucional, a alteração desses espaços depende de lei, sendo vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos dos mesmos (artigo 225 parágrafo 1º, III).

As unidades de conservação da natureza, segundo a lei 9.985/2000, dividem-se em Unidades de Proteção Integral e Unidades de Desenvolvimento Sustentável. As primeiras têm por objetivo preservar a natureza e admitem apenas o uso indireto de seus recursos naturais, exceto nos casos previstos em lei. Quanto as segundas, têm por meta compatibilizar a preservação ambiental com o uso parcial de seus recursos naturais (art. 7º).

Todas as unidades de conservação, em maior ou menor medida, limitam a utilização dos espaços e de seus recursos e, em alguns casos, impedem até mesmo a sua visitação pública e ensejam a desapropriação das áreas envolvidas. Em razão dessas medidas, à população que habita essas áreas, são impostas alterações ao modo de vida. Em alguns casos, às mesmas é exigido que abandonem tais espaços. Em razão das normas que regem as unidades de conservação ser consideradas injustas, por vezes são descumpridas.

Nesse contexto, Mendes (2009, p. 235) apresenta um caso que qualifica como desobediência civil relacionada à instituição de unidades de conservação da natureza.

Faz referência à instituição do Parque Nacional do Jaú que, desde a sua criação em 1980, segundo a autora, enfrenta problemas fundiários, nele remanescendo moradores que, segundo as normas atualmente vigentes, o Poder Público deveria realocá-los e indenizá-los pelas benfeitorias construídas (MENDES, 2009, P.235).

À época da instituição do Parque vigia a Constituição de 1967 que garantia os direitos à vida, liberdade, segurança, e à propriedade (art. 150). No plano infraconstitucional, vigia o Decreto 84.017/1971, que limitava sobremaneira a utilização dos recursos naturais dentro do parque e inviabilizaria a permanência das costumeiras populações no local.

Segundo (MENDES, 2009), os ribeirinhos que viviam na comunidade do Jaú, excluídos do processo de criação do parque e, na maioria dos casos, sem experiência política, sofreram diversas restrições em seu modo de vida, sob a ameaça e a efetiva aplicação de sanções legalmente previstas em razão do descumprimento da norma e, de forma pública e não-violenta, permaneceram no local:

Todas as cominações penais e civis, junto ás penalidades cabíveis passaram a permear o cotidiano destes moradores com a chegada do parque. Melhor dizendo, assombrar o cotidiano daqueles moradores, pois mesmo que o Estado não tenha tido a regularidade suposta para implantar de fato um sistema fiscalizatório na área, suas visitas esporádicas tinham a vantagem de servirem como exemplo, bastante ameaçador para outros infratores. [...] Um pouco por falta de perspectiva de vida fora do parque, um pouco por perceberem a injustiça de que estavam sendo vítimas, muitos ribeirinhos desobedeceram ao Estado que estava à sua frente, na forma do IBDF, legitimado pelo Decreto nº 84.017/71, impondo à força da lei e do monopólio da coerção física uma nova cosmografia para a área em que viviam. A própria lei representava uma violência neste momento. Uma violência contra a vida e contra a dignidade humana. [...] Sem saber, estes ribeirinhos que agiram amparados pela Carta Maior, que resguardava o direito à vida e à dignidade humanas e concretizaram o dever de resistir à lei injusta (MENDES, 2009, p. 257).

Assim, impulsionados por uma norma que eles consideravam injusta, já que a mesma não considerava a existência e o modo de vida das populações do Parque Nacional do Jaú, embora desprovidos de mecanismos legais para assegurar os seus direitos, os ribeirinhos do Jaú optaram, ainda que inconscientemente, pela desobediência civil, caracterizada por uma resistência pública e sem violência a fim de assegurarem os seus direitos à dignidade, vida, patrimônio cultural e moradia, por isso sofreram as sanções civis e criminais previstas.

Ressalte-se que, apenas em 2002, mais de vinte anos depois da criação do Parque Nacional do Jaú, o Ministério Público Federal ajuizou uma Ação Civil Pública em benéfico dos ex-moradores e moradores do Parque Nacional do Jaú, contra o IBAMA e a União, objetivando a regularização fundiária do parque, o reassentamento dos moradores e a indenização dos moradores e ex-moradores.

O exemplo referido incita à reflexão sobre a imperatividade da norma e de seus efeitos em face dos direitos fundamentais das minorias, notadamente quanto à preservação de sua cultura, de seu modo de vida e do próprio meio ambiente em que vivem, quando os mecanismos para a proteção desses direitos, embora previstos formalmente, são materialmente inacessíveis, seja pela realidade social dessas pessoas, seja pela demora na atuação dos órgãos competentes.


Considerações Finais 

Um direito, para que exista, não precisa estar necessariamente codificado. Há direitos tão superiores e naturais que não necessitam de codificação. O direito à desobediência civil é um desses que precede qualquer escrita, é um direito fundamental como o é o direito à vida, liberdade, ou à dignidade.

Verifica-se que tal direito está ligado intimamente a princípios que norteiam o Estado Democrático de Direito e, assim, aos Estados que se denominem nestes termos acabam por admitir a desobediência civil em nome de bens maiores como a vida e a liberdade.

A explicação está no fato de o Estado Democrático de Direito encontrar amparo no princípio da soberania popular, o que acarreta o poder político pertencer ao povo, e este poder político nas mãos do povo dá a estes o direito de intervir diretamente nos rumos políticos sempre à procura de efetivar a justiça, sempre em nome de leis justas e contra atos opressivos.

A desobediência civil que se defende não é violenta, não pode ser individualista e deve fundamentar-se constitucionalmente. Ou seja, ela deve basear-se nos princípios essenciais que norteiam a ordem constitucional brasileira em vigor, tais como a cidadania, dignidade da pessoa humana, liberdade e democracia. Ela somente será exercida quando houver um ato ou lei que, sendo injusta ou opressora, descumpra direitos fundamentais da sociedade ou mesmo do Estado, quando tal descumprimento pôr em risco o próprio ordenamento jurídico, ou a estrutura constitucional vigente, através de desrespeito aos princípios constitucionalmente assegurados.


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