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O comparecimento compulsório à zona eleitoral e sua relação com a ética e a democracia no Brasil

O comparecimento compulsório à zona eleitoral e sua relação com a ética e a democracia no Brasil

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O convívio democrático comporta uma tensão com a própria verdade. Finge o cidadão revestir seu voto de ética em seu exercício. Finge o eleito proferir promessas que serão cumpridas, quando na verdade serão esquecidas. Há vantagens no voto obrigatório?

Resumo: A presente pesquisa almeja compreender, conforme expositiva evolução histórica do exercício do sufrágio no Estado brasileiro, a manutenção da obrigatoriedade do voto e sua eficácia, tendo em vista a qualidade da participação popular no processo eleitoral, haja vista a desmoralização política ensejada no contexto corrupto no qual o país está imerso. Ademais, há ainda a presença do antagonismo que norteia a forma na qual o direito de exercício do sufrágio é disposto, sendo, pois, ocasionalmente, o voto um direito/dever do cidadão. Para tanto, emprega-se uma pesquisa de natureza aplicada, de abordagem quanti-qualitativa, dedutiva, descritiva e bibliográfica.

Palavras-chaves: Direito Constitucional. Democracia. Estado. Cidadão. Direito. Obrigatoriedade. Política.


INTRODUÇÃO

Nos dias que correm, o brasileiro vivencia uma intensa polarização política, que se reitera, nitidamente, pela terceira vez, após uma experiência em 1935 e outra em 1964. Os mais de 147 milhões de eleitores habilitados para exercer seu direito de voto encontraram-se diante de uma encruzilhada no que tange às eleições presidenciáveis de 2018, pelo fato de o pleito ter sido formado por opções limitadas, que constituíram, e ainda constituem, o pólo de duas ideologias políticas e partidárias opostas.

Notou-se, de modo geral, a figura do eleitor desconfiado, o que, por ventura, resultou na ausência de uma atuação participativa feita de bom grado pelo cidadão. Prova disso são os dados fornecidos pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), os quais informam que o nível de abstenção chegou ao mais alto nível percentual desde 1998, atingindo 20,3% dos eleitores, sendo São Paulo, o maior colégio eleitoral do país, o estado com maior número de não comparecimento. Em números, essa percentagem significa que 29,9 milhões de pessoas não se dispuseram a conferir seu voto a algum candidato, mesmo com a desburocratização do exercício do voto aos brasileiros residentes no exterior, a partir da criação do Título Net Exterior, e com a permissão do uso do aplicativo online e-Título, o qual substitui o documento físico.

Dados apontam, ainda, que o Brasil ocupa a terceira colocação no ranking de países que possuem o maior eleitorado ativo do mundo. Entretanto, mesmo diante disso, é possível observar que ir às urnas não significa plena participação do povo nas questões políticas. Ou seja, números não remetem à ideia de aptidão que traduzam o ato de votar em votar com consciência e qualidade.

O exemplo dessa realidade é o histórico de compra e venda de votos e fraudes que norteiam as eleições brasileiras desde a instauração da política representativa. Isso deixa evidente que este mecanismo é usado, na maioria dos casos, como moeda de troca, quando o próprio eleitor se permite ser usado como massa de manobra pelos candidatos, e participa desse cenário corrupto em favor do recebimento de algum benefício direto e imediato, ou é tratado como um encargo a ser cumprido em detrimento das consequências negativas do não comparecimento à zona eleitoral.

Discorrendo acerca da primeira hipótese referida, de forma papável cabe relacionar a realidade do Estado do Tocantins. O mais jovem Estado da Federação, que tem no funcionalismo público o alicerce de suas atividades política e econômica, é a ilustração perfeita da deficiência estrutural que possui o Estado Democrático de Direito brasileiro. Os tocantinenses passam por uma instabilidade institucional, tendo em vista as 5 (cinco) trocas de Governador nos últimos 10 (dez) anos. Ou seja, desde 2006 nenhum eleito direto conseguiu chegar até o final de seu mandato, prova de que há uma dissonância na dinâmica da democracia.

É diante desse antagonismo entre direito e comparecimento compulsório à zona eleitoral e dos efeitos sociopolíticos, e também econômicos, decorrentes de atos dos representantes eleitos, bem como da instabilidade institucionalizada do Estado, que será discutida sua relação e eficácia à luz da ética e democracia no Brasil, conforme a qualidade do eleitorado, e, por fim, a comparação entre voto facultativo e obrigatório, nos moldes da realidade brasileira, e suas respectivas vantagens e desvantagens.


1 O ESTADO E SEUS ELEMENTOS

O termo estado vem do latim “modo de estar”. Ortografado com a inicial maiúscula, o Estado é um ente despersonalizado, de natureza política, constituído de território, soberania e povo, elementos sobre os quais exerce o seu poder.

Para Rousseau, o Estado seria um meio de o homem, corrompido pela sociedade, retomar o seu estado de natureza, constituído por um Contrato Social que ampare os indivíduos e seus bens, bem como preserve sua liberdade.

Dias (2008), entende que esta proposta de estabelecer um Contrato Social terá como consequência a instauração do próprio Estado Democrático de Direito, no qual estará legitimada a liberdade, igualdade e soberania.

Por fim, de modo mais objetivo, e consciente da amplitude que rodeia no que consiste o Estado, Dallari (1998), disserta sobre as características dessa organização, elencando a soberania, o território, o povo e a finalidade como os pontos chaves que constituem o Estado e proporcionam sua definição, nos parâmetros de um conceito realista.

Nesse diapasão, povo é o elemento humano do Estado, constituído por indivíduos que formam sua nação. A limitação, ou demarcação geográfica da incidência de seu poder sob a égide da jurisdição, consubstanciam o território. Por fim, segundo Bonavides (2005), o poder do Estado está marcado por sua indivisibilidade, e, ainda, por sua “imperatividade e natureza integrativa do poder estatal, a capacidade de auto-organização, a unidade e indivisibilidade do poder, os princípios de legalidade e de legitimidade e a soberania”. (BONAVIDES, 2005, p. 107).

Juntos, então, os aludidos elementos materializam a formação do Estado, sendo os mesmos indispensáveis para sua existência.

1.1 Estado de Direito e Estado Democrático de Direito

Inicialmente, marcado pelo liberalismo, ou absenteísmo estatal, o Estado remetia a ideia de um “império de direito” no qual intervém minimamente na vida da sociedade.

Não obstante, progressivamente, esta intervenção é intensificada a partir da regulamentação do Estado acerca de determinadas relações jurídicas e das exigências cobradas quanto ao seu fornecimento de prestações materiais que garantissem o gozo de direitos fundamentais da sociedade, marcando então a formação de um Estado-Social, ou Estado de Bem-Estar Social.

É exatamente esse Estado de Direito, Estado-social ou Estado de Bem-Estar Social que é intitulado Estado Democrático de Direito, ou até mesmo Estado Social Democrático de Direito.

Neste ponto, pode ser que nasça uma confusão quanto a essas terminologias, tendo em vista que o que se chama de Estado de Direito, remetente à forma iniciada após a Revolução Francesa, também se pretende um Estado Democrático, porém, não sendo chamado de Estado Democrático de Direito. Isso porque a expressão “democrático”, em Estado Democrático de Direito, faz alusão não à forma de democracia representativa, mas sim à intenção do Estado de fomentar melhorias ao seu povo a partir da promoção dos direitos fundamentais sociais, sendo, por isso, chamado de Democrático.

Então, o que marca a existência do Estado é sua função de exercer a regulação de alguns aspectos da vida privada de maneira árdua, que exige, em contrapartida, uma prestação positiva dos direitos de segunda dimensão.

O Estado de Direito é aquele que emerge, via de regra, para garantir o cumprimento de normas e leis respaldadas nos valores sociais para, e pelos indivíduos integrantes de sua sociedade, bem como por seus entes públicos, em prol de que seja evitado qualquer ameaça à liberdade individual, principal princípio de sua organização.

Nesse mesmo diapasão, Morais e Streck (2006) enfatizam a preocupação social acentuada, conquistas democráticas e garantias jurídicas melhoradas, em razão de uma estrutura estatal-constitucional mais aprimorada, “devendo ser conjugados elementos formais e materiais. ” (CANOTILHO, 1998).

Logo, num Estado Democrático, uma de suas características, e incumbência, é alinhar seu controle, e prerrogativas, aos interesses do povo, na medida em que garanta o exercício de poder do mesmo.


2 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

No estado brasileiro, a democracia foi normatizada, pela primeira vez, em 1824, com a chamada “Constituição da Mandioca”. No decorrer dos séculos, foram promulgas 6 (seis) cartas constitucionais, até que, por fim, após o processo de “redemocratização” do Brasil, o Congresso promulgou a chamada “Constituição Cidadã”, sétima carta constitucional que vigora até os dias atuais.

Em seu preâmbulo, a Constituição Federal de 1988 expressa claramente seu objetivo, qual seja a instituição de um Estado Democrático, que se compromete a garantir o exercício dos direitos sociais coletivos e individuais, bem como assegurar todos os princípios fundamentais.

Nos termos do artigo 1º, está disposta a fundamentação da sistemática da governabilidade do Brasil, pautada no resguardo ao seu povo o poder de direito que lhe é conferido:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

A cidadania, citada no inciso II do referido artigo, é apontada por Luís Roberto Barroso da seguinte forma:

“A efetividade foi o rito de passagem do velho para o novo direito constitucional, fazendo com que a Constituição deixasse de ser uma miragem, com as honras de uma falsa supremacia, que não se traduzia em proveito para a cidadania. ” (BARROSO, 2006, p.06).

No exercício da cidadania o indivíduo está tomando consciência de seus direitos e deveres, o que o possibilita ser chamado de cidadão e garante a funcionalidade de uma democracia justa. Segundo Soares (2011), inclusive,a cidadania pressupõe um cidadão participando de forma ativa na condição de membro da comunidade, fazendo valer suas reivindicações mediante o sufrágio universal e sob o primado da lei.

Esse direito participativo é possibilitado pelo princípio da soberania popular, outra característica fundamental do Estado Democrático de Direito, e prevista no artigo 1º, inciso I, da Constituição brasileira de 1988.

Numa abordagem mais objetiva, Morais e Streck (2006) afirmam ser a soberania “o poder que tem uma nação de organizar-se juridicamente e de se fazer valer dentro de seu território a universalidade de suas decisões nos limites dos fins éticos de convivência”.

Nessas entrelinhas, então, o povo brasileiro, detentor de um poder que emana de si, é capaz de gozar do mesmo, diretamente ou através de representantes. Sua vontade, então, é manifestada pelo voto, dispositivo que materializa o direito de sufrágio.

2.1 Sufrágio e voto

De acordo com o filósofo inglês John Locke, o governo não deveria pertencer ao príncipe, mas ao povo, o único soberano que deveria haver. O voto é a instrumentalização do direito de sufrágio. Seu exercício traduz o apogeu da participação popular, pela qual o povo, especificamente a figura do eleitor, manifesta sua vontade quanto à predileção de seus representantes políticos. 

Com o intuito de revestir a sistemática institucional de uma materialidade democrática, capaz de instrumentalizar os princípios que dão fulcro à ideia de democracia, o Estado brasileiro cria valores básicos a partir da implantação de mecanismos que garantem o exercício de direitos fundamentais que virão a ser preservados de modo imutáveis, no intuito de proporcionar segurança política e jurídica à sociedade.

Daí o motivo de a constituição federal de 1988 ser intitulada “Constituição cidadã”.  Seu preâmbulo dá o devido respaldo à supremacia do povo, e o voto, em especifico, está previsto no artigo 14 do texto constitucional.

Calha apontar que o uso das duas terminologias como sinônimos não pode ser considerado em decorrência do fato de que cada qual se origina em momentos distintos. O voto, portanto, nasce subsequentemente ao direito de sufrágio, materializando-o de forma derivada.

2.2 Evolução histórica do direito de sufrágio e o processo de democratização do Brasil

O direito de sufrágio, percorreu entrelinhas decorrentes das modificações e evoluções dos próprios direitos políticos no Brasil, portando-o até sua configuração atual. 

Do momento de sua instauração, após o primeiro ato, ainda em sede de um contexto colonial, em 1532, até meados de 1820, o voto era concebido apenas em esfera municipal, restrita à participação tão somente de homens livres.

Somente com a Proclamação da República, em 1889, houve a progressão do voto quanto ao número de cargos que seriam escolhidos pelo povo, elencando especialmente a escolha do representante do Chefe do Poder Executivo, no caso do sistema presidencialista, o Presidente.

Em contrapartida, um tremendo retrocesso no que tange à participação de mulheres, menores de 21 anos, analfabetos, mendigos e indígenas. Alterou-se o direito político dos cidadãos, porém não necessariamente ocorreu um aumento da participação política, pelo contrário, este fora retirado, por exemplo, dos analfabetos.

Acerca destas transformações, José Murilo de Carvalho, em seu “Cidadania no Brasil. O longo caminho” afirma:

Do ponto de vista da representação política, a Primeira República (1889-1930) não significou grande mudança. Ela introduziu a federação de acordo com o modelo dos Estados Unidos. Os presidentes dos estados (antigas províncias) passaram a ser eleitos pela população. A descentralização tinha o efeito positivo de aproximar o governo da população via eleição de presidentes de estado e prefeitos. Mas a aproximação se deu, sobretudo, com as elites locais. A descentralização facilitou a formação de sólidas oligarquias estaduais, apoiadas em partidos únicos, também estaduais. Nos casos de maior êxito, essas oligarquias conseguiram envolver todos os mandões locais, bloqueando qualquer tentativa de oposição política. A aliança das oligarquias dos grandes estados, sobretudo de São Paulo e Minas Gerais, permitiu que mantivessem o controle da política nacional até 1930. (CARVALHO, 2002, p.41).

É passível de observação a problemática paralela que se instaura nas raízes da política brasileira. Em meio a todas as transformações envoltas da evolução do exercício do direito de sufrágio no Brasil, as adulterações e falhas nos resultados das eleições abria caminho a uma corrupção que impregnaria e marcaria a história do país como sua principal característica política, como discorre Nunes: 

Desse compromisso fundamental resultam as características secundárias do sistema “coronelista”, como sejam, entre outras, o mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto, a desorganização dos serviços públicos locais. (NUNES LEAL, VICTOR, 1948, p.44)

Já com a vigência do Código Eleitoral de 1932, e da Constituição de 1934, foi concedido o direito ao voto às mulheres, mas somente àquelas que trabalhassem fora. A idade foi reduzida para maiores de 18 anos e o alistamento se tornou obrigatório. Ainda estavam excluídos os analfabetos, as donas de casa, as praças de pré, os mendigos e os privados de direitos políticos.

Dentre algumas mudanças, a novidade está na criação da Justiça Eleitoral – Tribunal Superior Eleitoral e Tribunais Regionais Eleitorais –, cujo intuito fora a centralização do processo eleitoral, bem como toda sua organização, para que houvesse uma moralização do referido processo e proceder a extinção do controle da política local.

Não obstante, a imprevisível instauração do Estado Novo, em 1937, viria, pois mais uma vez, retardar o amadurecimento da democracia brasileira e comprometer a participação popular. A destituição do Poder Legislativo em prol da concentração de poder no Executivo Central representou o silencio formal do povo.

Com o advento da “Nova República”, na qual o “nova” remeteria aos novos avanços alusivos aos direitos que amparam e garantem a participação popular na política brasileira, promulgou-se a Constituição Cidadã. E, já em 1989, esta proporcionou a realização da primeira eleição direta para Presidente da República. Ou seja, o povo brasileiro gozava de direitos participativos políticos numa amplitude jamais atingida anteriormente. Entretanto, a entrada em vigência da Constituição de 88, apesar de propiciar melhorias, não extinguiu os vícios que revestiam, e revestem, a sistema político brasileiro, e tampouco os problemas econômicos marcados pelo alto grau de desemprego, embalando uma mistura paradoxal de incerteza e entusiasmo que revestem o comportamento do brasileiro diante de todo esse cenário.

Nos termos do artigo 14 da Constituição, o voto, direto e secreto, transcorreu-se à universalidade, implicando na inclusão de jovens eleitores entre 16 a 18 anos de idade, idosos com idade superior a 70 anos, e, até mesmo, dos analfabetos, de forma facultativa.

Segundo Jairo Marconi Nicolau (2004, p.8), “hoje o Brasil tem o terceiro maior eleitorado do planeta, perdendo apenas para Índia e EUA”.

Não obstante, é provável que este número se forme justamente pelo fato de o voto ser revestido de caráter obrigatório, pois, diante da aversão criada pela maioria dos brasileiros quanto à política, e políticos (representantes), levando em consideração o histórico manchado do desenvolvimento do processo político no Brasil e seus desdobramentos, seria mesmo o brasileiro tão atuante quanto parece ser diante das estatísticas?   

Segundo Assis Brasil (1931), é imprescindível a participação de todos os habilitados no pleito eleitoral e, se necessário for, deve-se criar mecanismos suficientes para garantir o máximo de participação.

Entretanto, a criação de mecanismo deve implicar no estímulo à participação voluntária, o que não se pode atestar. Nessa mesma tomada, Paulo Henrique Soares (2004, p.2) diz que o “Estado é o tutor da consciência das pessoas, impondo sua vontade sobre a vontade do cidadão até mesmo para obrigá-lo a exercer sua cidadania”.

Então, é um tanto quanto antagônico um Estado democrático, intitular de direito um processo que se consolida nos moldes de um dever.

Outrossim, a vontade de não exercer este “direito” deve ser resguardada para que a plena democracia seja uma realidade e a soberania popular assegurada. Afinal de contas, em concordância com Montesquieu, numa Democracia, os únicos interesses que precisam se sobressair são os do povo:

“A participação do povo no sistema democrático é tão importante que por muitas vezes este povo pode se considerar um monarca, pois no momento do sufrágio ele exprime toda a sua vontade. ” (MONTESQUIEU).


3 OS 20 ANOS DE DEMOCRACIA DO ESTADO DO TOCANTINS E A ILUSTRAÇÃO DA REAL REALAÇÃO ENTRE ÉTICA E DEMOCRACIA NO BRASIL

O mais jovem estado da Federação se consubstancia numa peculiaridade frente aos demais.

Após sua autonomia, o Tocantins esteve sob a gestão de 11 (onze) governadores. E o mais curioso é que 5 (cinco) dessas trocas aconteceram nos últimos 10 (dez) anos. Ou seja, nenhum governador eleito, desde 2006, concluiu seu tempo de mandato.

Marcada pelas fortes raízes coronelistas, a dinâmica eleitoral do Estado é impulsionada pela “troca de favores” entre eleitor e governante. Os cargos públicos, ocupados por “indicados”, conforme a conveniência do momento político, são usados como moeda de troca. Uma via de mão dupla é formada, e o domínio do funcionalismo público se torna um dos precedentes para o alastramento de uma corrupção passiva.

Ademais, a preocupação em satisfazer interesses individuais em detrimento dos interesses da coletividade, ocasiona o exercício do voto de forma irresponsável, comprometendo a qualidade da escolha dos eleitos, o que por ventura acaba desencadeando uma representatividade vil, que não remete a segurança esperada de um regime democrático.

Rabino Hilel, em “O Ancião”, indaga: “ – Se eu não for por mim, quem o será? Mas se eu for só por mim, o que serei eu? Se não agora, quando? ”.  

A primeira parte da reflexão, então, remete a ideia do protagonismo, da iniciativa do cidadão, de sua proatividade na ação política. Isto é, não admitir que a ação política, que se dá de várias formas, inclusive dentro de um partido, na comunidade, na escola, na família, na gestão da cidade e da vida, seja passiva.

A segunda parte do pensamento tem uma marca forte, qual seja: mas se eu for só por mim, o que serei eu? Isto é, a percepção de que a ação política e a ação na democracia ocorrem em parceria com as outras pessoas, mas não necessariamente em concordância com outras pessoas. Faz parte do processo da vida em comunidade que haja discordância. Assim, a presença do conflito como sendo um dos elementos chaves do crescimento para aquilo que é a construção de uma realidade coletiva é real. Por isso, se eu for só por mim, o que serei eu?

Por último, a terceira parte traduz-se na ideia de oportunidade, de ocasião, de momento propício, que os gregos no passado chamavam de Kairós – a hora é agora. E, seguindo essa linha de que a hora é agora, de noção de qual é o tempo histórico que se tem para não se deixar escapar uma democracia que é frágil, incipiente, que ainda não é madura na sua construção mais forte, mas que é necessária.

No Brasil, a impressão deixada a quem o observa é de que ainda há pouco afeto pela democracia. Isto é, há fragilidade na relação democracia-povo. Há a perda da paciência com certa facilidade em relação a toda a cenografia que a democracia exige. E o exemplo mais evidente disto é a ação do voto, seja como presença, seja como protesto ou como ausência deliberada. Um “pedaço” pequeno, mas extremamente importante do processo democrático, que, por muitas vezes, não é de base consensual, prova disso, a própria eleição após votação.

Não obstante, a ausência de pleno consenso não remete a ausência de ordem. A democracia é ausência de opressão. E nesse sentido, a opressão se dá de vários modos, inclusive por aquilo que Bertold Brecht chamou de “analfabetismo político”, ou seja, às pessoas é furtada a condição de terem a possibilidade de terem uma consciência mais nítida no que tange sua participação, ou exercício da cidadania. Portanto, “se eu não for por mim, quem o será? ”.

A democracia tem uma vocação para institucionalizar conflitos. Tal institucionalização passa tanto pelo poder político oficial, dos partidos políticos e dos três Poderes, quanto pelas escolas, pela mídia e pela prática do pensamento público.

Mas é essa democracia que tem uma dificuldade com a ideia de verdade, tendo uma vocação natural a diluir qualquer noção do verdadeiro numa concepção numérica, estatística, como, por exemplo, mais uma vez, por meio de votos. Essa característica da democracia, que em filosofia se diz “vocação natural a ser sofista”, retórica, leva-se a defender uma posição pela qual serão arguidos argumentos que tentem convencer em favor dessa posição. Mas pelo que, ou por quem, votamos? A questão está justamente nos fatores que levam a essas escolhas políticas.

Nitidamente, essas escolhas não parecem ser, a priori, escolhas racionais, já que passa por identidade, por afeto, por simpatias, por questões contingencias de cada um, ou da classe social que vive, ou das oportunidades que teve ou não, ou ainda das oportunidades que poderá ter, ou não.

A maneira como se vota no Estado brasileiro é o desenho fiel da ausência dessa educação política. À sociedade não é ensinado a dispor da escolha de um represente com base num pensamento coletivo, mas sim individual.  

Então, se por um lado a democracia tem uma vocação no mundo contemporâneo de ser um grande objeto de esperança, por outro lado ela possui dificuldades e limites.

Uma das dificuldades que se observa neste regime é quando se aborda a ética na democracia, ou a ética na política. Há uma tensão nesse ponto. Muitas vezes, o que importa é a chegada ao poder, bem como a permanência neste, mesmo que para isso se tenha que usar de uma retorica que fale do bem, e apenas fale.  Muitas vezes, o que importa é dispor de um voto na confiança de que uma troca de favores se perpetuará. Ou seja, em ambos os polos da relação votante-votado há a perda do propósito final da democracia representativa, primeiro, porque no Brasil o povo não vota para o povo, segundo, porque os governantes não governam para seu povo.  

O convívio democrático, portanto, comporta uma tensão com a própria verdade. Finge o cidadão revestir seu voto de ética em seu exercício, legalmente perfeito, mas moralmente duvidoso. Finge o eleito proferir promessas que serão cumpridas, quando na verdade serão esquecidas.

Uma parte do brasil está pagando o preço de, por exemplo, elevação de impostos da gasolina, porque o governante tem que pagar o custo altíssimo da venda de seu governo.

Valorizar a democracia e estudá-la não significa simplesmente ter uma relação de idealização e culto ao regime, mas sim, também, compreender sua dimensão negativa, no sentido de compreender sua natureza conflitiva, incompleta, insatisfatória e produtora de desvios, que as vezes leva à percepção de que muitas vezes não se sabe onde está a verdade na democracia, fomentando a tomada de decisões irracionais em seu exercício.

Gamiliel, o Ancião, um dos ancestrais diretos do cristianismo, trouxe a ideia rabínica de que o amor supera a justiça, bem como a ideia da superação da Lei de Talião. Essa ideia é ideal. Aposta-se nela ao “romantizar” a democracia. Ou seja, imperfeita, mas perfectível, passível de ser melhorada e de crescer. Essa seria uma posição de crença no potencial positivo da democracia no seu idealismo e também na sua excelência defeituosa. Mas foi em nome dessa democracia que crimes imensuráveis foram cometidos, razão pela qual uma de nossas raízes filosóficas, Platão, era um cético desse regime.

Então, a democracia também é vista como um escudo para um lado “obscuro”. Tal lado é aduzido por Edmund Burke, no século 18, ao ter uma posição de desconfiança quanto ao êxito mediato da Revolução Francesa. Isso proporciona refletir que quando se coloca no poder a utopia, crimes são potencializados, porque tudo que não se adequar a ela, será destruído. Em nome da utopia, seja ela de raça, de direito político ou de justiça, mata-se mais do que em nome da própria ditadura. Isto pois um sistema com bases legais, burocraticamente perfeito, remete à uma ideia de o mesmo é inquestionável.

Ainda que seja possível apostar num sistema que trabalha melhor com o ser humano. E um cético conservador, como Jorge Luis Borges, afirmou que é uma superstição numérica, é a crença de que a maioria vai constitui o bem, tendo em contrapartida o que o conservador Winston Churcill afirma ser a democracia: o pior dos sistemas, com exceção de todos os outros, a democracia ainda é tida como algo passível de ser aperfeiçoado. E para que sua perfectibilidade, é imprescindível não se esquecer da extensão dos demônios que ela encobre.

A vontade do homem de ser bom, com frequência, esconde crimes, desejos e maldades indescritíveis. É pertinente lembrar que a tradição absolutamente ideal e subjetiva de Hiller de entender o espirito da lei, e não a lei, ou seja, que o ser humano redefina as relações, e que haja uma chance de ele obter uma redenção pessoal, e até coletiva e política, é o outro polo. O polo de quem acredita que é possível sair da caverna platônica. Uma pessoa com consciência crítica é melhor que uma pessoa sem isso, ou a ignorância é uma benção?

A democracia é o melhor que conseguimos. O brasil de verdade é uma democracia real ou é uma democracia aparente? Se a democracia não é o mais astuto de todos os estratagemas conservadores já concebidos, já que faz crer, através da magia eleitoral, que o povo tenha alguma importância na política, quando a política continua a ser como era em Esparta, decidida por uma Gerúsia, hoje Senado Federal. Mas como é inconcebível que o Senado exerça o seu poder oligárquico, tem-se, pois, que disfarçar, fazendo crer, de vez em quando, que o povo tem alguma importância neste processo. Seria a democracia a forma mais perfeita de ditadura já criada pelo homem, porque ninguém pode ataca-la, e ninguém pode destruí-la sem ser acusado de ser fascista. Seria a democracia, então, a gaiola mais dourada que a espécie humana ocidental teria conseguido imaginar.

Por isso o questionamento acerca de o voto ser, até hoje, obrigatório, por constituir uma parte de uma esfera aparentemente perfeita de um sistema governamental legalmente bom, mas impregnado de imoralidades éticas que parecem não ser suficientes para que uma mudança eficaz se instaure na política brasileira.


4 AS VANTAGENS E DESVANTAGENS DO VOTO OBRIGATÓRIO

A título de curiosidade, uma característica presente em países, em sua maioria, subdesenvolvidos, a obrigatoriedade do voto remete a um “poder-dever” do povo, o qual implica na ampla participação do eleitorado no processo eleitoral, logo, há intervenção popular em questões públicas.

Além disso, o exercício do voto é fator determinante de educação política do eleitor, isto é, o envolvimento do cidadão nas questões eleitorais torna-o ativo. Não obstante, tal ativismo, muito embora remeta a elevados números participativos, não se converte em qualidade de atuação, tendo em vista ser o voto, na maioria das vezes, exercido de modo inconsciente, em consequência de sua essência obrigatória.

Nesse diapasão, abre-se precedente para que políticos se aproveitem da deficiência em educação política da massa, que por ventura se torna “de manobra”, e permite que seu voto seja usado como moeda de troca para a manutenção da velha política. 

É ilusão, portanto, acreditar que a obrigatoriedade do voto causa evolução na mentalidade política do brasileiro. Seu interesse, a priori, está apenas no cumprimento de uma obrigação, que não significa que houve compreensão, por parte do eleitorado, da importância do voto na evolução da democracia. Logo, contata-se uma visão distorcida do significado de eficácia na participação, já que o fato de o eleitor ir a uma seção eleitoral não significa que ele esteja interessado nas propostas dos candidatos e dos partidos políticos.

Na prática, o elevado índice de votos brancos e nulos é prova de que participar da votação não significa dispor o voto num candidato especifico.

A alternativa, portanto, de promover a seleção do eleitorado, seria a instauração do voto facultativo, o qual melhoraria a qualidade do pleito eleitoral, consagrando o exercício do voto como o exercício de um direito ou liberdade de expressão. Isto é, o voto seria proferido de maneira espontânea, a partir do entendimento da importância de sua disposição, o que por ventura reduziria o número de votos brancos e nulos, já que não remeteria mais ao cumprimento de uma obrigação acompanhada de uma sanção, caso descumprida, e sim de um direito pleno, referente a um poder que emana do povo.


CONCLUSÃO

É tão democrático conceder ao cidadão o direito de votar quanto conceder ao mesmo o direito de não se manifestar.

O voto facultativo, e não o obrigatório, é que conscientiza o eleitor do seu papel cívico, dando-lhe condições para que ele analise todo o sistema e possa refletir e agir livremente, de acordo apenas com a sua consciência e vontade, no momento em que optar entre votar ou não. Este é o verdadeiro significado de educação e maturidade política.

Ademais, ao observar a realidade, não com os olhos do que ela deveria ser nos moldes dos ideais democráticos plenos, mas como ela de fato é, percebe-se que muitas vezes o poder está concentrado nas mãos de pessoas que nunca foram submetidas a, por exemplo, uma votação.

Ou seja, a divisão de Montesquieu abre, hoje, um novo problema típico de uma sociedade capitalista contemporânea: quem de fato manda, não é eleito, e quem não tem poder, é eleito. Entretanto, concentra-se toda discussão política em torno do eleito, e não em torno da estrutura do poder. Neste ponto está uma subjetividade da palavra “democracia”.

“Quem me atende não manda, e quem manda não me atende”. Uma metáfora que ilustra perfeitamente a democracia brasileira. Isso, fora o histórico manchado e sem credibilidade da política brasileira, é uma das hipóteses que justifica a falta de interesse do povo no processo eleitoral. Por esta razão, a democracia, em mais de 2.500 anos de desenvolvimento, encontra, desde a sua criação pelos gregos, críticos ferozes.

Os filósofos, em sua maioria, eram um tanto quanto desconfiados desse sistema de governo. Platão, por exemplo, não é seduzido pela democracia. Em seus diálogos, afirmou que o mundo seria perfeito se os homens fossem modestos, bastando a prática do anarquismo, e que todas as formas de governo tendem a se extinguir em virtude de seu princípio básico.

Decai a aristocracia em razão da restrição em demasia de seu círculo de poder. Decai a oligarquia devido a ambição que fomenta a imprudência dos oligarcas. A solução: a democracia e o seu princípio da liberdade de direitos. Nada obstante, cairia, também, esse sistema, pelo simples fato de que o próprio povo não estaria preparado para escolher seus governantes. É muito oportuno pensar, então, que a consequência dessa democracia seria, paradoxalmente, a própria tirania, tendo em vista a oportunidade para que um homem se auto intitule um protetor, ou salvador da pátria.

Sendo assim, ao analisar a filosofia de Platão, é perceptível sua abordagem acerca do interesse em encontrar uma forma eficaz de impedir que governantes despreparados obtenham o poder do povo. E é justamente o oposto do referido pensamento que a obrigatoriedade do voto provoca, tendo em vista a ausência de uma base educacional capaz de proporcionar a formação de um pensamento coletivo ético politizado.


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MONTURIL, Julyana. O comparecimento compulsório à zona eleitoral e sua relação com a ética e a democracia no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5849, 7 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73937. Acesso em: 24 abr. 2024.