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A prova proibida no processo penal

as conseqüências de sua utilização

A prova proibida no processo penal: as conseqüências de sua utilização

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O trabalho investiga o instituto da prova no Processo Penal, mormente a validade da prova proibida e as conseqüências que decorrem de sua utilização, quando indevidamente admitida nos autos, tomando por base a teoria das nulidades.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA VERDADE; 1.1. A evolução das formas de apuração da verdade; 1.2. A busca da verdade como mito; 2. DA PROVA NO PROCESSO PENAL; 2.1. Conceito, finalidade e objeto da prova; 2.2. Meios de prova; 2.3. Princípios que regem a produção probatória; 2.4. Sistemas de avaliação das provas; 2.5. O direito à prova e seus limites; 3. DA PROVA PROIBIDA NO PROCESSO PENAL; 3.1. Prova ilegal e suas espécies: prova ilícita e ilegítima; 3.2. Postura a favor da admissibilidade da prova ilícita; 3.3. Postura contra a admissibilidade da prova ilícita; 3.4. Posturas intermediárias; 3.5. Prova ilícita por derivação; 4. O DIREITO BRASILEIRO DIANTE DA PROVA ILÍCITA; 4.1. A prova ilícita antes da Constituição Federal de 1988; 4.2. A prova ilícita após a Constituição Federal de 1988; 5. CONSEQÜÊNCIAS PROCESSUAIS DA ADMISSÃO INDEVIDA DA PROVA PROIBIDA; 5.1. Prova ilegítima: conseqüências; 5.2. Prova ilícita: conseqüências; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.


INTRODUÇÃO

            O presente trabalho monográfico se propõe a investigar o instituto da prova no Processo Penal, mormente a validade da prova proibida e as conseqüências que decorrem de sua utilização, quando indevidamente admitida nos autos, tomando por base a teoria das nulidades do Processo Penal.

            Dar-se-á especial ênfase às questões constitucionais decorrentes deste estudo, em especial a análise do artigo 5º, inciso LVI da Constituição da República de 1988.

            Considera-se necessário um estudo aprofundado sobre o referido tema, já que, analisando-se superficialmente o supra mencionado dispositivo constitucional, não parece ele estabelecer exceções a esta regra geral acerca da inadmissibilidade da produção de tais provas e seu conseqüente ingresso ao processo, porém, há dissenso na doutrina e jurisprudência pátrias acerca de tal questão.

            A vigente Lei Maior estabelece uma série de direitos e garantias individuais que sofrem, contudo, limitações. Tais limitações decorrem do fato de que os direitos fundamentais não são mais concebidos como direitos individuais absolutos, mas direitos do homem inserido na sociedade.

            É regra no processo a liberdade probatória, eis que é dado às partes o direito à prova, e a exceção traduz-se na inadmissibilidade da produção de determinadas provas em juízo; assim, tais exceções necessitam ser justificadas de maneira relevante. Neste contexto, o direito à prova, ou seja, o direito que é dado às partes litigantes em processo judicial de provar o que alegam, não é irrestrito, já que encontra limitação legal e ética com o escopo de proteger o indivíduo em sua intimidade.

            É certo que no plano infraconstitucional constituem limitações probatórias, por exemplo, a recusa de depor consentida aos parentes do acusado e o impedimento para depor de pessoas que devam guardar segredo em razão de seu ofício ou profissão. Porém, versará a presente monografia sobre a limitação constitucional atinente à produção probatória, que se encontra relacionada no art. 5º da Carta Maior, inciso LVI – princípio que assegura a proibição de ingresso nos autos das provas obtidas por meios ilícitos.

            Deste modo, o objetivo do legislador constituinte é vedar o ingresso, no processo, da prova considerada ilícita, ou seja, colhida de forma que afronte norma jurídica, de direito material ou processual, ou em afronta a princípios constitucionais ou mesmo processuais. É sabido, porém, que nem sempre se faz possível obstar o ingresso nos autos da prova proibida, seja por questões de ordem prática, seja por descuido mesmo do magistrado. Assim, o legislador quer também evitar que tais provas, uma vez tendo ingressado nos autos, sirvam como base de fundamentação para decisão do juiz.

            Pairam divergências, no entanto, sobre as conseqüências advindas da utilização, no processo, de provas desse modo obtidas, ou seja, a prova vedada que ingressa nos autos, a despeito da proibição de sua utilização. A Constituição da República de 1988, muito embora vede o ingresso nos autos desta prova, não estabelece as conseqüências decorrentes da utilização.

            Portanto, faz-se necessário estudar e discorrer a respeito da conseqüência processual desta utilização: se acarretará nulidade absoluta do processo em que esta prova foi produzida, fulminando-o totalmente; se o processo somente será anulado a partir da admissão desta prova ilicitamente produzida ou mesmo se tal prova é considerada ato inexistente no mundo jurídico.

            Atualmente, suscita-se a questão de, em algumas hipóteses, ser permitida a produção e utilização da prova ilícita. Casos há em que, por exemplo, a prova ilícita seja a única existente ou mesmo a prova hábil a promover a absolvição do acusado, portanto passível de ser utilizada pro reo - em favor do réu. A jurisprudência tem entendido que, em hipóteses muito particulares e restritas, pode-se permitir a utilização desta prova tida por ilícita, já que, com seu posterior ingresso ao processo, deixará de ser proibida, eis que admitida sua produção.

            Neste diapasão, surgem correntes doutrinárias que se manifestam sobre a questão, apresentando os mais diversos argumentos. Há quem pugne pela admissibilidade processual da prova ilícita, apenas devendo punir o ilícito praticado pela parte que produziu a prova; outros entendem pela inadmissibilidade dessas provas, em quaisquer circunstâncias, eis que sua produção encontra-se vedada pelo texto constitucional; também há os que entendem pela exclusão da ilicitude e, portanto, permissão de utilização desta prova. Por fim, há os que se filiam à corrente que crê que deva sempre preponderar o interesse jurídico mais valioso em questão, que traduz a conhecida teoria da proporcionalidade ou razoabilidade.

            Mas, o tema ainda está longe de ser pacificado.

            É pelas razões acima expostas que a presente monografia objetiva demonstrar que o artigo 5º, inciso LVI, da CR/88, ao estatuir que são inadmissíveis no processo as provas obtidas por meios ilícitos, não consegue, por si só, solucionar as inúmeras controvérsias no que tange à proibição da produção ou de ingresso de tal prova nos autos, já que diante de casos concretos tal proibição é relativizada.

            Assim, o presente trabalho pretende analisar as conseqüências processuais decorrentes da utilização da prova ilegal como forma de convencimento do magistrado.

            Para tanto, necessário se faz discorrer sobre a busca da verdade no Processo Penal, o que será feito no primeiro capítulo; estudar a fundo a prova no Processo Penal, sua finalidade, seu objeto, os meios de prova admitidos no ordenamento, os sistemas de avaliação das provas e os princípios que norteiam a produção probatória, tema de estudo que encontrará guarida no segundo capítulo. Visto isto, dever-se-á discutir, no terceiro capítulo, os diversos conceitos atinentes ao instituto da prova proibida, abordando-se, para tanto, as inúmeras teorias doutrinárias e jurisprudências que sobre o assunto se manifestam. No quarto capítulo estudar-se-á a prova ilícita antes e após o advento da Constituição de 1988 e, finalmente, no quinto capítulo serão analisadas as conseqüências processuais da admissão indevida da prova proibida.

            Por isso, considera-se importante o estudo do tema em apreço pelo fato de a prova configurar o cerne do Processo Penal. Este tem por fito a incansável busca pela certeza, que se quer seja levada ao conhecimento do magistrado por meio da faculdade de que dispõem as partes de provar os fatos que alegam.

            Sendo, então, fundamental a prova ao Processo Penal, tem ela que se revestir de requisitos válidos, não podendo conter vícios em sua formação. Por outro lado, há que se considerar que estão em jogo, no mesmo Processo Penal, a liberdade do indivíduo e a segurança da sociedade. Disto decorre o entendimento de que, às partes, é possível lançar mão de todos os meios de prova, ainda que colhidas de maneira ilegal.

            É exatamente neste ponto que reside o paradoxo do sistema probatório penal, fazendo-se importante o estudo do tema em comento com o fito de dirimir o dilema de preferir-se que o crime apurado com base numa prova ilegalmente colhida permaneça impune ou que a prova deste modo produzida seja apreciada e conhecida pelo Juízo.

            Considerando-se os objetivos da investigação, utilizar-se-á pesquisa descritiva, documental e bibliográfica, além de farto material jurisprudencial, a título de exemplificar os julgamentos acerca do tema em tela. Referida pesquisa orientar-se-á pelo modelo crítico dialético, para o que serão contrapostos diferentes pontos de vista sobre o assunto, qual seja, as conseqüências da utilização indevida da prova proibida no Processo Penal.


CAPÍTULO 1 – CONSIDERAÇÕES ACERCA DA VERDADE

            1.1. A evolução das formas de apuração da verdade

            As formas por meio das quais se manifesta o Processo Penal vêm se desenvolvendo ao longo da história e sofrendo variações em função de condições sociais, políticas e religiosas, sendo a sua importância e autonomia reconhecidas em maior ou menor grau ante as peculiaridades de cada época, não olvidando de seu papel de instrumento por meio do qual se visa à aplicação da sanção penal àquele que violou regra de boa convivência estatuída em norma penal incriminadora.

            Com o escopo de percorrer este caminho ao largo da história, importa iniciar breve estudo acerca da evolução do Processo, visto este como o meio hábil à apuração da verdade, verdade, porém, que se constitui um mito, como adiante se evidenciará, e, por conseguinte, à solução dos conflitos.

            Michel Foucault, em sua obra A verdade e as formas jurídicas, desempenha, com maestria, o papel de guia pelos caminhos da história, o que vem a autorizar a sua invocação como fonte fiel das informações relevantes à investigação que nesta oportunidade se pretende desenvolver. [01]

            A mais primitiva forma de apuração da verdade de que se tem notícia remonta à antiga Grécia, como identificada por Foucault na obra Ilíada, de Homero. O sistema da prova, nesta época, era o procedimento utilizado com o fito de solucionar uma contestação apresentada.

            Para tanto, diante de uma controvérsia, os adversários lançam um desafio e invocam o testemunho dos deuses a fim de que estes se manifestem indicando qual é a verdade. Assevera Foucault que, por este sistema, a prova da verdade é estabelecida "(...) judiciariamente não por uma constatação, uma testemunha, um inquérito ou uma inquisição, mas por um jogo de prova." [02] O procedimento calcado na prova é característico da Grécia no período arcaico, ressurgindo, porém, em alguns sistemas jurídicos da Alta Idade Média.

            Alguns séculos depois, já na época clássica retratada na tragédia Édipo Rei, de Sófocles, surge um procedimento de pesquisa da verdade denominado por Foucault de "lei das metades" [03], segundo o qual se busca construir a verdade através da junção de respostas. É uma fase em que ainda se verifica forte influência do pensamento mítico, sendo a maioria das respostas encontradas decorrentes das informações prestadas por oráculos ou adivinhos. Porém, presente se faz pela primeira vez a figura da testemunha, ou seja, aquele que conhece o passado e, assim, pode "(...) contestar e abater o orgulho do rei ou a presunção do tirano". [04] Esse poder da testemunha decorre não da força divina ou de sua posição na sociedade, mas do conhecimento que possui da verdade. Sua importância é tamanha a ponto de Sófocles conceder tal saber a um pastor que, ao invocá-lo, provocou a queda de Édipo, o soberano de Tebas.

            Foucault prossegue, em sua citada obra, afirmando que:

            Esta grande conquista da democracia grega, este direito de testemunhar, de opor a verdade ao poder, se constituiu em um longo processo nascido e instaurado de forma definitiva, em Atenas, ao longo do século V (a.C.). Este direito de opor uma verdade sem poder a um poder sem verdade deu lugar a uma série de grandes formas culturais características da sociedade grega. [05]

            Em função dessa inovação cultural decorreu a inovação procedimental na forma de apuração da verdade. Paulatinamente, o povo se apoderou do direito de dizer a verdade e de opô-la a seus senhores e governantes. Iniciou-se, destarte, um processo de elaboração de formas racionais de prova e demonstração da verdade, de onde decorrem a "(..) Filosofia, os sistemas racionais, os sistemas científicos" [06]. Desenvolve-se, igualmente, a arte da persuasão, ou "(...) de convencer as pessoas da verdade do que se diz, de obter a vitória para a verdade ou, ainda, pela verdade" [07]: traduzida na retórica grega. Destaca-se, ainda, o reconhecimento do saber decorrente do testemunho, da lembrança, o que vem a possibilitar a instauração do inquérito.

            O modelo grego de inquérito, concebido inicialmente como forma de descoberta judiciária, acaba por fornecer o modelo de pesquisa a ser utilizado por outros ramos do saber, como a filosofia ou a retórica. Em âmbito jurídico, desenvolve-se a figura do inquérito até alcançar seu apogeu já no período de dominação do Império Romano, em cujo sistema jurídico variadas formas de tutela dos interesses privados foram elaboradas.

            Em Roma, desenvolveu-se a idéia da actio, instrumento de invocação de uma primitiva tutela estatal, que se exercia por meio de um sistema de ações específicas através das quais buscava-se solucionar os conflitos. O procedimento de apuração da verdade atingiu alto nível de sofisticação, tendo passado por várias etapas evolutivas, incluindo-se a elaboração do sistema probatório e a inserção da figura do julgador como terceiro imparcial. [08]

            Esta figura do julgador imparcial, porém, somente era convocada para dirimir conflitos após a atuação de um dos litigantes impondo ao outro a realização de sua vontade. Desta feita, o recurso ao árbitro tinha o condão de chancelar o exercício privado do direito, não se reconhecendo a competência deste para, previamente, estabelecer a titularidade e os limites para a realização dos direitos subjetivos, autorizando ou se substituindo ao particular neste papel. [09] Ainda não há que se falar nesta época, portanto, em publicização da atividade jurisdicional nos moldes atualmente conhecidos.

            Ultrapassada a era de apogeu do Império Romano do Ocidente e de influência da cultura grega, o inquérito é deixado ao esquecimento e substituído por outras formas de apuração da verdade que, entretanto, mantêm elos com algumas das práticas desenvolvidas por estes dois povos acima aludidos.

            O Direito Germânico possuía muitos pontos em comum com o Direito Grego Arcaico, em especial o recurso ao jogo da prova como forma de solução dos litígios. Caracteriza-se o sistema pelo embate direto entre indivíduos sem qualquer forma de intervenção da sociedade ou dos detentores do poder, assemelhando-se a uma vingança ritualizada, "(...) uma forma singular e regulamentada de conduzir uma guerra entre os indivíduos e de encadear os atos de vingança". [10]

            São sistemas semelhantes a este que sucedem, na referida parte do mundo, ao Direito Romano, com procedimentos calcados em provas de força, sem

            (...) a intervenção de um terceiro indivíduo que se coloque entre os dois como um elemento neutro, procurando a verdade (...); um procedimento de inquérito, uma pesquisa da verdade nunca intervém em um sistema desse tipo. [11]

            Neste sentido, pode-se dizer que o Direito do período feudal identifica-se com o sistema Germânico, fundamentado no jogo da prova. Era um sistema em que não se buscava apurar a verdade mas, tão somente, a força e a importância dos contendores. O testemunho, portanto, não era considerado no procedimento, o qual se voltava à apuração de considerações morais e sociais acerca das partes envolvidas. [11]

            Aparecem, nesta fase, as chamadas provas de tipo verbal, na qual o acusado deve se defender pronunciando algumas fórmulas pré-estabelecidas. Se a tarefa for realizada com correção, o acusado venceria o embate, que se restringia a um duelo verbal. Com o passar do tempo, porém, passou-se a admitir a substituição das partes por representantes que, em seu lugar, pronunciavam as fórmulas, o que, segundo Foucault, assinalaria o surgimento da figura do advogado.

            Outra variação do jogo da prova eram os ordálios, provas corporais às quais eram os acusados submetidos, afrontando-os com os elementos naturais, sempre em conformidade com o propósito de se apurar quem é mais forte. [13]

            Diante do que acima foi narrado, é de se verificar que o Direito do período feudal era, predominantemente, calcado em um embate de forças nada afeito à idéia de busca pela verdade. Os variados procedimentos desenvolvidos não visavam à pacificação com o pronunciamento, por meio de uma terceira pessoa, de uma decisão que estabeleça quem diz a verdade.

            Entretanto, de forma excepcional e gradual foram surgindo situações em que tal intervenção se dava nos moldes desenvolvidos no sistema Romano. Como lá, o sistema Germânico eventualmente admitia a atuação de uma terceira pessoa com o fito de chancelar ou repelir a constrição imposta a um particular por outro, que se julgava titular de um direito subjetivo. [14]

            Esta realidade é modificada na segunda metade da Idade Média, quando se faz possível identificar o surgimento de novas formas e condições de busca do saber. "Esta modalidade de saber é o inquérito que apareceu pela primeira vez na Grécia e ficou encoberto depois da queda do Império Romano durante vários séculos." [15]

            Quatro características são destacadas por Foucault como fundamentais à compreensão deste novo sistema que surge, em que se buscou implementar um Poder que objetiva solucionar litígios, deixando a terceiro imparcial a sorte do julgamento: a apropriação, por parte do poder central, da capacidade de criar regras regulamentadoras dos litígios e impor as soluções; o surgimento da noção de infração, a qual consiste na ofensa de um indivíduo à ordem imposta, à sociedade, ao próprio soberano; a criação da figura do Procurador, representante do soberano responsável por em seu nome agir, exigindo a reparação da infração contra aquele verificada, lesado que foi pelo dano que o particular perpetrou; e, por fim, também como decorrência da idéia de infração, passa o soberano, entendendo-se lesado sempre que algum particular comete delito, a exigir deste uma reparação, em geral, por meio da cobrança de multas, eficiente instrumento de confisco de riquezas. [16]

            Como decorrência deste processo, o inquérito, desenvolvido a partir de práticas do Direito Romano preservadas pela Igreja, passa a servir como instrumento para a busca da verdade, permitindo, a um só tempo, o afastamento dos embates corporais e dos jogos de prestígio e riqueza típicos dos mecanismos de autotutela e a viabilização do exercício do poder do soberano.

            O Inquérito passa a ter por escopo a perseguição da verdade, possibilitando a apuração acerca da autoria das lesões às leis (as quais se identificavam com faltas morais, decorrência da enorme influência religiosa de então) e justificando as punições aplicadas e a reparação dos interesses do detentor do poder.

            Em atenção a este propósito ressurge a figura da testemunha, daquele que sabe porque viu (e não porque é dotado de alguma autoridade); de igual forma passam a ter influência conhecimentos oriundos de outras ciências como a geografia ou a medicina.

            Em suma, afigura-se o inquérito como uma nova forma de saber, não um conteúdo, mas um procedimento capaz de levar à verdade. Neste diapasão, assevera Foucault que

            O inquérito é precisamente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício do poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de autentificar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir. O inquérito é uma forma de saber-poder. [17]

            Deste modo, a consagração do inquérito como mecanismo para a apuração da verdade implicou no seu aperfeiçoamento em conformidade com os interesses em cujo nome era utilizado. Desenvolve-se o Processo Penal dentro destes moldes, agora já seguindo o caminho que lhe conferiu os traços que ostenta nos dias atuais.

            1.2. A busca da verdade como mito

            Muito se tem falado e debatido acerca do fim buscado pelo processo, em especial o Processo Penal. Há doutrinadores que, inclusive, sustentam que o Processo Penal estaria a buscar a verdade real, enquanto que o Processo Civil se contentaria com a mera verdade formal.

            Com efeito, o genial estudioso Francesco Carnelutti passou parte de sua vida a afirmar que por meio do processo se busca a verdade material ou real e obtém-se a verdade formal. Afirmação, porém, que o próprio processualista italiano veio a refutar no ano de 1965, com a publicação de verdade, dúvida e certeza, texto no qual elucida o caráter de unicidade da verdade, considerando, destarte, equivocada a divisão da verdade em verdade formal e verdade material. [18]

            Assim, por ser a verdade uma só, em vista de sua unicidade e inteireza, descabe a distinção propalada por muitos entre verdade formal e verdade real [19]. E mais que isso, a verdade, ante o fato de estar ela na totalidade dos fatos e não em parte deles, jamais poder ser alcançada e compreendida pelo homem, razão pela qual o que é buscado por intermédio do processo não é a verdade, mas sim a certeza.

            Neste sentido manifestou-se o ilustre Carnelutti ao asseverar:

            A verdade de uma coisa nos foge até que nós não possamos conhecer todas as outras coisas e, assim, não podemos conseguir senão um conhecimento parcial dessa coisa. (...) Em síntese, a verdade está no todo, não na parte; e o todo é demais para nós. (...) Portanto, a minha estrada, começada por atribuir ao processo a busca da verdade, deveria ter substituído a investigação da verdade, pela da certeza. [20]

            Por isso mesmo que debater sobre processo é não olvidar da atividade de recognição, ou seja, da atividade de reconhecimento dos fatos, na medida em que se tem um juiz com jurisdição que desconhece os fatos, mas que precisa apreendê-los em sua totalidade a fim de solucionar a controvérsia que lhe é posta à apreciação pelas partes – autor e réu.

            É justamente esse julgador, terceiro imparcial, que tem o dever-poder de dizer o Direito no caso concreto, e, em se tratando de Direito Processual Penal, é o juiz penal que tem o Poder de, diante do caso em apreço, declarar se determinado indivíduo cometeu o delito que lhe é imputado e, sendo positiva a resposta, aplicar a conseqüente sanção penal.

            Com o fito, então, de "sanar a ignorância" [21] do magistrado é que as partes, via instrução processual, lançarão mão das provas, que visam a reconstrução de fatos já passados, de modo que ao magistrado seja possível o conhecimento dos acontecimentos históricos e a solução da controvérsia em questão.

            É certo que a instrução pelo conhecimento do fato não pode se dar de qualquer forma, em desrespeito aos direitos e garantias individuais, vez que estes estariam a configurar limitação à atuação do Estado-Juiz à busca do conhecimento e ao alcance da certeza.

            Tempo houve, no entanto, em que a busca do conhecimento pela reconstrução dos fatos se dava a qualquer preço, inclusive com o cometimento de inúmeras barbáries e desrespeito a garantias individuais, de que é exemplo a inquisição. Isso não mais subsiste hodiernamente, eis que "instruir, então, pelo conhecimento do fato, tem um preço a ser pago pela democracia (não avançar nos direitos e garantias individuais), mas que há de ser pago a qualquer custo, sob pena de continuarmos, em alguns pontos, sob a égide da barbárie (...)." [22]

            Deste modo, como demonstrado está o equívoco da busca da verdade como fim último e único do Processo Penal, posto que este visa ao alcance da certeza que se materializa na convicção do julgador, não detém, o magistrado, liberdade absoluta, já que encontra limites à sua liberdade atuação.

            Assim, é de se inferir que deve o juiz respeitar os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, sob pena de imprestabilidade da prova colhida com infringência a aludidos direitos, como a seguir restará evidenciado.


CAPÍTULO 2 – DA PROVA NO PROCESSO PENAL

            Conceito, finalidade e objeto da prova

            O Processo Penal visa, em síntese, a declaração da existência ou inexistência da responsabilidade criminal do réu e a conseqüente imposição de sanção, acaso se convença o magistrado da responsabilidade penal daquele indivíduo que se vê processado. Para tanto, deve o juiz convencer-se acerca da veracidade ou falsidade das afirmações feitas pelas partes (autor e réu) ao longo do processo, o que é feito por meio da prova.

            O conceito de prova, portanto, envolve aspectos variados, não sendo unívoco. No campo jurídico, pode-se conceituar a prova como sendo o instrumento de que se valem as partes para demonstrar ao juiz elementos que o convençam acerca dos fatos controvertidos da causa.

            Assim, a prova consiste, em síntese, na demonstração da existência ou veracidade daquilo que se alega em juízo [23]. Neste contexto, Júlio Fabrini Mirabete [24] leciona que:

            (...) ‘provar’ é produzir em estado de certeza, na consciência e na mente do juiz, para sua convicção, a respeito da existência ou inexistência de um fato, ou da verdade ou falsidade de uma imputação sobre uma situação de fato, que se considera de interesse para uma decisão judicial ou a solução de um processo.

            Tanto assim é que o fim prático e finalidade primeira da prova é o convencimento do magistrado, já que este terá que solucionar a lide com base nos elementos trazidos aos autos pelas partes litigantes.

            Desse modo, o objeto da prova é tudo aquilo que deverá ser demonstrado ao juiz, pelas partes, a fim de que adquira aquele o conhecimento necessário para solução da questão sob apreciação. É de se ressalvar que somente serão objeto de prova os fatos relevantes sobre os quais versa a lide, devendo fazer, a parte, prova dos fatos incontroversos, com bem ensina Paulo Rangel [25]:

            No processo penal os fatos, controvertidos ou não, necessitam ser provados, face os princípios da verdade real e do devido processo legal, pois, mesmo que o réu confesse todos os fatos narrados na denúncia, sua confissão não tem valor absoluto, devendo ser confrontada com os demais elementos de prova dos autos.

            Ficam, porém, excluídos da atividade probatória os fatos axiomáticos ou intuitivos (fatos que por si mesmos são evidentes), os fatos notórios (por todos conhecidos) e os fatos presumidos (pelo fato de a lei presumi-los verdadeiros, não necessitam de prova). [26]

            2.Meios de Prova

            Se as partes trarão ao magistrado os elementos que possibilitarão a este formar sua convicção acerca dos fatos alegados, terão elas que lançar mão dos chamados meios de prova.

            Os meios de prova, por sua vez, hão de ser entendidos como todos aqueles meios utilizados pelo juiz para o conhecimento acerca da verdade dos fatos, estejam ou não previstos em lei. Isso porque o art. 332 do Código de Processo Civil assevera que todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, são hábeis a provar a verdade dos fatos da causa.

            Os doutrinadores brasileiros, em sua quase totalidade, entendem que, ante o fato de viger, no Processo Penal, o princípio da verdade real, razão não há a permitir que se limitem os meios de prova utilizáveis, podendo todos, inclusive os inominados, ser usados com ampla liberdade. Mas, como já aduzido anteriormente, sabido é que o Processo Penal busca não a verdade, mas a certeza, de modo que a imputação penal recaia sobre o indivíduo que tenha cometido o ato ilícito, de vez que a verdade se faz impossível de ser percebida pelo julgador.

            Referido princípio da liberdade probatória, a que se refere a doutrina, não é, porém, absoluto, uma vez que quando a lei exigir que a prova se faça deste ou daquele modo, é assim que a prova terá que ser feita, tal é o exemplo constante do artigo 155 do Código de Processo Penal, ao dispor que a prova quanto ao estado das pessoas será efetuada conforme estabelece a lei civil.

            Configuram-se exemplos de meios de prova, a saber: o depoimento do ofendido, o depoimento da testemunha, a confissão, a inspeção judicial, o indício.

3.Princípios que regem a instrução probatória

            Mirabete leciona [27] que a instrução probatória encontra-se regida por princípios que lhe são peculiares, a saber: auto-responsabilidade das partes, audiência contraditória, aquisição ou comunhão da prova, oralidade, concentração, publicidade e, afinal, princípio do livre convencimento motivado.

            Pelo princípio da auto-responsabilidade das partes infere-se que estas assumirão as conseqüências de sua inatividade, erro ou negligência. Tanto é assim que se, por exemplo, deixar o autor de fazer prova da materialidade do fato ou de sua autoria, o juiz não terá outra perspectiva a não ser proferir sentença absolvendo o réu.

            O princípio da audiência contraditória, ou simplesmente princípio do contraditório, reza que toda prova admite contraprova, fazendo-se necessária, após a produção de determinada prova, a oitiva da parte adversa.

            Já o princípio da aquisição ou comunhão da prova estabelece que a prova produzida por uma das partes passará a pertencer ao processo e, assim, a todos os sujeitos processuais, como adverte Paulo Rangel [28]:

            O princípio da comunhão da prova é um consectário lógico dos princípios da verdade real e da igualdade das partes na relação jurídico processual, pois as partes, a fim de estabelecer a verdade histórica nos autos do processo, não abrem mão do meio de prova levado para os autos.

            O princípio da oralidade, segundo o qual deve haver predominância da palavra falada em detrimento da escrita, traz como conseqüência o princípio da concentração, já que se busca concentrar toda produção probatória em audiência, sendo certo que vige também o princípio da publicidade, na medida em que públicos devem ser todos os atos processuais, à exceção das causas que tramitam em segredo de justiça.

            Pelo princípio do livre convencimento motivado, tem-se que o magistrado julgará apreciando livremente as provas produzidas pelo autor e pelo réu, conforme estatui o art. 157 do Código de Processo Penal brasileiro, que traduz o sistema de avaliação da prova intitulado persuasão racional, como adiante se verá.

4. Sistemas de avaliação das provas

            Por sistemas de avaliação das provas há de se entender o critério utilizado pelo magistrado para valorar as provas constantes dos autos, com vistas ao alcance da certeza e da busca do conhecimento dos fatos, dando-se, assim, a um juiz com jurisdição, que, entretanto, não sabe, mas precisa saber, o Poder de dizer o direito no caso concreto, com o escopo pacificador.

            Três são os principais sistemas de avaliação de provas instituídos hodiernamente pelas legislações em todo mundo: o da certeza moral do juiz ou sistema da íntima convicção, o da certeza moral do legislador ou sistema da prova legal e o da persuasão racional ou livre convencimento motivado.

            Pelo sistema da certeza moral do juiz ou íntima convicção, fica a cargo do magistrado decidir sobre o valor das provas produzidas, sua admissibilidade e seu carreamento aos autos. Este sistema estabelece que o juiz encontra-se livre para avaliar as provas, tornando-se, por isso mesmo, desnecessária a motivação de sua decisão. No ordenamento jurídico pátrio encontra-se resquício deste modo de apreciação da prova nos julgamentos efetuados perante o Tribunal do Júri, eis que os jurados (que integram o conselho de sentença) julgam por íntima convicção, sem que seja necessária fundamentação, além do sim ou do não dados como resposta aos quesitos formulados.

            Já, quanto ao sistema da prova legal ou íntima convicção do legislador, é a própria lei que impõe ao julgador o valor a ser conferido a cada prova e institui hierarquia entre elas, não dando, assim, margem de escolha ao juiz. Exemplo deste sistema de avaliação de prova imperava durante a idade média, em que se atribuía mais valor ao depoimento de um padre que ao de um homem sem vivência religiosa, mais valor era dado ao depoimento de um homem em detrimento do testemunho de uma mulher etc.

            O sistema, porém, hoje predominante e adotado pelo Código de Processo Penal, no artigo 157, é o sistema do livre convencimento motivado, também nominado sistema da persuasão racional. Aludido sistema estabelece que é permitido ao magistrado valorar livremente as provas produzidas pelas partes, sendo certo que todas as provas são relativas, até mesmo a confissão, não tendo, por isso mesmo, nenhuma delas valor decisivo ou maior prestígio sobre as demais.

            Sobre o tema ora em apreço, salienta Mirabete [29] que "fica claro, porém, que o juiz está adstrito às provas carreadas aos autos, não podendo fundamentar qualquer decisão em elementos estranhos a eles: o que não está nos autos não está no mundo (...)".

            Assim, o magistrado ficará restituído à sua própria consciência, eis que formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida, apenas devendo fundamentar sua decisão, exigência, inclusive, estatuída pela Constituição da República vigente, como reza o artigo 93, inciso IX.

            5.O direito à prova e seus limites

            Diz-se que o procedimento probatório configura o conjunto de atos praticados pelas partes com vistas à formação do convencimento do magistrado, tendendo, assim, a estabelecer a certeza dos fatos da lide [30]. Este procedimento divide-se em quatro distintas fases, a saber: proposição das provas; admissão das provas; produção das provas e valoração das provas.

            A proposição das provas é a indicação de provas, pelas partes, no instante da postulação em juízo. A admissão da prova ocorre quando o magistrado manifesta-se sobre a admissibilidade do meio de prova, para o que verifica se a prova proposta pela parte é legal ou, ainda que atípica, se é ela moralmente legítima, do contrário será inadmissível no processo, como a seguir será estudado. Por sua vez, a produção se dá quando as partes submetem as provas indicadas ao crivo do contraditório, de modo que se dá a valoração do material probatório pelas próprias partes litigantes. Já a valoração da prova encerra o momento final do procedimento probatório, de vez que o juiz valorará as provas na sentença, apreciando-as e motivando sua decisão.

            A doutrina faz a importante observação, no que se refere ao problema da admissibilidade ou não da prova ilegal, seja prova ilícita ou ilegítima, no Processo Penal, como se evidencia a seguir, em comentário de Paulo Rangel:

            (...) se houver admissibilidade de prova ilegal (ilícita ou ilegítima) a sentença não poderá valorá-la. Se o fizer, será nula de pleno direito. Pois, flagrante será o ERROR IN PROCEDENDO. Porém, se a valoração for de direito e se calcar em provas legais e moralmente legítimas e houver erro, será de julgamento (ERROR IN JUDICANDO), admitindo a reforma ou modificação da decisão. [31]

            Deste modo, tem-se que a liberdade da prova, esta entendida como o direito que têm as partes de provar, por qualquer meio idôneo e legítimo, os fatos que alegam, não é irrestrita, já que encontra limitações impostas pela Constituição e por leis infraconstitucionais. Destarte, embora o direito à prova seja assegurado constitucionalmente, observa-se que não é este direito absoluto.

            Paulo Rangel assevera que esta limitação à liberdade probatória encontra fundamento quando a lei, ponderando valores, vem a considerar certos interesses de maior valor que a simples prova de determinado fato [32]. Neste sentido, os princípios constitucionais de proteção e garantia da pessoa humana estariam a impedir que a busca da verdade se dê mediante meios que fossem reprováveis dentro de um Estado Democrático de Direito.

            No Código de Processo Penal, pode-se arrolar como exemplo desses limites probatórios o impedimento para depor de pessoas que devam guardar segredo em razão de sua função, ofício, ministério ou profissão (norma insculpida no art. 207 do CPP).

            Por isso mesmo que a prova não pode ser coletada de modo absoluto, extrapolando direitos e garantias fundamentais dos indivíduos. Assim, proíbe-se a utilização, no processo, das provas científicas que possam vir a atingir a integridade da pessoa humana, vedando-se, por essa razão, a utilização da hipnose, do detector de mentiras ou qualquer tipo de tortura, com vistas à obtenção da confissão do acusado.

            Outro aspecto que também merece ser considerado diz respeito às regras morais, dentro das quais deve se reger o processo, a atividade do juiz e das partes litigantes. Tanto é assim que o artigo 332, do Código de Processo Civil, estatui que os meios de provas considerados moralmente legítimos, inobstante não descriminados em lei, serão hábeis a provar os fatos da causa.

            No Processo Penal, ante o fato de estar em jogo a liberdade do acusado, torna-se ainda mais necessária a imposição de limites aos meios de prova. Assim, é certo que a observância de regras preestabelecidas e de um rito anteriormente determinado constitui, sem dúvida alguma, valor de garantia para o indivíduo que se vê processado.

            O limite do direito à prova, como se verifica, é uma espécie de parâmetro do qual a atividade probatória não pode afastar-se, sob pena de ilicitude ou ilegalidade da prova colhida com infringência à limitação.


CAPÍTULO 3 – DA PROVA PROIBIDA NO PROCESSO PENAL

            3.1. Prova ilegal e suas espécies: prova ilícita e prova ilegítima

            Cabe aos doutrinadores a tarefa de definir prova ilícita, tarefa nem sempre das mais fáceis, já que os termos prova ilícita, prova ilegítima e prova obtida ilegalmente são freqüentemente utilizados como expressões sinônimas, quando, em verdade, definem situações análogas, contudo diversas.

            A prova será proibida ou ilegal sempre que for obtida com violação à norma de natureza material ou com afronta à norma de natureza processual. Deste modo, pode a prova proibida ser ilícita ou ilegítima.

            Será ilícita ou ilicitamente obtida a prova que contrariar normas de direito material, quer sejam normas de cunho constitucional quer sejam normas de caráter infraconstitucional. Configuram-se exemplos de provas ilícitas aquelas obtidas com violação de domicílio, sem ordem judicial, e a confissão obtida mediante tortura.

            Por sua vez, as provas ilegítimas são aquelas colhidas com afronta a normas de direito processual, como são exemplos o interrogatório do réu menor sem que lhe seja nomeado curador e o laudo de exame de corpo de delito subscrito por único perito não oficial [33].

            Com referência ao tema, Fernando de Almeida Pedroso leciona, com maestria, a lição abaixo transcrita:

            (...) ilegal é a prova sempre que produzida com infração a normas de natureza processual ou material. É o gênero de que são espécies as provas adjetivadas de ilegítimas e ilícitas. Ao ato instrutório realizado com infração das disposições processuais dá-se a denominação de prova ilegítima, defluindo do próprio ordenamento processual as sanções ou conseqüências resultantes do não acatamento de determinada norma processual. (...) À prova obtida com infração das disposições de direito material rotula-se de ilícita. [34]

            Deste modo, são proibidas, em âmbito processual penal, tanto as provas que violem normas processuais (provas ilegítimas), quanto às provas que transgridam normas de direito material (provas ilícitas), sendo mais relevante o estudo destas últimas, uma vez que o ordenamento jurídico não prescreve as sanções ou conseqüências decorrentes de sua utilização indevida.

            Diante de tal fato, surgiram inúmeras correntes doutrinárias que se manifestam sobre o assunto, de modo a pugnar pela admissibilidade ou inadmissibilidade da utilização da prova ilícita como fundamento da decisão do magistrado, como a seguir se demonstrará.

            3.2. Postura a favor da admissibilidade da prova ilícita

            Tem-se, assim, a corrente doutrinária que se manifesta pela admissibilidade processual da prova ilícita. Sustentam esses doutrinadores, como Hermenegildo de Souza Rego e Fernando de Almeida Pedroso, entre outros, que, se o fim precípuo do processo é a descoberta da verdade real, crível é que, se a prova ilegalmente obtida conseguir demonstrar ao juiz esta verdade, não pode ser ela extirpada do processo.

            Em contrapartida, para que seja possível a utilização de tal prova, deve-se instaurar, contra aqueles que obtiveram-na de forma ilícita, a devida persecução penal, diante da infração de dispositivos penais e ante a violação de direitos do réu.

            Corroborando o entendimento acima esposado, no sentido de permitir-se a utilização processual da prova colhida em desrespeito à norma de direito material, traz-se à colação o ensinamento que segue [35]:

            A corrente que defende em qualquer caso a possibilidade do emprego de provas obtidas por meios ilegítimos, afirma que a solução contra a ilicitude praticada pela parte não deve ser a proibição de que ela faça uso da prova assim obtida, mas sua sujeição ao correspondente processo criminal para punição pela prática do ilícito cometido na obtenção da prova (cf. HERMENEGILDO DE SOUZA REGO, Natureza das normas sobre prova, 155). Assim, diz esse autor, se um marido penetra clandestinamente na residência de alguém para documentar fotograficamente, ou por qualquer outro meio mecânico ou eletromagnético, a prática de um adultério de sua mulher, deverá responder pelo crime de invasão de domicílio, porém jamais ser impedido de comprovar em juízo o adultério, através da prova por tal forma obtida; e nem teria sentido, afirma, pretender-se que o juiz, depois de induvidosamente convencido da existência do adultério, demonstrado por meio dessa prova criminosamente obtida, devesse julgá-lo não provado e improcedente a ação de separação nele fundada.

            Por conseqüência, aduzem esses juristas, que pugnam pela admissibilidade da prova ilícita, que a prova deste modo produzida poderia ser valorada pelo magistrado, apenas devendo-se punir pelo ilícito penal, civil ou administrativo cometido, quem a tivesse obtido de forma ilícita, sob o argumento de que melhor seria admitir uma prova obtida ilicitamente que deixar sem castigo um infrator [36].

            Destarte, para a corrente ora em análise, não haveria que se falar em admissão indevida da prova ilícita ao processo, já que esses doutrinadores entendem que a prova ilícita poderia ser utilizada sem restrições, desde que fosse aplicada ao infrator da norma de direito material a devida punição.

            Sem embargo, não parece ser esse o melhor posicionamento passível de adoção, na medida em que a própria Constituição da República estatui a proibição da utilização da prova obtida por meios ilícitos ao processo.

            3.3. Postura contra a admissibilidade da prova ilícita

            Sustenta outra parte da doutrina que a prova ilícita deve ser rejeitada, mesmo quando inexista norma processual que a considere inadmissível, como crê Luís Roberto Barroso, Frederico Marques, Maria Thereza Rocha de Assis Moura, entre outros.

            Asseveram esses juristas que, em defesa do direito fundamental de liberdade corporal do réu, há que se impor um limite aos poderes do juiz, de modo que não sejam atingidos ou violados direitos individuais a pretexto da busca da verdade real ou mesmo do acertamento dessa verdade, sob pena de vulneração à garantia constitucional.

            Luís Roberto Barroso defende, como bem ilustra Daniel Sarmento, a natureza absoluta e incontornável da vedação ao uso da prova ilícita, ante o argumento de que a própria Constituição, ao vedar o uso de referida prova, retirou a matéria da discricionariedade do julgador e vedou, assim, a possibilidade de ponderação de bens e valores em jogo. [37]

            Assim, ante o fato de a própria Constituição vigente vedar, de modo categórico, a admissão processual da prova obtida por meios ilícitos, não se faria possível permitir que sua produção se desse, ainda que se invocasse valores outros, como a dignidade da pessoa humana.

            Esses doutrinadores crêem que "é preferível, destarte, fique um crime impune do que se outorgar eficácia à prova que o desvendou, quando coligida com violação dos direitos fundamentais do acusado." [38]

            O órgão pleno do Supremo Tribunal Federal, quando chamado a manifestar-se sobre o assunto, decidiu pela inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos, ainda que isso pudesse resultar em prejuízo para a apuração dos fatos, para o que se transcreve a ementa a seguir [39]:

            É indubitável que a prova ilícita, entre nós, não se reveste da necessária idoneidade jurídica como meio de formação do convencimento do julgador, razão pela qual deve ser desprezada, ainda que em prejuízo da apuração da verdade, no prol do ideal maior de um processo justo, condizente com o respeito devido a direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, valor que sobreleva, em muito, ao que é representado pelo interesse da sociedade numa eficaz repressão aos delitos. É um pequeno preço que se paga por viver-se em Estado de Direito democrático. A justiça penal não se realiza a qualquer preço. Existem, na busca da verdade, limitações impostas por valores mais altos que não podem ser violados, ensina Heleno Fragoso, em trecho de sua obra Jurisprudência Criminal, transcrita pela defesa. A Constituição brasileira, no art. 5º, inc. LVI, com efeito, dispõe, a todas as letras, que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.

            A maior parte da doutrina vem se posicionando neste sentido, ao estatuir a inadmissibilidade processual da prova ilícita, e isso se deve, ao menos em parte, por ser o conceito de ilicitude uno, incindível e indivisível, razão pela qual, existente um ilícito material, não pode o mesmo, sob o prisma processual, ser tido por indiferente ou ser aceita como válida a prova dele derivada.

            Ao que tudo indica, porém, também este não se reveste do melhor posicionamento a ser defendido, eis que o intérprete ou aplicador da lei deve, ante a concretude do caso, ponderar os valores em jogo e verificar se é mesmo preferível que um crime fique impune a outorgar eficácia à prova que o desvendou, quando esta tiver sido colhida com infringência à norma de direito material ou processual.

            3.4. Posturas intermediárias

            Porém, a teoria, hoje dominante, da inadmissibilidade das provas colhidas com infringência às garantias constitucionais, tem sido atenuada por outra tendência, que adota o chamado critério da proporcionalidade (na Alemanha) ou da razoabilidade (nos Estados Unidos), pelo qual, em certos casos, é de se admitir a prova obtida de forma ilícita, tendo em vista a relevância do interesse público a ser protegido.

            Cuida-se, portanto, de uma questão que demanda análise de proporcionalidade entre a infringência à norma e os valores que a produção da prova conseguirá proteger, por intermédio do processo.

            Daniel Sarmento, em sua já referenciada obra A ponderação de interesses na Constituição Federal, traça a evolução da aplicação do princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, evidenciando que a aplicação de mencionado princípio teve origem estritamente voltada ao controle de constitucionalidade, mormente no que pertine a normas de cunho administrativo e tributário. [40] Gradualmente, o Supremo Tribunal Federal passou a admitir a ampliação da abrangência do princípio da proporcionalidade para também ser utilizado na análise das provas ilícitas no processo penal, como se denota adiante:

            Prova: alegação de ilicitude da obtida mediante apreensão de documentos por agentes fiscais, em escritórios de empresa - compreendidos no alcance da garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio - e de contaminação das provas daquela derivadas: tese substancialmente correta, prejudicada no caso, entretanto, pela ausência de qualquer prova de resistência dos acusados ou de seus prepostos ao ingresso dos fiscais nas dependências da empresa ou sequer de protesto imediato contra a diligência. 1. (...) 2. Objeção de princípio - em relação à qual houve reserva de Ministros do Tribunal - à tese aventada de que à garantia constitucional da inadmissibilidade da prova ilícita se possa opor, com o fim de dar-lhe prevalência em nome do princípio da proporcionalidade, o interesse público na eficácia da repressão penal em geral ou, em particular, na de determinados crimes: é que, aí, foi a Constituição mesma que ponderou os valores contrapostos e optou - em prejuízo, se necessário da eficácia da persecução criminal - pelos valores fundamentais, da dignidade humana, aos quais serve de salvaguarda a proscrição da prova ilícita: de qualquer sorte - salvo em casos extremos de necessidade inadiável e incontornável - a ponderação de quaisquer interesses constitucionais oponíveis à inviolabilidade do domicílio não compete a posteriori ao juiz do processo em que se pretenda introduzir ou valorizar a prova obtida na invasão ilícita, mas sim àquele a quem incumbe autorizar previamente a diligência. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Penal. Habeas Corpus nº 79512 / RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j em 16.12.1999, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Publicação: DJ DATA-16-05-2003 PP-00092 EMENT VOL-02110-02 PP-00308)

            Muito embora afirmem os adeptos desta corrente, como Daniel Sarmento e Luís Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, que a prova colhida com infringência aos direitos fundamentais do homem é inconstitucional e, via de conseqüência, ineficaz como prova, concebem que referida proibição é abrandada para admitir a prova viciada, em caráter excepcional e em casos extremamente graves, desde que a sua obtenção e admissão puder ser considerada como a única forma, possível e razoável, de proteção a valores outros fundamentais, considerados mais urgentes na concreta avaliação do caso sub examine [41].

            Por isso, a norma constitucional que veda, de modo categórico, a admissão processual da prova ilícita deve ser analisada à luz do princípio da proporcionalidade, de modo que ao juiz caberá, diante de cada caso em análise, "sopesar se outra norma, também constitucional, de ordem processual ou material, não supera em valor aquela que está sendo violada." [42]

            Apesar de a Constituição da República de 1988 não ter feito expressa alusão ao princípio da proporcionalidade, sustenta a doutrina, entre outros Daniel Sarmento e Ada Pellegrini Grinover, que referido princípio integra o direito constitucional brasileiro, de modo que pode ser aplicado pelo intérprete da Constituição.

            Ocorre que críticas existem no que tange à aplicação do princípio da proporcionalidade, como bem evidencia Sérgio Demoro Hamilton [43]:

            A objeção que se costuma fazer ao princípio da proporcionalidade reside no subjetivismo que gera, pondo nas mãos do juiz um poder absoluto de apreciação sobre qual valor deve preponderar, fazendo surgir um "concretismo" perigoso, com graves riscos para a segurança individual.

            É certo que riscos existem, mas deve haver, porém, critérios balizadores da atuação do juiz, e igualmente certo é que a aplicação do princípio da proporcionalidade não deve se dar em qualquer caso, mas apenas nos casos de maior gravidade (diante daquelas situações em que a vantagem de sua aplicação supere a desvantagem de sua não aplicação, no dizer de Willis Santiago Guerra Filho [44]).

            Não deixa de ser, igualmente, uma manifestação do princípio da proporcionalidade, como leciona Ada Pellegrini Grinover, "a possibilidade de utilização, no processo penal, da prova favorável ao acusado, ainda que colhida com infringência a direitos fundamentais seus ou de terceiros." [45]

            Assim, quando a prova, aparentemente ilícita, for colhida pelo próprio acusado, já se vem entendendo que a ilicitude de tal conduta é eliminada por causas legais, como a legítima defesa, de molde a excluir a antijuridicidade.

            Deste modo, entende a doutrina pátria [46] que, se o réu utiliza a prova tida por ilícita em seu favor, para se ver absolvido de determinada imputação legal, razão não há para se falar em ilicitude da prova, eis que permitida sua produção. Igualmente, descabe invocar a proibição da utilização da prova ilícita quando a prova deste modo obtida representar o único meio de que dispõe o réu para comprovar cabalmente sua inocência, passível de ser utilizada, portanto, em prol da defesa [47].

            É certo considerar que a prova ilícita, quando favorável ao réu, vem sendo admitida com certa tranqüilidade, em homenagem ao direito de defesa e ao princípio, que norteia o processo penal, do favor rei, para o que se mitiga o rigor da inadmissão absoluta da prova obtida de modo ilícito. Isso é permitido porque o acusado estaria em verdadeiro estado de necessidade, vendo-se, então, "obrigado ao uso da prova ilícita em defesa de sua liberdade." [48]

            Ocorre que atualmente já se ventila a questão de a prova obtida de modo ilícito poder ser utilizada mesmo que contra o réu, em casos em que a vítima é que estaria agindo em estado de necessidade ou em legítima defesa, sua ou de outrem. Referido entendimento merece ser levado em conta, na medida em que o ordenamento jurídico está a proteger, não apenas direitos individuais do réu, mas também de outras pessoas que se encontrarem em situação merecedora de agasalho legal. É o exemplo da escuta telefônica, sem os requisitos legais, levada a cabo por marido de vítima de seqüestro, mediante a qual se descobre o paradeiro da vítima e, de modo inequívoco e imune a dúvidas, a prática de infração penal. Acaso o marido da vítima venha a utilizar esta prova em juízo, estará ele acobertado por uma causa de exclusão da ilicitude, de modo que poderá ser utilizada, ainda que contrária ao réu.

            Luís Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho assevera que deva sempre preponderar o interesse jurídico mais valioso em questão, crendo ser mais valioso o direito à liberdade ou à ampla defesa do réu que o direito à privacidade de um terceiro. Partindo de tal premissa, conclui o referenciado autor que o acusado, em campo penal, pode produzir a prova considerada ilícita, salientando que, ao assim agir, estará acobertado por causas de exclusão de criminalidade como a legítima defesa ou o estado de necessidade. [49]

            Parece que esta se traduz na melhor posição a ser defendida, eis que, entre a condenação de um inocente e o uso da prova ilícita que pode levar à absolvição do réu, é induvidoso que sobreleva, como valor maior, a liberdade individual.

            3.5. Prova ilícita por derivação

            Divergente questão que vem sendo, de há muito, suscitada pela doutrina e jurisprudência pátrias diz respeito à admissão ou não da prova derivada diretamente da prova ilicitamente obtida.

            Criada pelo direito norte-americano, como bem expõe Paulo Rangel [50], a teoria dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree) assevera que os vícios de uma prova ilicitamente obtida estendem-se às provas obtidas de forma lícita, mas que dependam diretamente da prova ilícita anterior.

            Aqueles que, como Maria Thereza Rocha de Assis Moura e Maria Gilmaise de Oliveira Mendes, preconizam a inadmissibilidade processual da prova ilícita, estendem aludida proibição às provas ilícitas por derivação, visto que estas também sofreram máculas para sua obtenção.

            Exemplo clássico citado pela doutrina [51] é o da confissão obtida mediante tortura, em que o acusado indica onde se encontra o produto do crime, que vem a ser regularmente apreendido.

            Atualmente, prevalece o entendimento de que, se a prova ilícita não foi absolutamente determinante para a descoberta da prova derivada, ou se esta derivar de fonte própria, não fica contaminada por nenhum vício, podendo, deste modo, ser produzida em juízo, por não ter sofrido contaminação. Neste sentido tem sido a manifestação do Supremo Tribunal Federal, em cujo acórdão adiante transcrito enfrenta a questão em análise:

            HABEAS-CORPUS. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE PROVA DA MATERIALIDADE DO DELITO E DE DIFERENÇA QUANTITATIVA ENTRE A COCAÍNA APREENDIDA E A SUBMETIDA À PERÍCIA; ROMPIMENTO DO LACRE. IMPOSSIBILIDADE, NO CASO, DE SE CONCEDER A ORDEM EX-OFFÍCIO EM FACE DE UMA DAS PROVAS SER ILÍCITA: ESCUTA TELEFÔNICA. 1. A materialidade do delito está em meio a um conjunto farto e denso de provas existentes nos autos, cujo reexame aprofundado não se compatibiliza com rito especial e sumário do habeas-corpus. 2. O rompimento do lacre do material entorpecente ocorreu no momento de sua apreensão, como comprovado nos autos, do qual não consta qualquer indício verossímil de ocorrência de fraude. 3. A petição de habeas-corpus não menciona a questão da escuta telefônica inconstitucional nem a teoria dos frutos da árvore envenenada; além disto, não se colhe dos autos que esta escuta tenha sido a primeira ou única prova contra o paciente e nem que existe liqüidez da ilegalidade ou abuso de poder, que conduza à concessão da ordem ex-offício por esta razão. 4. Habeas-corpus conhecido, mas indeferido por maioria. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Penal. Habeas Corpus nº 73101 / SP - SAO PAULO, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. Acórdão Min. Maurício Correa, j. em 26.03.1996, Órgão Julgador: Segunda Turma, Publicação: DJ DATA-08-11-96 PP-43201 EMENT VOL-01849-02 PP-00312.)

            Necessário é reconhecer que a Constituição da República de 1988, embora tenha vedado a admissão da prova ilícita, não se manifestou sobre a prova ilícita por derivação, deixando divergente questão a ser debatida pela doutrina e jurisprudência.

            Paulo Rangel e Hélio Bastos Tornaghi afirmam que, ante o fato de a Constituição da República não tratar especificamente da prova derivada, deve-se entender como permitida sua produção, asseverando que "a prova obtida, licitamente, através daquela colhida com infringência à lei, é admissível no processo, pois onde a lei (Constituição) não distingue não cabe ao intérprete distinguir." [52]

            Por sua vez, o eminente jurista Daniel Sarmento tem posição contrária, manifestando-se pela inadmissibilidade de utilização da prova ilícita por derivação, em quaisquer circunstâncias, parecendo assistir razão a este doutrinador, já que

            se os elementos probatórios derivados das provas ilícitas fossem admitidos, isso representaria um incentivo para a continuidade da colheita destas provas e um estímulo ao desrespeito dos direitos fundamentais no processo. [53]

            Paulo Rangel [54] afirma que o Supremo Tribunal Federal encontrou-se dividido sobre a questão da admissibilidade ou não da prova ilícita por derivação. No início, quando chamado a se manifestar, foi favorável à produção deste meio de prova, entendendo pela não contaminação e, portanto, validade dos atos subseqüentes ao seu ingresso nos autos. Porém, em julgados mais recentes, manifesta-se pelo impedimento da produção de referida prova, para o que se transcreve ementa de acórdão elucidativo da questão:

            Prova ilícita. Escuta telefônica mediante autorização judicial. Afirmação pela maioria da exigência da lei, até agora não editada, para que, "nas hipóteses e na forma" por ela estabelecidas, possa o juiz, nos termos do art. 5º, XII, da Constituição, autorizar a interceptação de comunicação telefônica para fins de investigação criminal; não obstante, indeferimento inicial do habeas corpus pela soma dos votos, no total de seis, que, ou recusaram a tese da contaminação das provas decorrentes da escuta telefônica, indevidamente autorizada, ou entenderam ser impossível, na via processual do habeas corpus, verificar a existência de provas livres da contaminação e suficientes a sustentar a condenação questionada; nulidade da primeira decisão, dada a participação decisiva, no julgamento, de ministro impedido (MS 21.750, 24.11.93, Velloso); conseqüente renovação do julgamento, no qual se deferiu a ordem pela prevalência dos cinco votos vencidos no anterior, no sentido de que a ilicitude da interceptação telefônica – à falta de lei que, nos termos constitucionais venha a discipliná-la e viabilizá-la – contaminou, no caso, as demais provas, todas oriundas, direta ou indiretamente, das informações obtidas na escuta (fruits of the poisonous tree), nas quais se fundou a condenação do paciente. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Penal. Habeas Corpus nº 69.912., j.em 16.12.1993 – Tribunal Pleno. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Publicação DJ. Data 25.03.1994/pp.06012. Ement. Vol.01738-01. pp.00112.)

            Nesta esteira de pensamento, aqueles que pugnam pela inadmissibilidade da prova ilícita por derivação entendem, como conseqüência de sua indevida utilização, pela aplicação do art. 573, § 1º do Código de Processo Penal brasileiro, que trata da extensão da nulidade dos atos processuais, cominando, também, sanção de nulidade aos atos processuais dependentes do ato nulo, devendo tanto a prova ilícita originária, quanto a prova dela diretamente dependente, serem extirpadas do processo.

            Assim, pode-se concluir que as provas ilícitas por derivação são constitucionalmente inadmissíveis no Direito brasileiro, ante o fato de o Supremo Tribunal Federal ter acatado a teoria dos frutos da árvore envenenada em seus mais recentes julgados, entendendo pela contaminação de todas as provas que derivarem diretamente da prova obtida por meios ilícitos.


CAPÍTULO 4 – O DIREITO BRASILEIRO DIANTE DA PROVA ILÍCITA

            4.1. A prova ilícita antes da Constituição Federal de 1988

            A Constituição da República de 1988 foi a primeira a estatuir a inadmissibilidade processual das provas obtidas por meios ilícitos. É certo, porém, que divergente questão já vinha sendo de há muito debatida pela doutrina e jurisprudência pátrias.

            Assim, mesmo antes da promulgação da Constituição-cidadã muito já se discutia acerca da inadmissibilidade processual da prova ilícita. Ada Pellegrini Grinover ensina que as Mesas de Processo Penal, atividade ligada ao Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sobre o assunto em tela editaram três súmulas, antes da elaboração da Constituição de 1988, asseverando pela inadmissibilidade da prova ilícita, porém permitindo sua utilização, quando em benefício da defesa, súmulas estas que ora são transcritas:

            Súmula nº 48 – Denominam-se ilícitas as provas colhidas com infringência a normas e princípios de direito material.

            Súmula nº 49 – São processualmente inadmissíveis as provas ilícitas que infringem normas e princípios constitucionais, ainda quando forem relevantes e pertinentes, e mesmo sem cominação processual expressa.

            Súmula nº 50 – Podem ser utilizadas no processo penal as provas ilicitamente colhidas, que beneficiem a defesa. [55]

            Mencionada autora leciona, ainda, que na evolução da jurisprudência brasileira se fez possível notar duas tendências: num primeiro momento, admitindo-se a produção da prova ilícita e, num momento posterior, posicionamento inadmitindo a produção e o ingresso de tal prova no processo. Continua a autora:

            (...) assim, de julgados mais antigos, que admitiam como prova até mesmo a confissão extorquida, passando por decisões que aceitavam a prova colhida por gravações telefônicas clandestinas, chegou-se à consolidação da tendência contrária, que já se havia delineado com relação às buscas domiciliares e apreensões feitas ao arrepio da lei. [56]

            A primeira decisão de que se tem notícia, que veio a afastar prova tida por ilícita do processo, data de 11 de novembro de 1977, na qual o Supremo Tribunal Federal determinou o desentranhamento de fitas gravadas, fruto de interceptação telefônica feita pelo marido, a fim de comprovar o adultério de sua mulher, com o fito de instruir processo civil de separação judicial, cuja ementa abaixo é transcrita, de lavra do Ministro Xavier de Albuquerque:

            PROVA. PROVA CIVIL. GRAVAÇÃO CLANDESTINA DE LIGAÇÕES TELEFÔNICAS. AÇÃO DE DESQUITE. Prova civil. Gravação magnética, feita clandestinamente pelo marido, de ligações telefônicas da mulher. Inadmissibilidade de sua utilização em processo judicial, por não ser meio legal nem moralmente legítimo (art. 332 CPC). Recurso extraordinário conhecido e provido. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Civil. RE 85439/RJ, Rel. Min. Xavier de Albuquerque, j. em 11.11.1977, Órgão Julgador: Segunda Turma, Publicação: DJ DATA-02-12-77 PG-RTJ VOL-00084-02 PP-00609 Indexação da Revista Trimestral do STF.)

            A segunda decisão pela inadmissão processual da prova ilícita também foi fruto de processo civil, datada de 28 de junho de 1984, igualmente caso de interceptação telefônica clandestina, ao que o Supremo Tribunal Federal determinou o desentranhamento, dos autos, da gravação respectiva. [57] Até que em 18 de dezembro de 1986 foi o Supremo Tribunal Federal chamado a manifestar-se pelo trancamento de Inquérito Policial baseado em interceptações telefônicas feitas por particulares, de modo ilícito, sendo que esta configurou a primeira decisão do Pretório Excelso inadmitindo a prova colhida de modo ilícito no processo penal. [58]

            A norma invocada pela doutrina e jurisprudência, antes do advento da Constituição de 1988, para impedir o ingresso da prova ilícita no processo encontra-se disposta no artigo 332, do Código de Processo Civil brasileiro, com o seguinte teor: "Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis a provar a verdade dos fatos em que se funda a ação ou a defesa."

            Referido dispositivo, ante o fato de também ter aplicação em sede penal, possibilitaria às partes lançar mão de qualquer meio de prova, ainda que não estabelecido pelo ordenamento jurídico, havendo de ser ressaltado que os meios de prova inominados ou atípicos haveriam de ser moralmente legítimos. Este já era o entendimento doutrinário e jurisprudencial dominante mesmo antes do surgimento da Constituição de 1988, de modo que se entendia pela proibição da prova, em sede processual penal, que contrariasse os preceitos morais dominantes. Assim, o Supremo Tribunal Federal, chamado a manifestar-se sobre a questão, veio a repudiar as interceptações telefônicas clandestinas, quer em matéria cível, quer em âmbito penal, como já demonstrado acima. [59]

            Embora majoritariamente se pugnasse pela inadmissibilidade processual da prova obtida por meio ilícito, havia quem defendesse que referida prova pudesse ser utilizada em âmbito processual. Neste sentido, Yussef Cahali e Washington de Barros Monteiro [60] sustentavam ser irrelevante o meio pelo qual a prova fora colhida, de modo que deveria o juiz criminal acolhê-la no processo como eventual indício da prática de ato ilícito. Esse também era o entendimento do Ministro do Supremo Tribunal Federal Cordeiro Guerra [61], que admitia a confissão extrajudicial, ainda que obtida sob coação, embora pugnasse pela conseqüente punição do autor do ilícito, com a justificativa de que não acreditava que entre os direitos humanos se encontre o direito de assegurar a impunidade dos próprios crimes, ainda que provados por outro modo nos autos, só porque o agente da autoridade se excedeu no cumprimento do dever e deva ser responsabilizado.

            Em idêntico sentido posicionava-se outro Ministro do Supremo Tribunal Federal, Raphael de Barros Monteiro, quando, em 1951, sustentava que os Tribunais deveriam julgar a causa em conformidade com as provas apresentadas pelas partes, não cabendo ao magistrado investigar se foram as provas bem ou mal colhidas, pois isso seria extrapolar suas atribuições processuais. [62]

            Do que foi exposto, é de se verificar que mesmo antes do advento da Constituição de 1988 já pairava dissenso doutrinário e jurisprudencial acerca da admissibilidade ou não da prova ilícita ao processo, sendo certo que prevalecia o entendimento, que posteriormente veio a ser consagrado pela Carta Maior ora vigente, propugnando pela inadmissão da prova obtida por meios ilícitos ao processo.

            4.2. A prova ilícita após a Constituição Federal de 1988

            Hodiernamente, a vigente Lei Maior, no art. 5º, inciso LVI, obstou o ingresso nos autos do processo das provas obtidas por meios ilícitos, pondo ponto final, de modo apenas aparente, como já se viu, nas infindáveis discussões que antes eram travadas.

            É verdade, porém, que a própria Constituição da República de 1988, no art. 5º, inciso XII, excepciona seu texto, estatuindo que

            (...) é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

            Deste modo, apenas para fins de investigação criminal ou instrução probatória penal é de se admitir a quebra do sigilo das comunicações telefônicas, desde que haja ordem judicial e adequação aos ditames da Lei 9.296, de 24.07.1996, que cuida das interceptações telefônicas.

            Verdade é também que até a edição da referida Lei 9.296, entendia a jurisprudência afigurar-se impossível a admissão de interceptação telefônica, mesmo que autorizada judicialmente para fins de investigação criminal, em face da ausência de norma regulamentadora, para o que se traz à colação o julgado a seguir, que aborda a questão ora em análise:

            HABEAS CORPUS. ACUSAÇÃO VAZADA EM FLAGRANTE DE DELITO VIABILIZADO EXCLUSIVAMENTE POR MEIO DE OPERAÇÃO DE ESCUTA TELEFÔNICA, MEDIANTE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. PROVA ILÍCITA. AUSÊNCIA DE LEGISLAÇÃO REGULAMENTADORA. ART. 5º, XII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. FRUITS OF THE POISONOUS TREE. O Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, assentou entendimento no sentido de que sem a edição de lei definidora das hipóteses e da forma indicada no art. 5º, inc. XII, da Constituição, não pode o juiz autorizar a interceptação da comunicação telefônica para fins de investigação criminal. Assentou, ainda, que a ilicitude da interceptação telefônica – à falta da lei que, nos termos do referido dispositivo, venha a discipliná-la e viabilizá-la – contamina outros elementos probatórios eventualmente coligidos, oriundos, direta ou indiretamente, das informações obtidas na escuta. Habeas Corpus concedido. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Penal. Habeas Corpus nº 74113/SP, j. em 28.06.1996, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ilmar Galvão.)

            Assim, é de se notar que após o advento da Lei Maior, consolidou-se na jurisprudência a tese da proibição do ingresso, no processo – seja cível, seja criminal, na medida em que a Constituição Federal não distingue – da prova ilicitamente obtida, por força de norma constitucional expressa neste sentido. Certo é também que a jurisprudência tem entendido que se a prova ilícita não foi a que deu azo à decisão da causa, havendo outras provas não viciadas no contexto probatório, merece ser rechaçada a tese da inadmissibilidade da prova ilícita, conforme se infere do julgado adiante mencionado, que traduz a posição do Supremo Tribunal Federal acerca da questão em apreço:

            RECURSO DE HABEAS CORPUS. CRIMES SOCIETÁRIOS. SONEGAÇÃO FISCAL. PROVA ILÍCITA: VIOLAÇÃO DE SIGILO BANCÁRIO. COEXISTÊNCIA DE PROVA LÍCITA E AUTÔNOMA. INÉPCIA DA DENÚNCIA: AUSÊNCIA DE CARACTERIZAÇÃO. 1. A prova ilícita, caracterizada pela violação de sigilo bancário sem autorização judicial, não sendo a única mencionada na denúncia, não compromete a validade das demais provas que, por ela não contaminadas e delas não decorrentes, integram o conjunto probatório. 2. (...) 3. Não estando a denúncia respaldada exclusivamente em provas obtidas por meios ilícitos, que devem ser desentranhadas dos autos, não há porque declarar-se a sua inépcia porquanto remanesce prova lícita e autônoma, não contaminada pelo vício de inconstitucionalidade (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Penal. Recurso em Habeas Corpus nº 74807 / MT, Rel. Min. Maurício Correa, j. em 22.04.1997, Segunda Turma, Publicação: DJ DATA-20-06-97 PP-28507 EMENT VOL-01874-04 PP-00663.)

            No mesmo diapasão tem sido o pronunciamento do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, quando, chamado a manifestar-se sobre o tema, entendeu que se a prova tida por ilícita não for a única do contexto probatório, tampouco a decisiva para a solução da causa, descabe falar em prejuízo para defesa, como se denota da ementa abaixo trazida, da lavra do eminente Desembargador José Carlos Murta Ribeiro:

            EXTORSÃO MEDIANTE SEQÜESTRO. MORTE. OCULTAÇÃO DE CADÁVER. GRAVAÇÃO DE CONVERSAS TELEFÔNICAS. ALEGAÇÃO DE PROVA ILÍCITA. REJEIÇÃO. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. INAPLICABILIDADE. DEPOIMENTO DE POLICIAL. PROVA TESTEMUNHAL. PROVA DA AUTORIA. RECURSO DESPROVIDO. Extorsão mediante seqüestro seguida de morte e ocultação de cadáver. Fatos típicos dos artigos 159 par. 3. do Código Penal, na forma da Lei 8.072/90 e 211 do Código Penal; e ainda, artigo 62, I deste mesmo diploma legal quanto ao 1º. Apelante Vinicius. Prova suficiente para a condenação. Recursos defensivos aos quais se nega provimento, confirmando-se integralmente a sentença apelada, rejeitadas as preliminares argüidas. Preliminarmente, de se rejeitar as questões prévias suscitadas por inocorrentes. Inocorre vulneração à Lei 9.296/90 - vício na aquisição da prova ou seja: prova ilícita - se tal prova não é única no conjunto probatório e nem foi decisiva na decisão da causa, daí a ausência de prejuízo. Certo, outrossim, que ante a natureza do crime de extorsão mediante seqüestro - crime formal e complexo - se justificava pelo princípio da razoabilidade a escuta telefônica e gravações levadas a efeito como preleciona o ilustre Gomes Filho em sua obra "DIREITO À PROVA NO PROCESSO PENAL", Edição 1997. E, ainda, segura e pacificada a Jurisprudência de nossos Tribunais Superiores, inclusive do S.T.F., que ocorrendo a permissão de um dos interlocutores - no caso em tela o pai da vítima -, inexiste ilicitude a invalidar tal prova. Por igual, inexiste quaisquer das nulidades apontadas se, diversamente do alegado no Processo Penal Brasileiro não vige o princípio da identidade física do Juiz e, nem a liberação dos bens apreendidos tem qualquer co-relação com a produção da robusta prova acusatória realizada sob o crivo do contraditório legal e constitucional. (...) "In casu", impossível se falar de precariedade da prova porque estruturada, em sua maior parte, na palavra dos policiais envolvidos na exitosa descoberta da autoria. E, isto porque, como se sabe, a prova policial tem o mesmo valor que qualquer outra, desde que harmônica e coerente com os demais elementos da prova trazidos aos autos, como ocorre na espécie. Outrossim, no caso em tela, até a prova testemunhal de defesa na palavra dos jornalistas que presenciaram a reconstituição e a localização do corpo da jovem e infeliz vítima é desfavorável aos Apelantes. Recursos voluntários defensivos, pois, aos quais se nega provimento. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Processual Penal. Apelação Criminal nº 2000.050.03148, j. em 06.03.2001, Rel. José Carlos Murta Ribeiro, Segunda Câmara Criminal)

            Leciona Antonio Scarance Fernandes que várias são as inviolabilidades postas como garantias pelo legislador constituinte, a fim de que sejam resguardados direitos fundamentais da pessoa humana, a saber: inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra, da imagem (art. 5º, inciso XII), do domicílio (art. 5º, XI), inviolabilidade das comunicações em geral e dos dados (art. 5º, XIII). É certo ressalvar que a Constituição de 1988 também protege o indivíduo contra a tortura ou tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III), além de amparar o preso em sua integridade física e psíquica (art. 5º, XLIX) [63]. Por isso, se a prova colhida vier a infringir quaisquer das garantias acima elencadas, será ela inconstitucional e imprestável como prova, ante a violação a direito fundamental assegurado de modo expresso pelo legislador constituinte.

            Já se disse que, com o escopo de pôr fim ao dissenso doutrinário e jurisprudencial que imperava antes do advento da Constituição de 1988, o legislador constituinte vedou, de maneira categórica, a admissibilidade processual da prova ilícita, mas se sabe, porém, que inúmeras questões referentes a este assunto ainda se colocam como pontos a serem dirimidos.

            Convém esclarecer, desde logo, que, embora tenha sido modificada recentemente a composição do quadro de Ministros que integram o Supremo Tribunal Federal, permanece o entendimento que assevera pela proibição de utilização da prova obtida por meios ilícitos, tal como se aduzia anteriormente.

            É certo, entretanto, que a doutrina e a própria jurisprudência pátrias vêm acatando a tese de aceitação da teoria da proporcionalidade, como já demonstrado neste trabalho monográfico, de modo que, quando a ofensa a determinada vedação constitucional é feita para proteção de um valor maior garantido pela Constituição, é de se permitir a utilização da prova, mesmo que colhida em afronta a norma de direito material ou processual.


CAPÍTULO 5 – CONSEQÜENCIAS PROCESSUAIS DA ADMISSÃO INDEVIDA DA PROVA PROIBIDA

            5.1. Prova ilegítima: conseqüências

            Já se sabe que a prova ilegal, seja ela ilícita (aquela que afronta norma de direito material), seja ilegítima (a que esbarra na vedação da lei processual), deve ser rechaçada pelo magistrado, posto não se revestir da necessária idoneidade para a prova de fatos, ainda que relevantes para o deslinde da causa posta sob apreciação.

            A Constituição da República ao rezar que são inadmissíveis no processo as provas obtidas por meios ilícitos abarca a proibição da utilização tanto da prova ilícita, quanto da prova ilegítima, sendo que a doutrina é que faz a relevante distinção entre ambas, na medida em que nos dois casos haverá manifesta ilegalidade da prova.

            Neste sentido, tem-se que ao ato instrutório realizado com violação das disposições processuais, defluirá do próprio ordenamento processual as sanções ou conseqüências decorrentes do não acatamento de determinada norma procedimental. [64] Assim, no que pertine às provas ilegítimas, as sanções a elas concernentes estarão sempre cominadas, implícita ou explicitamente, na própria lei processual. No dizer de Fernando de Almeida Pedroso: "(...) produzida uma prova ilegítima, terá ela a sanção que for peculiar à espécie." [65]

            Por isso mesmo é que na prova ilegítima a ilegalidade ocorre no momento de sua produção no processo, ao passo que a prova ilícita pressupõe uma violação no momento em que a prova é colhida, seja referida violação anterior ou posterior ao processo.

            Pode-se invocar o seguinte exemplo, a fim de individuar a prova ilegítima e a conseqüência de sua admissão indevida ao processo: a norma insculpida no art. 207 do Código de Processo Penal estatui a proibição de depor de pessoas que devam guardar sigilo em virtude profissional. Assim, quis o legislador que essas pessoas sejam proibidas de depor em função de interesses atinentes à lógica e à finalidade do processo, de modo que não poderão testemunhar acerca de fatos dos quais tenham conhecimento. Acaso isso ocorra, ou seja, acaso a pessoa testemunhe, a despeito da proibição imposta pela norma processual, é a própria norma processual que cominará sanção de nulidade ao ato praticado, de modo que referido depoimento não poderá ser levado em consideração pelo magistrado julgador.

            E é neste exato sentido que tem sido a manifestação dos Tribunais pátrios, em especial do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, quando, em exame a recurso de Apelação Criminal, manifestou-se pela nulidade do processo criminal, ante a ilegitimidade da prova colhida, em que a investigação penal ficara a cargo do Ministério Público, além do fato de que o membro do Ministério Público denunciante houvera atuado como delegado de polícia, contrariando, destarte, preceito processual, como se infere a seguir:

            VIOLAÇÃO DE SEPULTURA. PROVA PRECÁRIA. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. Violação de sepultura e destruição de cadáver. Investigação penal procedida no âmbito do Ministério Público. Prova ilegítima. Denúncia ofertada por Promotor que funcionou como Delegado de Polícia. Impossibilidade. Nulidade não declarada. Decisão de mérito favorável aos apelados. Absolvição mantida. Esta Câmara tem reiteradamente decidido que o Ministério Público não está investido de poder para proceder a investigação destinada à apuração de infrações penais, tarefa que a Constituição Federal incumbiu às policias civis, dirigidas por Delegados de Polícia, art. 144, par. 4., veja-se os precedentes nos hh-cc-2463/2000 e 597/2001. Embora manifesta a nulidade do processo, desde o início, tanto pela ilegitimidade da prova quanto pelo impedimento do Promotor que subscreveu a denúncia, deixa-se de declará-la porque, no mérito a decisão é favorável aos apelados, posto que contaminada a prova judicial por derivação, nenhuma outra existe capaz de desautorizar as versões apresentadas nos interrogatórios, das quais emerge a certeza de que atuaram por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, situação que afasta o dolo indispensável à configuração dos tipos que se lhes imputou na vestibular acusatória. Recurso improvido (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Processual Penal. Apelação Criminal nº 2003.050.01828, Terceira Câmara Criminal, Rel. Des. Ricardo Bustamante, j. em 21.07.2003.)

            Importa ressalvar, porém, que no caso acima transcrito a nulidade não foi pronunciada pelo Tribunal, muito embora existisse prova ilegítima hábil a ensejar a anulação do feito, em vista de ter sido a decisão favorável aos acusados, o que vem a demonstrar entendimento no sentido de que as nulidades, mesmo em sede processual penal, apenas serão pronunciadas se tiver havido manifesto prejuízo para a defesa, em homenagem aos princípios do interesse e da instrumentalidade das formas. Assim, tem-se que não se pronunciará a nulidade, relativa ou mesmo absoluta, de ato que, ainda que praticado de forma não prevista pela lei processual, tiver alcançado a sua finalidade.

            Assim, muito embora a lei processual não possa ser tida como mera recomendação às partes, existindo, sim, é para ser observada pelos sujeitos processuais, há de se admitir a sanatória da nulidade quando em benefício da defesa e quando o ato praticado tiver atingido sua finalidade, ainda que em desconformidade com preceito de índole processual. Caberá ao julgador aferir se, ante o caso concreto, aquela nulidade terá ou não que ser declarada.

            O referido Tribunal também foi chamado a decidir acerca de confissão levada a cabo por réu em sede policial, porém sem os requisitos exigidos pela lei processual para tanto, ao que foi declarada a confissão como prova ilegítima, insuscetível para a prova dos fatos alegados pela acusação, conforme se denota da ementa de acórdão abaixo colacionada, da lavra do eminente Des. Sérgio Verani:

            PRINCÍPIO DA VERDADE REAL. CONFISSÃO. ILICITUDE DA PROVA. DESCLASSIFICACAO DO CRIME. Entorpecentes. Tráfico. Imputação não demonstrada. Testemunho policial. "Confissão" informal. Prova ilegítima. Desclassificação para o artigo 16. Não se pode reconhecer o crime do art. 12, da Lei n. 6368/76, se a prova não é certa e precisa sobre a destinação ao tráfico da substância entorpecente apreendida com o acusado - 1,1 g. de cocaína e 7,4 g. de maconha -, inadmissível a presunção do dolo. O ônus de demonstrar a existência do tipo penal imputado na denúncia é da acusação. A declaração dos policiais de que "o acusado disse que estava no local e que já havia efetuado a venda de certa parte da droga" não pode ser valorada como prova decisiva e definitiva, até porque essa "confissão" não existe nos autos. No flagrante, o réu se reserva para prestar declarações em Juízo, onde confessa, apenas, que tinha comprado a droga para seu uso. Se nem a confissão extrajudicial constitui prova, face aos princípios do devido processo legal e da judicialização da prova, muito menos poderá constituí-lo uma "confissão" íntima, privada, secreta. "Ilicitude decorrente de constituir dita "conversa informal" modalidade de "interrogatório" sub-reptício" (Ministro Sepúlveda Pertence). Não se pode hierarquizar o testemunho policial, retornando-se ao velho Direito Feudal, onde a prova servia não para descobrir a verdade, mas para determinar que o mais forte, por ser mais forte, sempre detém a razão. O princípio da verdade real é incompatível com as certezas predeterminadas; e, para a condenação, exige-se que a imputação seja demonstrada de forma ampla, absoluta, induvidosa. Não demonstrado o elemento subjetivo do tipo do art. 12, da Lei n. 6368/76 - nenhuma indicação precisa sobre o vínculo do acusado com o tráfico-, desclassifica-se o fato para o art. 16 - trazer consigo para uso próprio. Recurso provido (BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Processual Penal. Apelação Criminal 2001.050.04837, Quinta Câmara Criminal, Rel. Des. Sérgio de Souza Verani, j. em 15.10.2002.)

            Por isso, é de se concluir que, em regra, as provas ilegítimas – aquelas que venham a contrariar norma processual – não podem ser admitidas no processo penal, sob pena de vulneração a direito fundamental, de vez que referidas normas merecem ser acatadas pelas partes e pelo magistrado em seu ofício, configurando, assim, instrumento de garantia para o cidadão. Mas, já há posicionamento, que não pode ser olvidado, no sentido de que as provas ilegítimas apenas merecem ser reconhecidas como tal quando resultar em prejuízo para a defesa, do contrário, estará sanada a nulidade.

            5.2. Prova ilícita: conseqüências

            A Constituição da República Federativa do Brasil, em vigor, veda, de maneira taxativa, a admissão no processo, tanto cível, quanto penal, das provas obtidas por meios ilícitos, não estabelecendo, porém, as conseqüências que derivam da utilização indevida.

            Deste modo, quer o legislador constituinte que a prova ilícita não seja admitida ao processo, pretendendo, também, obstar os momentos sucessivos de introdução e valoração da prova ilícita.

            Assim, como já anteriormente suscitado, pode ocorrer de a prova ilícita ingressar nos autos, vulnerando, destarte, norma constitucional.

            Sobre o tema em análise, duas correntes doutrinárias se manifestam, a fim de estabelecer as conseqüências que adviriam do ingresso indevido da prova ilícita ao processo. Assim, ou se entende que a atipicidade constitucional tem o condão de gerar, como regra, a sanção de nulidade absoluta dos atos praticados, ou se entende que a Lei Maior, ao estatuir a inadmissibilidade processual da prova ilícita, considera-a prova inexistente juridicamente.

            Com efeito, a primeira corrente aduz que o ingresso indevido da prova ilícita nos autos importaria em sanção de nulidade absoluta dessas provas, não podendo servir de fundamento para o magistrado em nenhuma decisão judicial.

            A Jurisprudência vem caminhando no sentido de que as provas ilícitas, porque inadmissíveis, serão ineficazes, eivadas de nulidade absoluta, sendo referida nulidade insanável. Corroborando este entendimento, traz-se a lume ementa de acórdão do Superior Tribunal de Justiça:

            ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. DELEGADO DE POLÍCIA CIVIL. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. DEMISSÃO. QUEBRA DE SIGILO FUNCIONAL. PROVA ILÍCITA. INVALIDADE. – O direito constitucional-penal inscrito na Carta Política de 1988 e concebido num período de reconquista das franquias democráticas consagra princípios do amplo direito de defesa, do devido processo legal, do contraditório e da inadmissibilidade da prova ilícita (CF, art. 5º, LIV, LV e LVI). – O processo administrativo disciplinar que impôs a Delegado de Polícia Civil a pena de demissão com fundamento em informações obtidas com quebra de sigilo funcional, sem a prévia autorização judicial, é desprovido de vitalidade jurídica, porquanto baseado em prova ilícita. – Sendo a prova ilícita realizada sem a autorização da autoridade judiciária competente, é desprovida de qualquer eficácia, eivada de nulidade absoluta e insuscetível de ser sanada por força da preclusão. – Recurso ordinário provido. Segurança concedida. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Processual Penal. ROMS-8.327/MG, Rel. Min. Vicente Leal, j. 24.06.1999.)

            Antonio Magalhães Gomes Filho, adepto da segunda corrente, anota, com inteira propriedade, que a noção de admissibilidade está ligada à questão da validade e eficácia dos atos processuais. Estaria a atuar, portanto, de forma antecipada, impedindo o ingresso, no processo, do ato irregular, razão pela qual deve abranger não só o ingresso jurídico da prova no processo, mas também sua introdução material nos autos, de molde a evitar, com isso, indesejáveis influências sobre o convencimento do juiz. [66]

            Assim, é certo asseverar que o réu tem o direito de não ser denunciado, de não ser processado e não ser condenado com base em prova ilicitamente obtida, em vista de configurar-se, a prova ilícita, elemento incompatível com os limites éticos e mesmo jurídicos que norteiam a atividade de persecução penal estatal.

            Destarte, a prova ilícita sequer pode ser produzida pela parte. Se, contudo, chegar a ser produzida, deverá ser excluída dos autos do processo. Para tanto, o magistrado pode e deve atuar de ofício. Se, a despeito da proibição constitucional, a prova ilícita ingressar no processo, entende Antonio Scarance Fernandes que o problema não se refere à nulidade processual, mas sim se refere à inadmissibilidade da prova, configurando-se a correta solução a exclusão, via desentranhamento, da prova viciada [67].

            Em idêntico sentido posiciona-se Ada Pellegrini Grinover, aduzindo que

            (...) as provas ilícitas, sendo consideradas pela Constituição inadmissíveis, não são por esta tidas como provas. Trata-se de não-ato, de não-prova, que as reconduz à categoria de inexistência jurídica. Elas simplesmente não existem como provas: não têm aptidão para surgirem como prova. Daí sua total ineficácia. [68]

            Se, porém, não determinar o magistrado o desentranhamento da prova ilícita, o acusado pode requerer que tal medida seja tomada. Cabe, desde logo, esclarecer que não há, no Código de Processo Penal, norma genérica que disponha acerca do desentranhamento da prova ilícita, de modo que a doutrina [69] crê que deva ser aplicado por analogia o que dispõe o art. 145, inciso IV, do aludido diploma legal, que determina o desentranhamento de documento falso.

            Melhor seria que o legislador tivesse estabelecido, de modo expresso e categórico, a conseqüência processual advinda da utilização indevida da prova ilícita.

            O legislador processual penal italiano estabelece no art. 191 do Código de Processo Penal daquele país [70]:

            Art. 191 (Prove illegittimamente acquisite) – 1. Le prove acquisite in violazione dei divieti stabiliti dalla legge non possono essere utilizzate.

            2. L’inutilizzabilità è rilevabile anche di ufficio in ogni stato e grado del procedimento.

            Deste modo, a inutilizabilidade reconhecida pelo legislador italiano atingiria não o ato em si, mas seu valor probatório, impedindo que a prova servisse de fundamento para a decisão do magistrado. No ordenamento processual penal daquele país, a proibição idônea a gerar a inutilizabilidade seria somente aquela prevista por uma norma processual (prova ilegitimamente adquirida), ao passo que às provas colhidas com afronta à lei penal substancial (provas ilícitas) seriam tidas por utilizáveis, com a ressalva de que apenas serão inutilizáveis se houver violação de norma processual específica que disponha neste sentido. [71]

            Seria a inutilizabilidade, então, um tipo de invalidade que se traduz diretamente em limite ao livre convencimento do julgador, tal como aqui no Brasil, em que se consideram as provas ilícita e ilegítima um limite à atuação do Estado-Juiz, a fim de que sejam respeitados direitos e garantias individuais.

            Volvendo ao ordenamento pátrio, em sede doutrinária entende-se que, quando a prova ilícita não foi a que deu azo à fundamentação do magistrado, tendo ele se baseado em outras provas, não contaminadas, não há que se falar em anulação do processo. Cai a lanço a lição de Daniel Sarmento, que abaixo se passa a transcrever:

            A conseqüência do uso da prova ilícita é a impossibilidade da sua utilização no processo, sem prejuízo da punição dos responsáveis pela sua colheita. Do uso da prova viciada, porém, não se segue, necessariamente, a nulidade da decisão que a considerou. Quando a decisão se suportar em outras provas autônomas e independentes, suficientes para fundamentá-la, tem entendido o Pretório Excelso que não cabe a sua anulação. [72]

            Neste diapasão, o Supremo Tribunal Federal vem entendendo, em diversos julgados, que, quando a prova ilícita não foi a que deu lastro à fundamentação do magistrado na sentença ou decisão, não caberá anulação do processo, como evidencia a ementa de acórdão abaixo transcrita:

            HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. PROVA ILÍCITA: ESCUTA TELEFÔNICA. CORRUPÇÃO ATIVA. FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO NA DOSAGEM DA PENA: IMPROCEDÊNCIA. 1. A prova ilícita, caracterizada pela escuta telefônica, não sendo a única produzida no procedimento investigatório, não enseja desprezarem-se as demais que, por ela não contaminadas e dela não decorrentes, formam o conjunto probatório da autoria e materialidade do delito. 2. (...) 3. Sem que possa colher-se dos elementos do processo a resultante conseqüência de que toda a prova tenha provindo da escuta telefônica, não há falar-se em nulidade do procedimento penal. 4. Não enseja nulidade processual a sentença que, apesar de falha quanto à fundamentação na dosimetria da pena, permitiu fosse corrigida em sede de apelação (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Penal. Habeas Corpus nº 75497 / SP, Rel. Min. Maurício Correa, j. em 14.10.1997, Segunda Turma, Publicação: DJ DATA-09-05-2003 PP-00068 EMENT VOL-02109-03 PP-00433.)

            Não se pode olvidar que os Tribunais têm sustentado que a prova vedada não gerará nulidade do processo se a condenação não estiver fundada, de modo exclusivo, na prova ilícita. Com efeito, tem-se entendido que se a sentença fizer expressa referência sobre a existência de outras provas, suficientes e aptas, por si, para a condenação, estaria afastada a nulidade. Referido entendimento, no entanto, se levado às últimas conseqüências, tolheria a eficácia da garantia constitucional que determina a inadmissibilidade processual das provas obtidas por meios ilícitos.

            Por conseguinte, a prova ilícita que indevidamente ingressou nos autos e foi levada em consideração pelo juiz em sua sentença, deve ser desconsiderada de pronto em grau de recurso, pelo Tribunal, para o que será determinado seu desentranhamento dos autos do processo. E o Tribunal julgará a causa como se aquelas provas jamais tivessem existido. [73]

            A jurisprudência tem entendido desta forma ao deparar-se com caso semelhante:

            AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PROVA ILÍCITA. DESENTRANHAMENTO DOS AUTOS DAS DEGRAVAÇÕES. EXISTÊNCIA DE PROVA AUTÔNOMA. ESCUTA TELEFÔNICA DESPREZADA PELO JUÍZO DA INSTRUÇÃO. AUSÊNCIA DE INTRESSE JURÍDICO A SER PROTEGIDO. 1. O fato de constar do processo a degravação de conversas, obtidas mediante escuta telefônica, nenhum prejuízo advém ao réu quando essa prova houver sido rechaçada durante o juízo da instrução. 2. Prova ilícita desprezada. Desentranhamento dos autos. Inutilidade da prestação jurisdicional requerida. Ausência de interesse jurídico a ser protegido ante a declaração de ilegitimidade da escuta telefônica. Agravo regimental não provido (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Penal. AGRRE nº 212.171/RJ, Rel. Min. Mauricio Correa, j. em 17.11.1997.)

            Por fim, cabe esclarecer que, em se tratando de sentença transitada em julgado que tenha se baseado em provas ilícitas, será a mesma nula, passível ser atacada por meio de revisão criminal, em cujo juízo rescisório poderá ser o réu absolvido.

            Porém, se se tratar de habeas corpus, o Tribunal deverá anular a sentença, indicando as provas viciadas e determinando que se proceda ao desentranhamento dos autos. Havendo, também, outras provas contaminadas pela ilicitude originária, contaminados estarão todo os atos processuais posteriores, daí ocasionando sua ineficácia, em decorrência do princípio da causalidade. [74]


CONCLUSÃO

            É de se verificar que, mesmo antes do advento da Constituição da República de 1988, já pairava divergência doutrinária e jurisprudencial acerca da possibilidade ou não de a prova ilícita ser admitida ao Processo Penal. Referida divergência foi estancada pelo legislador constituinte de 1988 que vedou, de modo categórico, a admissão processual da prova obtida por meios ilícitos, porém, a doutrina e os Tribunais mantém viva a controvérsia e permanecem suscitando a relevante questão.

            Assim, continua o entendimento de que a vedação estatuída no art. 5º, inciso LVI da Carta Magna não se dá de modo absoluto, eis que diante de casos concretos a doutrina e a jurisprudência pátrias admitem a sua relativização.

            Uma explicação para tanto está na fronteira muito tênue entre a preservação dos direitos fundamentais que o mencionado dispositivo almeja proteger, e a preservação de direitos de terceiros ou da coletividade. Deste modo, somente quando a invasão na esfera dos direitos fundamentais se mostrar indispensável, poder-se-á fazer uso deste tipo de prova. Por isso mesmo é que se torna impossível afirmar, sem o exame do caso concreto à luz dos princípios da proporcionalidade ou razoabilidade, se determinada prova pode ou não ser utilizada no Processo Penal.

            Com efeito, o objetivo do legislador constituinte, ao vedar a admissão das provas obtidas por meios ilícitos ao processo, é estabelecer limitação à atividade de persecução penal do Estado, eis que aludida atividade não pode se dar a qualquer preço, extrapolando direitos e garantias individuais, sob pena de inconstitucionalidade.

            Por isso, faz-se possível afastar de um processo prova, ainda que relevante e eficaz, que possa levar o julgador à certeza dos fatos alegados, desde que tal prova tenha sido colhida com afronta à norma de direito material ou processual. A doutrina majoritária entende que a prova ilícita ou ilegítima não pode ser produzida pela parte, tampouco valorada pelo julgador, de modo que descabe falar, como pensam alguns juristas, na possibilidade de utilização irrestrita da prova ilícita, com a punição da parte que a produziu, pelo ilícito civil, penal ou administrativo verificado na sua obtenção.

            Destarte, não poderá o juiz fundamentar sua decisão ou sentença em prova deste modo produzida, eis que estaria valorando prova que a Constituição da República considera inadmissível a provar os fatos e, ao considerar inadmissível, tem-na como não-prova, ou seja, como prova inexistente juridicamente.

            Atualmente, porém, desenvolve-se enfaticamente posicionamento advogando que a prova proibida, ilícita ou ilegitimamente adquirida, pode ser utilizada processualmente e valorada pelo magistrado, desde que seja essa prova a única existente ou mesmo a prova hábil a promover a absolvição do acusado. Admite-se, então, que o réu faça uso da prova ilícita ou ilegítima, de vez que a proibição estabelecida pela Carta Magna existe para assegurar respeito a direito individual do acusado, de modo que se lhe abre a possibilidade de fazer uso deste tipo de prova se conseguir, por meio dela, demonstrar sua inocência, sendo certo que estaria seu agir acobertado por causas excludentes de ilicitude, como o estado de necessidade ou legítima defesa.

            Importante também é mencionar que a doutrina e a jurisprudência vêm relativizando a proibição da utilização da prova ilícita ao Processo Penal, invocando, para tanto, os princípios da razoabilidade ou proporcionalidade. Assim, permite-se a utilização da prova obtida de forma ilícita, em vista da relevância do interesse público a ser protegido pela prova obtida, de modo que, se em casos extremamente graves a obtenção da prova viciada for a única forma, possível e razoável, de proteção a valores outros, tidos por mais urgentes na concreta avaliação do caso em questão, pode a prova viciada ser utilizada.

            Por isso é de se entender que nenhum juiz, em sã consciência, deverá se animar cometendo a enorme injustiça de condenar o réu, apenas por medo de fundamentar sua sentença em prova supostamente ilícita, já que a conduta do acusado, ao utilizar a prova viciada em seu favor, denota exclusão de ilicitude, para o que a prova produzida não será tida por ilícita, eis que admitida sua produção pelo próprio ordenamento jurídico.

            Se, contudo, a prova ilícita, sem que se exclua dela esse vício, ingressar no processo, vulnerando norma constitucional, deverá o magistrado proceder ao seu desentranhamento dos autos, já que não poderá levar em consideração mencionada prova em decisão ou sentença que venha a proferir. Se isso ocorrer, poderá o acusado requerer ao julgador que determine a exclusão da prova ilícita dos autos. Isso porque a prova ilícita é tida por prova inexistente juridicamente e não hábil à comprovação dos fatos.

            Conclui-se, assim, que, se de um lado é certo que o Estado-Juiz deve solucionar, de modo mais justo quanto possível, o conflito que lhe é colocado à apreciação, para o que deverá estar convencido dos fatos alegados, não se pode olvidar que essa busca pela certeza tem limites que devem ser observados, sob pena de imprestabilidade da prova colhida em desrespeito a direito individual, assegurado em sede constitucional. Não se deve esquecer, entretanto, de que os formalismos processuais não podem ser exaltados a ponto de sufocar direitos fundamentais, como a liberdade, bem maior em jogo no Processo Penal.


REFERÊNCIAS

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            TONINI, Paolo. A prova no processo penal italiano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

            VIEIRA, Luís Guilherme. O fenômeno opressivo da mídia: uma abordagem acerca das provas ilícitas. Revista de direito penal e processual penal. Ano II. n. 10. out-nov 2001.


NOTAS

            01 Foucault, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 1996.

            02 Ibidem, p. 31-33.

            03 Ibidem, p. 34.

            04 Ibidem, p. 53-54.

            05 Ibidem, p. 54.

            06Idem.

            07Idem.

            08 Alves, José Carlos Moreira. Direito romano. v. I. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 222-226.

            09 Silva, Ovídio Baptista da; Gomes, Fábio. Teoria geral do processo civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 11.

            10 Foucault, op. cit., p. 56.

            11 Ibidem, p. 58.

            12 Ibidem, p. 59.

            13 "Havia (…) provas como o ordálio da água, que consistia em amarrar a mão direita ao pé esquerdo de uma pessoa e atirá-la na água. Se ela não se afogasse, perdia o processo, porque a própria água não a recebia bem e, se ela se afogasse, teria ganho o processo visto que a água não a teria rejeitado." Foucault, op. cit., p. 60.

            14 Silva; Gomes, op. cit., p. 12.

            15 Foucault, op. cit., p. 62.

            16 Ibidem, p. 64-66.

            17 Ibidem, p. 78.

            18 RUBIO, David Sánchez; FLORES, Joaquín Herrera; CARVALHO, Salo de. (coord.) Anuário Ibero-Americano de direitos humanos (2001/2002). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 178.

            19 Por todos, Paulo Rangel aduz que o Processo Penal estaria mesmo a buscar a verdade real, vide RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p. 281.

            20 RUBIO; FLORES; CARVALHO, op. cit., p. 175.

            21 Ibidem, p. 176.

            22 Ibidem, p. 177.

            23 RANGEL, op. cit., p. 245.

            24 MIRABETE, Júlio Fabrini. Processo penal. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 256.

            25 RANGEL, op. cit., p. 246

            26 MIRABETE, op. cit., p. 257-258.

            27 Ibidem, p. 266.

            28 RANGEL, op. cit., p. 251.

            29 MIRABETE, op. cit., p. 266.

            30 RANGEL, op. cit., p. 279.

            31 Ibidem, p. 281

            32 Ibidem, p. 252.

            33 PEDROSO, Fernando de Almeida. Prova penal. Rio de Janeiro: Aide, 1994. p. 161.

            34 Ibidem, p. 161.

            35 SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de processo civil. v. I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 301.

            36 MENDES, Maria Gilmaise de Oliveira. Direito à intimidade e interceptações telefônicas. Belo Horizonte: Mandamentos, 1999. p. 105.

            37 BARROSO, Luis Roberto apud SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. 1. ed. 3. tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 180.

            38 PEDROSO, op. cit., p. 166. O autor se reporta a julgado americano, em que os juízes Brandeis e Holmes repudiaram prova formada e produzida ilegalmente, em homenagem à integridade jurídica.

            39 STF, Ação Penal 307-3 DF, Plenário, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU, 13 out. 1955; RTJ 162/03-340 apud MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 119.

            40 SARMENTO, op. cit., p. 77-96.

            41 SARMENTO, op. cit., p. 182.

            42 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 88.

            43 HAMILTON, Sérgio Demoro. Processo penal – reflexões. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 79

            44 GUERRA FILHO, Willis Santiago apud HAMILTON, op. cit., p. 75.

            45 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 116.

            46 Afrânio Silva Jardim e Paulo Rangel filiam-se à corrente que assevera que a conduta do réu, ao utilizar a prova colhida com aparente infringência às normas legais, é lícita, já que há exclusão de ilicitude quando este, para demostrar sua inocência, intercepta ligação telefônica sem autorização judicial, por exemplo. Afirmam que o acusado estaria, então, diante de verdadeiro estado de necessidade justificante, sendo sua conduta, deste modo, conforme o direito. RANGEL, op. cit., p. 260.

            47 SARMENTO, op. cit., p 182.

            48 HAMILTON, op. cit., p. 73.

            49 CARVALHO, Luís Gustavo Grandinetti Castanho de. O processo penal em face da Constituição: princípios constitucionais do processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 47-57

            50 RANGEL, op. cit., p. 256-259.

            51 MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. A ilicitude na obtenção da prova e sua aferição. Disponível em <http://www.jusnavegandi.com.br.> Acesso em: 18 out. 2002.

            52 RANGEL, op. cit., p. 259

            53 SARMENTO, op. cit., p. 179.

            54 RANGEL, op. cit., p. 257.

            55 GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em evolução. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 50.

            56 Idem.

            57 Idem. A autora cita o número da revista em que referido acórdão foi publicado: RTJ 110/798.

            58 Idem. Decisão publicada na RTJ 122/47.

            59 Idem.

            60 MENDES, op. cit., p. 127. A autora traça um retrospecto, em que aponta as correntes doutrinárias que entendiam pela admissibilidade e pela não admissão da prova ilícita no processo, quer civil, quer criminal, antes do advento da Constituição da República de 1988.

            61 GUERRA, Cordeiro apud MENDES, ibidem, p. 128.

            62 MONTEIRO, Raphael de Barros apud MENDES, idem.

            63 FERNANDES, op. cit., p. 85-86.

            64 PEDROSO, op. cit., p. 161.

            65 Ibidem, p. 162.

            66 OMES FILHO, Antonio Magalhães apud MOURA, op. cit.

            67 FERNANDES, op. cit., p. 90.

            68 GRINOVER; FERNANDES; GOMES FILHO, op. cit., p. 121.

            69 Sobre o tema em comento, FERNANDES, op. cit., p. 91.

            70 TONINI, Paolo. A prova no processo penal italiano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 263. Em tradução livre do teor do art. 191 do Código de Processo Penal italiano, tem-se que: Art. 191.1. A prova adquirida com violação aos deveres estabelecidos em lei não pode ser utilizada. 2. A proibição de utilização é reconhecível de ofício em qualquer estado e grau de procedimento.

            71 Ibidem, p. 77-79.

            72 SARMENTO, op. cit., p. 178.

            73 GRINOVER; FERNANDES; GOMES FILHO, op. cit., p. 121

            74 Idem.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMOS, Maíra Silva da Fonseca. A prova proibida no processo penal: as conseqüências de sua utilização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 837, 18 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7432. Acesso em: 19 abr. 2024.