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O modelo jurídico da seguridade social:

Uma breve análise acerca das proposições legislativas e a necessária desconstitucionalização

O modelo jurídico da seguridade social: . Uma breve análise acerca das proposições legislativas e a necessária desconstitucionalização

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Diante da realidade social e econômica brasileiro, a previdência se tornou um problema moral, político, social e econômico, pois há mais despesas do que recursos, com gastos maiores para um grupo de pessoas em injustificável desfavor de outros grupos menos favorecidos e até mais necessitados.

“No texto constitucional, muito do que é novo não é factível; e muito do que é factível não é novo”. “Da ordem social – exibem-se duas características fundamentais do socialismo: despotismo e utopia”. “Exemplos de despotismos são os dispositivos relativos à educação e à previdência social. Quanto à educação, diz-se que ela é dever do Estado, com a colaboração da sociedade. É o contrário. Ela é dever da família, com a colaboração do Estado”. “Outro exemplo de despotismo é a previdência estatal compulsória. Todos devem ser obrigados a filiar-se a algum sistema previdenciário, para não se tornarem intencionalmente gigolôs do Estado” (Roberto Campos)

“A Constituição necessita de uma lipoaspiração” (Nelson Jobim)

"Precisamos adequar a nossa Previdência, adequar o nosso sistema tributário e precisamos de menos texto na Constituição" (Dias Toffoli)


1 A fraqueza normativa da Constituição: reformar é necessário

A Constituição da República Federativa do Brasil[1], promulgada em 1988, é, lamentavelmente, um texto repleto de promessas normativas irresponsáveis e inconsequentes.  Os legisladores constituintes originários estavam imbuídos de boas intenções, mas se deixaram contaminar pela crença infantil no poder mágico das “Leis”, como se o “verbo” pudesse se transformar em “carne” ou a “palavra” fosse suficiente para criar ou transformar o “mundo” e as “coisas” de acordo com a sua vontade. Esse poder de criar ou de modificar a matéria ou a realidade somente pela força das palavras é privativo de Deus, segundo as Sagradas Escrituras.

Os constituintes, ingenuamente, confundiram “força normativa” com “utopia fantasiosa”. Com efeito, um texto constitucional repleto de desejos, com desprezo à realidade ou às condições naturais ou geográficas, econômicas, sociais, culturais, científicas e tecnológicas de determinada sociedade em determinado espaço geográfico e período temporal, conduz à erosão de respeitabilidade e à perda de sua normatividade (vinculatividade), como bem explicou Konrad Hesse[2]. A Constituição divorciada da realidade e das contingências da vida e das possibilidades fáticas não passa de uma simples “folha de papel”, de sorte que a “Constituição jurídica” nada pode em face da “Constituição real” e dos “fatores reais de poder”, como denunciou Ferdinand Lassalle[3].

Nessa perspectiva, não há espaço para o “legislador Pinóquio” (aquele que mente para o povo mediante a criação de direitos sem lastro na realidade circundante) nem para “o jurista Peter Pan” (aquele que acredita no ordenamento jurídico, a despeito da realidade fática, como se o Direito fosse uma “Neverland”). Tanto o legislador como o jurista devem amadurecer e devem enfrentar a realidade nua, dura e crua, sem fantasias infantis ou crenças mágicas.

O primeiro passo consiste em deixar de adorar o Estado. É bem verdade que no texto constitucional brasileiro há vários preceitos da “Estatolatria”, como se vê, por exemplo, no comando normativo disposto no art. 3º, inciso I, que enuncia ser objetivo fundamental da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária.  Ora, não é a República (o Estado) que constrói a sociedade, mas esta (a sociedade) que constrói aquela (a República ou o Estado).

Ou seja, a sociedade é anterior e superior ao Estado. Este nasce daquela, é construído pela sociedade, ao invés de esta (a sociedade) ser construída por aquele (o Estado). A sociedade é formada pelo conjunto organizado e estabilizado de indivíduos. Estes (os indivíduos) são seres concretos, realidade palpável, e não mera abstração teórica. Portanto, a sociedade abstrata é formada por indivíduos concretos. Logo, o Estado deve ser subsidiário em relação aos indivíduos. Daí que, em nossa avaliação, deveria haver uma mudança no texto constitucional, modificando-se o aludido art. 3º, que passaria a ter a seguinte redação:

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da sociedade brasileira, formada por homens e mulheres livres, justos e solidários:

I - construir um Estado democrático, republicano e federativo.

Essa simples mudança textual enviaria uma forte mensagem simbólica: o Estado deixaria de ser um “deus artificial” (ídolo adorado) e se tornaria um valioso instrumento da sociedade em favor da dignidade de cada indivíduo. Ao invés de ser servido pelos indivíduos, o Estado (que também é composto de indivíduos concretos) serviria à sociedade, ou seja, um Estado a serviço da sociedade ao invés de um Estado que da sociedade se serve. Mas, além de ser uma modificação textual, essa alteração haveria de simbolizar uma mudança de mentalidade cultural: a crença que muitos de nós compartilhamos nos superpoderes do Estado e do Direito. Essa crença é muito forte entre muitos de nós brasileiros que atribuímos ao Estado a capacidade de resolver todos os problemas da vida e de satisfazer todos os desejos e/ou necessidades que possuímos.

Com efeito, uma Constituição que promete, via enunciação de direitos normativos, a satisfação de nossas necessidades e a realização de nossos desejos, corre o risco de sobrecarregar o Estado, as empresas e a própria sociedade. Cuide-se que Estado, empresas e sociedade são abstrações ou criações mentais. Quem efetivamente vai se sobrecarregar são os indivíduos (pessoas reais). E, além de se sobrecarregarem de responsabilidades sobrehumanas, esses indivíduos terão profundas decepções, haja vista o quanto há de prometido no texto normativo e o quanto há de realidade concreta, como sucede, por exemplo, com a promessa contida no art. 7º, inciso IV, que dispõe ser direito do trabalhador o salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada a sua vinculação para qualquer fim.

Pois bem, nos termos do Decreto n. 9.661, de 1º de janeiro de 2019, que regulamenta a Lei n. 13.152, de 29 de julho de 2015, o salário mínimo vigente no Brasil é no valor de R$998,00 (novecentos e noventa e oito reais).  Não são poucas as entidades que julgam que esse valor nominal não atende as promessas constitucionais. Tome-se, à guisa de exemplo, as pesquisas realizadas pelo Dieese[4] que indicam que para satisfazer às necessidades do trabalhador e de sua família o salário mínimo material deveria ser de R$4.385,75 (quatro mil trezentos e oitenta e cinco reais e setenta e cinco centavos). Eis o dilema: ou se cumpre efetivamente a Constituição ou se inviabiliza a economia e as finanças públicas? As promessas normativas constitucionais não cabem no PIB brasileiro[5].

Dentre outras promessas normativas da Constituição, que também causam dilemas normativos e existenciais, e que também não são suportadas pelo PIB, há as relativas à seguridade social, que nos termos do art. 194 compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.  

Pois bem, tramitam no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição n. 6, de 2019 (PEC 6/2019)[6], a Proposta de Emenda à Constituição n. 287, de 2016 (PEC 287/2016)[7] e o Projeto de Lei n. 1.645, de 2019 (PL 1.645/2019)[8], que visam modificar vários preceitos normativos constitucionais e infraconstitucionais relativos à seguridade social e à administração pública, mormente, direitos dos trabalhadores, dos servidores públicos, e dos militares estaduais e das Forças Armadas.  Por que essas proposições legislativas estão tramitando?  Há motivos para inovar o ordenamento jurídico com essas modificações?  O atual modelo de seguridade social está adequado e atende às necessidades dos brasileiros? É moralmente aceitável, politicamente conveniente, socialmente adequada e economicamente viável, o modelo atual de seguridade, especialmente em relação à previdência? Seria juridicamente justificável que todas as aposentadorias, pensões e benefícios, bancadas pela seguridade social, fossem no valor de um salário mínimo? 

Procuraremos responder a essas questões lastreado no realismo e no pragmatismo constitucional. Com efeito, ser realista e pragmático, em sede de direito constitucional, significa ler a Constituição não como um documento onírico ou poético, mas como um texto vocacionado ao equilíbrio social. O realista e pragmático está consciente de que para todo bônus há um ônus correspondente, ou seja, para todo direito há um dever. E, também há um custo a ser suportado ou pelo pagamento de tributos ou pelo pagamento de preços, posto que todos os direitos implicam custos, seja para efetivá-los, seja para protegê-los ou para sancionar e punir quem lhes viola.

Nessa perspectiva, ser realista e pragmático significa entender que somente devem ser positivados em textos normativos, sobretudo no texto da Constituição, aquilo que pode ser reivindicado perante as competentes instituições e que eventual descumprimento ou desobediência aos comandos constitucionais enseja uma pronta e imediata sanção (consequência negativa) aos responsáveis. Se a promessa normativa for de difícil concretização, deixa de ser um direito para se tornar um desejo ou um sonho (ou pesadelo?). Se for de razoável concretização, aí pode ser direito. Para um realista pragmático, em um texto normativo deve haver menos sonhos, menos desejos, menos quimeras e deve haver mais possibilidades, factibilidades e viabilidades.

A rigor, o realista pragmático não ilude o cidadão pagador de tributos e de contas com promessas irresponsáveis e inconsequentes. Não promete o “Paraíso” para justamente não lhe presentear com o “Inferno”. Já o onirismo jurídico-constitucional, com as suas promessas de um mundo perfeito, com a sua engenharia social e moral paradisíaca, com a sua arquitetura de bondade e bom-mocismo, normalmente provoca decepção e frustração, pois há um profundo e intransponível fosso entre o texto normativo e a realidade concreta. O direito há de ser um dever-ser possível e factível.

É fora de toda a dúvida que já passou da hora de o legislador e o jurista brasileiros abandonarem a magia e a fantasia, pois os indivíduos concretos (as pessoas humanas) necessitam de um Estado que seja capaz de lhes viabilizar, sem intervencionismo desarrazoado e desproporcional, o indispensável equilíbrio social para que todos possam viver as suas respectivas vidas com paz, prosperidade e justiça, e que cada indivíduo possa realizar todos os seus projetos existenciais dignos, em harmonia com os projetos existenciais dignos alheios.

Alcançar essa harmonia não tendo sido uma tarefa fácil, afinal os indivíduos são seres concretos e imperfeitos, com características e circunstâncias que lhos diferenciam de outros indivíduos. Há gente de todos os tipos, pois a fauna humana é demasiadamente rica e complexa.

Com efeito, os indivíduos (espécies) são homens e mulheres, de carne e osso, com almas e emoções, com vícios e virtudes, com necessidade e desejos, com recordações de passado, com perspectivas de presente e expectativas de futuro, que vivem e sonham, com alegrias e frustrações, com felicidades e tristezas, ou seja, somos todos demasiadamente humanos. E cada indivíduo, pessoa humana, é um universo de possibilidades existenciais, e cada um consiste em uma experiência existencial única e irrepetível no tempo e no espaço, e todos são moralmente iguais.

Daí que os parâmetros de harmonização ou de solução dos conflitos devem privilegiar o que não seja juridicamente proibido, moralmente inaceitável, socialmente inadequado, politicamente inconveniente, economicamente ineficiente, tecnologicamente ineficaz e cientificamente inviável. É preciso respeitar e considerar a realidade e o contexto, inclusive para modificar essa realidade e esse contexto.

Recorde-se que em 1988 o Brasil tinha uma população em redor de 142 milhões de habitantes, em 2019 gira em redor de 210 milhões. Em 1988, havia em torno de 59 milhões de brasileiros entre 0 e 17 anos, atualmente em torno de 52 milhões. Em 1988 em torno de 73 milhões de brasileiros entre 18 e 59 anos, em 2019 quase 125 milhões. E, em 1988, havia pouco mais de 10 milhões de brasileiros com mais de 60 anos, atualmente quase 33 milhões de brasileiros tem mais de 60 anos.  Esses são os quadros comparativos. A geografia humana brasileira mudou. É necessário adaptar-se.

Nessa linha, temos professado o credo segundo o qual, em nossa avaliação, um bom texto jurídico, seja de caráter acadêmico (teses, dissertações, artigos etc.) ou de caráter processual (decisões, votos, petições, memoriais, pareceres etc.), deve ser convincente, coerente, consistente, correto e conciso. Ou seja, com essas cinco características o texto jurídico (acadêmico ou processual) merece sincera consideração e respeito. Daí que se acaso o texto (ou o argumento jurídico) não possuir essas características, entendemos ser um texto (ou argumento) falho e inadequado para influenciar (persuadir), se for acadêmico, ou para vincular (obrigar), se for uma decisão, ou convencer (também persuadir) os seus destinatários.

A finalidade deste texto é persuadir o leitor de que, diante de nossa realidade e contexto, as reformas constitucionais, especificamente da previdência, são o primeiro passo para que o Brasil possa retomar o caminho do crescimento econômico com a melhoria das condições sociais, sobretudo para os mais necessitados. Se acaso o leitor já estiver convencido de que as reformas constitucionais não são relevantes nem necessárias, convém sequer continuar a leitura deste texto. Mas se quiser se convencer ou robustecer suas convicções acerca da imperiosa necessidade delas, o texto pode lhe subsidiar e lhe ser útil.

E se a Constituição não for reformada, e se ela vier a perder a sua normatividade e vinculatividade, e se as suas promessas não forem levadas a sério, qual a necessidade, portanto, de reformas? Para que reformar o que não tem valor? Por que se preocupar com aquilo que não tem poder real na vida das pessoas? Na verdade, sem as reformas a Constituição continuará a ser um texto normativo seletivo, em vez de um texto integral. Ou seja, ela somente será aplicada naquilo que os “fatores reais de poder” julgarem interessante e ao invés de ser um texto indutor do equilíbrio, continuará como texto incentivador de desequilíbrios sociais, apesar de suas boas intenções.

Em suma, a sociedade, por meio de seu poder constituinte, criou um Estado que, por meio da Política e do Direito, instituiu (e tem instituído) um conjunto de “bônus” e de “ônus” a ser usufruído e suportado por essa mesma sociedade. Sucede, todavia, que tanto o usufruto quanto o sacrifício tem sido desequilibrado. Esse desequilíbrio tem prejudicado a convivência social harmônica e pacífica. As reformas constitucionais são, reitera-se, os primeiros passos para se equilibrar os “bônus” e “ônus” na sociedade brasileira. Há uma sociedade com muitos indivíduos pobres e miseráveis, sem acesso a serviços básicos e bens essenciais (exemplo: água potável e saneamento básico), e somente com a retomada do crescimento econômico o País irá superar esse grave problema político, econômico, social e (por que não?) moral.


2 As promessas constitucionais da seguridade: previdencia, saúde e assistencia

Entre os arts. 194 e 205 da Constituição Federal estão os preceitos normativos relativos à  seguridade social. Esta (a seguridade social) está contida no Título VIII (Da Ordem Social, arts. 193 a 232, CF), que deve ser lido em sintonia com o disposto no art. 6º, que preceitua os direitos sociais. Se se entender que os direitos sociais são direitos reivindicáveis perante o Estado e que cabe a este viabilizar e concretizar todas as promessas normativas constitucionais, estaremos diante de uma situação faticamente insustentável.

Se se entender que os direitos sociais são diretivas, em vez de normas vinculativas, que somente enunciam um futuro estado ideal das coisas, totalmente dependente das contingências e circunstâncias, aí seria possível salvar o texto. A dificuldade reside nesse seletivismo hermenêutico. Em que circunstâncias o texto normativo deve ser lido e levado a sério e em que outras o texto deve ser meramente ilustrativo ou figurativo? Qual o critério para distinguir se a promessa normativa é séria ou é frívola?

A Constituição não nos indica os caminhos. A rigor, todos os preceitos constitucionais deveriam ser levados a sério, deveriam ser normas vinculantes, deveriam ser comandos reivindicáveis. Mas, como todos sabemos, isso é faticamente impossível. Infelizmente, para salvar o texto, tem-se utilizado de uma hermenêutica seletiva e arbitrária. Os preceitos constitucionais estão sendo lidos e aplicados na solução de problemas normativos concretos com essa perspectiva, ou seja, com uma hermenêutica seletiva e de ocasião. A hermenêutica deve ser o limite da interpretação do texto.

Nada obstante, enuncia o art. 193 que a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo, o bem-estar e a justiça sociais. O arts. 194 e 195 enunciam que a seguridade social alberga o Poder Público e a sociedade, e visa assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à asssistência social, e indicam quais os objetivos da seguridade social, bem como as suas fontes de financiamento, deixando claro que toda a sociedade financiará a seguridade. É ônus inescapável porquanto todos serão destinatários dos seus bônus.

Entre os arts. 196 e 200 estão preceitos relativos à saúde, que é prescrita como um direito de todos e como um dever do Estado. Eis um típico caso de infantilização do indivíduo, pois em vez de ser um dever do próprio indivíduo cuidar de sua saúde e da saúde daqueles que estejam sob sua responsabilidade, essa tarefa é do Estado e, por consequencia, será financiada e mantida por todos, por meio de um sistema único de saúde (SUS) com atribuições sobredivinas, como se lê do disposto no art. 200. É bem verdade que no art. 199 está enunciado que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, com uma série de condicionamentos, sendo, em minha avaliação, a mais estranha aquela que proíbe a participação de empresas ou de capitais estrangeiros na assistência à saúde, salvo nos casos previstos em lei. A saúde dos brasileiros está protegida da sanha capitalista e imperalista internacional. Talvez por isso seja tão boa e tão barata (para não dizer o contrário, sem nenhuma fina ironia).

Os arts. 201 e 202 versam sobre a previdência social. Esses preceitos já foram objeto de modificações pelas Emendas Constitucionais ns. 20/1998 e 47/2005. Cuidaremos das redações vigentes, salvo se houver razão para recordar as originárias. No art. 201 está disposto que a previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial. E, nesse preceito, a previdência atenderá não apenas à aposentadoria, mas aos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada, a proteção à maternidade e à gestante, a proteção ao desempregado involuntário, a concessão de salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda e a pensão por morte do segurado. Ou seja, assim como seguridade não é só previdência, previdência não é só aposentadoria. De sorte que aquele que contribui para a seguridade ou para a previdência não contribui apenas para a aposentadoria. Contribui para a seguridade de todos e ou para a previdência de todos, e não apenas para a sua própria aposentadoria ou previdência.

Outro preceito relevante é a regra geral de aposentadoria para o regime geral da previdência, que exige 35 anos de contribuição, se for homem, e 30 anos, se for mulher, e a idade mínima de 65 anos, se homem, e de 60 anos, se mulher, reduzindo-se em até 5 anos para os trabalhadores rurais ou para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar. Na hipótese de professor, a contribuição será de 30 anos, se homem, e de 25 anos, se mulher. Além dessas regras gerais, o texto reconhece a necessidade de tratamentos diferenciados para os casos de atividades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física e quando se tratar de segurados portadores de deficiência, nos termos da lei complementar.

Sem embargo da respeitabilidade que devotamos às mulheres e aos professores, em nossa avaliação o tratamento diferenciado somente deveria ser para aquelas atividades que efetivamente coloquem em risco a saúde ou a integridade física dos segurados, independetemente do sexo ou da atividade a priori. Assim, não há justo e convincente motivo para que as mulheres e os professores tenham tratamento diferenciado. Aposentadoria decorrente da previdência social não serve para corrigir aspectos socioculturais ou remuneratórios do presente (ou do passado).

No texto constitucional, há regramento para os sistemas próprios (servidores e militares) e para os complementares, estes de caráter facultativo. Quanto aos servidores civis, o regime previdenciário está disciplinado no art. 40. O regime previdenciário dos militares estaduais está prescrito no art. 42. E o regime dos militares das Forças Armadas encontra-se no art. 142, inciso X. Todos esses preceitos já foram objeto de emendas constitucionais (ns. 3/1993, 18/1998, 19/1998, 20/1998, 41/2003, 47/2005 e 88/2015).

A redação originária da Constituição Federal é demasiadamente generosa com os servidores. Eis o que preceituava:

Art. 40. O servidor será aposentado:

I – por invalidez permanente, sendo os proventos integrais quando decorrentes de acidente em serviço, moléstia profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável, especificadas em lei, e proporcionais nos demais casos;

II – compulsoriamente, aos setenta anos de idade, com proventos proporcionais ao tempo de serviço;

III – voluntariamente:

a) aos trinta e cinco anos de serviço, se homem, e aos trinta, se mulher, com proventos integrais;

b) aos trinta anos de efetivo exercício em funções de magistério, se professor, e vinte e cinco, se professora, com proventos integrais;

c) aos trinta anos de serviço, se homem, e aos vinte e cinco, se mulher, com proventos proporcionais; e

d) aos sessenta e cinco anos de idade, se homem, e aos sessenta, se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de serviço.

§ 1º Lei complementar poderá estabelecer exceções ao disposto no inciso III, “a” e “c”, no caso de exercício de atividades consideradas penosas, insalubres ou perigosas.

§ 2º A lei disporá sobre a aposentadoria em cargos ou empregos temporários.

§ 3º O tempo de serviço público federal, estadual ou municipal será computado integralmente para os efeitos de aposentadoria e de disponibilidade.

§ 4º Os proventos da aposentadoria serão revistos, na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos servidores em atividade, sendo também estendidos aos inativos quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrente da transformação ou reclassificação dos cargo ou função em que se deus a aposentadoria, na forma da lei.

§ 5º O benefício da pensão por morte corresponderá à totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido, até o limite estabelecido em lei, observado o disposto no parágrafo anterior.

Por ocasião das mencionadas emendas constitucionais, houve modificação normativa desse art. 40, itens, que passou a ter a seguinte enunciação:

Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo. 

§ 1º Os servidores abrangidos pelo regime de previdência de que trata este artigo serão aposentados, calculados os seus proventos a partir dos valores fixados na forma dos §§ 3º e 17: 

I - por invalidez permanente, sendo os proventos proporcionais ao tempo de contribuição, exceto se decorrente de acidente em serviço, moléstia profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável, na forma da lei; 

II - compulsoriamente, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição, aos 70 (setenta) anos de idade, ou aos 75 (setenta e cinco) anos de idade, na forma de lei complementar;       

III - voluntariamente, desde que cumprido tempo mínimo de dez anos de efetivo exercício no serviço público e cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria, observadas as seguintes condições: 

 a) sessenta anos de idade e trinta e cinco de contribuição, se homem, e cinqüenta e cinco anos de idade e trinta de contribuição, se mulher; 

b) sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição. 

§ 2º - Os proventos de aposentadoria e as pensões, por ocasião de sua concessão, não poderão exceder a remuneração do respectivo servidor, no cargo efetivo em que se deu a aposentadoria ou que serviu de referência para a concessão da pensão. 

§ 3º Para o cálculo dos proventos de aposentadoria, por ocasião da sua concessão, serão consideradas as remunerações utilizadas como base para as contribuições do servidor aos regimes de previdência de que tratam este artigo e o art. 201, na forma da lei. 

§ 4º É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos abrangidos pelo regime de que trata este artigo, ressalvados, nos termos definidos em leis complementares, os casos de servidores: 

I - portadores de deficiência; 

II - que exerçam atividades de risco; 

III - cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física. 

§ 5º - Os requisitos de idade e de tempo de contribuição serão reduzidos em cinco anos, em relação ao disposto no  § 1º, III, "a", para o professor que comprove exclusivamente tempo de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio. 

§ 6º - Ressalvadas as aposentadorias decorrentes dos cargos acumuláveis na forma desta Constituição, é vedada a percepção de mais de uma aposentadoria à conta do regime de previdência previsto neste artigo. 

§ 7º Lei disporá sobre a concessão do benefício de pensão por morte, que será igual: 

I - ao valor da totalidade dos proventos do servidor falecido, até o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201, acrescido de setenta por cento da parcela excedente a este limite, caso aposentado à data do óbito; ou 

II - ao valor da totalidade da remuneração do servidor no cargo efetivo em que se deu o falecimento, até o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201, acrescido de setenta por cento da parcela excedente a este limite, caso em atividade na data do óbito. 

§ 8º É assegurado o reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real, conforme critérios estabelecidos em lei. 

§ 9º - O tempo de contribuição federal, estadual ou municipal será contado para efeito de aposentadoria e o tempo de serviço correspondente para efeito de disponibilidade. 

§ 10 - A lei não poderá estabelecer qualquer forma de contagem de tempo de contribuição fictício. 

§ 11 - Aplica-se o limite fixado no art. 37, XI, à soma total dos proventos de inatividade, inclusive quando decorrentes da acumulação de cargos ou empregos públicos, bem como de outras atividades sujeitas a contribuição para o regime geral de previdência social, e ao montante resultante da adição de proventos de inatividade com remuneração de cargo acumulável na forma desta Constituição, cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração, e de cargo eletivo. 

§ 12 - Além do disposto neste artigo, o regime de previdência dos servidores públicos titulares de cargo efetivo observará, no que couber, os requisitos e critérios fixados para o regime geral de previdência social. 

§ 13 - Ao servidor ocupante, exclusivamente, de cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração bem como de outro cargo temporário ou de emprego público, aplica-se o regime geral de previdência social. 

§ 14 - A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, desde que instituam regime de previdência complementar para os seus respectivos servidores titulares de cargo efetivo, poderão fixar, para o valor das aposentadorias e pensões a serem concedidas pelo regime de que trata este artigo, o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201. 

§ 15. O regime de previdência complementar de que trata o § 14 será instituído por lei de iniciativa do respectivo Poder Executivo, observado o disposto no art. 202 e seus parágrafos, no que couber, por intermédio de entidades fechadas de previdência complementar, de natureza pública, que oferecerão aos respectivos participantes planos de benefícios somente na modalidade de contribuição definida.

§ 16 - Somente mediante sua prévia e expressa opção, o disposto nos  §§ 14 e 15 poderá ser aplicado ao servidor que tiver ingressado no serviço público até a data da publicação do ato de instituição do correspondente regime de previdência complementar. 

§ 17. Todos os valores de remuneração considerados para o cálculo do benefício previsto no § 3° serão devidamente atualizados, na forma da lei. 

§ 18. Incidirá contribuição sobre os proventos de aposentadorias e pensões concedidas pelo regime de que trata este artigo que superem o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201, com percentual igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos. 

§ 19. O servidor de que trata este artigo que tenha completado as exigências para aposentadoria voluntária estabelecidas no § 1º, III, a, e que opte por permanecer em atividade fará jus a um abono de permanência equivalente ao valor da sua contribuição previdenciária até completar as exigências para aposentadoria compulsória contidas no § 1º, II. 

§ 20. Fica vedada a existência de mais de um regime próprio de previdência social para os servidores titulares de cargos efetivos, e de mais de uma unidade gestora do respectivo regime em cada ente estatal, ressalvado o disposto no art. 142, § 3º, X. 

§ 21. A contribuição prevista no § 18 deste artigo incidirá apenas sobre as parcelas de proventos de aposentadoria e de pensão que superem o dobro do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 desta Constituição, quando o beneficiário, na forma da lei, for portador de doença incapacitante. 

Quanto aos militares, dos Estados e da União (Forças Armadas), na redação originária do art. 42, no ponto que interessa, estava disposto:

§ 9º A lei disporá sobre os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do servidor militar para a inatividade.

§ 10 Aplica-se aos servidores a que se refere este artigo, e a seus pensionistas, o disposto no art. 40, §§ 4º e 5º (dispositivos da redação originária)

Posteriormente, houve alteração desses preceitos constitucionais, que passou a ter  seguinte e vigente redação:

Art. 42 Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.                            

§ 1º Aplicam-se aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, além do que vier a ser fixado em lei, as disposições do art. 14, § 8º; do art. 40, § 9º; e do art. 142, §§ 2º e 3º, cabendo a lei estadual específica dispor sobre as matérias do art. 142, § 3º, inciso X, sendo as patentes dos oficiais conferidas pelos respectivos governadores.  

§ 2º Aos pensionistas dos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios aplica-se o que for fixado em lei específica do respectivo ente estatal. 

É de ver que não há mais menção aos militares das Forças Armadas, que tem a sua regulação no art. 142. Nesse artigo a EC 18/1998 incluiu o inciso IX com a seguinte redação: “aplica-se aos militares e a seus pensionistas o disposto no art. 40, §§ 4º, 5º e 6º”. Posteriormente, adveio a EC 20/1998, que excluiu os §§ 4º, 5º e 6º e incluiu os §§ 7º e 8º. Por fim, adveio a EC 41/2003 que revogou esse inciso IX do art. 142. Em vigor está o inciso X com a seguint redação: “a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra”.

Quando comparamos os preceitos normativos originários com os derivados (e vigentes) percebemos algumas relevantes alterações, mormente no tocante ao tempo mínimo de idade e de contribuição para a aposentadoria voluntária. Também a submissão dos servidores ao teto do regime geral da previdência, e não mais à remuneração da ativa. E, também, a cobrança de contribuição sobre os proventos e pensões. Recorde-se que os servidores federais somente passaram a contribuir para a previdência somente a partir do ano de 1991, com a edição da Medida Provisória n. 282, de 14 de dezembro de 1990. A EC 43/2001 autorizou a instituição de previdência pública complementar, que restou concretizada somente no ano de 2012, por meio da Lei n. 12.618.

Em linhas gerais, é o vigente regime jurídico previdenciário para os segurados em geral, para os servidores civis, e para os militares dos Estados (Polícias Militares e Corpos de Bombeiros) e da União (Forças Armadas). Como será adiante explicado, mesmo com essas mudanças o regime da seguridade social permaneceu insustentável financeiramente e continua jurídica e moralmente injusto, porquanto draga uma enorme quantidade de recursos (dinheiro) que seriam mais rentáveis se aplicado de modo mais efeciente em setores produtivos. Antes, contudo, visitaremos a terceira perna da seguridade social: a assistência social.

Nos arts. 203 e 204 estão os preceitos constitucionais da bondade normativa e das boas intenções, que revelam uma inquestionável opção ética do constituinte brasileiro, sobretudo o disposto no art. 203, que tem a seguinte redação:

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;

II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;

III - a promoção da integração ao mercado de trabalho;

IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

Esse comando visa alcançar aqueles que nada tem e nada possuem. Com esses direitos estatizados há um esvaziamento da sociedade civil, organizada ou difusa, porquanto tradicionalmente a preocupação com a situação social do outro tinha um forte conteúdo e apelo moral, e motivava a sociedade organizada, por meio das Igrejas, entidades beneficentes ou filantrópicas, a não deixarem o próximo desamparado.

Com essa usurpação estatal, a sociedade, vez mais, se torna subsidiária do Estado, e em vez de ser a protagonista nas ações sociais de benemerência se vê como coadjuvante do Estado. Qual a consequencia imediata desse tipo de ação política e social estatal? A ausência de comprometimento e de empatia social. O tecido social se esgarça, visto que tudo passa a ser responsabilidade do Estado, de sorte que a sociedade (o conjunto de indivíduos) não se sente co-responsável pelos outros semelhantes desafortunados. Com o pagamento de tributos, o indivíduo se vê exonerado de atuar socialmente. O Estado social amesquinhou a empatia social entre os indivíduos. Induvidosamente há boas intenções, mas esse preceito torna os desafortunados presas fáceis ao Estado e fortalece ainda mais o poder estatal em face da sociedade. Quanto mais forte for o Estado, mais fraca será a sociedade civil.

Tenha-se que esse preceito dispõe que a assistência será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade, e no art. 204 está prescrito que as ações da assistência social serão realizadas com os recursos do orçamento da seguridade. Assim, os recursos da seguridade social, cujas fontes de financiamento estão disciplinadas no art. 195, servirão para atender à saúde, à previdência e à assistência.

Reitera-se, ao pagarem os tributos os indivíduos e as empresas se julgam exonerados e irresponsáveis por essas três questões acima aludidas, dentre os outros direitos sociais estatizados, como sucede com educação, cultura, segurança e tantos outros prometidos no texto da Constituição, que são vistos como obrigações estatais e como tal devem ser financiados por meio dos tributos que pantagruelicamente o Estado cobra e arrecada. Essa é uma outra consequencia de um Estado total: a voracidade fiscal para cumprir com as obrigações de solucionar todos os problemas humanos, como sucede com a República brasileira. E essa voracidade fiscal tem subtraído recursos da sociedade para fazer face às despesas estatais, mormente com a seguridade social, e de modo mais específico com a previdência.

De efeito, a sociedade brasileira, em 1988, por meio do poder constituinte originário, fez uma opção preferencial pelo intervencionismo estatal social, robustecendo o poder público institucionalizado e esvaziando o poder social organizado ou difuso. Essa opção, ao meu sentir errada, tem consequencias sociais, culturais, políticas e financeiras. As proposições legislativas visam enfrentar algumas delas, sobretudo as de caráter financeiro. Sobre elas passaremos a analisar brevemente.


3 A situação financeira da seguridade social e as proposições legislativas

No estudo intitulado Aspectos Fiscais da Seguridade Social no Brasil[9] demonstrou-se que no ano de 2016 as receitas da seguridade social alcançaram a cifra de R$635,3 bilhões de reais, enquanto que as despesas (saúde, previdência e assistência) consumiram R$874,7 bilhões de reais, gerando um déficit de R$239,4 bilhões de reais. Esse déficit só tem evoluído. A projeção para este ano de 2019 é de quase R$310 bilhões de reais. Esse é o déficit de toda a seguridade social.

Segundo o Ministério da Economia[10], aposentadorias, pensões e benefícios da previdência social vão consumir, de recursos federais, mais de R$700 bilhões de reais em 2019, com a previsão de receita em torno de R$459 bilhões de reais, o déficit deverá superar R$290 bilhões de reais. A finalidade financeira da PEC 6/2019 é viabilizar uma economia de R$1,236 trilhão de reais no prazo de dez anos.

Na mesma senda o Tribunal de Contas da União[11], que demonstrou que entre 2007 e 2016 o rombo previdenciário cresceu 54% e que no ano de 2016 o déficit da previdência foi de R$226 bilhões de reais, e que as despesas com a previdência estão consumindo quase 10% do PIB brasileiro.

Tenha-se que o relatório final[12] da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Federal destinada a investigar a contabilidade da previdência social (CPI da Previdência) concluiu em sentido diametralmente oposto. Segundo essa CPI, a seguridade social é superavitária e que os eventuais déficits apresentados decorrem das indevidas exonerações e das sonegações fiscais ou do não pagamento com a judicialização das dívidas ou com a falência das empresas devedoras, assim como de fraudes e erros nas concessões dos benefícios, bem como das desvinculações das receitas da União e das sonegações. Segundo a CPI, se todas as receitas da seguridade socal fossem arrecadadas, sem exonerações ou fraudes, e se elas canalizadas apenas para as despesas com saúde, previdência e assistência,  a seguridade social não apresentaria problemas. Alfim, a CPI apresentou as seguintes proposições legislativas:

a) Projeto de Lei do Senado de autoria da CPIPREV para alterar os art. 15 e 22 da Lei nº 8.212, de 1991, regulamentando o disposto no art. 7º XXVII e art. 194, parágrafo único, V da Constituição e permitindo a busca do pleno emprego (art. 170, VIII) e a redução da informalidade;

b) Proposta de Emenda à Constituição de iniciativa da CPIPREV para alterar os art. 114 e 195 da Constituição, dispondo sobre a competência da Justiça do Trabalho para a execução de ofício das contribuições previdenciárias incidentes sobre verbas remuneratórias pagas sem o pertinente recolhimento, mesmo quando os vínculos somente sejam reconhecidos e declarados na sentença, para que seja fato gerador das contribuições previdenciárias a mera prestação de trabalho remunerado (remunerações “devidas”) e para impor a obrigatoriedade de registro das contribuições previdenciárias atinentes ao trabalhador, assim que a sentença homologatória de cálculos de liquidação (dessas mesmas contribuições) não mais comporte questionamento;

c) Proposta de Emenda à Constituição de iniciativa da CPIPREV para inserir o art. 76-A no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para dispor sobre a não aplicação da Desvinculação de Receitas da União de que trata o art. 76 do às receitas dseguridade social, para inserir o novo art. 195-A, dispondo sobre o Conselho Nacional de Seguridade Social, e a compensação de renúncias fiscais de receitas da seguridade social, e para alterar o art. 195 da Constituição, dispondo sobre a decadência e prescrição das contribuições sociais de que trata o art. 195, I, “a”, e II;

d) Proposta de Emenda à Constituição de iniciativa da CPIPREV para inserir dispor sobre o limite máximo de benefícios do Regime geral de previdência social de que trata o art. 201 da Constituição e seu reajustamento, fixando-o em R$ 9.370,00 (nove mil trezentos e setenta reais);

e) Projeto de Lei do Senado, de iniciativa da CPIPREV que altera a Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para aumentar as penas e eliminar, no caso de pagamento do tributo devido, a possibilidade de extinção de punibilidade dos crimes contra a ordem tributária e para criar causas de redução de pena;

f) Proposta de Emenda à Constituição de iniciativa da CPIPREV para alterar os arts. 109, 114, 149, 167, 195 e 250 da Constituição, dispõe sobre a realização de auditoria pública da seguridade social e da dívida pública e dá outras providências;

g) Requerimento, de iniciativa da CPIPREV, nos termos do art. 148 do Regimento Interno do Senado Federal, para que o Tribunal de Contas da União execute inspeção sobre a validade e adequação do modelo e fórmulas atuariais adotados pelo Poder Executivo para o cumprimento do disposto no art. 4º, § 2º, IV, “a” da Lei Complementar nº 101,de 2000;

h) Projeto de Lei do Senado, de iniciativa da CPIPREV que dispõe sobre os crimes contra a Previdência Social;

i) Projeto de Lei do Senado - Complementar, de iniciativa da CPIPREV que altera a Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), para estabelecer regras de anistia, remissão, transação e parcelamento dos créditos tributários;

Quem estaria com a razão: a CPI do Senado ou os demais órgãos públicos, assim como quase todas as entidades nacionais e estrangeiras? Em nossa avaliação, à luz dos documentos fartamente disponíveis, tanto por instituições públicas quanto por instituições privadas, há um desequilíbrio financeiro na seguridade social, de modo mais dramático na previdência, de sorte que é preciso reconhecer o problema financeiro para viabilizar a sua solução. Ademais, do ponto de vista estritamente político, todos os governos e governantes, desde 1988, acusam a inviabilidade do modelo brasileiro, correndo os riscos da antipatia que esse tema provoca no seio da sociedade.

Ante esse quadro fático, com profundos reflexos econômicos, sociais, políticos e jurídicos, que tramitam as citadas proposições legislativas: PEC 6/2019, PEC 287/2016 e PL 1.645/2019. No aspecto cronológico a primazia é da PEC 287/2016 que foi encaminhada pelo presidente da República Michel Temer, tendo Henrique Meirelles como ministro de Estado da Fazenda.

Na Exposição de Motivos que justificou o encaminhamento dessa PEC 287/2016 ao Presidente da República consta:

Submeto à elevada apreciação de Vossa Excelência proposta de Emenda Constitucional que altera os arts. 37, 40, 109, 149, 167, 195, 201 e 203 da Constituição Federal, estabelece regras de transição e dá outras providências, com o intuito de fortalecer a sustentabilidade do sistema de seguridade social, por meio do aperfeiçoamento de suas regras, notadamente no que se refere aos benefícios previdenciários e assistenciais. A realização de tais alterações se mostra indispensável e urgente, para que possam ser implantadas de forma gradual e garantam o equilíbrio e a sustentabilidade do sistema para as presentes e futuras gerações.

Nessa PEC 287/2016 estão novas prescrições que visam alcançar esse indispensável equilíbrio e sustentabilidade do modelo previdenciário nacional. Naquilo que imediatamente interessa propõe, para os servidores públicos, a aposentadoria compulsória aos 75 anos de idade e voluntária aos 65 anos de idade com pelo menos 25 anos de contribuição, desde que cumprido o tempo mínimo de 10 anos de efetivo exercício no serviço público e 5 anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria. Também dispõe que os proventos não poderão ser inferiores ao limite mínimo ou superiores ao limite máximo estabelecidos para o regime geral da previdência social. No regime geral a PEC 287/2016 também prescreve a aposentadoria para quem tiver 65 anos com pelo menos 25 anos de contribuição, para ambos os sexos.

Nessa parte a grande novidade foi o fim do tratamento diferenciado para as mulheres, em homenagem à igualdade de gênero. Nesse aspecto convém revelar algumas das justificativas contidas na citada Exposição de Motivos:

…….

35. Outro ponto central da reforma é igualar os requisitos de idade e tempo de contribuição para homens e mulheres. Cabe destacar que, atualmente, a expectativa de vida ao nascer das mulheres é cerca de 7 anos superior à dos homens, e as mesmas ainda têm o direito de se aposentar com cinco anos a menos, tanto na aposentadoria por idade, quanto na por tempo de contribuição, combinação essa que resulta na maior duração dos seus benefícios.

36. A justificativa de tal diferenciação no passado era a concentração da responsabilidade pelos afazeres domésticos nas mulheres (“dupla jornada”), e ainda a maior responsabilidade com os cuidados da família, de modo particular, em relação aos filhos.

37. Ocorre que, ao longo dos anos, a mulher vem conquistando espaço importante na sociedade, ocupando postos de trabalho antes destinados apenas aos homens. Hoje, a inserção da mulher no mercado de trabalho, ainda que permaneça desigual, é expressiva e com forte tendência de estar no mesmo patamar do homem em um futuro próximo. Segundo a PNAD 2014, 40,6% do contingente de ocupados que contribuem para a Previdência Social são mulheres. Os novos rearranjos familiares, com poucos filhos ou sem filhos, estão permitindo que a mulher se dedique mais ao mercado de trabalho, melhorando a sua estrutura salarial.

…..

39. Embora ainda se identifique diferença de tratamento da mulher no mercado de trabalho brasileiro, é importante considerar a mudança acelerada e gradativa dessa realidade. Em relação aos afazeres domésticos, por exemplo, existe evidência de que a melhora da oferta educacional na primeira infância contribuiu para a redução do número de mulheres que apenas cuidam das tarefas domésticas. Com efeito, segundo dados da PNAD, o contingente de mulheres que se dedicam aos afazeres domésticos de 15 a 29 anos de idade caiu de 88,2% para 84,6% entre 2004 e 2014. Mais do que isso, o número médio de horas semanais dedicadas a essas atividades diminuiu de 23,0 para 20,5 horas no mesmo período.

40. Outra justificativa para o diferencial de idade em favor das mulheres era a baixa proteção social de seus vínculos trabalhistas. Observa-se, porém, que a cobertura previdenciária das mulheres entre 16 e 59 anos aumentou substancialmente nas últimas décadas, saltando de 60,8% em 1995 - quando para os homens era de 67,0%, - para 72,6% em 2014, igualando-se, pela primeira vez na série histórica, aos homens.

41. Cabe esclarecer que o padrão internacional atual é de igualar ou aproximar bastante o tratamento de gênero nos sistemas previdenciários. A diferença de 5 anos de idade ou contribuição, critério adotado pelo Brasil, coloca o país entre aqueles que possuem maior diferença de idade de aposentadoria por gênero.

….

Essa medida é acertada. Não subsistem hoje justas razões para um tratamento diferenciado entre homens e mulheres. A única “inferioridade” da mulher em relação ao homem ainda é no plano da força física muscular. No mais, mulheres e homens são absolutamente capazes de fazerem as mesmas coisas, exceto nos atributos fisiobiológicos que lhes distinguem, e não há qualquer razão para justificar essa diferenciação previdenciária. Sem contar que injustiças poderiam ocorrer como sucede, por exemplo, com a possibilidade de uma mulher solteira, sem filhos, sem dupla jornada de trabalho, poder se aposentar 5 anos mais cedo do que um homem casado, com filhos e com dupla jornada de trabalho. Mas essas minúcias não devem constar em um texto normativo, sobretudo de caráter constitucional.

Na PEC 287/2016 veda-se o recebimento conjunto de mais de uma aposentadoria e de mais de uma pensão, visto que os benefícios previdenciários não devem ser vislumbrados como renda, mas como um seguro que visa amparar nas hipóteses de incapacidade ou de velhice. Também há preceitos relativos à aposentadoria especial para os casos deficiência ou de atividades insalubres. Também foi extinto o tratamento diferenciado para os professores, pois a docência não é insalubre de per si.

Algo similar com a aposentadoria rural, cujo tratamento diferenciado se justificava há 30 anos. Atualmente não há motivação para isso, até porque a maioria dos trabalhadores rurais já se aposenta com 65 anos de idade. A PEC 287/2016 aumentou a idade mínima para o recebimento do BPC (Benefício de Prestação Continuada) para os 70 anos de idade. Eis a justificativa apresentada pelo Ministério da Fazenda para o BPC:

60. Cabe destacar que a idade mínima para os benefícios assistenciais tem diminuído ao longo do tempo, apesar do aumento de expectativa de sobrevida dos idosos. Em 1974, a expectativa de sobrevida para quem tinha 70 anos (idade de elegibilidade ao benefício de renda mensal vitalícia) era de 8,5 anos de vida. Em 2011, a expectativa de sobrevida para quem tinha 65 anos era de 17,8 anos, e atualmente já chega a 18,4 anos de vida, segundo dados do IBGE.

61. Além disso, a idade mínima requerida para o BPC, para ambos os sexos, está igual à requerida para a aposentadoria por idade, no caso de homens, distorção que, conforme dito anteriormente, resulta em desincentivo para que determinada camada da população contribua para o sistema de previdência social. A proposta de Emenda aumenta a idade mínima do beneficiário do BPC de 65 anos para 70 anos de idade.

62. Outra medida indispensável é a diferenciação entre o piso dos benefícios previdenciários e assistenciais. Na maioria dos países da OCDE o valor do benefício assistencial não é vinculado ao respectivo salário mínimo, representando, em média, 45% do seu valor.

63. Um argumento a favor da vinculação do salário mínimo no Brasil é que seu valor é baixo em relação aos países da OCDE, tornando esse tipo de comparação desproporcional. Cabe destacar, porém, que o valor do benefício pago deve levar em conta a renda média da população de cada país. Dessa forma, uma comparação mais adequada é calcular o valor pecuniário do benefício assistencial em relação ao PIB per capita de cada país. Nesse sentido, o valor do BPC em relação ao PIB per capita brasileiro é 33% enquanto que a média da OCDE é 19,2%, demonstrando que o Brasil se destaca por pagar valores mais elevados. Sendo assim, o valor pago pelo BPC deve ter alguma diferenciação do piso previdenciário, sobretudo quando o salário mínimo se encontra no pico da sua série histórica.

Na PEC 287/2016 há regras de transição para aqueles que já estão em atividade, com isso, segundo a justificativa respeitam-se os direitos adquiridos e as justas expectativas de direitos, porquanto em homenagem à boa fé e a confiabilidade institucional, as regras não devem sofrer modificações abruptas no curso dos acontecimentos e dos “contratos”. Mas, é preciso deixar claro logo: se houver a implosão financeira da seguridade não há direito adquirido, ato jurídico perfeito ou coisa julgada que assegure o pagamento das aposentadorias, pensões e demais benefícios. Esse é o fato incontornável e incontrolável.

Como conclusão dos motivos justificadores da PEC 287/2016 reveladoras das adequadas intenções governamentais e da necessária alteração das regras constitucionais, o ministro Henrique Meirelles assinalou:

68. Em suma, as linhas mestras da proposição estão descritas a seguir:

a) Preservação do direito adquirido e proteção da expectativa de direito com regras claras de transição para homens com mais de 50 anos e mulheres com mais de 45 anos;

b) Uniformização do tempo de contribuição e idade exigidos para a aposentadoria voluntária, com elevação da idade mínima;

c) Extinção das aposentadorias especiais das atividades de risco e dos professores;

d) Aplicação obrigatória, aos RPPS, do teto de benefícios do RGPS;

e) Adoção de mesma regra de cálculo e reajustamento dos proventos de aposentadorias e das pensões em todos os regimes;

f) Previsão de valor inicial de pensão diferenciado conforme número de dependentes;

g) Irreversibilidade de cotas individuais de pensão a todos os regimes;

h) Vedação de acúmulo de pensão por morte com aposentadoria por qualquer beneficiário ou de duas pensões por morte, pelo beneficiário cônjuge ou companheiro, oriundas de qualquer regime previdenciário;

i)Harmonização do rol de dependentes de todos os regimes de previdência social; e

j)Vedação do cômputo de tempo ficto para concessão de aposentadoria também no âmbito do RGPS

Essa PEC 287/2016 foi aprovada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara e na Comissão Especial, com  aprovação do parecer do relator deputado Arthur Oliveira Maia, nos termos do substitutivo que apresentou. Essa PEC 287/2016 está madura, desde maio de 2017, para ser votada pelo plenário da Câmara dos Deputados se assim decidir o presidente daquela Casa Legislativa.

Com a eleição do presidente Jair Bolsonaro e a escolha do ministro Paulo Guedes, novo titular da nova pasta da Economia, o Governo julgou por bem encaminhar a sua proposta de modificação das regras da previdência e o fez por meio da PEC 6/2019 e do PL 1.645/2019. Convém recordar algumas passagens, conquanto longas são indispensáveis, da Exposição de Motivos justificadoras dessa PEC 6/2019:

1. Submeto à elevada apreciação de Vossa Excelência proposta de Emenda Constitucional que altera os arts. 22, 37, 38, 39, 40, 42, 109, 149, 167,194, 195, 201, 203 e 239 da Constituição Federal e cria os arts. 201-A e 251 na Constituição e os §§ 6º,7º e 8º no art. 8º e 4º no art. 10 e o art. 115 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A presente proposta estabelece nova lógica mais sustentável e justa de funcionamento para a previdência social, regras de transição, disposições transitórias e dá outras providências. A adoção de tais medidas mostra-se imprescindível para garantir, de forma gradual, a sustentabilidade do sistema atual, evitando custos excessivos para as futuras gerações e comprometimento do pagamento dos benefícios dos aposentados e pensionistas, e permitindo a construção de um novo modelo que fortaleça a poupança e o desenvolvimento no futuro.

2. Esta proposta de emenda constitucional demonstra ser desnecessária a definição de regras de elegibilidade na carta magna, aprimorando a estrutura legal constitucional, adotando a forma sintética semelhante às Constituições da maioria dos países e, por exemplo, os Estados Unidos.

3. Nessa propositura de alteração dos artigos aqui ora definidos, estão entre o rol dos escolhidos os regramentos constitucionais de financiamento e pagamento de benefícios relacionados com previdência e assistência social, seja do Regime Geral ou dos Regimes Próprios, inseridos na Constituição de 1988, mas como pode ser visto ao longo dos anos, sofreram alterações diversas desde sua promulgação, como podem ser analisados nas Emendas constitucionais nº 18, 20, 41, 45, 47 e 70. O número de Emendas Constitucionais impostas em 30 anos da carta magna, demonstra que a cada 6 anos um normativo foi alterado, mas que até hoje ainda a sociedade convive com os problemas relacionados a previdência e assistência social.

4. O modelo atual das regras atuariais e de acesso a benefícios previdenciários, se tornaram rígidos em sua alteração, mas estas políticas públicas não atenderam aos princípios constitucionais de igualdade e distribuição de renda, já que conforme levantamento da OCDE o Brasil continua sendo um dos países mais desiguais do mundo. Metade da população tem acesso a 10% do total da renda familiar enquanto a outra metade tem acesso a 90%.

5. O Brasil está entre as 10 nações que mais produzem no planeta. Apesar disso, não estamos sequer entre os 70 países com maior PIB per capita. Produzimos muito, mas aquém do que devemos para elevar a qualidade de vidada população brasileira. Se mantivermos a mesma taxa de crescimento da produtividade dos últimos 30 anos pelos próximos 30, não teremos saído do lugar: chegaremos em 2048 com a mesma renda de 2018.

6. Há várias razões para isso, mas certamente nosso nó fiscal é razão primeira para a limitação de nosso crescimento econômico sustentável. E esse nó fiscal tem uma raiz: a despesa previdenciária. Enquanto nos recusamos a enfrentar o desafio previdenciário, a dívida pública subirá implacavelmente e asfixiará a economia. A dívida bruta em relação ao PIB subiu de 63% em 2014 para 74% em 2017. Sem reforma, Vossa Excelência terminará o mandato com essa relação próxima a 100%.

7. A reforma da Previdência, além de reduzir o endividamento primário, combate a dívida pública pela redução do seu custo. O vertiginoso crescimento da dívida a coloca em trajetória arriscada. Este risco é devidamente cobrado pelos credores por meio de juros altos. Como nossos jovens podem conseguir bons empregos e empreender se é muito mais conveniente para o sistema financeiro financiar uma dívida cara e alta de um devedor que insiste em se endividar mais? Como nossas empresas podem competir com um gigante tomador de empréstimos que pode imprimir dinheiro ou obter recursos forçadamente por meio de impostos? A dívida e seus juros inviabilizam a geração de oportunidades.

8. Os objetivos traçados na Constituição de desenvolver a nação e combater a pobreza exigem um ambiente macroeconômico estável que não se apresentará sem um novo pacto para a Previdência. Podemos sair do círculo vicioso de mais despesa, mais dívida e mais juros para um círculo virtuoso de despesa e dívida sustentáveis com juros moderados.

9. Construímos umas das maiores redes de proteção previdenciária do mundo, conquista que poucos países emergentes foram capazes. A Previdência alcança todos os municípios do território nacional e protege os trabalhadores brasileiros e suas famílias de diversos riscos. A Seguridade Social virtualmente erradicou a pobreza entre idosos. Entretanto, o veloz processo de envelhecimento da população exige a revisão das regras previdenciárias que escolhemos no passado. A Previdência já consome mais da metade do orçamento da União, sobrando pouco espaço para a educação, a saúde, a infraestrutura e provocando uma expansão insustentável de nossa dívida e seus juros.

10. O ajuste, ora proposto, busca maior equidade, convergência entre os diferentes regimes previdenciários, maior separação entre previdência e assistência e a sustentabilidade da nova previdência, contribuindo para a redução do elevado comprometimento dos recursos públicos com despesas obrigatórias, o que acaba por prejudicar investimentos em saúde, educação, segurança e infraestrutura.

11. As alterações se enquadram na indispensável busca por um ritmo sustentável de crescimento das despesas com previdência em meio a um contexto de rápido e intenso envelhecimento populacional, constituindo-se, assim, elemento fundamental para o equilíbrio das contas públicas e atenuação da trajetória de crescimento explosivo da dívida pública. De modo geral, portanto, propõe-se a construção de um novo sistema de seguridade social sustentável e mais justo, com impactos positivos sobre o crescimento econômico sustentado e o desenvolvimento do País.

….

17. A ocorrência de deficit advém de problemas estruturais, que não serão sanados apenas via aumento de arrecadação ou por meio de combate às fraudes e irregularidades. Portanto, embora esses dois pilares – combate às fraudes e cobrança da dívida – sejam fundamentais, não são suficientes para solução estrutural dos problemas financeiros da previdência.

18. O terceiro pilar refere-se à equidade. A proposta ora submetida à Vossa Excelência altera tanto os regimes próprios como o regime geral de previdência social, mas busca tratar os desiguais de forma desigual, de acordo com suas especificidades. Ciente da desigualdade social que ainda permeia nossa sociedade, buscou-se exigir maior contribuição daqueles que recebem mais. Aqueles que ganham mais pagarão mais e aqueles que ganham menos pagarão menos.

19. Ainda em relação à equidade, a presente proposta busca incluir todos os brasileiros no esforço pela recuperação da previdência social. Assim, mesmo para categorias que hoje não estão tratadas no texto constitucional, como os militares das forças armadas, será promovida a apresentação de projetos de lei em separado, promovendo ajustes em seus sistemas.

20. Por fim, ainda se propõe a autorização de criação de um novo regime capitalizado de previdência para as novas gerações, por meio de lei complementar. Assim, ajusta-se o atual sistema, trazendo equilíbrio e igualdade, ao mesmo passo em que se abre a possibilidade de criar um novo sistema para aqueles não vinculados ao sistema atual.

Nessa PEC 6/2019, assim como na PEC 287/2016, estão novas prescrições também que visam alcançar o indispensável equilíbrio e sustentabilidade do modelo previdenciário nacional. No que imediatamente interessa a PEC 6/2019 proíbe a percepção simultânea de proventos de regime próprio de previdência com o de regime geral. Delega para a lei complementar federal  a atribuição para estabelecer normas gerais de organização, de funcionamento e de responsabilidade previdenciária na gestão dos regimes de previdência social. Autoriza o estabelecimento de idades mínimas diferenciadas para os professores e para os policiais e para os agentes penitenciários e socioeducativos.

Nessa questão dos policiais, a PEC 6/2019 incorre em grave impropriedade e injustificável esquecimento. A impropriedade está em reconhecer como policiais os agentes de segurança da Câmara e do Senado, por força de uma compreensão equivocada do termo “polícia” contido no inciso IV do art. 51, CF, e no inciso XIII do art. 52, CF. É que o termo “polícia” não significa o mesmo que o termo “polícia” no art. 144, CF, no sentido de instituição de segurança pública. “Polícia” no caso das Casas Legislativas tem a ver com o poder de polícia administrativa, no sentido explicitado no art. 78 do Código Tributário Nacional:

Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interêsse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de intêresse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Daí que as intituladas “Polícias Legislativas” não fazem parte do aparato de segurança pública estatal que está disciplinado no art. 144, CF. E se acaso prevalecer esse entendimento da existência de “Polícias Legislativas” da Câmara e do Senado, teremos de reconhecer as “Polícias Legislativas” das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, pois esses Poderes Legislativos subnacionais também possuem autonomia para sobre dispor sobre sua organização, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços, e a iniciativa de lei para fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias.

E eis um arrematado contrassenso. O reconhecimento de “policiais legislativos municipais” das Câmaras de Vereadores, como destinatários de um tratamento constitucional diferenciado, e o fato de que os “guardas municipais”, cuja existência jurídica está assegurada no art. 144, § 8º, CF, não possuir essa diferenciada proteção normativa previdenciária. Logo, na PEC 6/2019 os parlamentares poderiam corrigir esses dois erros: o reconhecimento do caráter de “polícia” aos agentes de segurança de suas Casas Legislativas e a ausência dos guardas municipais da proteção previdenciária diferenciada. Com todo o respeito que se devota aos “policiais legislativos” (sic), verdadeiros agentes de segurança, a atividades que desenvolvem não pode se comparar às atividades desenvolvidas pelos profissionais encartados no art. 144, CF, e portanto não devem receber os mesmos tratamentos diferenciados, e muito menos um tratamento melhor ao recebido pelos guardas municipais.

Essa específica questão do caráter de “Polícia Legislativa” chegou a tramitar no Supremo Tribunal Federal nos autos da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 24, mas o Tribunal não enfrentou o tema por entender que houve prejudicialidade de sua apreciação ante a mudança normativa do ato questionado.

Voltemos à PEC 6/2019. Essa proposição está divida em um corpo permanente e um corpo de regras de transição, este para os que já são segurados contribuintes, tanto do regime geral quanto dos regimes próprios (servidores e militares), e aquele, o corpo permanente, para os futuros segurados contribuintes.  A rigor, há mais preceitos sobre as regras de transição do que sobre o novo regime previdenciário dos futuros segurados. E um dos temas que tem provocado maior celeuma consiste na “desconstitucionalização da previdência”, numa benfazeja mudança.

Seguem alguns dos enunciados controvertidos:

“Art. 40. Aos servidores públicos titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas entidades autárquicas e suas fundações públicas, é assegurado regime próprio de previdência social de caráter contributivo e solidário, por meio de contribuição do respectivo ente federativo, dos servidores públicos ativos, dos aposentados e dos pensionistas, observados os critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo, nos § 1º, § 1º-A, § 1ºC e § 1º-D do art. 149 e no art. 249.

§ 1º Lei complementar de iniciativa do Poder Executivo federal disporá sobre as normas gerais de organização, de funcionamento e de responsabilidade previdenciária na gestão dos regimes próprios de previdência social de que trata este artigo, contemplará modelo de apuração dos compromissos e seu financiamento, de arrecadação, de aplicação e de utilização dos recursos, dos benefícios, da fiscalização pela União e do controle externo e social, e estabelecerá, dentre outros critérios e parâmetros:

I - quanto aos benefícios previdenciários:

a) rol taxativo de benefícios;

b) requisitos de elegibilidade para aposentadoria, que contemplará as idades, os tempos de contribuição, de serviço público, de cargo e de atividade específica;

c) regras para o:

1. cálculo dos benefícios, assegurada a atualização das remunerações e dos salários de contribuição utilizados;

2. reajustamento dos benefícios;

d) forma de apuração da remuneração no cargo efetivo, para fins de cálculo dos benefícios;

e) possibilidade de idade mínima e de tempo de contribuição distintos da regra geral para concessão de aposentadoria, exclusivamente em favor de servidores públicos:

1. titulares do cargo de professor que comprovem exclusivamente tempo de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio;

2. policiais dos órgãos de que tratam o inciso IV do caput do art. 51, o inciso XIII do caput do art. 52 e os incisos I a IV do caput do art. 144;

3. agentes penitenciários e socioeducativos;

4. cujas atividades sejam exercidas com efetiva exposição a agentes nocivos químicos, físicos e biológicos prejudiciais à saúde, ou associação desses agentes, vedados a caracterização por categoria profissional ou ocupação e enquadramento por periculosidade; e

5. com deficiência, previamente submetidos à avaliação biopsicossocial realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar; e

f) regras e condições para acumulação de benefícios previdenciários;

II - requisitos para a sua instituição e a sua extinção, a serem avaliados por meio de estudo de viabilidade administrativa, financeira e atuarial, vedada a instituição de novo regime próprio de previdência social sem o atendimento desses requisitos, hipótese em que será aplicado o Regime Geral de Previdência Social aos servidores públicos do respectivo ente federativo;

III - forma de apuração da base de cálculo e de definição da alíquota das contribuições ordinária e extraordinária do ente federativo, dos servidores públicos, dos aposentados e dos pensionistas;

IV - condições para instituição do fundo com finalidade previdenciária de que trata o art. 249 e para vinculação dos recursos provenientes de contribuições e dos bens, direitos e ativos de qualquer natureza destinados a assegurar recursos para o pagamento dos proventos de aposentadoria e pensões;

V - medidas de prevenção, identificação e tratamento de riscos atuariais, incluídos aqueles relacionados com a política de gestão de pessoal;

VI - mecanismos de equacionamento do deficit atuarial e de tratamento de eventual superavit;

VII - estruturação, organização e natureza jurídica da entidade gestora do regime, observados os princípios relacionados com governança, controle interno e transparência, e admitida a adesão a consórcio público; e

VIII - condições e hipóteses para responsabilização daqueles que desempenhem atribuições relacionadas, direta ou indiretamente, com a gestão do regime.

§ 2º Os servidores públicos abrangidos pelo regime de previdência de que trata este artigo serão aposentados, observado o disposto na lei complementar a que se refere o § 1º:

I - voluntariamente, desde que observados a idade mínima e os demais requisitos previstos na nova lei complementar de que trata o § 1º;

II - por incapacidade permanente para o trabalho, no cargo em que estiver investido, quando insuscetível de readaptação, hipótese em que será obrigatória a realização de avaliações periódicas para verificação da continuidade das condições que ensejaram a concessão da aposentadoria; ou

III - compulsoriamente, ao atingir a idade máxima prevista na nova lei complementar de que trata o § 1º.

§ 3º As idades mínimas para concessão dos benefícios previdenciários a que se referem os § 1º e § 2º serão ajustadas quando houver aumento na expectativa de sobrevida da população brasileira, na forma estabelecida para o Regime Geral de Previdência Social.

§ 4º Os proventos de aposentadoria não poderão ser inferiores ao valor mínimo a que se refere o § 2º do art. 201 ou superiores ao limite máximo estabelecido para o Regime Geral de Previdência Social, observado o disposto nos § 14, § 15 e § 16.

§ 5º Na concessão e na manutenção do benefício de pensão por morte serão observados o rol dos beneficiários, a qualificação e os requisitos necessários para enquadramento dos dependentes, e o tempo de duração da pensão e das cotas por dependente previstos para o Regime Geral de Previdência Social.

§ 6º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão para o regime próprio de previdência social o sistema obrigatório de capitalização individual previsto no art. 201-A, no prazo e nos termos que vierem a ser estabelecidos na lei complementar federal de que trata o referido artigo.

§ 7º O equilíbrio financeiro e atuarial do regime próprio de previdência social deverá ser comprovado por meio de garantia de equivalência, a valor presente, entre o fluxo das receitas estimadas e das despesas projetadas, apuradas atuarialmente, que, juntamente com os bens, direitos e ativos vinculados, comparados às obrigações assumidas, evidenciem a solvência e a liquidez do plano de benefícios.

§ 8º Observados os critérios a serem estabelecidos pelo ente federativo, o servidor público titular de cargo efetivo que tenha completado as exigências para a aposentadoria voluntária prevista no inciso I do § 2º e que opte por permanecer em atividade poderá fazer jus a um abono de permanência equivalente, no máximo, ao valor da sua contribuição previdenciária, até completar a idade para aposentadoria compulsória.

§ 9º O tempo de contribuição federal, estadual, distrital ou municipal será contado para fins de aposentadoria, observados o disposto nos § 9º e § 9º-A do art. 201 e o tempo de serviço correspondente para fins de disponibilidade.”

Com efeito, não apenas a previdência deveria ser desconstitucionalizada, mas a própria Constituição deveria ser “desconstitucionalizada”, no sentido de redução de seu texto normativo, tornando-o menos regulamentar ou regimental, para que não descesse às minúcias de todo e qualquer assunto, que devem ser tratados ou nas leis ou mesmo em regulamentos.

Sucede, todavia, que em parcela do imaginário coletivo brasileiro, mormente entre alguns políticos e juristas é cristalizada a crença infantil de que ao positivar um direito (sic) na Constituição essa positivação estará mais segura e será mais efetiva. Nada mais equivocado. Enunciar um determinado tema (direito) na Constituição não é garantia de que esse tema (direito) terá uma maior força normativa (obrigatoriedade e vinculatividade) e será melhor e mais rapidamente concretizado. Em absoluto, ao se constitucionalizar direitos apenas se dificulta jurídica e politicamente a sua eventual modificação ou adaptação à realidade, visto que para mudar a Constituição, nos termos do art. 60, se faz necessário um procedimento qualificado. E só. Gasta-se mais energia política e jurídica para mudar. Mas não há nenhuma garantia de que um direito constitucionalizado tem maior concretude do que direitos não constitucionalizados. É um fetichismo constitucional que se instaurou no Brasil. Muitos foram (e são) enfeitiçados pela Constituição.

Recorde-se o que assinalamos no começo deste texto. A Constituição, em 1988, pretendeu criar uma sociedade utópica. Infelizmente estamos a vivenciar uma distopia social, haja vista as múltiplas disfuncionalidades e desequilíbrios nos mais diversos setores da vida social brasileira. É preciso modificar esse estado de coisas aparentemente constitucionais, mas realisticamente inconstitucionais. E o primeiro passo consiste em “lipoaspirar” a Constituição, enxugar o texto, reduzir as promessas que lho sobrecarregam e lhe enfraquecem. Por isso, a PEC 6/2019 com a proposta de desconstitucionalização já é um avanço civilizatório e político. Se aprovada simbolizará uma maturidade de nosso povo que influenciará os políticos e altos burocratas, mormente os das carreiras jurídicas (magistrados, procuradores, defensores, advogados, professores etc.) adoradores e cultores do ícone sagrado Constituição.

Outro tema sensível consiste no BPC. A proposta antecipa o recebimento desse benefício a partir dos 60 anos, com um valor reduzido, e somente terá o valor “integral” a partir dos 70 anos. Considerando o perfil socioeconômico do destinatário do BPC julgo válido esse experimento institucional, pois é preferível receber menos, alguma coisa, mais cedo do que esperar mais 5 anos para começar a receber algo. E nesse intervalo, pode ser que o beneficiário se veja motivado a contribuir com a seguridade social, vitaminando a solidariedade contributiva e estimulando o interesse em também contribuir, bem como não desestimulando aqueles que já contribuem para receberem o equivalente a um salário mínimo. É medida salutar e que deve ser prestigiada.

Também suscitam dúvidas o modelo de capitalização, que seria uma alternativa à solidariedade compulsória que hoje vigora. Eis um paradoxo insuperável: a compulsoriedade solidária. Se é compulsório, não é solidário. Solidariedade pressupões liberdade, liberalidade, empatia e igualdade. Daí que é um “neologismo conceitual” falar em solidariedade compulsório. Se é compulsório é tributo, é servidão, é escravidão, jamais fraterna solidariedade. Pois bem, a capitalização exijirá um poder de poupança que hoje não existe e um rigoroso controle das finanças da previdência, que também nunca foi o forte do nosso sistema, que tradicionalmente é mal gerido e muitas vezes saqueado para outras finalidades que nada tem a ver com previdência. Será uma medida dolorosamente pedagógica, se aprovada.

No tocante às regras de transição, o texto é extremamente analítico e draconiano, se comparado com a PEC 287/2016. Por ser analítico vai na contramão de uma desconstitucionalização e do enxugamento do texto. Nesse aspecto, a PEC 6/2019 trilha equivocado caminho, mas justificado pelas contingências jurídicas e políticas que vivenciamos. No aspecto material, a PEC 6/2019 procurou, sem ferir demasiadamente os direitos adquridos e as justas expectativas dos atuais segurados, equilibrar essas promessas com as futuras possibilidades financeiras da previdência e da própria sociedade.

É que, como temos assinalado, se acaso houver a implosão financeira da seguridade, em particular da previdência, com a explosão de crises sociais, só restarão duas alternativas reais: ou o não pagamento integral das aposentadorias, pensões e benefícios ou o aumento das alíquotas das contribuições da seguridade, sendo que à luz da jurisprudência do STF, a alíquota do servidor pode chegar até 22%, uma vez que já se paga até 27,5%, o que implicará uma carga tributária individual direta de até 49,5% o limite para que não seja uma carga confiscatória. Daí que ou se reforma a previdência ou se aumentam as alíquotas ou se promovem os “calotes”. Eis o quadro dramático que se descortina para a sociedade brasileira.

Há quem vislumbre a inconstitucionalidade material das citadas PEC’s 287/2016 e 6/2019. Nada mais equivocado. Uma singela leitura do art. 60, § 4º, CF, afasta essa possibilidade. É bem verdade que parcela substantiva do magistério doutrinário com o apoio de respeitável jurisprudência pátria, inclusive do STF, atribui ao termo “abolir” o sentido de “imutável” ou “imodificável”. Nada mais equivocado.

Abolir significa extinguir, anular, acabar. Inabolível não é imutável, imodificável. É algo que não pode ser abolido, extinto, anulado. Daí que interpretar “abolir” como “imodificável” é errado e vai contra o poder democrático dos atuais representantes do povo, em favor da vontade dos antigos representantes de outro povo. Com efeito, o povo brasileiro de 1988 não é o mesmo de 2019, que elegeu os atuais parlamentares. A geração de 1988 não tem o direito (a legitimidade) de aprisionar a atual geração. Os antigos problemas ficaram no passado, mas sentimos os efeitos deles no presente e poderão assombrar no futuro. Nada obstante, há novos e prementes problemas que exigem uma nova solução para o presente e sobretudo para o futuro. Nesse, no futuro, as gerações de lá terão todo o direito (legitimidade) para solucionar os seus presentes, ainda que causados pelas gerações anteriores. Eis um compromisso intergeracional que nos une como Nação: passado, presente e futuro. Assim, se a PEC naõ for chapada e acintosamente anuladora das “cláusulas pétreas”, ela deve ser prestigiada e respeitada.

Por fim, temos o PL 1.645/2019 que visa modificar a legislação infraconstitucional específica dos militares das Forças Armadas. Nesse aspecto é preciso recordar que a EC 18/1998,  acertadamente, desconstitucionalizou o regime da seguridade dos militares e transferiu a atribuição normativa para a legislação. A justificativa para essa medida encontra-se no art. 142, CF, especificamente no inciso X, que tem a seguinte redação que vez mais recordamos: a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra.

Relembre-se que a EC 41/2003 revogou o inciso IX do art. 142 no que determinava a aplicação aos militares e seus pensionistas o disposto no art. 40, §§ 4º, 5º e 6º, na redação da EC 18/1998, e §§ 7º e 8º, na redação da EC 20/1998. Assim,  o regime previdenciário dos militares foi desconstitucionalizado. Essa desconstitucionalização, haja vista as peculiaridades das atividades, também deveria ocorrer para os demais membros do aparato de segurança do Estado que estão dispostos no art. 144, CF. Deveria haver uma legislação específica para cada uma daquelas atividades e carreiras, levando-se em consideração as minúcias e distinções delas.

Qual seria a outra vantagem da desconstitucionalização não apenas da previdência social, mas de toda a Constituição, além do aspecto do quórum para suas necessárias adaptações à realidade? Em nossa avaliação reduziria a ansiedade constitucional e a consequente frustração constitucional, bem como fortaleceria a sua força normativa, a sua respeitabilidade e estabilidade. Com efeito, todo aquele lê a Constituição fica ansioso diante de tantas promessas desse verdadeiro “evangelho” político e social, porquanto quer ver o direito no papel mudar o mundo. Todavia, esse poder mágico do direito, se não realizado, provoca frustração diante de justas expectativas, e essa frustração provoca a perda da legitimidade e da respeitabilidade da Constituição, a sua erosão normativa, que resultará em sua fraqueza e desprezo. Assim, a Constituição fraca e desprezada, uma “simples folha de papel”, sem qualquer “força normativa”, se torna presa fácil para a irresponsáveis populistas, e a Constituição se vê capturada por insidiosos interesses e sequestrada por quem deveria utilizá-la como instrumento normativo de equilíbrio político. Qualquer um faz o que quer com a Constituição. Não podemos permitir que o texto normativo constitucional seja um anti-texto, uma anti-Constituição. Ela há de ser o farol, a bússola, o parâmetro, mas para isso, ela deve se fortalecer e somente se fortalecerá se ela regular somente aquilo que mereça ser regulado constitucionalmente, o que for efetivamente relevante para o equilíbrio político e social do povo brasileiro, nem a mais, nem a menos.


4 Conclusões

As proposições legislativas tramitam porque o modelo jurídico-constitucional da previdência social está falido e necessita urgentemente de uma intervenção político-normativa, visto que esse modelo não atende as necessidades do povo brasileiro, haja vista a sua disfuncionalidade e desequilíbrio. Ademais, diante da realidade social e econômica brasileiro, a previdência se tornou um problema moral, político, social e econômico, pois há mais despesas do que recursos, com gastos maiores para um grupo de pessoas em injustificável desfavor de outros grupos menos favorecidos e até mais necessitados.  Nessa perspectiva, no aspecto de uma igualdade e justiça financeira e social, o mais indicado seria que todas as aposentadorias, pensões e benefícios não superassem um salário mínimo. Ninguém receberia, da previdência, além de um salário mínimo. O Estado só se responsabilizaria por esse valor. A sociedade só financiaria esse valor. Quem quisesse se aposentar com mais, deveria procurar alternativas para a sua futura previdência ou fazer outros seguros sociais. Provento não é salário.

A força normativa da Constituição está na sua capacidade de vincular e de obrigar, de ser norma reivindicável e concretizável. Para isso, o texto normativo não deve prometer criar um “Estado utópico”, pois entregará um “Estado distópico”, como tem ocorrido, infelizmente, com o Estado brasileiro, porquanto se gera muita ansiedade constitucional, com grandes expectativas normativas, e essas expectativas se frustram, mormente diante das promessas normativas sociais e econômicas. A Constituição deve ser mais modesta para alcançar a ambição de uma sociedade, formada por homens e mulheres, justa, livre e solidária.

As proposições legislativas que visam modificar o modelo previdenciário brasileiro são, em minha avaliação, constitucionalmente válidas, politicamente convenientes, financeiramente viáveis e moralmente justas, diante da realidade econômica e social brasileira. Obviamente as reformas constitucionais não são, nem devem ser, a panaceia para todos os males de nossa sociedade, mas são um passo indispensável, sem qual os problemas se agravarão e poderão se tornar insolúveis. Essas proposições legislativas são disruptivas de uma trajetória que se não for interrompida, nos conduzirá ao caos financeiro e social. Mudar nunca é preciso, mas neste caso é necessário.


Notas

[1] BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil. Acesso: www.congressonacional.leg.br  ou www.planalto.gov.br

[2] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, pp. 13-17.

[3] LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.

[4] DIEESE. Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos. Acesso: www.dieese.org.br

[5] BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Produto Interno Bruto (PIB). De acordo com o IBGE, o PIB brasileiro foi de R$6,8 trilhões de reais no ano de 2018 e segundo projeções governamentais otimistas pode vir a crescer 2,5% no ano de 2019. Os mais realistas ou menos otimistas já se conformam com um crescimento de apenas 1% para o ano de 2019. Acesso: www.ibge.gov.br

[6] BRASIL. Congresso Nacional. Proposta de Emenda à Constituição n. 6, de 2019. Acesso: www.camara.leg.br.

[7] BRASIL. Congresso Nacional. Proposta de Emenda à Constituição n. 287, de 2016. Acesso: www.camara.leg.br.

[8] BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei n. 1.645, de 2019. Acesso: www.camara.leg.br.

[9] BRASIL. Secretaria do Tesouro Nacional. Aspectos Fiscais da Seguridade Social no Brasil. Acesso: www.tesouro.fazenda.gov.br

[10] BRASIL. Ministério da Economia. Nova previdencia – pode perguntar. Acesso: www.economia.gov.br

[11] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Plenário. Processo TC n. 001.040/2017-0. Acórdão n. 1295/2017. Relator ministro José Múcio Monteiro. Brasília, 2017. Acesso: www.tcu.gov.br

[12] BRASIL. Senado Federal. Comissão Parlamentar de Inquérito. Relatório final. Presidente senador Paulo Paim. Relator senador Hélio José. Brasília, 2018. Acesso: www.senado.leg.br


Autor

  • Luís Carlos Martins Alves Jr.

    Luís Carlos Martins Alves Jr.

    Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional, Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA e do Centro Universitário de Brasília - CEUB. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; "Lições de Direito Constitucional - Lição 1 A Constituição da República Federativa do Brasil" e "Lições de Direito Constitucional - Lição 2 os princípios fundamentais e os direitos fundamentais" .

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. O modelo jurídico da seguridade social: . Uma breve análise acerca das proposições legislativas e a necessária desconstitucionalização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5820, 8 jun. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74473. Acesso em: 19 abr. 2024.