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As empresas privadas no direito internacional

As empresas privadas no direito internacional

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As empresas transnacionais, especialmente no que concerne à dimensão econômica da ordem internacional, são sujeitos emergentes, que adquirem relevância cada vez maior e, por isso, tornam-se objeto direto das normas internacionais contemporâneas.

Na concepção clássica do direito internacional, apenas os Estados são dotados de personalidade jurídica de direito internacional. Em razão disso, apenas os Estados seriam sujeitos de direito e de obrigações no sistema internacional regido por normas jurídicas. Perspectivas mais contemporâneas entendem que essa perspectiva vestefaliana seria anacrônica, pois, na prática, haveria um conjunto de atores internacionais, de natureza estatal e não estatal, que deveriam ser classificados como sujeitos de direito internacional, em razão da relevância de fato que apresentam no sistema internacional hodierno[1]. Os sujeitos não estatais mais evidentes, em razão dos avanços na proteção internacional dos direitos humanos e no direito penal internacional, seriam os indivíduos. Em uma perspectiva mais ampla, as empresas transacionais também estariam, para parte da doutrina, inseridas nesse conjunto de novos sujeitos de direito internacional.

Assim, adotando-se uma visão mais contemporânea do direito internacional, normas internacionais acerca de direitos humanos e de meio ambiente teriam como destinatários não apenas os Estados, mas, igualmente, empresas e grupos econômicos de atuação global. Essa posição é evidenciada, por exemplo, em princípios de direito internacional ambiental, como muitos daqueles expressos nas declarações decorrentes das Conferências das Nações Unidas sobre meio ambiente (e.g. Estocolmo, Rio de Janeiro)[2]. A esfera econômica privada, portanto, também seria disciplinada pelos princípios e pelas regras do direito internacional, independentemente de constarem expressamente das disposições convencionais.

No que concerne às normas multilaterais direcionadas diretamente às empresas multinacionais, destacam-se as regras concebidas pela Organização das Nações Unidas (ONU), bem como o conjunto de diretrizes formulados por especialistas no âmbito da Organização para Cooperação e Econômica e Desenvolvimento (OCDE).

As características gerais dessas organizações podem indicar alguns aspectos importantes de suas normas para empresas multinacionais. A ONU é uma organização de extensão global, dotada de interesses variados. As regras por ela produzidas, entretanto, devem guardar coerência com os princípios e objetivos contidos na sua Carta constitutiva da organização. A OCDE, por sua vez, foi considerada, durante muito tempo, um clube fechado de países ricos. Era, portanto, uma organização constituída por Estados dotados de grau de desenvolvimento relativamente semelhante e inspirada por objetivos econômicos liberais. Mais recentemente, entretanto, a OCDE tem-se definido como uma organização promotora de boas práticas, aberta, portanto, a países menos desenvolvidos dispostos a cooperar na direção do desenvolvimento econômico e social sustentável.

As normas produzidas pela ONU para as empresas multinacionais, conhecidas genericamente como UN Global Compact[3], constituem iniciativa na área da cidadania empresarial, que teve a sua origem em proposta do Secretário-geral da ONU, Kofi Annan, no ano 2000. A iniciativa consiste em dez princípios fundamentais, nas áreas dos direitos humanos, padrões trabalhistas, proteção ambiental e anticorrupção. O objetivo da iniciativa é promover o compromisso público e voluntário das empresas em cumprir regras e princípios básicos para convivência harmoniosa entre empresas e indivíduos, em plena consonância com as disposições legislativas dos Estados hospedeiros e com as regras e princípios de direito internacional. O conteúdo dos dez princípios baseia-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Declaração da Organização Internacional do Trabalho relativa aos Princípios e Direitos Fundamentais e na Declaração do Rio sobre Ambiente e Desenvolvimento. O UN Global Compact tem natureza voluntária e busca o diálogo e a aprendizagem progressiva dos atores econômicos, de forma a repartir, de forma equitativa, os benefícios econômicos e as externalidades positivas produzidas pelas empresas.

O conteúdo dos dez princípios pode ser dividido em quatro grupos temáticos: direitos humanos, direitos trabalhistas, meio ambiente e combate à corrupção. Os dois primeiros princípios referem-se aos direitos humanos e contêm obrigações positivas e negativas para as empresas. Estas devem apoiar os direitos humanos reconhecidos internacionalmente (princípio 1) e devem-se abster de participar da violação desses direitos (princípio 2).

O maior número de princípios refere-se à proteção do trabalhador, que é aquele ator em contato direto com as empresas e que, em razão disso, pode ser vitimado pela conduta irregular ou nociva da companhia. Liberdade sindical (princípio 3), repúdio ao trabalho forçado (princípio 4), coibição do trabalho infantil (princípio 5) e eliminação da discriminação no emprego (princípio 6) são os quatro temas mencionados nos princípios do UN Global Compact. Esses princípios reproduzem disposições contidas em documentos de direitos humanos e em Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

O tema ambiental é abordado em três princípios do UN Global Compact. O princípio 7 prescreve que as empresas devem apoiar práticas preventivas aos desafios ambientais. Os dois princípios seguintes tratam, respectivamente, de responsabilidade ambiental (princípio 8) e de desenvolvimento de tecnologias sustentáveis (princípio 9).

Adotando a premissa evidente de que a corrupção é uma via de mão dupla, com a participação de atores públicos e privados (geralmente corporativos), o princípio 10 proscreve a participação de empresas de praticas corruptas, incluindo a extorsão e o suborno de agentes públicos.

Em sintonia com o conteúdo dos dez princípios do UN Global Compact, a OCDE formulou diretrizes acerca da conduta das empresas transnacionais. As denominadas Diretrizes da OCDE (2011) para empresas multinacionais[4] constituem um documento importante para os Estados que desejam aceder à organização. Esse documento é considerado de caráter obrigatório, apesar de sua denominação formal remeter a normas de cumprimento voluntário e de aspecto geral. Diferentemente do UN Global Compact, as Diretrizes da OCDE são mais extensas e mais complexas, demonstrando a busca dos estados membros em codificar regras para as empresas transnacionais.

O documento da OCDE abarca os seguintes temas: relações laborais e industriais, direitos humanos, meio ambiente, divulgação de informação, combate à corrupção, interesses e direitos dos consumidores, ciência e tecnologia, concorrência e tributação. São relevantes as regras acerca das diligências a serem tomadas pelos Estados acerca do comportamento das empresas e, especialmente, o estabelecimento de pontos de contato aptos a receberem denúncias contra práticas das empresas que violem as Diretrizes da OCDE.

Verifica-se que as Diretrizes da OCDE são dotadas de mecanismos de garantia de efetividade, diferentemente dos princípios contidos no documento da ONU, que apresentam característica meramente exortatória. Esses mecanismos da OCDE, entretanto, dependem de colaboração dos Estados, os quais tem papel fundamental no controle do comportamento das empresas multinacionais.

Esses dois documentos, produzidos por importantes organizações internacionais, evidenciam que as empresas, de fato, são reguladas pelo direito internacional. Essa realidade, por sua vez, altera a concepção segundo a qual o direito internacional constitui uma ordem jurídica direcionada à conduta dos Estados. Embora estes continuem a ser os atores principais da sociedade internacional, eles compartilham a importância com diversos atores de atuação global. As empresas transnacionais, especialmente no que concerne à dimensão econômica da ordem internacional, são sujeitos emergentes, que adquirem relevância cada vez maior e, por isso, tornam-se objeto direto das normas internacionais contemporâneas.


Referências

BIBLIOTECA VIRTUAL DE DIREITOS HUMANOS. Declaração de Estocolmo sobre o ambiente humano - 1972. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Meio-Ambiente/declaracao-de-estocolmo-sobre-o-ambiente-humano.html. Acesso em: 24 jul. 2019.

MEIO AMBIENTE. Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Disponível em: http://www.meioambiente.pr.gov.br/arquivos/File/agenda21/Declaracao_Rio_Meio_Ambiente_Desenvolvimento.pdf. Acesso em: 24 jul. 2019.

OCDE. Guidelines for Multinational Enterprises. Disponível em: http://www.oecd.org/corporate/mne/. Acesso em: 11 jul. 2019.

UN GLOBAL COMPACT. 10 principles. Disponível em: https://www.unglobalcompact.org/what-is-gc/mission/principles. Acesso em: 11 jul. 2019.

TERÁN, D. F. U. KEEPING THE HEAD UP: LESSONS LEARNED FROM THE INTERNATIONAL DEBATE ON BUSINESS AND HUMAN RIGHTS. HOMA, Juiz de Fora, v. 2, n. 2, p. 19-40, dez./2018. Disponível em: <http://homacdhe.com/journal/wp-content/uploads/sites/3/2018/10/Keeping-the-head-up-lessons-learned-from-the-internactional-debate-on-business-and-human-rights.pdf>. Acesso em: 11 jul. 2019.


Notas

[1] Para uma discussão sobre o tema, ver: TERÁN, D. F. U. KEEPING THE HEAD UP: LESSONS LEARNED FROM THE INTERNATIONAL DEBATE ON BUSINESS AND HUMAN RIGHTS. HOMA, Juiz de Fora, v. 2, n. 2, p. 19-40, dez./2018. Disponível em: <http://homacdhe.com/journal/wp-content/uploads/sites/3/2018/10/Keeping-the-head-up-lessons-learned-from-the-internactional-debate-on-business-and-human-rights.pdf>. Acesso em: 11 jul. 2019. MEIO AMBIENTE. Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Disponível em: http://www.meioambiente.pr.gov.br/arquivos/File/agenda21/Declaracao_Rio_Meio_Ambiente_Desenvolvimento.pdf. Acesso em: 24 jul. 2019.

[2] Consultar BIBLIOTECA VIRTUAL DE DIREITOS HUMANOS. Declaração de Estocolmo sobre o ambiente humano - 1972. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Meio-Ambiente/declaracao-de-estocolmo-sobre-o-ambiente-humano.html. Acesso em: 24 jul. 2019.

[3] UN GLOBAL COMPACT. 10 principles. Disponível em: https://www.unglobalcompact.org/what-is-gc/mission/principles. Acesso em: 11 jul. 2019.

[4] Ver OCDE. Guidelines for Multinational Enterprises. Disponível em: http://www.oecd.org/corporate/mne/. Acesso em: 11 jul. 2019.


Autor

  • Mauro Kiithi Arima Junior

    Bacharel em Direito e Relações Internacionais pela USP. Especialista em Direito Político, Administrativo e Financeiro pela FD USP. Especialista em Política Internacional pela FESPSP. Mestre em Direito Internacional pela USP. Doutor em Direito Internacional pela USP. Advogado, professor e consultor jurídico.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KIITHI, Mauro Kiithi Arima Junior. As empresas privadas no direito internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5906, 2 set. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75549. Acesso em: 16 abr. 2024.