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Um protocolo ilícito

Um protocolo ilícito

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Não cabe a quem não é médico, profissional da saúde, estabelecer protocolo de saúde.

I – O FATO

Diante da recusa de dois ministros da Saúde, que optaram por pedir demissão para não assinar o documento, coube ao interino, general Eduardo Pazuello, liberar a cloroquina para todos os pacientes de covid-19. Em documento divulgado nesta quarta-feira com o novo protocolo, o ministério recomenda a prescrição do medicamento desde os primeiros sinais da doença causada pelo coronavírus

Embora não haja comprovação científica da eficácia do medicamento contra a doença, o Ministério da Saúde alega, no documento, que o Conselho Federal de Medicina autorizou recentemente que médicos receitem a seus pacientes a cloroquina e a hidroxicloroquina, uma variação da droga. "A prescrição de todo e qualquer medicamento é prerrogativa do médico, e que o tratamento do paciente portador de COVID-19 deve ser baseado na autonomia do médico e na valorização da relação médico-paciente que deve ser a mais próxima possível, com objetivo de oferecer o melhor tratamento disponível no momento”.

Na prática, com o novo protocolo, o governo autoriza que médicos da rede pública de saúde receitem a cloroquina associada ao antibiótico azitromicina logo após os primeiros sintomas da doença, como coriza, tosse e dor de cabeça. As doses dos medicamentos se alteram conforme o quadro de saúde. "Os critérios clínicos para início do tratamento em qualquer fase da doença não excluem a necessidade de confirmação laboratorial e radiológico", diz o documento do Ministério da Saúde.

Sobre esse medicamento disse o site Galileu:

“No último dia 23 de abril, o Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizou o uso da hidroxicloroquina para o tratamento da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2). Embora não se trate de uma recomendação, e sim uma liberação para que médicos optem ou não pelo uso do medicamento em determinados casos, a decisão do CFM aquece ainda mais o debate acerca do possível tratamento para a doença. Especialmente no Brasil, tanto a hidroxicloroquina quanto a cloroquina vêm sendo defendidas pelo presidente da república, Jair Bolsonaro, e seus apoiadores — mesmo que não existam comprovações científicas de que sejam eficazes.

Sintetizada em laboratório em 1934, a cloroquina deriva da quina, árvore usada por indígenas para curar febres muito antes da chegada dos europeus à América. Ingrediente de chás e outras receitas, entre elas a água tônica, foi com a malária que ganhou status de medicamento: descobriu-se que ela pode interferir no funcionamento dos lisossomos, organelas responsáveis pela digestão das células, e com isso aniquilar o causador da doença. “Ela se concentra no vacúolo alimentar ácido do parasita [causador da malária] e interfere nos processos essenciais”, explica o farmacologista François Noel, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Nos glóbulos vermelhos, ela se liga ao heme [átomo de ferro] formando um complexo tóxico que mata a célula e o parasita.”

Já a hidroxicloroquina é uma versão aprimorada e menos tóxica da cloroquina, indicada para tratamentos de longo prazo. Desenvolvida em 1946, ela é aplicada nas terapias de doenças autoimunes como artrite reumatoide e lúpus, além dos casos em que a malária é provocada por protozoários resistentes à cloroquina.

Em 2007, pesquisadores liderados pelo infectologista Didier Raoult, da Universidade de Medicina de Marselha, na França, fizeram testes in vitro para demonstrar que a cloroquina e a hidroxicloroquina poderiam ser usadas contra infecções bacterianas, fúngicas e virais — entre elas, o HIV e o Sars-CoV-1 (coronavírus causador da Sars, síndrome respiratória que surgiu na China em 2002) . Além de atuarem nos lisossomos e, com isso, prejudicarem a replicação do vírus (ele depende das células humanas para se reproduzir), as drogas interferem nas enzimas que convertem a proteína na cápsula do vírus (que parecem “espinhos”) e permitem a entrada nas células.

Esses dois mecanismos atuariam na diminuição da infecção. Em casos já avançados, as substâncias serviriam para inibir a reação das citocinas, moléculas que recrutam as células imunológicas para o local de infecção e, se descontroladas (na chamada tempestade de citocinas), ativam células demais em um só lugar e causam danos.

No surto do novo coronavírus, o estudo francês chamou a atenção e pesquisadores mundo afora, que resolveram testar a aplicabilidade ao Sars-CoV-2. O primeiro teste foi feito por cientistas chineses e publicado no início de fevereiro de 2020, mostrando efeitos similares aos da pesquisa de 2007. Outro, também realizado na China e divulgado em março, validou a eficácia das drogas in vitro.”

A utilização de hidroxicloroquina, cloroquina e de suas associações com azitromicina não são recomendadas na rotina de tratamento da Covid-19 por um consenso de três entidades científicas brasileiras: Associação de Medicina Intensiva Brasileira, Sociedade Brasileira de Infectologia e Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. As informações são da Folha de S. Paulo.

 A recomendação consta em documento com diretrizes e cujo processo de elaboração foi  liderado pela Associação Hospitalar Moinhos de Vento, de Porto Alegre, pelo Hospital Alemão Oswaldo Cruz e pelo Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo, que estão entre os principais hospitais do país.

 O grupo de 27 especialistas, que incluiu infectologistas, especialistas em medicina intensiva, pneumologistas, farmacêuticos, epidemiologistas e especialistas em saúde pública, identificou que o nível de evidências para uso da cloroquina e sua derivada é fraca.

 Os especialistas, de acordo com reportagem da Folha de S. Paulo, fizeram revisões em estudos disponíveis até o momento sobre as terapias possíveis contra a Covid-19.

 Entre as informações analisadas pelo grupo estão dois ensaios clínicos randomizados, que é um tipo de estudo com as evidências mais robustas sobre a eficácia ou não de um medicamento. Participaram deles pacientes com doença leve a moderada. Também foi analisado e um estudo de coorte, considerando os dados disponíveis até o momento.

 Segundo as entidades científicas, "as evidências disponíveis não sugerem benefício clinicamente significativo do tratamento com hidroxicloroquina ou com cloroquina". O mesmo vale para o uso da combinação de hidroxicloroquina (ou cloroquina) com a azitromicina.

II – RESPONSABILIDADE CIVIL E REPARAÇÃO

A par dos argumentos com relação a MP 960/2020 e de sua notória inconstitucionalidade com relação aos princípios de razoabilidade, igualdade, proporcionalidade, cabe falar sobre as reparações que podem ser solicitadas por aqueles que, sob prescrição errônea, foram vitimizados por essa pretensa cura.

O STF julgou no dia 10 de maio de 2018, o agravo de regimento na Pet 3240, firmando os seguintes posicionamentos:

  1. os agentes políticos, com exceção do presidente da República, encontram-se sujeitos a um duplo regime sancionatório, e se submetem tanto à responsabilização civil pelos atos de improbidade administrativa quanto à responsabilização político-administrativa por crimes de responsabilidade;
  2. compete à Justiça de primeiro grau o julgamento das ações de improbidade, logo não há foro por prerrogativa de função em relação a este tipo de ação.

Não cabe, pois, ação de improbidade administrativa contra o atual presidente, mas o atual ministro da saúde, por conta da edição do noticiado protocolo poderá ser réu nessas ações.

Verificado o liame entre o protocolo e o dano cabe a reparação.

Isso poderá ser objeto em ações civil ordinárias perante a Justiça Federal contra os responsáveis por esse protocolo por parte das vítimas.

Disse Daniele U. Oliveira(A responsabilidade civil por erro médico):

“A Responsabilidade Civil tem seu fundamento no fato de que ninguém pode lesar interesse ou direito de outrem. Descreve o artigo 927 do Código Civil brasileiro que “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo” e segue em seu parágrafo único “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos específicos em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.

A ideia de responsabilidade civil vem do princípio de que aquele que causar dano a outra pessoa, seja ele moral ou material deverá restabelecer o bem ao estado em que se encontrava antes do seu ato danoso, e, caso o restabelecimento não seja possível, deverá compensar aquele que sofreu o dano. Maria Helena Diniz (2003, pag. 34) assim define a responsabilidade civil:

“A responsabilidade civil é a aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros em razão de ato do próprio imputado, de pessoa por quem ele responde, ou de fato de coisa ou animal sob sua guarda (responsabilidade subjetiva), ou, ainda, de simples imposição legal (responsabilidade objetiva)”

De regra a responsabilidade civil e a obrigação de reparar o dano surge da conduta ilícita do agente que o causou. O ato ilícito gera o dever de compensação da vítima, mas nem toda obrigação de indenização deriva de ato ilícito. Não se cogita indenização e dever de reparação somente nos casos em que haja conduta injurídica causadora de dano, a responsabilidade civil pode ter origem na violação de direito que causa prejuízo a alguém, desde que observados certos pressupostos. Neste sentido, afirma Silvio de Salvo Venosa (2003, pag. 12):

“Na realidade, o que se avalia geralmente em matéria de responsabilidade é uma conduta do agente, qual seja, um encadeamento ou série de atos ou fatos, o que não impede que um único ato gere por si o dever de indenizar.

No vasto campo da responsabilidade civil, o que interessa saber é identificar aquele conduto que reflete na obrigação de indenizar. Nesse âmbito, uma pessoa é responsável quando suscetível de ser sancionada, independentemente de ter cometido pessoalmente um ato antijurídico. Nesse sentido, a responsabilidade pode ser direta, se diz respeito ao próprio causador do dano, ou indireta, quando se refere a terceiro, o qual, de uma forma ou de outra, no ordenamento, está ligado ao ofensor.”

Quando se trata de responsabilidade civil, a conduta do agente é a causadora do dano, surgindo daí o dever de reparação. Para que se configure o dever de indenizar advindo da responsabilidade civil, deverá haver a conduta do agente e nexo de causalidade entre o dano sofrido pela vítima e a conduta do agente.

Necessário, pois, que para a hipótese narrada haja a comprovação de conduta humana, nexo de causalidade e dano.

Maria Helena Diniz (2003, pag. 37) define conduta humana como sendo "o ato humano, comissivo ou omissivo, ilícito ou lícito, voluntário e objetivamente imputável, do próprio agente ou de terceiro, (...) que cause dano a outrem, gerando o dever de satisfazer os direitos do lesado”. Afirma ainda que a ação ou omissão que gera a responsabilidade civil pode ser ilícita ou lícita e que a “responsabilidade decorrente de ato ilícito baseia-se na idéia de culpa, e a responsabilidade sem culpa funda-se no risco, (...) principalmente ante a insuficiência da culpa para solucionar todos os danos”. E continua sua lição afirmando que o comportamento pode ser comissivo ou omissivo, sendo que a “comissão vem a ser a prática de um ato que não se deveria efetivar, e a omissão, a não-observância de um dever de agir ou da prática de certo ato que deveria realizar-se.”

O nexo causal ou a relação de causalidade é um dos pressupostos fundamentais para a configuração da responsabilidade civil e do dever de indenizar. A relação de causalidade é o liame entre o ato lesivo do agente e o dano ou prejuízo sofrido pela vítima. Se o dano sofrido não for ocasionado por ato do agente, inexiste a relação de causalidade. Sílvio de Salvo Venosa (2003, pag. 39) ao definir nexo de causalidade como ensina que:

“O conceito de nexo causal, nexo etimológico ou relação de causalidade deriva das leis naturais. É o liame que une a conduta do agente ao dano. É por meio do exame da relação causal que concluímos quem foi o causador do dano. Trata-se de elemento indispensável. A responsabilidade objetiva dispensa a culpa, mas nunca dispensará o nexo causal. Se a vítima, que experimentou um dano, não identificar o nexo causal que leva o ato danoso ao responsável, não há como ser ressarcida.”

A conduta do agente para acarretar responsabilidade civil deve comprovadamente causar dano ou prejuízo a vítima. Sem o dano não há que se falar em responsabilidade civil, pois sem ele não há o que reparar. Maria helena Diniz (2003, pag. 112) conceitua dano como a “lesão (diminuição ou destruição) que, devido a um certo evento, sofre uma pessoa, contra sua vontade, em vontade, em qualquer bem ou interesse jurídico, patrimonial ou moral.”

Na responsabilidade civil a culpa se caracteriza quando o causador do dano não tinha intenção de provocá-lo, mas por imprudência, negligência, imperícia causa dano e deve repará-lo.

O artigo 186 do Código Civil estabelece a regra da responsabilidade civil subjetiva. O agente somente pode ser responsabilizado quando, culposamente, não respeita um dever de cuidado objetivamente devido (sua conduta é ilícita).

Em linhas gerais, a responsabilidade subjetiva é aquela em que além do ato lesivo do agente causador de lesão, do dano estar presente no lesado e do nexo causal estar estabelecido entre o ato lesivo e o dano ao lesado, tem que se achar presente, nesta relação, a culpa do agente causador do dano. E, esta culpa, caracteriza-se pela presença no agir deste de dolo ou pela presença só de culpa no sentido estrito, ou seja, de imprudência ou negligência ou imperícia.

III – UM CRIME COMUM

A conduta do ministro da saúde, em coautoria com o presidente da República, pode denotar um crime de exercício ilegal da medicina, um crime contra a saúde pública.

Por certo, a possibilidade de escolha livre pelo homem do trabalho que vai executar ou da profissão que quer e deseja exercer, situa-se no princípio da livre iniciativa, que conduz, de forma necessária, à livre escolha do trabalho, que é uma das expressões fundamentais da liberdade humana.

O artigo 5º, XIII, da Constituição Federal assegura a qualquer pessoa o exercer a título profissional, mediante retribuição e, em caráter permanente e sistemático, uma atividade que não seja socialmente recriminada,  satisfeitos os requisitos que forem definidos em lei.

Surgem então limitações a esse direito que são consignadas em lei.

Com isso se quer dizer, como bem acentuou Celso Bastos (Estudos e pareceres de direito público, São Paulo, RT, 1993, pág. 127), que as limitações a este direito resultam fundamentalmente da existência de atividades penalmente reprimidas. Isso porque estas não podem dar lugar a nenhuma profissão constitucionalmente protegida.

É necessário, pois, que exista uma lei da União, pois se trata de matéria de estrita reserva legal, sem qualquer possibilidade de outros atos normativos do Legislativo ou Executivo virem a lhe fazer as vezes.

Por certo, essa lei há de satisfazer os requisitos de ordem substancial, sob pena de incidir em abuso de direito e, por consequência, ser inconstitucional.

Assim a Constituição assegura a liberdade do exercício de qualquer trabalho, oficio ou profissão atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer, visto o trabalho como manifestação da individualidade. Por sua vez, o artigo 170 da Constituição Federal, em seu parágrafo único, trata de garantir a todos a possibilidade de lançaram-se ao mercado, não apenas como profissionais no desempenho de uma atividade econômica, mas ainda de levarem a frente a possibilidade de, dentro de uma economia capitalista, organizarem empresas, etc.

Assim qualquer atividade econômica é livre, mas salvo os casos previstos em lei, pois a ela é dado criar restrições.

Sendo assim é aceitável, nos limites da razoabilidade, que dependam de autorização certas atividades sobe as quais o Estado tenha necessidade de exercer uma tutela, quanto ao seu desempenho no que concerne à segurança, à insalubridade pública, etc. Esse o limite da lei, pois fora disso, haverá o excesso.

Para Pontes de Miranda (Tratado de Direito Privado, Rio de Janeiro, Borsoi, 1967, vol. 53, pág. 437), “todas as operações ou quaisquer intervenções médicas são ataques à integridade física ou psíquica”.

Essas condutas médicas que são invasivas no organismo humano devem ter por fonte um protocolo que se paute nas boas normas e princípios da medicina.

O protocolo deve ser organizado e validado por entidades médicas e secretarias de Saúde do estado

Não cabe a quem não é médico, profissional da saúde, estabelecer protocolo de saúde.

Por si só, um protocolo médico que não receba apoio científico de entidades na área biomédica é exercer uma conduta de exercício ilegal de medicina.

Volto a registrar o aspecto criminoso da conduta.

Especificamente, quando se fala em ato médico,  a Lei 12.842 prescreve com relação a atuação do médico:

Art. 4o  São atividades privativas do médico:

 I - (VETADO);

 II - indicação e execução da intervenção cirúrgica e prescrição dos cuidados médicos pré e pós-operatórios;

 III - indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as biópsias e as endoscopias;

 IV - intubação traqueal;

 V - coordenação da estratégia ventilatória inicial para a ventilação mecânica invasiva, bem como das mudanças necessárias diante das intercorrências clínicas, e do programa de interrupção da ventilação mecânica invasiva, incluindo a desintubação traqueal;

 VI - execução de sedação profunda, bloqueios anestésicos e anestesia geral;

 VII - emissão de laudo dos exames endoscópicos e de imagem, dos procedimentos diagnósticos invasivos e dos exames anatomopatológicos;

 VIII - (VETADO);

 IX - (VETADO);

 X - determinação do prognóstico relativo ao diagnóstico nosologico;

 XI - indicação de internação e alta médica nos serviços de atenção à saúde;

 XII - realização de perícia médica e exames médico-legais, excetuados os exames laboratoriais de análises clínicas, toxicológicas, genéticas e de biologia molecular;

 XIII - atestação médica de condições de saúde, doenças e possíveis sequelas;

 XIV - atestação do óbito, exceto em casos de morte natural em localidade em que não haja médico.

 § 1o  Diagnóstico nosológico é a determinação da doença que acomete o ser humano, aqui definida como interrupção, cessação ou distúrbio da função do corpo, sistema ou órgão, caracterizada por, no mínimo, 2 (dois) dos seguintes critérios:

 I - agente etiológico reconhecido;

 II - grupo identificável de sinais ou sintomas;

 III - alterações anatômicas ou psicopatológicas.

 § 2o  (VETADO).

 § 3o  As doenças, para os efeitos desta Lei, encontram-se referenciadas na versão atualizada da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde.

 § 4o  Procedimentos invasivos, para os efeitos desta Lei, são os caracterizados por quaisquer das seguintes situações:

 I - (VETADO);

 II - (VETADO);

 III - invasão dos orifícios naturais do corpo, atingindo órgãos internos. 

 § 5o  Excetuam-se do rol de atividades privativas do médico:

 I - (VETADO);

 II - (VETADO);

 III - aspiração nasofaringeana ou orotraqueal;

 IV - (VETADO);

 V - realização de curativo com desbridamento até o limite do tecido subcutâneo, sem a necessidade de tratamento cirúrgico;

 VI - atendimento à pessoa sob risco de morte iminente;

 VII - realização de exames citopatológicos e seus respectivos laudos;

 VIII - coleta de material biológico para realização de análises clínico-laboratoriais;

 IX - procedimentos realizados através de orifícios naturais em estruturas anatômicas visando à recuperação físico-funcional e não comprometendo a estrutura celular e tecidual.

 § 6o  O disposto neste artigo não se aplica ao exercício da Odontologia, no âmbito de sua área de atuação.

 § 7o  O disposto neste artigo será aplicado de forma que sejam resguardadas as competências próprias das profissões de assistente social, biólogo, biomédico, enfermeiro, farmacêutico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, nutricionista, profissional de educação física, psicólogo, terapeuta ocupacional e técnico e tecnólogo de radiologia.

Observe-se bem: é mister do médico Especificamente, quando se fala em ato médico,  a Lei 12.842 prescreve com relação a atuação do médico: indicação e execução da intervenção cirúrgica e prescrição dos cuidados médicos pré e pós-operatórios.

Ora, a prescrição de cuidados médicos, de um protocolo, é ofício de um médico.

Fala a lei em exercer a profissão. Ora, os atos inerentes à profissão de médico são os que visam ao tratamento de pessoa humana, na cura ou prevenção de moléstias ou correção de defeitos físicos. Por sua vez, a profissão de farmacêutico diz respeito a arte de preparar os medicamentos.

Há duas formas de crime: sem autorização legal ou ainda excedendo-lhe os limites.

Na primeira hipótese, o agente não tem autorização legal, pois não tem habilitação nem título, isto porque não dispõe de diploma obrigatório para o exercício da profissão ou não o tem registrado na repartição competente, como manda a lei. Considera-se que além dos diplomados, podem ser autorizados os práticos de farmácia(licenciados) e estudantes de medicina, preenchidas as formalidades exigidas pela legislação especial, desde que se circunscrevam aos atos permitidos pela autorização legal. Não seguimos o modelo argentino onde se fala: “anunciar, prescrever, administrar ou aplicar habitualmente medicamentos ao tratamento de enfermidades das pessoas”. Na segunda modalidade do crime, não se fala na  ausência de titulo ou defeito em seu registro, mas de excesso no exercício da profissão. Assim o médico não pode preparar medicamentos; o farmacêutico não poderá fazer diagnóstico sobre doenças e prescrever tratamento. O excesso é funcional.

Como disse Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal, volume II, 1986, Rio de Janeiro, Forense, pág. 264), a autorização legal exige não somente o título ou diploma, mas ainda registro em repartição competente. Para Nelson Hungria (Comentários ao código penal, volume IX, pág. 145), além da habilitação ou competência profissional, a habilitação ou competência legal.

IV  – UM CRIME DE RESPONSABILIDADE

Paulo Brossard (O impeachment, 1992, pág. 54) ensinou que a própria Constituição estatui, no artigo 89 caput, da Constituição de 1946, que “são crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal”. E só depois de haver traçado essa regra básica é que acrescenta: “e, especialmente, contra....”, seguindo-se os oito itens exemplificativamente postos em relevo pelo constituinte, pelo que incumbiu o legislador da tarefa de decompô-los e enumerá-los. Mas ela mesma prescreveu que todo atentado, toda ofensa a uma prescrição sua, independente de especificação legal, consituti crime de responsabilidade.

Veja-se o que se diz no artigo 85 da Constituição de 1988:

São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:

...

III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;

Como citado por Paulo Brossard (Impeachment): “Strory já ensinava que o ‘impeachment’ é um processo de natureza puramente política”. No ensinamento de Brossard, Lawrence, tantas vezes citado pelas maiores autoridades, faz suas as palavras de Bayard, no julgamento de Blount: “o ‘impeachment’, sob a Constituição dos Estados Unidos, é um processo exclusivamente político. Não visa a punir delinquentes, mas proteger o Estado. Não atinge a pessoa nem seus bens, mas simplesmente desveste a autoridade de sua capacidade política”.

Observe-se que Munro (The government, pág. 288) refere-se ao caso do secretário de Estado Belknap, que, apesar de haver o presidente Grant, em 1876, aceito a demissão, o processo de impeachment prosseguiu no Senado, concluindo que o processo tinha a natureza mista, nos Estados Unidos, e não puramente política.

Observe-se bem que a leitura dos crimes de responsabilidade é dos políticos. Cabe aos políticos no Parlamento decidir sobre se há ou não hipótese de impeachment.

Em editorial, em 20 de maio de 2020, “A cloroquina e o crime de responsabilidade”, disse bem o Estadão que “ vale notar que a insistência de Jair Bolsonaro no uso da cloroquina não causa danos apenas à saúde da população. Ela coloca em risco a própria permanência de Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto, uma vez que a insistência em agredir a saúde da população, prescrevendo algo que afronta as evidências médicas, se encaixa inequivocamente em uma das descrições dos crimes de responsabilidade previstos na Lei 1.079, de 1950.”

Assim estabelece o seu art. 7.º: “São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais: (9) violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição”. Editada em 1950, a lei refere-se aqui a dois artigos da Constituição de 1946. O primeiro protege os direitos fundamentais – direito à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade – e o outro, os direitos sociais, incluindo a saúde.

A Constituição de 1988 ampliou e tornou ainda mais explícito esse direito na medida em que considerou a saúde como um dever do Estado e direito do cidadão, verdadeiro princípio constitucional impositivo.

De toda sorte, a maior resposta a esse protocolo, que beira o desvario, é que os secretários de saúde nos entes da federação se recusem a utilizá-lo por considerarem uma agressão ao direito fundamental da vida.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Um protocolo ilícito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6269, 30 ago. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82391. Acesso em: 18 abr. 2024.