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As representações do sistema de justiça criminal cearense acerca de mulheres vítimas do crime de estupro.

As representações do sistema de justiça criminal cearense acerca de mulheres vítimas do crime de estupro.

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O estupro é crime de natureza hedionda, previsto no código penal, em seu artigo 213. Esse delito, que enseja repulsa e indignação, tem em seu polo passivo, normalmente, mulheres: fruto de um passado machista e patriarcal, mas que ainda gera reflexos, sobretudo no Judiciário, no cenário contemporâneo.

INTRODUÇÃO

O estupro está previsto em diversas legislações e visa a punir o agressor que, sem a anuência da outra pessoa, a obriga a ter relações sexuais. São quatro os elementos que integram o delito: (1) constrangimento decorrente da violência física (vis corporalis) ou da grave ameaça (vis compulsiva); (2) dirigido a qualquer pessoa, seja do sexo feminino ou masculino; (3) para ter conjunção carnal; (4) ou, ainda, para fazer com que a vítima pratique ou permita que com ela se pratique qualquer ato libidinoso.

O estupro, consumado ou tentado, em qualquer de suas figuras (simples ou qualificadas), é crime hediondo (Lei8.072/90, art.1º,V) (MAGGIO, 2013). Em decorrência de sua natureza hedionda, deve ser tratado de forma mais severa pelas legislações, sendo esse crime insuscetível de graça e anistia.

Normalmente, o polo passivo desse crime é composto por mulheres. Tal como será discutido no primeiro capítulo, historicamente, as mulheres são tratadas como seres inferiores e subordinadas à figura do homem. No sistema patriarcal, androcêntrico e machista, tais vítimas acabam sendo, em sua maioria, julgadas pela sociedade como provocadoras do agente.Entende-se, no âmbito da Vitimologia, que vítima provocadora é aquela que, através das vestimentas ou atitudes, provoca o agente para a prática do crime. No caso do estupro contra a mulher, este é um julgamento de cunho machista, o que será demonstrado ao longo dos próximos capítulos.

Desta forma, o estupro é, por um lado, repudiado e qualificado como crime hediondo. Por outro, no contexto da Vitimologia, existe o argumento de cunho androcêntrico de que as mulheres vítimas desse crime procuraram o resultado. Tal argumento é resultado (e também produtor) de um contexto pernicioso para as vítimas, assim como aos direitos de todas as mulheres. Por essa razão, é necessário se deter sobre o problema do tratamento deste crime no contexto jurídico. Igualmente importante é entender o impacto do movimento feminista e os consequentes direitos conquistados pelas mulheres, pois foi através deles que a problemática dos crimes sexuais, mais precisamente o crime de estupro, começaram a ter um tratamento diferenciado pelas legislações e pela sociedade.

Assim, a realização desta pesquisa monográfica teve como objetivo principal analisar as representações sociais acerca das mulheres vítimas do crime de estupro. A análise se deteve, em âmbito geral, sobre as representações de natureza androcêntrica presente no contexto social amplo.Emsentido estrito, foram analisadas essas representações especificamente em narrativas concretizadas em processos de casos de estupro julgados no Justiça Estadual do Ceará.

O estudo se classifica como qualitativo e utilizou-se do método dedutivo. Em sua etapa inicial consistiu em um estudo de cunho bibliográfico que decorreu de revisão de literatura, doutrina e jurisprudência aplicadas à área considerada. Na etapa final, consistiu em uma análise documental, que deteve-se sobre a análise de seis casos de estupro contra mulheres na Justiça Estadual do Ceará. As fontes consideradas foram sítios de notícia com reportagens sobre casos de estupro veiculados nos últimos dez anos. A análise teve como propósito identificar a ocorrência da culpabilização da vítima de estupro (através do argumento da vítima provocadora) e sua sobrevitimização. Nesta etapa, os textos foram submetidos a uma cuidadosa leitura, que considerou o conteúdo total das narrativas contidas no texto verificando as representações sociais envolvidas. Identificou-se os emissores dos discursos, considerando manifestações das partes no que se refere às alegações advindas do judiciário, no âmbito da denúncia, da defesa e do julgamento. Os processos foram representados por numeração não intencional, tendo em vista a da delicadeza do tema. Também com o objetivo de preservar os sujeitos envolvidos, a identificação das partes foi feita unicamente por meio das iniciais de seus nomes.

Verificada o quão relevante é a análise das representações sobre a mulher vítima do crime de estupro, é possível o levantamento das seguintes indagações: sob o ponto de vista histórico, como a legislação tratou o crime de estupro contra a mulher no Brasil? Como a luta de mulheres resultou em conquistas por direitos amplos e, especificamente, sobre o próprio corpo? Como se define Vitimologia? Por fim, Como são representadas as mulheres vítimas de estupro em processos da Justiça Estadual do Ceará? Pretende-se, nas linhas que seguem dar respostas a essas perguntas.

Sendo assim, no primeiro capítulo, será abordada uma breve história do estupro e da violência sexual no Brasil. Em primeiro plano, será analisado o estudo acerca da história deste nas legislações brasileiras, retratando como essa violação era punida anteriormente. Será abordado o estupro no Código de 1830, denominado Código do Império do Brasil, retratando a figura das mulheres que eram denominadas com honra e sem honra. Em seguida, será analisado o Código Penal Republicano de 1890, que trouxe novidades referente às penas dos agressores. Em seguida será considerado o Código de 1940,que não trouxe grandes inovações.Por fim, serão expostas as alterações trazidas pela lei 12.015 de 2009. Finalmente, ainda no mesmo capítulo, será brevemente apresentada a luta das mulheres no Brasil e como este movimento alcança direitos relacionados a educação, trabalho e voto, assim como relevantes conquistas referentes aos direitos sobre o corpo.

No segundo capítulo, será analisada a culpabilização da vítima sob o prisma da Vitimologia. Apresentaremos, neste sentido, o conceito de Vitimologia, a história do estudo das vítimas e suas fases, bem como seu surgimento como ramo do direito. Será demonstrado o estudo do iter victimae, que tem como fundamento estudar as características próprias existentes nas vítimas e as suas referidas fases. Serão abordadas as classificações das vítimas atribuídas por Benjamim Mendelsohn, criador da Vitimologia e os graus de vitimização que descrevem os prejuízos e tormentos causados ao sujeito passivo após o sofrimento de determinado delito.

No terceiro capítulo, inicialmente, será discutido o valor probatório da vítima em julgamentos de crimes sexuais, que possuem diferenças com relação a outros crimes. Serão também expostos os elementos que ampliam a confiabilidade da palavra da vítima. Em seguida, serão descritos os resultados da pesquisa documental realizada neste texto monográfico.A pesquisa teve como fonte textos jornalísticosdeseis casos julgadospela Justiça Estadual do Ceará. Os casos foram analisados individualmente para, então, serem inter-relacionados.


1 A VIOLÊNCIA SEXUAL NA LEGISLAÇÃO E A LUTA DAS MULHERES NO BRASIL: UM BREVE HISTÓRICO

1.1 Evolução histórica do crime de estupro na legislação brasileira

Ao longo dos tempos, o Código Penal brasileiro sofreu diversas modificações, principalmente no que se refere aos crimes sexuais. Seja com relação à própria redação do texto penalou mesmo a materialidade do crime, suas penas, assim como hoje, poderiam ser agravadas ou atenuadas a depender da situação.

No entanto, é válido ressaltar que as mulheres eram divididas em classes, posto que a liberdade sexual da mulher não era vista como ponto central do crime de estupro em épocas anteriores devido às mesmas serem consideradas propriedade e objetos de seus maridos.

As mulheres possuíam duas denominações, sendo elas: mulheres que possuíam honra e àquelas que não eram detentoras da mesma, ou seja, mulheres sem honra alguma. Para crimes cometidos com as primeiras elencadas, o agressor sofreria uma pena mais grave, podendo até mesmo ser banido da cidade da vítima e ainda ter que pagar dotes para família da mesma. Porém, com o passar dos anos essa punição sofreu alterações, não sendo mais permitido esse tipo de sanção.

No que tange às mulheres denominadas sem honra, ou seja, aquelas que não eram casadas e que já tivessem tido relações sexuais, ou até mesmo prostitutas, a pena do agressor seria diminuída; mas se o agressor resolvesse casar-se com alguma delas, o crime perderia a sua punibilidade e o mesmo, consequentemente, sairia impune. Confirmando a análise acima temos o seguinte texto:

A meretriz estuprada, além da violência que sofreu, não suporta outro dano. Sem reputação e honra nada tem a temer como consequência do crime. A mulher honesta, todavia, arrastará por todo o sempre a mancha indelével com que a poluiu o estuprador- máxime se for virgem, caso que assume, em nosso meio, proporções de dano irreparável. No estupro da mulher honesta há duas violações: contra a liberdade sexual e contra a honra; no da meretriz, apenas o primeiro bem é ferido” (NORONHA,1995)

Nesse sentido, é visto como as mulheres sofriam desvalorizações e eram objetificadas, tanto no âmbito social como nas legislações penais brasileiras, que serão expostas adiante, com base em um lapso temporal.

1.1.1 Código Penal de 1830

O Código Criminal do Império do Brasil, sancionado em 1830, trouxe inúmeras discussões ao tratar de crimes sexuais, em especial o estupro. A pena prevista para quem cometesse tal ato era de três a doze anos de detenção, mais um dote oferecido à família da ofendida.

No entanto, se a mesma não fosse detentora de honra, ou seja, se fosse prostituta, a pena do agressor seria diminuída para um mês a dois anos, fato elucidado na redação do artigo 222 do código penal de 1830:

Art. 222. Ter copula carnal por meio de violencia, ou ameaças, com qualquer mulher honesta.

Penas- de prisão por tres a doze annos, e de dotar a offendida.

Se a violentada fôr prostituta.

Penas - de prisão por um mez a dousannos.

Da leitura do artigo, é possível constatar a diferenciação e o julgamento que se fazia com relação à honra das mulheres e a desvalorização existente para com as mesmas. Havia, pois, uma diminuição de pena se fosse constatado que o agressor havia estuprado uma prostituta.

Além disso, havia, ainda, outras caracterizações do crime, expostos em artigos posteriores. Sendo essas: quando ocorria violência com fim libidinoso, e não ocorresse à conjunção carnal, a pena de prisão seria de um a seis meses e de multa correspondente a metade do tempo.

Art. 223. Quando houver simples offensa pessoal para fim libidinoso, causando dôr, ou algum mal corporeo a alguma mulher, sem que se verifique a copula carnal.

Penas - de prisão por um a seis mezes, e de multa correspondente á metade do tempo, além das em que incorrer o réo pela offensa.

Nesse sentido, pode-se extrair que o crime de estupro só era caracterizado quando efetivamente houvesse a conjunção carnal.Caso contrário, seria caracterizado como “simples ofensa” e a pena seria diminuída pela metade. Cumpre salientar que, caso a mulher fosse menor de dezesseis anos e sofresse o crime de estupro, ou seja, a conjunção carnal, o agressor era levado para fora da comarca em que a vítima menor residia, e era obrigado a pagar um dote à vítima. Assim expõe o artigo 224 do código penal de 1830:

Art. 224. Seduzir mulher honesta, menor dezaseteannos, e ter com ella copula carnal.

Penas - de desterro para fóra da comarca, em que residir a seduzida, por um a tresannos, e de dotar a esta.

Por fim, verifica-se a questão do casamento com a vítima, onde, caso ela se casasse com o agressor, o mesmo seria absolvido do crime em questão. Assim, a vítima sofreria duplamente, pois não bastasse ter sofrido o estupro, deveria conviver diariamente com o seu agressor. Desta maneira, o texto do Art. 225 assim dispõe: “Não haverá as penas dos três artigos antecedentes os réos, que casarem com as offendidas.” A menos de dois séculos, a liberdade de escolha da mulher inexistia, e a subordinação ao homem era claramente positivada no texto legal.

1.1.2 Código Penal de 1890

O Código Penal de 1890, conhecido como Código Penal Republicano, trouxe duas inovações: uma se refere às penas, que foram diminuídas. Nesse sentido, se o agressor estuprasse uma mulher honesta, sua pena seria de um a seis anos, do contrário, sua pena seria de seis meses a dois anos.

Além disso, o conceito de mulher honesta não mais tem como referência a virgindade ou sua ausência, e sim se a mulher era, de um lado, “honesta”, ou de outro, “pública” ou “prostituta”. Assim dispõe o artigo 268 do código penal de 1980:

Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta:

Pena – de prisão cellular por um a seis annos.

§ 1º Si a estuprada for mulher publica ou prostituta:

Pena – de prisão cellular por seis mezes a dousannos.

Com isso, já se pode constatar uma pequena evolução da legislação, pois a honra da mulher não mais se limitaria à sua liberdade sexual. Importante salientar que o próprio Código trouxe a definição do crime de estupro no seu artigo 269: “Chama-se estupro o ato pelo qual o homem abusa com violência de uma mulher, seja virgem ou não.” Dessa forma, seria incriminado aquele que cometesse qualquer tipo de violência, que interferisse nas faculdades psíquicas da mulher, não mais interessando se era virgem ou não para fins de honra. Ainda assim, apenas a mulher poderia ser figurada no polo passivo.

1.1.3 Código  Penal de 1940

O Código Penal de 1940 não trouxe grandes inovações aos crimes sexuais, tendo em vista que, como os códigos anteriores, apenas a mulher poderia ser vítima do crime, assim como ainda havia a diferenciação entre mulheres honestas e não honestas. Expõe o artigo 213 do referido Código:

Art. 213 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:

Pena - reclusão, de três a oito anos.

Parágrafo único. Se a ofendida é menor de catorze anos.

Pena - reclusão de quatro a dez anos

No entanto, o agravante de pena que se daria se a mulher fosse menor de dezesseis anos, foi alterado, no sentido de que, nesse Código, se a mesma fosse menor de quatorze anos, o autor já teria esse aumento de pena. Para os demais crimes sexuais não abrangidos pelo artigo definido acima, eram encaixados como atentado violento ao pudor no artigo 214, senão vejamos:

Art. 214 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:

Pena - reclusão de dois a sete anos. 

Parágrafo único. Se o ofendido é menor de catorze anos:

Pena - reclusão de três a nove anos.

Com isso, percebe-se que a legislação ainda trazia diferenciações com relação ao crime de estupro, pois a conjunção carnal era denominada como o núcleo subjetivo do tipo, e somente com a conjunção carnal se obteria o crime de estupro propriamente dito.

1.1.4 Alterações trazidas pela Lei 12.015 de 2009

Como se sabe, o Código Penal de 1940 está em vigor hodiernamente. No entanto, sofreu grandes modificações.Dentre elas, a que mais trouxe alterações foi a Lei nº 12.015 de 2009, a qual modificou e alterou os crimes contra os costumes, hoje denominadoscrimes contra a dignidade sexual.

A grande mudança já começa no que se refere ao polo passivo desse crime, que não será enquadrado apenas com mulheres, mas também abrange homens, e as relações homoafetivas. Sendo modificado o termo constranger “mulheres” por constranger “alguém”. Como expõe o artigo 213 do código penal vigente.

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

Além disso, a honra da mulher já não é mais questionada, tendo em vista que não se aceita penalidade mais branda para a pessoa que agredir sexualmente a prostituta. Com isso, a mesma pode recusar-se a ter relações com qualquer pessoa, ou estabelecer limites para o ato, mesmo estando em serviço.

Além disso, houve uma unificação entre o estupro e o atentado ao pudor, se tornando uma só figura delitiva. Através dessa nova definição consagra um crime de conteúdo variado, onde o agente comete duas condutas, mas comete apenas um crime, sendo excluído assim o concurso de crimes.

Por fim, vale ressaltar que surge também, através dessas modificações, a figura do estupro de vulnerável, o qual trouxe uma proteção maior a menores de quatorze anos. Foram incluídos como vulneráveis: menores de quatorze anos,deficientes mentais e quem, por alguma enfermidade, não tem capacidade de discernimento para a prática do ato sexual e que não esteja em condições de oferecer resistência, conforme o artigo 217-A do Código Penal vigente:

Art. 217-A Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

É notório que a lei 12.015 trouxe alterações importantes para a legislação vigente, como proteção de menores de quatorze anos, deficientes mentais, e quem, por alguma enfermidade, não tem capacidade de discernimento para a prática do ato sexual.

Além disso, passou a “descoisificar” a figura da mulher, não mais trazendo divisões no que se refere à sua honra, e passou a tratar o estupro não mais como uma afronta ao homem, pai ou marido, e sim como um ataque à dignidade e à liberdade sexual da vítima.

Com isso, o polo passivo passa a ser ocupado por outras figuras como o homem e os relacionamentos homoafetivos. Tais modificações puderam trazer uma maior segurança às mulheres que em legislações mais antigas não obtinham reconhecimento e liberdade sexual.

Além de entender como o crime de estupro se dava nas legislações mais antigas e a sua consequente evolução, é importante saber os aspectos que estavam por trás dessas evoluções: ou seja, como as mulheres conseguiram ter seus direitos reconhecidos para que não mais fossem tratadas como propriedades. Com isso, faz-se necessário compreender a luta das mulheres por direitos, que serão abordadas em seguida.

1.2 Aspectos históricos sobre a luta feminista no Brasil

Como se sabe, as mulheres sofreram diversas discriminações e repressões ao longo dos anos, de forma que eram submetidas à figura masculina, representadas pelo pai (pater família), irmãos e marido, não possuindo direito algum de manifestarem suas escolhas e/ou ideias. Sendo assim, educação, política, direito à vida, direito ao divórcio e acesso ao mercado de trabalho eram inexistentes para a mulher.

A posição submissa imposta à mulher, historicamente, não foi aceita sem resistência; aliás, vale salientar como se deu o movimento de luta e enfrentamento, até chegar a tempos hodiernos,conforme veremos adiante.

Na época do império (1822-1889), foi através de Nísia Floresta (Dionísia Gonçalves Pin, 1810-1885), fundadora da primeira escola para mulheres no Brasil e ativista na emancipação feminina que o direito à educação começou a ser reconhecido para as mulheres e ainda assim de forma limitada, pois muitas vezes eram impedidas de estudar pelo seu pai ou marido (MATUOKA, 2017).

Percebem-se as consequências trazidas pela desigualdade de gênero. As mulheres eram impedidas de estudar para que sempre se mantivessem em pé de desigualdade, nesse caso, intelectual, com relação aos homens. No entanto, como já exposto, não era apenas na seara da educação que as mulheres possuíam limitações. No que tange aos direitos políticos, é importante frisar que, somente em meados do século XIX, através do movimento sufragista, as mesmas puderam ter direito ao voto.

De forma específica, no Brasil, esse direito foi aprovado em 1932, fruto da luta liderada por Bertha Lutz, fundadora da Fundação Brasileira pelo Progresso Feministae concretizado em 1933. Ocorre que esse período foi marcado por intensas manifestações, impulsionados por um momento peculiar na história: a Proclamação da República, em novembro de 1889. O republicanismo era marcado por ideias abolicionistas e de igualdade, o que chamou a atenção de diversas mulheres que apoiaram o movimento republicano (SALAMANDRA,2015).

Após anos de reivindicações, cerca de quatro décadas e discussões, as mulheres conquistaram o direito de votar e serem eleitas para cargos no executivo e legislativo. Essas reivindicações feministas demandavam um status de igualdade, pois os homens sempre estavam à frente das mulheres no que se refere aos direitos e as mulheres desejavam chegar à mesma posição jurídica e social dos homens.

Além da luta pela educação e direitos políticos, houve também a luta pela inserção das mulheres no mercado de trabalho, posto que em tempos remotos estas só podiam se ocupar com as tarefas tradicionais determinadas pelo sistema patriarcal, como procriar, educar os filhos, seremboasesposas e dona de casa.

Foi durante as greves realizadas em 1907, intitulada “greve das costureiras”, e em 1917, com influência dos imigrantes europeus (espanhóis e italianos) e de inspirações anarcossindicalistas, que algumas mudanças passam a ocorrer. Na pauta estava a melhoria de condições de trabalho em fábricas, em sua maioria têxtil, onde predominava a força de trabalho feminina. As demandas dos movimentos que resultaram nessas paralisações eram: a regularização do trabalho feminino, a abolição de trabalho noturno e a jornada de oito horas para as mulheres, tendo em vista que as jornadas eram extenuantes, perdurando até 14 (quatorze) horas diárias(FAHS,2018).

Nesse mesmo ano, 1917, foi aprovada a resolução para salário igualitário pela Conferência do Conselho Feminino da Organização Internacional do Trabalho e a aceitação de mulheres no serviço público. Garantiu-se, dessa forma, mais uma conquista para as mulheres, pois agora poderiam estender suas atividades e garantir salários mensais sem depender exclusivamente de seus pais ou maridos.

Por fim, vale ressaltar a conquista das mulheres no que se refere ao direito ao divórcio. Como já elucidado ao longo do texto, as mulheres eram tidas como propriedade de seus maridos, devendo-lhes obediência e não podendo ultrapassar as fronteiras de suas atividades tradicionais. Além disso, aquelas que não conseguissem manter o casamento eram chamadas de “desquitadas” que possuía o mesmo significado de “mulher sem honra” ou “sem moral”, sendo renegadas pela sociedade. Com o advento da Emenda Constitucional número 9, em 1977, o divórcio passa a ser instituído no Brasil. Ainda assim, a mulher só poderia casar-se novamente uma vez.

O direito de divorciar e recasar quantas vezes quisesse só foi garantido a partir da Constituição Federal de 1988, onde a mulher não mais se sentiu obrigada a conviver com outra pessoa. Nesse sentido, dispõe a autora Nogueira (2001) sobre o movimento feminista:

A emancipação das mulheres de um estatuto civil dependente e subordinado, e a reivindicação pela sua incorporação no estado moderno industrializado como cidadãs nos mesmos termos que os homens foram as preocupações centrais deste período da história do feminismo. Podem-se considerar como principais causas (históricas, políticas e sociais) desencadeadoras do feminismo, a revolução Industrial, num primeiro momento, e as duas grandes guerras num segundo momento. As principais reivindicações desta vaga foram essencialmente pelo direito ao voto, pelo qual o movimento sufragista se caracterizou, e pelo acesso ao estatuto de ‘sujeito jurídico’.

Portanto, foram necessários diversos embates para que as mulheres conseguissem elevar seu status jurídico e social, tendo em vista que, antes de suas conquistas, as mesmas não possuíam direito a um dos pilares mais básicos, que é a educação. Esse enfrentamento trouxe avanços, que, embora árduos e lentos, foi essencial para a consolidação da mulher, garantindo os direitos que lhes são fundamentais.

1.3 Os direitos sobre o corpo e conquistas dos movimentos feministas

No cenário mundial, o feminismo é um movimento social que busca a emancipação da mulher, especificamente no que se refere à dominação do homem com a mesma, fruto do machismo (MARQUES, 2015). Busca-se, com esse movimento, combater os preconceitos sofridos pelas mulheres, lutando por uma sociedade mais igualitária. Foi a partir do século XIX que as mulheres passaram a fazer reivindicações pelos seus direitos, sendo criada, nessa época. a Fundação Brasileira pelo Progresso Feminista, tendo Bertha Lutz como fundadora.

Nesse contexto, mulheres se reuniam criando associações e grupos de reflexões, nas quais eram discutidas suas angústias e problemas até então individuais, passando a tornar-se questões coletivas e, logo após, questões públicas. Nessas reuniões o foco da questão girava em torno de problemas como a violência sexual e familiar contra a mulher. Entre as demandas, se alegava ser um tema que deveria ser publicamente discutido e solucionado, tendo em vista a gravidade da sua natureza, muito embora fosse culturalmente tratado como um problema restrito ao âmbito doméstico(ALVES,1985).

Logo quando se depararam com a luta que teriam pela frente, as mulheres passaram a fortalecer ainda mais esses movimentos, e tiveram como primeira manifestação a “marcha das vadias” ocorrida no Canadá, especificamente na cidade de Toronto em 2011.

Esse movimento teve como enfoque o pensamento que transfere a culpa da agressão sexual para a vítima, insinuando que, de alguma forma, é a vítima que provoca o ataque ao usar vestes estimulantes e se comportarem de modo que chamem a atenção do agressor.

A finalidade do movimento foi demonstrar que nenhuma mulher deve ser rotulada pelas roupas que usa, bem como ser denominada culpada em um crime dessa natureza. Embora ainda não se tenha alcançado uma igualdade de fato com relação aos homens, houve progresso para as mulheres a partir dos movimentos feministas. A dominação total da figura masculina sobre a feminina tem sido enfrentada, tendo em vista, que as mulheres têm avançado na problematização de suas reais demandas e na conquistapordireitos(PINHEIRO,2012).

Outro fator de importante destaque refere-se ao fato de a própria Constituição de 1988 prever, em seu artigo 5º, inciso I, que homens e mulheres devem ser tratados de maneira igual, sem distinção de natureza.

Art.5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição

Assim sendo, é constitucionalmente previsto nas legislações brasileiras a igualdade de gênero e de direitos, devendo receber de todos um tratamento material igualitário. A atividade política e teórica do movimento feminista foi demonstrada eficiente para alterar o status jurídico da mulher.

Fora a legislação interna referente aos direitos fundamentais, existem documentos internacionais que coadunam com os ideais de igualdade referente às mulheres. Nesse sentido, o apoio da ONU aosdireitos das mulherescomeçou com a Carta da Organização.No artigo primeiro da referida Carta, está entre seus preceitos:

conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.

Além disso, no dia 2 de julho de 2010, a Assembleia Geral da ONU criou um órgão denominado Entidade da ONU para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres, ou ONU Mulheres, encarregado de acelerar os progressos para alcançar a igualdade de gênero e fortalecer a autonomia das mulheres, o qual começou a funcionar no dia 1 de janeiro de 2011.

Portanto, além do âmbito interno, as lutas feministas também ganham apoio na seara internacional, fazendo com que se tenha maior notoriedade e força diante do cenário centrado na figura masculina. Esse reconhecimento em âmbito internacional demonstra como a sociedade está evoluindo, pois a figura da mulher está sendo desvinculada da figura do homem como sua subordinada, e passando por um olhar de independência, por meio do qual lhe é possível exercer os seus direitos sem que precise de autorização de um terceiro, caracterizando uma grande evolução e trazendo força ao feminismo. Afinal, é através de suas lutas, e do empoderamento feminino, que as mulheres conseguem cada vez mais espaço em locais em que, antes, a figura feminina era quase inexistentes.


2.O ESTUPRO SOB O PRISMA DA VITIMOLOGIA: A VÍTIMA CULPABILIZADA E SOBREVITIMIZADA

O Direito, de forma geral, é uma área na qual são analisadas diversas vertentes, doutrinas e princípios. A Criminologia, por exemplo, que é um dos ramos do Direito, se dispõe a analisar o perfil dos criminosos e as possíveis motivações que o fizeram praticar um delito(PISSUTO,2014).

No entanto, foi em 1945, através de Benjamin Mendelsohn, advogado e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, que a vítima passou a ser analisada como uma possível provocadora do agente, sendo levadas em consideração atitudes ou mesmo vestimentas que possivelmente possam ter levado o agressor a cometer tal fato. No ano de 1947 Mendelsohn proferiu uma conferência na Universidade de Bucareste, intitulada “Um novo Horizonte na Ciência Biopsicossocial – a Vitimologia”.

Este é considerado o marco inaugural da ciência que estuda o papel da vítima no crime, denominada vitimologia. O pai da vitimologia defende que a vítima não deve ser considerada como mero sujeito passivo de um crime. Ao contrário, ela deve ser estudada tanto quanto o criminoso. Com isso, a vítima passa a ser analisada em seus comportamentos que antecedem o crime (JORGE,2012).

Antes do surgimento da Vitimologia, o Direito Penal analisava o crime somente sob o trinômio delinquente-pena-crime.Seus estudos tinham como centro observar a figura do sujeito ativo.Com a Vitimologia, foi percebido que era necessário entender não só o autor, como também a figura da vítima.

A história dos estudos sobre a vítima pode ser dividida em três fases: a primeira fase, que se deu logo após o holocausto, conhecida como “fase da vingança privada e da justiça privada”, era aquela em que os que sofriam um delito podiam se utilizar da autotutela para resolvê-lo.

Através da força, advinda do seu próprio punho, a vítima resolveria o conflito, na medida da sua compensação ou vingança, possuindo discricionariedade com relação à forma com que resolveriam o conflito. Esse meio de resolução de conflitos tinha o objetivo de trazer uma satisfação pessoal ao ofendido, assim como trazer novamente sensação de segurança e paz à coletividade. Dessa forma, o agressor poderia perder seus bens materiais, e em circunstâncias mais graves, ser morto.

Com o decorrer dos tempos e a consequente evolução política e uma nova forma de organização social, a vingança privada não era mais suficiente como um meio efetivo de resolução de conflitos, fazendo com que este paradigma fosse abandonado.Nessa segunda fase, onde o Direito Penal começou a ser tratado como matéria de ordem pública e a administração da justiça passou a ser sua responsabilidade. A vítima passa então a ser tratada em segundo plano, saindo dos centros das atenções e aderindo a uma posição periférica. Nesse sentido, Gomes e Molina (2000) comentam:

O abandono da vítima do delito é um fato incontestável que se manifesta em todos os âmbitos: no Direito Penal (material e processual), na Política Criminal, na Política Social, nas próprias ciências criminológicas. Desde o campo da Sociologia e da Psicologia social, diversos autores têm denunciado esse abandono: o Direito Penal contemporâneo – advertem – acha-se unilateral e equivocadamente voltado para a pessoa do infrator, relegando a vítima a uma posição marginal, no âmbito da previsão social e do Direto civil material e processual.

Por fim, a terceira, e atual fase da vítima,aparece logo após a Segunda Guerra Mundial, onde foram presenciadas pela sociedade diversas atrocidades em face dos judeus nos campos de concentração nazistas. Surge a Vitimologia, então encarregada de realizar a referida redescoberta, pois passou a estudar os motivos que levaram o sistema penal a relegar as vítimas ao esquecimento, e quais as razões de ela não poder ser enquadrada no rol dos sujeitos de direitos, prerrogativa esta concedida aos acusados.(EVERTON JUNIOR, 2012).

Após compreender o fenômeno de como a vítima foi tendo relevância sob uma perspectiva científica, necessário se faz expor o conceito de vítima. Na mitologia, a vítima era aquele ser vivo,seja humano ou animal, que se submetia ou era submetido a sacrifícios para satisfazer o desejo dos deuses, e evitar a ira ou possíveis desgraças advindas dos mesmos, sendo esse sentido denominado originário ou histórico.

A conceituação originária está distante da noção contemporânea acerca da vítima, tendo em vista que o direito tem como escopo proteger os bens juridicamente tutelados, não podendo os animais serem classificados como vítimas. Em tempos hodiernos, vítima, para o Direito, é aquela pessoa, seja física ou jurídica, que sofre lesão ou ameaça de lesão a um bem jurídico ao qual lhe pertença, dessa forma causando-lhe algum dano efetivo, sendo essas denominadas pela doutrina como sujeito passivo, lesado ou ofendido.

Há, ainda, a vítima denominada difusa, ou seja, decorrentes de crimes em que não é possível denominar o sujeito que está sofrendo determinada lesão, como por exemplo, em crimes ambientais, tráfico de entorpecentes e crime organizado. Oliveira (2015) conceitua vitimologia como:

Estudo do comportamento da vítima frente à lei, através de seus componentes biossociológicos e psicológicos, visando apurar as condições em que o indivíduo pode apresentar tendência a ser vítima de uma terceira pessoa ou de processos decorrentes dos seus próprios atos.

A palavra vítima, de um modo generalizado, segundoBittencourt (1974)“serve hoje para designar a pessoa que sucumbe, ou que sofre as consequências de um ato, de um fato ou de um acidente.”

Com isso, entende-se que a Vitimologia tem grande importância no que se refere ao estudo do sujeito passivo de um crime, tendo como principal premissa a análise da vítima para caracterizar a influência que a mesma possuiu em determinada infração penal sofrida.

2.1 Iter Victimae

No Direito Penal, existe o estudo do iter criminis, ou seja, as etapas necessárias para saber se o crime foi tentado ou consumado ou, até mesmo, se não produziu nenhum efeito a título de ensejar sanções penais. De forma sucinta, essas etapas são divididas em: (1ª) cogitação, em que a ideia ainda está na mente do sujeito; (2ª) atos preparatórios, onde o sujeito se prepara para praticar um delito; (3ª) atos executórios, o sujeito inicia o crime, e, por fim, (4ª) a consumação, onde o indivíduo finaliza todas as etapas do iter criminis.

Seguindo pela mesma linha de raciocínio, a Vitimologia possui a denominada iter victimae, que tem como fundamento estudar as características próprias existentes nas vítimas. Nela serão abordadas as fases necessárias para que uma pessoa seja considerada sujeito passivo de uma relação criminosa, tendo em vista as classificações, estudos e entendimentos dos estudiosos do tema. Neste sentido, “iter victimaeé o caminho, interno e externo, que segue um indivíduo para se converter em vítima, o conjunto de etapas que se operam cronologicamente no desenvolvimento de vitimização” (OLIVEIRA apud NOGUEIRA, 2004).

Para Spolon e Viana, a doutrina majoritária considera que o iter victimae possui cinco fases, sendo elas:

  1. A intuição: a vítima tem a ideia na mente de que talvez possa ser prejudicada ou que irá sofrer uma agressão iminente.
  2. Atos preparatórios ou conatusremotus: esta fase ocorre ainda dentro da mente da vítima, quando ela busca meios para livrar-se da possível agressão que irá sofrer, ou seja,passa a desenvolver ideias e/ou projetos com o objetivo de não ser agredida.
  3. Início da execução ou conatusproximus: é o início da defesa da vítima, onde ela se utilizará dos meios que obtiver para sua defesa, ou apenas irá cooperar com o seu agressor, para evitar uma possível agressão ou até mesmo sua morte.
  4. Execução: A vítima exerce completamente os atos de defesa que praticou no conatusproximus, resistindo à ação ou facilitando os meios para não ser prejudicada.
  5. Consumação ou conclusão: É o resultado do ato delitivo. Ele pode ser consumado ou não, a depender de qual foi aposição tomada pela vítima na fase da execução, qual o crime cometido, a maneira como o delito foi conduzido, além de outros fatores externos.

É importante analisar individualmente as referidas fases do iter victimae, pois o seu enquadramento como vítima está intimamente ligado à postura que se aderiu nas fases supracitadas.

2.2 Classificações das vítimas

Existem algumas conceituações sobre cada tipo de vítima. Nesse caso, a conceituação utilizada será a de Benjamim Mendelsohn, pois sua forma de classificar as vítimas possui maior aceitação e facilidade de entendimento.

            Entende-se que “vítima” é um gênero do qual decorrem diversas espécies, ou seja, classificações diferenciadoras. Benjamin Mendelsohn, considerado o pai da vitimologia, classifica as vítimas da seguinte maneira:

  1. Vítima de culpabilidade menor ou por ignorância: Ocorre quando a vítima, de forma involuntária ou por meio de um ato pouco reflexivo, se impulsiona frente ao delito e causa sua própria vitimização.
  2. Vítima tão culpável como o infrator ou vítima voluntária: São aquelas que põem em risco a própria vida.
  3. Vítima unicamente culpável: pode ser dividida em:
  1. Vítima infratora: consiste no fato em que o agressor reage a uma agressão atual ou iminente da vítima, ou seja, o mesmo age em legítima defesa. Nesse caso, o agressor está acobertado por uma excludente de ilicitude.A vítima é a única culpada por ter dado causa ao crime.
  2. Vítima simuladora: É aquela que premedita e de forma irresponsável joga a culpa integral ao acusado.
  1. Vítima mais culpável que o infrator. Se subdivide em:
  1. Vítima provocadora:É aquela que através da sua própria conduta estimula o agressor a cometer o delito contra ela. Algumas correntes defendem que mulheres que sofrem estupro, estão caracterizadas como vítimas provocadoras, no entanto, tal afirmativa será rebatida nas linhas posteriores.
  2. Vítima por imprudência:É a que designa o acidente pela própria falta de cuidado.
  1. Vítima completamente inocente ou vítima ideal: É aquela que é absolutamente independente do evento criminoso, ou seja, não houve nenhuma contribuição do sujeito para que aquela infração ocorresse, a culpa é inteiramente do agressor.

Ao contrário do que expõe a espécie de vítima provocadora, as vítimas completamente inocentes sofrem o delito por um criminoso que o comete de forma imoral, sem razões aparentes. O pressuposto central deste trabalho é que este é o caso de todas as mulheres que sofrem o crime de estupro. Igualmente ponto central neste trabalho é a demonstração de que não é consenso no meio jurídico que todas as vítimas de estupro são inocentes. Ao contrário, é recorrente o argumento de que a depender das vestimentas ou do modo de agir da vítima, ela se enquadra como mais culpável do que o agressor, ou seja, como provocadora do crime.

Quando se culpa a vítima como provocadora por causa de suas vestimentas ou trejeitos, recorre-se a um argumento arbitrário, isto é, a preceitos machistas e patriarcais que ditam como a mulher pode ou não se portar. Quando a sociedade ou mesmo o judiciário recorre a este recurso argumentativo, está se regredindo a pensamentos arcaicos, em que a mulher é vista como propriedade do homem.

Por essa razão, defende-se, neste estudo, que o autor do crime de estupro deve ser punido rigorosamente, uma vez que ele é o único culpado pelo crime que perpetra, jamais dividindo essa culpabilidade com a vítima.Nesse sentido, a pena deve ser aplicada conforme o artigo 59 do Código Penal.

Vale ressaltar uma incongruência exposta no caput do artigo 59:

Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) (grifo nosso)

Em crimes onde a vítima é completamente inocente ou ideal, como no caso de estupro, não há que se falar em comportamento da vítima, pois, como é sabido não há contribuição nenhuma da vítima no referido crime. É necessário que se relativize tal dispositivo para que, em casos de estupro, o critério “comportamento da vítima” para fins de decisão sejam extintos, sendo analisada somente a figura do agressor.

2.3 Graus de vitimização

Além das etapas que elencam a forma como o agente passa a ser efetivamente vítima e as classificações que as qualificam como vítima, existe também na Vitimologia a análise dos prejuízos e sofrimentos causados ao sujeito passivo após o sofrimento de determinado delito.Com isso, para desenvolver um dos objetivos propostos neste estudo, serão expostas as fases da vitimização.

Para Spolon (2015),a vitimização primária é aquela sofrida diretamente e instantaneamente pela vítima e que tem como consequência no padecente a dor e o sofrimento. Tem-se como o exemplo máximo os casos de mulheres que além de sofrerem o estupro, acabam engravidando do seu agressor.

Existe também a vitimização secundária ou sobrevitimização, que consiste nos sofrimentos/danos e prejuízos causados a vítima por terceiros no momento em que a mesma leva os fatos ao conhecimento dos órgãos públicos, ou seja, para a delegacia, Ministério Público ou mesmo diretamente ao magistrado. O nome sobrevitimização é dado pelo fato de que no momento que a vítima expõe o que sofreu, recebe uma reprovabilidade da sociedade que passam a olhar de maneira diferente para a mesma, ao invés de fazerem justiça.

A vitimização secundária, no caso do estupro, é consequência precisamente desse recurso argumentativo que foi problematizado anteriormente: o discurso que culpabiliza o mártir pela violência que sofreu.Pode ser ressaltado mais uma vez que, no caso das vítimas de estupro, a vitimização secundária ocorre com frequência, justamente pela culpabilização da pessoa que passa por sofrimentos. Um caso concreto de repercussão nacional ilustra esta afirmação.

Em 2012, os integrantes de uma banda de pagode chamada “New Hit”, foram condenados por estuprar duas meninas de 16 anos. O estupro teria ocorrido após os músicos receberem as jovens para sessão de fotos no ônibus da banda.

Uma reportagem denuncia a presença do discurso que culpabiliza a vítima.

Ocorre que, há quem condene veementemente o suposto crime, assim como existem pessoas que culpam as jovens pelo que supostamente aconteceu, devido ao possível traje ou comportamento mais ousado. (grifo nosso)

Dessa forma, é visto, socialmente, comos se, de fato, há espaço para a vitimização secundária, pois as vítimas são tratadas como provocadoras. Como já foi exposto, as vítimas de estupro são absolutamente independentes do evento criminoso, nada tendo de culpa no evento delituoso.

Nessa seara, cumpre salientar que, em decorrência dessa reprovação social, tem-se como consequência a ocultação da notificação dos crimes, que, no Direito Penal é conhecida como o fenômeno da cifra oculta.Os crimes ocorrem, mas muitas vezes as vítimas deixam de levar ao conhecimento do Estado, para não sofrerem as consequências da vitimização secundária. Segundo Fernandes (1995):

Muitas vezes a vítima é vista com desconfiança, as suas palavras não merecem logo de início, crédito, mormente em determinados crimes como os sexuais. Deve prestar declarações desagradáveis. Se o fato é rumoroso, há grande publicidade em torno dela, sendo fotografada, inquirida, analisada em sua vida anterior. As atenções maiores são voltadas para o réu. Isso gera o fenômeno que os estudos recentes têm chamado de vitimização secundária do ofendido.”

Com isso, as vítimas de estupro se sentem desmotivadas em denunciar o crime sofrido e acabam por tornar o agressor impune e, por consequência, sofrem os efeitos físicos e psicológicos do crime durante toda a sua vida.

Já no que se refere à vitimização terciária, a vítima, mais uma vez, sofrerá danos, só que nesse caso, pela sua família e amigos.Seu sofrimento passa a ser no âmbito interno, no meio social onde vive, pois ao invés de obter apoio e amparo, esses acabam provocando um maior sofrimento, pois ao invés de ampará-la, passam a julgá-la como vítima provocadora.

Assim, a vitimização terciária ocorrerá dentro do meio social no qual a vítima está inserida, incluindo-se, dentro deste, sua própria família, amigos, grupo de estudo ou lugar de trabalho, entidade religiosa da qual faz parte, entre outros (BARROS, 2008)

Desta feita, vítimas de estupro sofrerão mais uma vez as consequências multiplicadas, pois muitas das vezes, as próprias pessoas da família se utilizam de pensamentos machistas e julgam o comportamento da vítima como provocador e causador do crime. Esse fato acaba trazendo um teor ainda mais desmotivante para que a vítima efetue denúncias contra o agressor, pois o que se espera ao sofrer esse delito de natureza cruel, é que, pelo menos a família, esteja ao lado da vítima, lhe trazendo acolhimento e formas para que o trauma seja amenizado, como: levar a vítima urgentemente ao psicólogo, envolve-la de forma mais efetiva no seio familiar, assim como entre os amigos, dentre outras medidas que assegurem um ambiente onde a vítima se sinta respeitada, e deixe mais distante a situação a que foi exposta anteriormente. 

Portanto, conclui-se que a família possui um papel fundamental na vida da vítima quando essa sofre o delito de estupro, não devendo essa instituição se valer de preceitos androcentricos, e julgamentos que façam com que a vítima se sinta rebaixada e culpada, porquanto, na verdade, o Estupro é um crime de natureza reprovável, que irá acarretar danos, não só físicos, como também psicológicos, na vida de quem figurar no pólo passivo do crime, que, como já exposto, é composto em sua maioria por mulheres.


3 ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES EM DECISÕES DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL CEARENTE ACERCA DO ESTUPRO

Como foi exposto no decorrer dos capítulos anteriores, resta demonstrado que o movimento de mulheres percorreu uma longa trajetória para que seus direitos fossem reconhecidos. Pois, como visto, as legislações penalistas mais antigas traziam em seu bojo conteúdos androcentrados, de dominação masculina, e consequente desvalorização da figura da mulher, fazendo com que as mesmas fossem divididas em classes de mulheres com honra e sem honra. Nesse sentido, inicialmente se faz necessário abrir um tópico no presente capítulo com uma breve problematização do valor probatório da palavra da vítima em julgamentos de crimes sexuais.

Em seguida, ainda neste capítulo, será apresentada a análise do texto e as representações de notícias que trazem processos que foram julgados pelo Sistema de Justiça Criminal Cearense. Sendo importante trazer à tona o conceito de representações.

3.1 Valor probatório da palavra da vítima em crimes sexuais

Como se sabe, a instrução probatória é de suma importância em todos os âmbitos do Direito, pois é através das provas que o juiz consegue fundamentarsuas decisões, concretizando de maneira hábil suas convicções. A palavra prova é apenas o gênero de onde decorrem algumas espécies, quais sejam: depoimento pessoal, prova pericial, testemunhal, documental, dentre outras. Cada tipo penal trará suas particularidades inerentes, as quais ensejarão o tipo de prova mais adequado(SPERANDIO, 2017).

Nesse sentido, se faz grande destaque à palavra da vítima no que se refere aos crimes contra a dignidade sexual, tendo a palavra do ofendido uma valoração diferente com relação aos demais crimes, objetivando-se com isso, uma satisfatória aplicação do Direito Penal, sem que haja implicação de prejuízo aos interesses do acusado. Assim sustenta Grego Filho:

Evidentemente, para que o sujeito ativo que praticou crimes contra a dignidade sexual seja condenado, é indispensável a comprovação da autoria e materialidade do delito, para que assim o magistrado possa avaliar as provas e julgar a ação procedente ou improcedente, aplicando-se o direito ao caso concreto.

Os crimes sexuais tanto podem ser comprovados por documentos, através de vídeos e laudos psicológicos, como também por exame de corpo de delito. O que ocorre é que no primeiro caso, por exemplo, é muito difícil para a vítima conseguir provas documentais. Isto porque, em decorrência da própria natureza do delito, o fato normalmente ocorre de forma sorrateira, às escondidas, tornando quase impossível para a vítima que essa comprove a materialidade do fato através de documentos.

No segundo caso, por exame de corpo de delito, se vê uma maior efetividade com relação ao primeiro tipo de prova. Nesse sentido, reza o artigo 158 do código de processo penal: “Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.”Os exames de corpo de delito que normalmente são utilizados quando há emprego de violência, são divididos em: Exame de Conjunção Carnal, Exame de Ato Libidinoso e Exame de Pesquisa de Espermatozoides, além do Exame de Lesão Corporal. Contudo, não é sempre que esses crimes deixam vestígios, mesmo com realização dos exames citados, fatores como: decurso de tempo, peculiaridades físicas ou psíquicas ou, até mesmo uma característica própria do abuso realizado, podem fazer com que um dos referidos exames não possuam efetividade. Nesse caso, o artigo 168, § 3 do Código de Processo Penal, tenta suprir em seu conteúdo casos em que não se possa comprovar o crime através do exame de corpo de delito: “§ 3º A falta de exame complementar poderá ser suprida pela prova testemunhal.”

O STJ sustenta, em seu agravo regimental:

A ausência de laudo pericial conclusivo não afasta a caracterização de estupro, porquanto a palavra da vítima tem validade probante, em particular nessa forma clandestina de delito, por meio do qual não se verificam, com facilidade, testemunhas ou vestígios. (AgRg no AREsp 160961/PI, 6ª T., rel. Sebastião Reis Júnior, 26.086.2012, v.u.).

Nesse mesmo sentido, Tourinho Filho (2013) assevera que:

Nos crimes contra a liberdade sexual, e.g., a palavra da ofendida constitui o vértice de todas as provas. Na verdade, se assim não fosse, dificilmente alguém seria condenado como corruptor, estuprador etc., uma vez que a natureza mesma dessas infrações está a indicar não poderem ser praticadas à vista de outrem.

Consideradas essas peculiaridades, vale ressaltar que até mesmo uma clara evidência médica de abuso sexual muitas vezes ainda não constitui prova forense no que se refere à pessoa que cometeu o abuso. Portanto, a prova documental e o exame de corpo de delito podem não ser totalmente efetivos para comprovação de um crime de estupro, tendo a palavra da vítima efetivo valor probatório, sendo valorada de modo diferenciado em crimes contra dignidade sexual.

3.2 Elementos que aumentam a confiabilidade da palavra da vítima

Os crimes contra a dignidade sexual são delitos que carregam um forte e negativo estigma social, tanto para o agressor como para a vítima. Como já demonstrado em capítulos anteriores, a sociedade pode trazer consequências psicológicas maiores para a vítima em decorrência de preceitos androcentrados, que culminam na atribuição da culpabilidade ao sujeito passivo. Por essa razão, admite-se uma maior credibilidade ao meio de prova isolado para o depoimento da vítima de estupro. No entanto, não é tão somente a prova isolada que vinculará o juiz ao depoimento. Essa última deve conter verossimilhança e linearidade ante os fatos narrados, sendo analisada também a fidedignidade de quem prestou o depoimento.

É válido ressaltar que são quase inexistentes casos em que a vítima mente para prejudicar o agressor, pois como já dito, não são poucas as consequências advindas do fato, são lastros que podem perdurar por toda vida. Outro quesito que deve ser levado em conta é a firmeza exposta pela vítima em suas palavras, narrando um fato verossímil e sem contradições. Nesse sentido, sustenta Bittencourt (1971):

Elemento importante para o crédito da palavra da vítima é o modo firme com que presta suas declarações. Aceita-se a palavra da vítima, quando suas declarações ‘são de impressionante firmeza, acusando sempre o réu e de forma inabalável’ (RT. 195-355)

A convicção da vítima termina por aumentar a credibilidade do depoimento. Ao final cabe ao juiz através do seu livre convencimento e tendo por base esses conhecimentos sobre a palavra da vítima em crimes sexuais, decidir sobre o julgamento final do processo.

Fernandes (1995) traz considerações acerca do livre convencimento do juiz:

Por certo, em um sistema onde vigora o livre convencimento motivado do magistrado, este não está sujeito a regras e valores previamente determinados em relação às provas, podendo, por esta razão, a palavra do ofendido por vezes, convencê-lo mais do que as de uma testemunha.

Portanto, a palavra da vítima aliada aos fatores citados possuem tratamento diferenciado no que se refere aos crimes contra dignidade sexual, pois se sabe que é uma situação que causa constrangimento e diversas consequências nefastas para a vítima, fazendo com que se atribua credibilidade no que a mesma expõe. Importa salientar que tal valoração não fere as garantias do acusado, pois a palavra da vítima deve ser criteriosamente analisada, através da verossimilhança e linearidade com os fatos, com especial atenção a possíveis desarmonias, para que assim seja aplicado o critério de especialidade nos crimes contra dignidade sexual.

Com isso, após conhecer o valor probatório que a palavra da vítima possui nos crimes de estupro, serão analisados processos da Justiça Estadual do Ceará, se atentando às representações do judiciário no que se refere aos crimes de estupro.

3.3 Representações Sociais: uma breve conceituação

Para que se entenda melhor a titularização do presente trabalho, é importante salientar o que se entende por representações e de que forma será apresentada nos seguintes tópicos. O termo representações sociais tem como fundador o psicólogo social Serge Moscovici, seu objetivo era ser aplicado na psicanálise e em todas as áreas de conhecimento. Segundo Moscovici (2007) “Representações Sociais são teorias emanadas do senso comum, as quais estão presentes na vida cotidiana, nas relações entre os indivíduos e nos meios de comunicação.” Ou seja, são representadas por um grupo de pessoas no qual cada individuo se comunica por meio do seu conhecimento, opiniões, crenças e ideias referentes a um determinado assunto.  Dessa forma, o presente trabalho traz as representações as quais o judiciário Cearense possui no que se refere ao crime de estupro, tanto no que se refere ao magistrado, como a defesa.  Os quais serão abordados nos tópicos seguintes.

3.4 Análise de processos de crime de estupro

Neste tópico, é apresentada a análise do texto de algumas notícias que trazem processos que foram julgados pelo Sistema de Justiça Criminal Cearense. A análise teve como propósito identificar a ocorrência da culpabilização da vítima de estupro (através do argumento da vítima provocadora) e sua sobrevitimização. Nas narrativas em que a culpabilização da vítima e a sobrevitimização foram identificadas, a análise recaiu sobre a identificação dos emissores da narrativa (juiz, defesa, acusação). Os textos foram submetidos a uma cuidadosa leitura, que considerou o conteúdo total das narrativas contidas no texto verificando se, em seu bojo, a figura da mulher está em equilíbrio com a figura do homem, ou, se ao contrário, incide um discurso androcentrado e patriarcal. Para a realização deste trabalho analítico, foram consideradas manifestações das partes no que se refere às alegações advindas do judiciário, no âmbito da denúncia, da defesa e do julgamento.

Os processos se referem à apuração de crimes de estupro, em que a análise se restringiu da denúncia até a sentença de 1º grau, por se apresentarem mais próximas dos fatos a serem avaliados, porém excepcionalmente foram abordados casos que ultrapassaram tal delimitação em decorrência da sua natureza inédita. Os processos foram representados por numeração não intencional, tendo em vista a da delicadeza do tema, bem como os traumas trazidos às pessoas envolvidas. Além disso, a identificação das partes foi feita unicamente por meio das iniciais de seus nomes.

3.3.1 Processo nº 1

Trata-se de processo que tramitou na 3ª Vara Criminal de Fortaleza no ano de 2014, compreendendo dois crimes de estupro praticados por um policial militar T.C.S, onde o mesmo teria oferecido carona para uma mulher, por volta das 21h, a qual foi recusada pela mesma. Em seguida, o autor perseguiu a vítima e se utilizando de arma de fogo a obrigou a entrar no veículo e praticar sexo oral com ele. O autor realizou abordagem semelhante com outra vítima, por volta das 5h, onde a mulher se encontrava em uma parada de ônibus. A defesa de T. negou seu envolvimento, sustentando que os depoimentos das vítimas não seriam suficientes para comprovar a autoria. O processo acabou determinando ao réu uma condenação a 12 anos de prisão, em regime fechado, por dois crimes de estupro. Segundo o magistrado “em nenhum momento as vítimas apresentaram declarações dissonantes ou contraditórias, como alega a defesa do acusado. Pelo contrário, narraram à sucessão de fatos de forma contínua e coesa com todo o conjunto fático probatório, oferecendo elementos suficientes para se concluir pela autoria do acusado”.Determinou ainda que o réu não poderia recorrer em liberdade.

Esse processo permite que se leia nas entrelinhas que o comportamento do autor denota “o poder” que o homem, mesmo em tempos hodiernos, julga ter em face das mulheres pois, como é notório, o mesmo ignorou o direito de liberdade que as mulheres possuem, se valendo de meios coercitivos em busca de satisfação sexual. Além disso, é visto como a palavra da vítima é tratada de forma pouco satisfatória nas alegações finais pela defesa.É alegado que o conteúdo de suas palavras é fraco e duvidoso, não podendo vincular o juízo, colocando a figura da mulher como ser sugestionável e não merecedor de confiança. O interessante do referido caso é que o juiz não acatou os argumentos da defesa, trazendo assim com essa decisão uma maior segurança para possíveis vítimas de estupro, tendo em vista que muitas deixam de ir ao judiciário por suporem que encontrarão juízes que façam pouco caso da palavra da vítima,desmotivando futuras denúncias.

3.3.2 Processo nº 2

O segundo processo ocorrido em 2017 tramitou na comarca de Fortaleza, Estado do Ceará, trata-se de um líder religioso que foi condenado a 10 anos de prisão por tentativa de estupro de vulnerável. A narrativa dos fatos se deu da seguinte forma: o réu foi acusado de abusar sexualmente de meninas e mulheres com idade entre 12 e 30 anos. Há cerca de dez acusações semelhantes contra o fundador da comunidade religiosa. Testemunhas também apontam a esposa dele, de ser conivente com os crimes. Conforme depoimento das vítimas, o acusado convidava fiéis da comunidade a dormirem na sua residência, e à noite alegava ter as ouvido com tosse, e as dopava com algum remédio. A esposa do autor estimulava as garotas a utilizarem roupas íntimas para agradar o mesmo. No caso exposto, a menina que sofreu a violência alegava ter acordado no outro dia com uma pressão no quadril e ao abrir os olhos viu o denunciado saindo do quarto, em seguida deparou-se com o próprio short abaixado. A defesa nega que o réu tenha cometido os fatos, expondo que já era costume que membros da comunidade fossem dormir na sua casa, visto que ele era o líder da mesma. Alegou ainda que era normal que elas fossem para lá doentes, e por isso ele aplicava alguns remédios, no entanto, o que mais chama a atenção na alegação da defesa é que, ao final, o réu alega que na verdade a vítima está sendo influenciada pelo pai, sendo induzida a crer no abuso sexual.

Dessa forma, é visto como mais uma vez os agressores tentam tornar a palavra da vítima duvidosa. O argumento de que a vítima é influenciada pelo pai coloca a palavra da vítima como subordinada à palavra de um homem. A filha é vista como propriedade absoluta do pai e essepossivelmente estaria inventando fatos para que a “justiça fosse feita”, desacreditando, a defesa, totalmente das palavras da vítima, tornando-a uma figura secundária na situação. A juíza do caso afirma que não restou comprovada a consumação do crime, no entanto, considera que ele queria praticar o crime. Os familiares da vítima expõem que a condenação demonstrou justiça, alegando que todos foram sensíveis ao caso sejam juízes, promotores e delegados e que iriam reforçar os amparos psicológicos da filha. Portanto, a figura jurisdicional mostrou-se justa e coerente, mais uma vez trazendo segurança jurídica e reforçando a palavra da vítima como meio de prova efetivo.

3.3.3 Processo nº 3

O processo número 3 ultrapassa a sentença de 1º grau, em decorrência da natureza inédita da decisão. Ocorre que o Tribunal de Justiça do Ceará anulou uma sentença que acusou o réu de ter praticado estupro e (ao tempo) atentado violento ao pudor contra uma adolescente. A data do fato foi em 2013.Houve repercussão nacional, tendo em vista que o crime ocorreu nas dependências da sede de um órgão da própria Justiça, o prédio anexo III do Tribunal Regional do Trabalho (TRT). Ocorre que, ao apreciar um recurso de apelação da defesa do réu, a Segunda Câmara Criminal do TJ-CE, por unanimidade de votos de seus integrantes (três a zero), decidiu anular a condenação de 12 anos de prisão imposta ao acusado do crime, o vendedor de gravatas M.D.R. Em decorrência da Juíza de primeiro grau, titular da 12ª Vara Criminal da Capital, ter supostamente ignorado um pedido da defesa que, no decorrer da tramitação do processo, postulou a perícia degravação de uma fita com imagens da entrada do casal no edifício do TRT, gravada pelas câmeras da vigilância eletrônica. De acordo com a defesa, a magistrada não se posicionou nem contra nem a favor do pedido da perícia e condenou o réu. Caso ascendeu à Segunda Câmara Criminal do TJ. O advogado criminalista subiu à tribuna e fez a defesa oral do recurso, que foi acatado, inicialmente, pelo relator da matéria, o desembargador. Os demais desembargadores acompanharam o voto do relator. Agora, com a anulação da condenação, o processo deve retornar à 12ª Vara Criminal com a determinação para que a juíza despache sobre o pedido de perícia. A defesa alega que não houve crime de estupro e atentado violento ao pudor. A garota teria agido espontaneamente acompanhando o vendedor – que conhecera horas antes em um centro comercial – até a sede do TRT, onde ocorreu a relação sexual entre os dois.

Trata-se de uma situação que acaba trazendo mais constrangimento à vítima, pois em tese aquela situação constrangedorahaviasuperado uma fase. No entanto, não foi o que ocorrera. Em decorrência de um erro judicial, a vítima terá que reviver em sede de 1º grau novamente a situação. Isso demonstra uma negligência judiciária em face de um crime que, mais que fisicamente, também atinge psicologicamente a vítima, o que acaba repercutindo insatisfação e insegurança jurídica.

3.3.4 Processo nº 4

O processo número 4 que tramitou na 2ª Vara da Comarca de Camocimem 2015 compreende um crime praticado em face de uma menor de idade. O Juiz da vara supracitada, condenou o Réu a uma pena de 9 anos e 4 meses para ser cumprida inicialmente em regime fechado, em decorrência de o acusado ter mantido relações sexuais com uma adolescente entre os seus 12 ou 13 anos de idade. Ocorre que os fatos só foram levados à autoridade policial quando a vítima já se encontrava com suspeita de gravidez do acusado. No interrogatório, o Réu negou as acusações, e resumiu-se em arguir que a acusação era fruto de uma perseguição que a tia da vítima possuía contra o mesmo.

O juiz expôs que a defesa da vítima no interrogatório era descabida, fantasiosa e desprovida de verossimilhança. A vítima por outro lado, narrou com riqueza de detalhes toda a situação, inclusive alegou em sua exposição que encontrava o acusado 3 vezes por semana e estava sendo ludibriada em decorrência de uma proposta de casamento vinda do réu. A defesa do acusado requereu de pronto sua absolvição, pois alegou que não havia elementos probatórios conclusivos que indicassem que o réu participara de fato no crime. Segundo a defesa a “decisão foi pautada apenas nas palavras da vítima e de uma tia.”

Importa salientar que, mais uma ve,z a palavra da vítima é vista como insuficiente. Enquanto, no processo nº 2, o poder da palavra do homem é sobrevalorizada, no caso do processo nº 4, a palavra da mulher é subvalorizada na argumentação da defesa. O magistrado por sua vez, ao analisar o pedido da defesa expôs que:

não há como desconsiderar a imaturidade da vítima no que concerne a relacionamentos sexuais, visto que a mesma, além de ser menor, era de reconhecimento público o recato, e a inexistência de relacionamentos anteriores. Dessa maneira, fica devidamente comprovada a tipicidade do delito, concluiu.

De acordo com denúncia do Ministério Público, a vítima teria iniciado o relacionamento com o Réu com 12 anos de idade, e na época o acusado iria buscá-la na escola algumas vezes para manterem relações sexuais. Aos 14 anos a vítima suspeitou de estar grávida do mesmo, quando foi procurada pelo pai do acusado para dar-lhe uma indenização em troca da mesma não ir à justiça ofertar a denúncia.

Revelou-se, na decisão, valor probatório para a palavra da vítima.

3.3.5 Processo nº 5

O caso de número 5 foi tramitado na comarca de Viçosa no Estado do Ceará. O réu F.D.S. foi condenado pelo Juiz H.M.G. a 29 anos de reclusão, em regime inicialmente fechado, pelos crimes de latrocínio (roubo com resultado morte) e estupro. De acordo com os autos, o acusado estuprou e assassinou uma idosa pela madrugada do dia 23 de julho de 2009, para que em seguida lhe roubasse uma quantia de R$ 40,00 (quarenta reais). No interrogatório o Réu confessou o crime, dando detalhe de toda a ação alegando estar acompanhado de outro homem, o qual se encontra foragido. O Ministério Público Estadual denunciou o acusado por latrocínio e estupro.O magistrado aceitou a referida denúncia e pronunciou o réu. A defesa do acusado representada pelo defensor público requereu a absolvição do mesmo, alegando não haver provas suficientes da autoria e materialidade. Na sentença, o juiz H. M. G. disse que, “diferentemente do que afirmou a defesa, a prova apurada durante a instrução foi suficiente e coerente para demonstrar a culpabilidade do réu”.

Trata-se de uma situação que, igualmente às demais citadas, enseja repúdio, pois expõe o caso de uma senhora que estava em sua própria casa e foi vítima de um crime dessa natureza. Como pode ser visto, a defesa tenta se valer dos argumentos de que não há provas suficientes nos autos para ensejar a condenação, pois mesmo o réu tendo confessado todo o crime, sabe-se que a confissão não é elemento suficiente para uma condenação, tendo em vista sua natureza retratável. No entanto, como fora abordado, o crime de estupro normalmente acontece às escondidas, sendo difícil obter elementos probatórios documentais ou testemunhais, e nesse caso nem mesmo a vítima pode narrar os fatos, pois já se encontrava morta. O que se pode ver é que nesse caso a Polícia Civil através de sua investigação foi crucial, pois através dos seus instrumentos conseguiu desvendar o delito.Com isso, traz maior segurança para vítimas dessa violação, tendo em vista que mesmo com a natureza sorrateira do crime, o judiciário através da polícia civil mostrou efetividade, bem como também pelo magistrado que condenou o réu.

3.3.6 Processo nº 6

Trata-se de um processo com trâmite na 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), onde o comerciante R.S.G foi preso em flagrante após praticar ato sexual com uma mulher mediante grave ameaça e manter a vítima em cativeiro. Além disso, o Réu ainda tentou ter relações com uma menor. Ocorre que, por descuido do autor do crime, as vítimas conseguiram fugir. As mesmas relataram que o acusado as abordaram em uma motocicleta, obrigando-as a subir na garupa do veículo. As vítimas afirmaram que conseguiram anotar a placa da moto e passar para a Polícia Militar, que o identificou e o prendeu. A defesa impetrou um habeas corpus alegando que houve excesso de prazo na formação da culpa, ofensa ao princípio da inocência e carência de fundamentação do decreto prisional. O relator por sua vez expõe que:

O paciente foi preso em flagrante pela suposta prática do delito de estupro, por duas vezes, em sua forma consumada e tentada. Esta conduta revela gravidade extrema, havendo a necessidade de seu cárcere, uma vez que nada impede de que, ao ser posto em liberdade, ele cometa novamente o delito, já que tais práticas, em verdade, revelam comportamentos patológicos do criminoso.

A 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) acompanhou o voto do relator e negou os pedidos expostos no habeas corpus. Dentre os demais processos expostos, esse foi o único em que houve uma alegação diferente da defesa, em relação ao que foi encontrado nos demais processos. Neste caso, não se alegou ausência de provas, mas sim outros elementos. No entanto, o que é válido salientar diz respeito aos últimos pedido da defesa, quais sejam: ofensa ao princípio da inocência e carência de fundamentação do decreto prisional. Ocorre que mesmo tendo as vítimas fugido de uma situação perigosa e constrangedora, a defesa tenta inibir a gravidade da situação, expondo que, mesmo sendo feita uma prisão em flagrante, as vítimas podem estar mentindo para prejudicar o réu. Esse tipo de alegação acaba por trazer uma situação psicológica ainda pior para as vítimas, pois mesmo após ter passado por transtornos graves, ainda existem alegações de que possivelmente o réu é inocente. Com isso, pode-se extrair como as vítimas desse crime são tratadas frente à defesa, que deixa de lado preceitos morais e humanos. O judiciário, por sua vez, entendeu por acolher a acusação do Ministério Público, eivado de verossimilhança e nexo no que tange às palavras das vítimas.

3.3.7 Discussão sobre os achados processuais

Nesse momento, serão ressaltados os resultados encontrados a partir da leitura dos processos. Foram encontrados alguns padrões e algumas características destoantes do restante em determinados processos. Em um primeiro momento, faz-se necessário expor sobre a falta de credibilidade que se dá à palavra da vítima.Como já demonstrado em tópicos anteriores, a palavra da vítima em crimes contra dignidade sexual, possui valor diferenciado em relação a outros crimes. No entanto, na maior parte dos processos, extraiu-se que a defesa tenta derrubar o referido argumento, expondo que somente a palavra da vítima não enseja a condenação do réu, pois é destituída de veracidade e não possui valor probante. Mesmo mulheres não ofendidas, que presenciaram o ato e serviriam como testemunhas, precisaram ter sua palavra validada. Isso denota que os tempos em que a palavra da mulher não possuía valor ainda persistem na atualidade.

Sobre a questão da imagem que se tem sobre a mulher e sua condição como sujeita de verdade, afirma Coulouris (2010):

Estas últimas eram consideradas as representantes do mal na terra, seres perversos, subversivos e mentirosos por natureza. Contra elas, nenhuma precaução era demasiada; sobre elas, inúmeros discursos foram elaborados e de tal forma que as mulheres foram construídas por teólogos, médicos e juristas como objetos de verdade e excluídas violentamente como sujeitos de verdade. E somente a partir do momento em que se observa essa relação entre as mulheres e a verdade é que a desconfiança e a tortura daquela que acusa pode aparecer como “natural” diante desse espaço perigoso de criminalização do masculino que qualquer julgamento de estupro representa. Principalmente porque, como vimos, a desconfiança em relação aos testemunhos das mulheres é bem anterior ao princípio jurídico de inocência do réu.

Com isso, é visto que essa desvalorização sobre a palavra da mulher advém de tempos antigos, pois as mesmas eram vistas como seres perversos e mentirosos por natureza.

Com relação às testemunhas, se pode extrair que o Réu na maioria dos processos tenta trazer uma motivação de cunho pessoal para aquela, expondo que as mesmas só o estão acusando em decorrência de alguma rixa que se tem com o mesmo.Ou seja, o acusado tenta tirar todo o peso da acusação de si para trazer à tona questões que deem à testemunha utilização de fatos duvidosos e dissonantes, e a vítima nenhuma credibilidade.

Outra questão a ser analisada, é em relação ao problema encontrado em todos os processos.Refere-se à ausência de um atendimento multidisciplinar em relação à ofendida, de maneira que ela serviu no processo apenas como elemento de prova, não lhe sendo oferecidos atendimentos psicológicos. Isso acaba trazendo à tona questões como: as vítimas serem submetidas a vivenciar duas vezes os eventos traumáticos sofridos, pois além de serem vítimas do crime em si, são vítimas do judiciário, tendo em vista que terão de expor todos os fatos vivenciados.Verifica-se, entretanto, que além da ausência de encaminhamentos da vítima a serviços de atendimento integral, os agressores não foram alvo de nenhuma medida educacional de gênero, sendo geralmente submetidos apenas à medida penal padrão de encarceramento. Encarar a violência contra a mulher de forma simplista, por um viés unicamente penal, não parece ter capacidade para sustentar uma política eficiente de combate à violência contra as mulheres.

Por outro lado, pôde-se observar algum avanço em termos de argumentação no interior dos processos de estupro, pois o judiciário do Ceará se mostrou coerente a respeito da força probante da palavra da vítima.Em todos os processos expostos, negou a argumentação da defesa de que não havia provas suficientes nos autos para condenar o réu, se valendo das palavras da vítima como provas suficientes para ensejar a materialidade e autoria do crime.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer do presente trabalho, buscou-se tratar, principalmente, acerca da classificação dada às mulheres em geral, pela sociedade, e, especificamente, aquelas que são vítimas de estupro.

Foram analisados, primeiramente, os aspectos gerais sobre o estupro nas legislações brasileiras, oportunidade na qual se fez necessário adentrar na parte histórica e na sua evolução no que se refere às legislações. Foi demonstrado, por exemplo, como em 1830, as mulheres eram divididas em classes, sendo essas: mulheres com honra e sem honra, onde se pode extrair que as primeiras eram aquelas que possuíam família ou um casamento, e as segundas seriam aquelas que já haviam tido relações sexuais antes do casamento ou as prostitutas. Com relação à pena do agressor, essa seria de três a doze anos de detenção, mais um dote oferecido à família da ofendida, se a vítima fosse detentora de honra e diminuída para um mês a dois anos se a mesma não tivesse honra segundo os ditames daquela época. É clara a caracterização de uma diferenciação exorbitante de pena, a depender da categoria em que se enquadrasse a vítima.

Seguindo ainda a evolução legislativa, foi verificado que, no Código Penal de 1890, já houve uma evolução referente às penalidades sofridas pelo agressor, tendo em vista, nesse sentido, que se o agressor estuprasse uma mulher dita honesta, sua pena seria de um a seis anos, do contrário, sua pena seria de seis a doze anos. Além disso, o conceito de mulher honesta, não mais se limitou à virgindade da mesma, e sim se a mulher era pública ou prostituta.

Logo em seguida, foi vista a promulgação do código de 1940, que assim como os outros só obtinha no polo passivo de crimes sexuais a figura da mulher, o conceito de honra ainda se levava em consideração nesse código, havendo uma efetiva mudança somente no que tange à idade da vítima, a qual se fosse menor de 14 anos, o autor do delito teria um aumento de pena.

Resta salientar que o que de fato trouxe inovações aos crimes de estupro está exposto na lei 12.015 de 2009, a qual alterou os crimes contra os costumes, hoje denominados crimes contra a dignidade sexual; além disso, trouxe uma interpretação extensiva da norma, que traz como polo passivo, não somente mulheres, mas também abrange homens e as relações homoafetivas. Essa lei também trouxe uma inovação de suma importância, pois com ela não se discute mais se as mulheres possuem ou não honra.

Hoje, pode-se perceber a grande evolução que o crime de estupro sofreu nas legislações, onde cada vez mais se traz a figura da mulher como um ser autônomo e que não mais se vale da figura do homem para obter valores sociais,sendo esse um significativo progresso na luta das mulheres.

Observou-se também que através das suas lutas, as mulheres conseguiram obter direitos nas seara da educação, política, direito à vida, direito ao divórcio e acesso ao mercado de trabalho, assim como os direitos do corpo passaram a ser vistossob um prisma mais igualitário. Essas correspondem a importantes conquistas do movimento feminista, onde mulheres lutam para obter igualdade de direitos com relação aos homens.

No segundo capítulo, observou-se que, através das classificações de Benjamin Mendelsohn sobre a vítima, pôde-se concluir, como ponto central deste trabalho, que a vítima do estupro deve, em todos os casos, ser classificada como vítima completamente inocente ou vítima ideal, sendo essa a que não contribui de nenhuma forma para o evento criminoso. Assim, a culpa é, sem exceções, inteiramente do agressor, pois esse comete o crime sem provocação da vítima e de forma imoral. Apesar da sociedade ainda querer culpar a figura da mulher em decorrência dos preceitos retrógrados, o presente trabalho demonstrou como o argumento da vítima provocadora não somente é inválido, como também pernicioso, uma vez que sobrevitimiza a mulher que sofreu o estupro.

No terceiro capítulo, foi explanado o valor probatório diferenciado que as vítimas de estupro possuem nos processos, em decorrência da natureza do delito, bem como os elementos que contribuem para fortalecer esse valor probatório.Tais elementos incluem as consequências psicológicas nefastas sofridas pela vítima, e o julgamento tido pela sociedade ou até mesmo a família.

Em um último ponto foram expostos os resultados da análise de seis processos veiculados em notícias, dos quais se extraiu que o judiciário do Ceará é coerente com a jurisprudência do STJ no sentido de dar valor probatório absoluto à palavra da vítima. Como foi visto, em todas as decisões, não foi acolhido o pedido da defesa que argumentava não ser suficiente como provas somente o depoimento da vítima, numa tentativa de desvalorizar a palavra da mesma e trazer dúvida ao judiciário.

Portanto, esses foram os pontos mais relevantes do presente trabalho monográfico, mostrando que as mulheres não mais são vinculadas somente à figura do homem, pois, através de suas lutas, conseguiram conquistar diversos direitos, em vários âmbitos, como: trabalho, educação, casamento, direito ao voto, dentre outros. Além disso, não há culpabilização no crime de estupro por parte da mesma, visto que vestimentas ou modo de agir não podem ser utilizados com a finalidade de trazer culpa de um delito às mulheres; estas são livres social e sexualmente.

Observou-se que o Judiciário jamais deve se eximir da apreciação dessas causas: o objetivo maior do órgão julgador é demonstrar que as vítimas de estupro não são culpadas, que a natureza do delito é tão devastadora que deve ser analisada e apreciada de modo diferenciado, dando às mulheres uma maior segurança jurídica após sofrer esse tipo de delito. Além disso, a palavra da vítima deve servir como valor probatório especial, em decorrência da dificuldade que se tem para encontrar outros meios de prova, como: documentais ou testemunhais, pois como se sabe, o estupro ocorre de maneira sorrateira, às escondidas, tornando quando impossível para vítima usar tais meios para provar o ocorrido.

No entanto, quando a mesma expõe todo o sofrimento causado, e esse é dotado de elementos que coadunam com a veracidade, o julgador deve acolher a palavra da vítima, e punir devidamente o agressor que causou todo aquele constrangimento e trauma para a mesma. Portanto, cabe ao judiciário trazer um cenário de menor constrangimento para a vítima, para que, assim, outras mulheres que foram vítimas de tal atrocidade, passem a ter coragem de expor seus agressores, se valendo da premissa de que esses serão penalizados de maneira justa, e que sua palavra, ao expor o trauma sofrido, possuem sim força probante, sem que seja necessário que a mesma vá atrás de outros elementos para que se tente ter uma “efetiva” comprovação. A palavra da vítima é suficiente, e suas vestimentas ou modos de agir jamais devem ser utilizados como argumento para merecimento do crime de estupro, porquanto esse só é mais um argumento utilizado por uma sociedade machista, patriarcal e androcêntrica, que tenta trazer à tona a figura da mulher como culpada, em decorrência do seu modo de agir, argumento esse que deve ser tomado como erronia da sociedade.


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