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A judicialização do direito à saúde.

Direito de alguns ou de todos?

A judicialização do direito à saúde. Direito de alguns ou de todos?

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Quais as causas e os problemas decorrentes da judicialização da saúde no Brasil? Os benefícios concedidos por meio do ingresso de ações no Poder Judiciário são do alcance de alguns indivíduos ou de todos?

Resumo: O presente artigo tem como tema a judicialização do direito à saúde: direito de alguns ou de todos? Seu propósito é analisar as causas e os problemas decorrentes da judicialização da saúde no Brasil, bem como, verificar se os benefícios concedidos por meio do ingresso de ações no Poder Judiciário são do alcance de alguns indivíduos ou de toda a sociedade. A judicialização da saúde é um fenômeno que tem causado impactos financeiros preocupantes para os gestores públicos e os magistrados. O estudo apresentado tem natureza explicativa e descritiva, tendo como base pesquisas realizadas em sites eletrônicos, pesquisas bibliográficas e artigos publicados entre os anos de 2015 a 2017. Mesmo com a implantação do SUS, a saúde no Brasil ainda necessita de muitas melhorias, tendo como exemplo o aumento crescente de demandas judiciais acerca da saúde, que apontam os defeitos no sistema de saúde pública e nas suas políticas.

Palavras-chave: Saúde. Judicialização da saúde. Sistema Único de Saúde.


INTRODUÇÃO

A saúde é direito social e fundamental de todos os cidadãos brasileiros, estando prevista na Constituição Federal em seus artigos 6° e 196. Garantir a efetivação deste direito é tarefa dos governantes do Estado brasileiro. Buscando por essa efetivação, fora criado, em 1990, o Sistema Único de Saúde (SUS), que tem como maior objetivo garantir de forma gratuita o acesso de toda população a saúde.

No entanto, este sistema não tem cumprido com seu papel precípuo, apresentando deficiência em diversos fatores. A falta de medicamentos, de realização de exames, cirurgias, tratamentos e etc., faz com que por diversas vezes, os cidadãos busquem efetivar seus direitos recorrendo a vias não convencionais, neste caso, o Poder Judiciário. Surgindo assim, a denominada judicialização da saúde, que tem como finalidade possibilitar para os indivíduos não atendidos devidamente no SUS ou em planos de saúde privados, o ingresso no Poder Judiciário com as demandas negadas por aqueles.

Com o aumento da população, a descoberta de novas doenças, e, somando-se à crise financeira pela qual nosso país vem passando, o acesso aos recursos do SUS tem se tornado cada vez mais precário, fazendo com que muitas pessoas perante a negativa do Estado de cumprir com seu papel, se vejam forçadas a procurar a solução judicialmente. O grande problema desta questão, é o aumento constante de ações, que acabam ocasionando um elevado custo para o Estado, beneficiando somente algumas pessoas.

Diante de tal situação, com o objetivo de discorrer e trazer uma melhor compreensão acerca do tema proposto, o presente artigo fora divido em três capítulos.

O primeiro capítulo tem o intuito de tornar mais claro o conceito de saúde, que para muitos ainda é visto de maneira superficial, assim como a implantação do SUS no Brasil, que trouxe inovações para o sistema de saúde brasileiro, antes ainda mais precário.

Com segundo capítulo busca-se apresentar o conceito e as causas da judicialização da saúde, possibilitando o entendimento dos fatores que muitas vezes levam os cidadãos a buscarem a solução de seus problemas por meio de ações judiciais.

No terceiro e último capítulo, pretende-se responder os questionamentos propostos no tema do artigo. Tendo como base que a saúde é um direito de todos, mas em determinados casos de judicialização pode beneficiar somente alguns, ferindo então alguns princípios elencados na Constituição, dentre os quais o da igualdade.


CAPÍTULO 1: CONCEITO DE SAÚDE

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a saúde é “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades” (OMS, 1948).

Partindo desta definição, é possível perceber que a saúde não estava relacionada apenas ao perfeito estado físico dos indivíduos, mas sim a uma somatória de todos os elementos, que como um conjunto, podem tornar aquele possível. No entanto, a amplitude do conceito de saúde apresentado pela OMS não deve ser levado ao pé da letra, pois deste modo a saúde seria vista como algo ideal e inatingível, na medida em que a definição de um completo bem-estar varia conforme o indivíduo. Só seria possível falar de bem-estar, felicidade ou perfeição para uma pessoa que dentro de seus valores e crenças, desse sentido a estes termos através de suas experiências individuais.

A saúde não está interligada apenas ao bem-estar físico, mental e social das pessoas, segundo Carlos Batistella (2007, p. 67), que faz menção a Reforma Sanitária brasileira:

Em sentido amplo, a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde. Sendo assim, é principalmente resultado das formas de organização social […] (apud Brasil, 1986, p. 4)

Notamos então, a partir deste novo conceito que a saúde tem conexão com fatores que antes não se tinha ideia que a integravam. Todos os meios em que habitamos, sejam educacionais, ambientais, familiares, nossos ambientes de trabalho e lazer e até mesmo os locais em os serviços de saúde são oferecidos, acabam influenciando em nossa caminhada para uma vida saudável. Deste modo, nada adianta um sujeito iniciar sua vida com plenas capacidades mentais se as condições de trabalho ou moradia a que é submetido são insalubres, fazendo com que suas condições físicas sejam comprometidas, e, consequentemente as mentais sejam afetadas a medida em que aquele permanece vivendo nestas condições. Afinal, a saúde é um conjunto de elementos internos e externos relacionados as pessoas e aos meios e as condições individuais e coletivas em que são submetidas.

A saúde é direito fundamental da pessoa humana assegurado no artigo 196 da Constituição Federal de 1988, devendo ser garantido e acessível para todos, independente de crenças, raças, religiões, ideologias políticas, e, principalmente da condição social e econômica.

1.1. Uma Breve Evolução Histórica Acerca do Sus

O artigo 196 da Constituição Brasileira de 1988, traz “a saúde como direito de todos e dever do Estado”. Este artigo foi responsável pela criação do Sistema Único de Saúde (SUS), que tem como principal dever manter a eficácia do que foi promulgado pela Carta Magna e oferecer para a população brasileira serviços gratuitos de saúde.

A evolução histórica do SUS atravessa uma das fases do sistema de saúde brasileiro, ocorrida nas décadas de 70 e 80, caracterizado, sobretudo, por sua insalubridade. Entretanto, o Brasil se encontrava nesta situação desde a época de sua colonização até o século passado.

No Brasil colônia não haviam cuidados relacionados à saúde. Segundo FIGUEIREDO E TONINI (2007, p.5):

Só a partir da chegada da Família Real ao que hoje chamamos de território brasileiro, é que se implantam questões relacionadas às normas sanitárias como uma forma de prevenir, principalmente, nos portos fluviais a entrada de doenças que pudessem acometer a população da época e, sobretudo, a Família Real.

Somente após 100 anos da criação da república, foram desenvolvidas politicas públicas voltadas para a saúde, com a criação de leis e institutos que tinham como principal objetivo eliminar as doenças através da vacinação.

Já no Estado Novo, tendo como pontapé inicial as primeiras conquistas no campo trabalhista, como por exemplo, a elaboração de Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPs) que tinham o papel de operar como sujeito ativo no seguro social, como também a implementação dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) em 1930, que tinham o funcionamento semelhante ao do CAPs, só que com a intervenção do Estado. A posteriori, ocorreu a criação do Instituto Nacional de Previdência Social – INPS como resultado da junção dos IAPs, contando com mais influências dos técnicos provindos do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários.

Com o intuito de atender os trabalhadores que possuíam carteira assinada, assim como seus dependentes, sendo esta uma conquista obtida através das lutas trabalhista, o poder público fez uso do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS). Porém, como este projeto era centralizado, surgiu a partir disso o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS) como um acordo entre o INAMPS e os governos estatais. De acordo com FIGUEIREDO E TONINI (2007, p. 5) “este foi o primeiro passo para a universalização do sistema de saúde que atuava no Brasil”.

Em 1987, os grupos que lutavam por reformas nas políticas sanitárias interviram nas deliberações da Assembleia Nacional Constituinte, que decidiu escrever um capítulo na Constituição de 1988 referente à saúde, instituindo então o Sistema Único de Saúde, mais conhecido como SUS. Após a sua implantação, seus benefícios deixaram de contemplar apenas os funcionários públicos, militares e funcionários com carteira assinada, passando a atender todos os cidadãos brasileiros, independentemente de sua condição social e financeira.

Regulamentado pelas Leis nº 8.080/90 e 8.142/90, o SUS foi desenvolvido para contribuir na luta pela redemocratização do Brasil, tendo como principal finalidade modificar a as situações de desigualdades enfrentadas no sistema de saúde brasileiro, determinando como obrigatório o atendimento público para todos os cidadãos.

É de conhecimento geral que os pacientes do SUS enfrentam várias dificuldades para terem acesso a esse direito. Sofrem com a falta de leitos e equipamentos nos hospitais, existem as filas de espera para procedimentos, que por vezes perduram por vários meses, e a falta de médicos e infraestrutura em regiões mais afastadas dos grandes centros, como as cidades do interior dos Estados, por exemplo. É trabalhoso manter um sistema de saúde universal para um país como o Brasil, que tem dimensões continentais, e de certa forma é um desafio à altura da nossa extensão territorial.

O sistema de saúde brasileiro vem passando por crises há bastante tempo. Este fato torna-se cada vez mais evidente quando temos acesso aos hospitais públicos do país e nos deparamos com a ausência de médicos, medicamentos, materiais que deveriam ser usados em procedimentos cirúrgicos ou até mesmo em simples procedimentos. Torna-se evidente quando encontramos nos corredores dos hospitais pacientes deitados no chão por falta de leito, quando um atendimento no pronto socorro demora mais de três horas pra acontecer e lamentavelmente vemos pessoas morrerem por falta de atendimento médico, falta de medicamento ou pelos diversos problemas que a saúde pública brasileira enfrenta.

Em um ranking anual que mede a eficiência dos sistemas de saúde dos países, feito pela Bloomberg, desde o ano de 2008 o Brasil aparece sempre entre os últimos colocados. Servindo para indicar eficiência econômica, o referido ranking compara os benefícios gerados com o custo dos serviços. Em resumo, o ranking compara a expectativa de vida com o custo local do sistema de saúde.

De uma lista com 55 países, no ano de 2015 o Brasil ocupou a última posição. O que se pode inferir é que nosso país tem muitos gastos com saúde, mas entrega pouco. O custo da saúde no Brasil é comparável ao de países da Europa. Gastamos em torno de 9% do PIB, número próximo ao de países como Noruega, Suécia e Reino Unido.

Com mais dados pouco otimistas, dos países analisados, constatou-se que a expectativa de vida no Brasil é a sexta mais baixa. Com 73,9 anos de vida, a expectativa de vida do país é similar à de países como Jordânia, Irã, República Dominicana e Colômbia. Então, pela comparação entre expectativa de vida e custo do sistema nacional, o Brasil está entre os países com gastos mais elevados, mas com relativa baixa expectativa de vida, comprovando ainda mais que o custo/benefício com a saúde não está trazendo resultados favoráveis.

É fato que outros fatores, além do sistema de saúde, afetam a expectativa de vida, como saneamento, violência urbana e estilo de vida da população. Como todo ranking, o posicionamento do Brasil não estabelece uma verdade absoluta, mas pode ser usado para fomentar a questão do financiamento do sistema de saúde brasileiro. Talvez aumentar os gastos em um sistema que onera demais a economia pode não ser a melhor opção.

O sistema de saúde brasileiro é composto pelo SUS e também pelo sistema privado representado por planos de saúde e por profissionais autônomos. Para a realidade brasileira, o SUS representa um avanço significativo na saúde pública. Contudo, a existência do sistema privado deixa evidente a necessidade de complementação. Neste contexto, surge o debate sobre a necessidade de mais fundos para financiar a saúde pública. Mas, infelizmente, o sistema de saúde brasileiro é ineficiente, o que significa que os recursos não são bem utilizados.

Os desafios serão maiores ainda com o envelhecimento da população. Com tratamentos mais caros em média e com a necessidades de grandes investimentos, a conta da saúde começa a pressionar a atividade econômica. Mais gastos por habitantes serão necessários, pressionando tanto o Estado quanto o cidadão, e cortes precisarão ser feitos.

Uma dúvida crescente é a de que o sistema brasileiro de saúde, incluindo o público e privado, possui uma estrutura organizada que suporte tal crescimento. Conforme o ranking citado, a comparação entre países sugere que o Brasil não aloca bem os recursos em saúde, pois gasta muito para um país sem alta expectativa de vida. Portanto, estratégias inteligentes para a organização do sistema de saúde serão fundamentais para o futuro do país.

Além de todos esses problemas, uma demanda que está em constante crescimento ultimamente é a de fornecimento de medicamentos de alto custo para a população de baixa renda. Entre as principais críticas referentes a essa questão, estão a de que as ações judiciais são crescentes e causam desequilíbrio nas contas públicas, que são valores altos para beneficiar uma parcela mínima da população, entre outras, que serão analisadas nos próximos capítulos deste artigo.


CAPÍTULO 2: CONCEITO, E CAUSAS DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

A violação ao direito universal à saúde, garantido pela Constituição Federal, faz com que grande parte da população busque no Poder Judiciário a distribuição de medicamentos e a realização de tratamentos, que por diversas razões não são oferecidos pelo SUS aos cidadãos. O resultado é a chamada Judicialização da saúde, que vem se tornando cada vez mais crescente nos últimos anos.

Em princípio, as demandas judiciais a respeito da saúde eram, em sua maioria, orientadas pelo convencimento individual de cada magistrado. Como regra, não se tinha um padrão seguido pelos juízes para decidirem acerca deste tema, muito menos discussões mais aprofundadas sobre as questões relacionadas à saúde. Isto fez com que, por diversas vezes, os magistrados decidissem de maneira “solitária” as demandas de saúde apresentadas ao Poder Judiciário. A consequência foi um aumento considerável dos serviços de saúde requisitados pela via judicial, tendo como um dos principais exemplos de inovação nas decisões proferidas pelos tribunais, o reconhecimento do dever do Estado de fornecer medicamentos antirretrovirais para portadores do vírus HIV. Tendo como resultado não só o fornecimento dos medicamentos de forma gratuita, como também todo o tratamento necessário para manter o conforto e a saúde do paciente. Neste sentido, o Ministro Teori Zavascki afirma que: “O direito à saúde não deve ser entendido como direito a estar sempre saudável, mas, sim, como o direito a um sistema de proteção à saúde que dá oportunidades iguais para as pessoas alcançarem os mais altos níveis de saúde possíveis”

A chamada judicialização da saúde é a tentativa de obter medicamentos, exames, cirurgias ou tratamentos aos quais os pacientes não conseguem ter acesso pelo SUS ou pelos planos privados, por meio de ações judiciais. Os pedidos têm como base o direito fundamental à saúde, garantido pela Constituição. Pode ser considerada como um fenômeno que possui várias particularidades, expondo limites e possibilidades ao Estado e incentivando a elaboração de respostas eficazes pelos agentes públicos dos setores de saúde e de justiça. É reflexo de um sistema de saúde deficiente, que não consegue efetivar a proteção desse direito fundamental.

No ponto de vista do sistema democrático brasileiro, a judicialização pode expressar as reivindicações e meios de atuação legítimos do povo e das instituições. O maior desafio é elaborar estratégias sociais e políticas em harmonia com outros métodos e instrumentos que possibilitem garantir a efetivação da democracia, que possam aperfeiçoar nosso sistema de saúde e de justiça, a fim de possibilitar maior alcance ao direito à saúde.

2.1. Principais Causas

Não existe uma causa específica para a judicialização da saúde, e sim, um conjunto de fatores que criam circunstâncias favoráveis para este acontecimento. Dentre os quais discorremos adiante.

A principal causa da judicialização é a falta de serviços públicos de saúde adequados para atender as demandas da população. Por diversas vezes os cidadãos se veem desamparados pelo sistema de saúde vigente em nosso país. A falta de medicamentos, tratamentos, realizações de cirurgias e exames que não estão amparadas pelo SUS, fazem com que a população busque uma forma de socorro ingressando com pedidos no Judiciário.

O descumprimento de obrigações por parte dos planos de saúde, também é uma das causas da judicialização. Muitos pacientes acabam tendo cirurgias e procedimentos negados pelas empresas responsáveis pelo fornecimento de planos privados de saúde devido a afirmativa das mesmas de que o valor pago pelos usuários não possibilitam a cobertura de tais procedimentos. Fazendo então, com que a única alternativa encontrada por aqueles seja recorrer judicialmente.

Outra causa é a crise econômica pela qual nosso país vem passando. O crescimento do desemprego, ocasionando a queda de renda nas famílias, contribui para falta de acesso dos cidadãos aos serviços de saúde de alto custo, não fornecidos pelo SUS.

O aumento de diagnósticos de doenças raras também pode ser visto como causa. A medida em que há um aumento de pacientes com doenças raras que exigem tratamentos de alto custo, por diversas vezes não amparados pela saúde pública ou nem mesmo pela privada, há também uma maior procura por estes indivíduos pelo alcance de seus tratamentos. Surgindo então, um dos maiores problemas ocasionados pela judicialização, que é a concessão de medicamentos, cirurgias e procedimentos de elevado custo somente para aqueles que ingressam no judiciário, enquanto muitos acabam sendo prejudicados pelo esgotamento dos recursos disponíveis para saúde que acabam sendo utilizados, em sua maioria, em prol somente daqueles.


CAPÍTULO 3: A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE EM CONTRAPONTO COM AS POLÍTICAS PÚBLICAS

Com relação a atuação do poder público nas demandas referentes a judicialização da saúde, é interessante falar sobre o princípio do mínimo existencial, que nas palavras de TORRES (1999, p. 141), seria “um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas”. Tal princípio tem ramificações no acesso universal ao direito à saúde, e que por várias vezes vira um verdadeiro transtorno para os administradores públicos, que são responsáveis por transformar os conceitos abstratos em politicas públicas e ações concretas. Em face das várias decisões exaradas pelas Cortes da Justiça do país, que dizem que a Administração Pública deve fornecer os medicamentos de custo elevado e tratamentos igualmente caros, não previstos na RENAME, o Estado alega que é impossível atender todos os pedidos da população, manifestando-se pela teoria da “reserva do possível”.

É fato que as necessidades da população por vezes são superiores ao valor que é destinado pela Administração Pública para adequação do convívio social. De acordo com o Tribunal de Contas da União, em um estudo que abrangeu União, Estados e municípios constatou-se que os gastos da União com processos judiciais referentes à saúde, em 2015, foram de R$ 1 bilhão, um aumento de mais de 1.300% em sete anos. O fornecimento de medicamentos, alguns sem registro no Sistema Único de Saúde, corresponde a 80 % das ações.

Ainda que a Constituição Federal determine a promoção de medidas mínimas e imprescindíveis para o desenvolvimento da sociedade, a fim de promover uma vida digna (mínimo existencial), os cofres do Estado não são suficientes para abarcar todas as garantias sociais, então os agentes públicos acabam por realizar ações consideradas prioritárias, e por vezes deixando de lado outros tipos de políticas públicas, visto que os recursos são limitados, mas as necessidades são intermináveis. Daí surge o conceito da “reserva do possível”

Importante destacar também sobre o debate entre doutrinadores que se posicionam pela defesa da contenção do Judiciário nas demandas da saúde, onde afirmam que este deve atuar só quando houver alguma lacuna entre a Constituição Federal e a ausência do poder público, não cabendo, em hipótese alguma, criar novas políticas públicas, pois com isso poderá infringir o princípio da separação dos poderes. Por outro lado, é dever do Estado promover à população uma vida digna, não apenas uma sobrevida, como forma de efetivar o direito à saúde, cabendo ao judiciário intervir de modo proativo, quando necessário.

A Carta Magna deu ao Estado as diretrizes relacionadas ao bem-estar coletivo, proporcionando-lhe os insumos para promover a dignidade dos seus cidadãos. Assim sendo, a fim de atenderem as solicitações relacionadas à saúde, os entes estatais empenharam esforços para a criação de uma estrutura de governo encabeçada por políticas públicas próprias, que seriam capazes de proporcionar a saúde da sociedade, saúde esta equiparada a condição de direito fundamental.

O art. 198 da CF/88 teve como um resultado concreto a criação do Sistema Único de Saúde, que tem como objetivo ser uma política que venha minimizar as desigualdades na saúde e as injustiças sociais. Todavia, o fato é que não há uma proporção entre as normas constitucionais e a estrutura da saúde pública brasileira, pois o modelo de atuação do Estado não suporta a procura apresentada pela sociedade. É inegável o conflito por qual passa a Administração, que tem que escolher a melhor destinação dos recursos financeiros insuficientes para atender a demanda, recursos esses que não abrangerão todos os serviços essenciais. Também deve-se lembrar da má gestão dos escassos recursos, que em muitas vezes são aplicados sem a necessária reflexão e o conhecimento técnico imprescindíveis à redução das necessidades dos usuários da saúde pública.

Conforme exposto anteriormente, várias ações judiciais são demandadas para que se consigam procedimentos médicos e medicamentos. Contudo, vários desses medicamentos não compõem a lista fornecida pelo SUS e outros não têm autorização da ANVISA para circularem no Brasil. Autorizar a aquisição de um medicamento que conste na lista da ANVISA, mesmo com valor elevado, leva o Judiciário a aproximar os direitos do cidadão de sua realidade concreta; por outro lado, quando o judiciário autoriza a compra pelo poder público de um medicamento ou de qualquer insumo da saúde não regulamentado no Brasil, acaba por favorecer algumas minorias privilegiadas. Na medida em que os juízes concedem tutelas de urgência para a aquisição imediata de bens ou serviços de saúde, que devem ser adquiridos pelo Poder Executivo, em geral sem licitação, eles intervêm diretamente na alocação orçamentária, determinada pelo Poder Legislativo, e na condução da política pública de saúde, estabelecida pelo Poder Executivo.

Segundo Borges (2007, p.23), o principal problema “surge quando a saúde se apresenta como um bem particular, ou em termos jurídicos, como um direito subjetivo público. Nessas situações, o exercício do direito subjetivo contra o Estado por determinado indivíduo poderá afetar o exercício do direito subjetivo de outros cidadãos, constituindo-se nesses casos como um bem exclusivo e de consumo rival”. De acordo com este pensamento, a saúde deixaria de ser um direito de cidadania garantido a toda população para transformar-se num bem particular de consumo exclusivo disputado por todos os cidadãos. Em todo o caso, não se pode perder de vista a possibilidade da atuação do Poder Judiciário servir para pressionar os demais Poderes a atender as necessidades da sociedade brasileira. Como ocorreu com a política da AIDS, a judicialização pode contribuir para o aumento das ações e serviços disponibilizados pelo Estado e para a própria revisão da política que vem se desenvolvendo.

O que pode-se perceber é que existem evidências tanto positivas como negativas do processo de expansão do Poder Judiciário. A adoção da política de AIDS claramente representa o primeiro grupo. Por outro lado, há indícios de que a compra de determinados insumos possa desvirtuar os aspectos benéficos da judicialização.

Conforme o exposto, é necessária uma análise crítica à maneira atual de obtenção de fármacos e tratamentos médicos junto ao poder judiciário, pois existe uma necessidade urgente de reforma das políticas públicas que hoje existem, para adequar e melhorar os mecanismos junto aos órgãos responsáveis pela compra e distribuição dos medicamentos. Além disso, existe a complexidade que envolve as decisões judiciais, expondo em muitos casos, uma ampliação da interferência do Judiciário nos sistemas político e econômico, o que exige uma maior legitimidade democrática da tomada de decisão.

Sendo assim, a saúde brasileira precisa de novas e sustentáveis políticas públicas capazes de transmitir eficiência ao modelo de administração praticado pelo Estado brasileiro, construindo sistemas capazes de promover a real recuperação da saúde dos cidadãos, dando-lhes a oportunidade de usufruir da igualdade de posições próprio de um Estado Democrático de Direito, cuja finalidade essencial é a igualdade dos membros da sociedade.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme exposto anteriormente, mesmo com a criação do Sistema Único de Saúde, o Brasil ainda sofre com a falta de investimento e estrutura na área da saúde, e isso tem impacto na vida de vários cidadãos que, por não terem condições de pagar por planos de saúde privados, se veem obrigados a procurar atendimento na rede pública.

Essa alta procura por parte da população aliada com a deficiente estrutura do Estado em fornecer os serviços de saúde solicitados acabou gerando uma demanda peculiar em vários estados da federação brasileira: muitos cidadãos têm procurado o poder judiciário para forçar o Estado a fornecer tratamentos e medicamentos de alto custo.

Entra aí a chamada judicialização da saúde, e de um lado há o apelo das pessoas que invocam o direito à vida para fundamentarem seus pedidos, e do outro, o Estado, que alega não ter condições de atender a todos, visto que há toda uma questão legal envolvida em torno do orçamento público. Como se pode ver, há críticas em torno da prática das ações judiciais envolvendo o fornecimento de medicamentos de alto custo. Alguns alegam que o judiciário, ao deferir uma ação deste tipo, acaba favorecendo uma parcela da população em detrimento de outra, ferindo assim o princípio da igualdade. Outros ainda dizem que tais decisões acabam por ferir o princípio da separação dos poderes, visto que tais ações interferem diretamente nos gastos do poder Executivo, que se vê na obrigação de atender a ordem judicial e tem que fazer o possível para manter o controle dos gastos públicos. Porém há também críticas positivas, onde defendem a atuação do judiciário, e acham que este deve ter uma postura enérgica e proativa na execução das ações de manutenção da saúde pública.

O fato que é deve-se ter cautela no que se refere a tal judicialização da saúde, pois estas situações deveriam ser exceções, ao passo que com tantas demandas em andamento, tal instituto fique “banalizado”. Deve-se tentar solucionar o problema nas suas causas, com ações e políticas públicas de modo que um dia, a população em geral não tenha mais que procurar a justiça para conseguir que se faça valer um direito básico de todos, que é a saúde.


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