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Afinal, stalking é crime formal ou material?

Afinal, stalking é crime formal ou material?

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Com o advento da Lei nº 14.132/21, publicada no dia 1º de abril, o crime de stalking foi inserido no Código Penal. Muitas ponderações surgiram na doutrina com relação à sua natureza.

I – QUESTÕES INTRODUTÓRIAS ACERCA DO CRIME DE STALKING.

A Lei nº 14.132/21 foi publicada no dia 1º de abril, e incluiu, no Código Penal, o artigo 147-A, dentro do capítulo VI, do título I, da parte especial (que tutela a liberdade individual das pessoas), o denominado crime de perseguição, também conhecido por crime de Stalking, termo inglês utilizado para designar a conduta de perseguição.

Vale apontar que o artigo 147-A, do Código Penal, descreveu a conduta típica, seguida do preceito secundário, nos seguintes termos: “Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade. Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.”

Da leitura do dispositivo não se extraem maiores controvérsias quanto à exigência de habitualidade das condutas para a adequação formal ao tipo penal, em especial diante do elemento normativo do tipo, retratado pelo termo reiteradamente. Consequentemente, diante da incompatibilidade com os crimes habituais, não se vislumbra a possibilidade de tentativa nestes crimes, consoante entendimento consolidado pela doutrina. Ademais, da leitura da disposição normativa acima parece não haver dúvidas de que se trata de crime bicomum, na media em que a figura típica não exige qualidade especial tanto do sujeito ativo do crime, quanto do sujeito passivo (apenas há previsão, no §2º, incisos I e II, de causas de aumento da pena, por conta da qualidade especial do sujeito passivo).

Não obstante os supracitados pontos de consenso, que são extraídos do novo tipo penal por meio de uma simples leitura do seu texto, há, sem dúvidas, questões divergentes sobre este novo delito, que serão, certamente, objeto de intenso debate na doutrina e na jurisprudência. Dentre estas questões, temos a referente à natureza material ou formal do crime.


II – STALKING COMO CRIME FORMAL OU MATERIAL.

Valendo-nos das lições de Guilherme de Souza Nucci, crime formal “é aquele em que a lei descreve uma ação e um resultado, no entanto, o delito restará consumado no momento da prática da ação, independentemente do resultado, que se torna mero exaurimento do delito”.[1] Por outro lado, crime material é aquele que a lei exige a verificação do resultado descrito no tipo, para que haja a consumação do delito.

Analisando os elementos do artigo 147-A, observa-se que o verbo, ou ação nuclear do tipo, é retrado pelo termo perseguir, que representa uma conduta de importunação reiterada da vítima.

Observa-se, ainda dos elementos do tipo, que estamos diante de um crime de ação múltipla, que comporta três formas de execução, através do núcleo do tipo perseguir, as quais serão, a seguir, analisadas individualmente, com o fim de verificar a natureza material ou formal do crime.


III - CONDUTA DE PERTURBAR POR MEIO DA AMEAÇA À INTEGRIDADE FÍSICA OU PSICOLÓGICA DA VÍTIMA.

Em relação a esta primeira forma, vale tecer as considerações apresentadas no estudo elaborado por Rogério Sanchéz: “Na primeira forma, o tipo do art. 147-A incorpora o crime de ameaça – tipificado no dispositivo precedente –, que consiste em ameaçar alguém por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave”.[2]

Como bem destacado pelo saudoso professor, observa-se que estamos diante de uma figura especial do crime de ameaça, sendo o elemento especializante justamente a conduta de importunação reiterada. Especificamente quanto ao crime de ameaça (artigo 147, do CP), é reconhecida pela doutrina a sua natureza de crime formal. No mesmo sentido, a jurisprudência: RT 738/691, 702/345 e 677/370.

Assim, nos parece que não haverá maiores divergências acerca da natureza formal desta forma de execução, tendo em vista que se trata de mero tipo especial do crime de ameaça, de modo que, para configuração do delito nesta primeira forma, basta a conduta de perturbar, por meio do uso de ameaça, ainda que esta não tenha o potencial de gerar intimidação pessoal à vítima, pois a própria ameaça de um mal grave e injusto confere reprovabilidade à conduta do agente, que é essencial à aplicação do direito penal como medida de ultima ratio.


IV - CONDUTA DE PERTURBAR POR MEIO DA RESTRIÇÃO À CAPACIDADE DE LOCOMOÇÃO DA VÍTIMA.

Quanto a esta segunda forma de execução, acreditamos que surgirá intenso debate na doutrina acerca da natureza do delito.

Em texto publicado pelo saudoso Professor Fernando Abreu, que considera todas as formas de execução como crimes formais, foram apresentadas as seguintes considerações: “Em linhas gerais, o tipo penal trilha o caminho do embaraço, do constrangimento, da importunação e perturbação, e não da efetiva realização de comportamentos que poderiam ser alcançados, autonomamente, por outros tipos penais, como a ameaça, constrangimento ilegal e cárcere privado”.[3]

Não obstante as considerações acima, entendemos que, nesta segunda figura, estamos diante de crime material, na medida em que o tipo não se contenta com a mera conduta de perturbar. Exige o tipo a efetiva verificação do resultado naturalístico, representado pela redução da capacidade da vítima de exercer sua liberdade de locomoção, frente ao temor gerado pela perseguição.

Vale acrescer que eventuais conflitos que possam surgir, ante o cotejo entre o delito de perturbação e os delitos de constrangimento ilegal e de cárcere privado, apenas são aparentes, mesmo com a verificação do resultado descrito no tipo do crime do artigo 147-A, do CP.

Especificamente em relação ao crime de constrangimento ilegal, vale destacar que o verbo nuclear do tipo vem retratado na expressão constranger, que representa uma coação ilegal, conduta esta dotada de menor gravidade, se comparada com a conduta perturbar, na medida em que apresenta menor grau de violação ao bem jurídico tutelado pela norma (liberdade individual), pois no tipo do artigo 147-A exige-se uma violação reiterada deste mesmo bem jurídico tutelado pela norma penal. Novamente, o verbo nuclear serve como elemento especializante do tipo, que o distingue da conduta prevista no artigo 147, do CP.

Quanto ao cárcere privado, valendo-nos novamente das lições de Rogério Sanchéz, depreende-se que, no crime de perturbação, não se tem o tolhimento da liberdade em si, que é exigida para os crimes do artigo 148, do CP; há, todavia, a prática de condutas que buscam inibir, pelo estado de temor, a capacidade de locomoção da vítima.[4]

Vale destacar, ainda, que entendemos ser crime de natureza material em razão do cometimento da simples perturbação, sendo a efetiva restrição da capacidade de locomoção da vítima, um indiferente penal. Entendemos que a conduta de perturbar, sem o emprego de ameaça, ou sem a restrição da liberdade da vítima, configura mero ilícito civil, na medida em que se trata de conduta dotada de menor desvalor. Diríamos que é até comum, no dia-a-dia, tendo em vista que não pode ser considerada como inserida no tipo penal, tendo em vista, e como já destacado, ser o direito penal medida de ultima ratio. Lembrando um dos exiomas do garantismo penal, não há lei penal sem necessidade (nulla lex poenalis sine necessitate).

Ademais, considerar qualquer perturbação, independentemente da verificação do resultado jurídico descrito no tipo, aparenta-nos violação ao princípio constitucional implícito da proporcionalidade, tendo em vista que se pune com menos rigor a conduta de ameaçar alguém, uma vez comparada com a mera conduta de perturbar alguém.

Assim, não obstante a divergência doutrina, acreditamos que estamos diante de crime material nesta forma de execução.


V - CONDUTA DE PERTURBAR POR MEIO DA INVASÃO OU PERTURBAÇÃO, DE QUALQUER FORMA, À ESFERA DE LIBERDADE OU PRIVACIDADE DA VÍTIMA.

Nesta terceira forma de execução, não obstante posicionamento acima, acerca da natureza formal deste crime, também entendemos que aqui o legislador deixou expresso que, para além da conduta de perturbar, deve-se observar o resultado naturalístico, consistente na inibição do desempenho de atividades cotidianas pela vítima, ou pela violação da privacidade da vítima. Sem estes resultados naturalísticos acreditamos que o delito não estaria configurado, nem mesmo na sua forma tentada, tendo em vista que se trata de crime habitual.

E as considerações são as mesmas daquelas apresentadas no capítulo anterior, em especial a violação ao princípio da proporcionalidade.


VI - CONCLUSÃO.

Pelas considerações supra, observa-se que ainda não há um entendimento pacífico acerca da natureza material ou formal destas formas delitivas, que, para nós, na primeira forma de execução supracitada apresenta-se como crime formal, por conta do desvalor da conduta perturbar, sob a forma de ameaça. Ao passo que, quanto às demais formas de execução, entendemos que retratam verdadeiros crimes materiais, pois, sem a verificação efetiva do resultado naturalístico descrito no tipo, estaremos diante de um indiferente penal, vez que o direito penal é medida de ultima ratio.

Importante, com isto, acompanhar a evolução do pensamento doutrinária sobre a questão, bem como as futuras decisões judiciais acerca do tema, que se apresenta controvertido neste novo tipo penal.


Notas

[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

[2] Lei 14.132/21: Insere no Código Penal o art. 147-A para tipificar o crime de perseguição. Disponível em: https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2021/04/01/lei-14-13221-insere-no-codigo-penal-o-art-147-para-tipificar-o-crime-de-perseguicao/. Acessado em 02 de abril de 2021.

[3] Artigo 147-A: Crime de Perseguição. Disponível em https://blog.mege.com.br/artigo-147-perseguicao/. Acessado em 02 de abril de 2021.

[4] Idem item 3.


Autor

  • Maicon Natan Volpi

    Especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela ESMPSP (Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo). Já foi Advogado. Atuou em convênio com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Atualmente exerce o cargo de Analista Jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VOLPI, Maicon Natan. Afinal, stalking é crime formal ou material?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6492, 10 abr. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89696. Acesso em: 19 abr. 2024.