Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/90136
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

O Acordo de Não Persecução Penal

como instrumento de efetivação na reparação do dano

O Acordo de Não Persecução Penal. como instrumento de efetivação na reparação do dano

Publicado em . Elaborado em .

As alterações legislativas advindas da Lei nº 13.964/19, conhecida como “pacote anticrime”, demonstram a preocupação do legislador em aperfeiçoar a norma processual penal, a fim de tornar céleres a persecução penal e a efetiva reparação do dano.

INTRODUÇÃO

O Brasil, nação de dimensões continentais, com uma população de mais de 200 milhões de habitantes[1], com a terceira maior população carcerária do mundo – para a qual estudos governamentais estimam que ainda é necessária a criação de mais de 300 mil vagas no sistema carcerário[2] – enfrenta índices de violência elevados. Somente no primeiro semestre de 2020, mais de 25.000[3] pessoas foram assassinadas no Brasil: ou seja, o dado demonstra que, a cada 10 minutos, uma pessoa é assassinada no País. Os números refletem uma política criminal que vem deixando a desejar no quesito de inibir o crescimento desse tipo de delito.

A plataforma política que se sagrou vencedora das eleições presidenciais de 2018 trazia como bandeira a melhoria no quesito da segurança pública, tanto que, na ocasião, foi escolhido para comandar a pasta da justiça o ex-juiz federal Sérgio Moro, idealizador do pacote anticrime. Em dezembro 2019, a lei respectiva foi sancionada pelo Presidente da República e entrou em vigor no mês de janeiro de 2020.

Dentre as inovações trazidas pela supracitada lei está o acordo de não persecução penal, que hoje estampa o artigo 28-A do Código de Processo Penal, prevendo a possibilidade de ser proposto o acordo pelo Ministério Público nos crimes sem emprego de violência ou grave ameaça, em que a pena mínima seja inferior a 4 anos, desde que necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.

O presente artigo vem com o propósito de analisar essa inovação legislativa, de maneira a compreender de que modo pode interferir no processo de restauração do dano causado pelo criminoso, já que o cárcere, conforme demonstram os números, não é a garantia de declínio de delitos. Analisa também se o referido acordo de não persecução penal leva em consideração a vontade da vítima em seu processo de construção.

A relevância deste artigo para a comunidade acadêmica se faz presente por ainda não se ter uma robustez bibliográfica acerca do tema, visto ser uma lei recente.


O PAPEL DA VÍTIMA NOS ESTUDOS CRIMINOLÓGICOS

Desde os primórdios do estudo do direito, no tempo do código de Hamurabi, onde havia a forte incidência da pena capital, a vítima exercia papel importante no processo de execução. Nesta época, o jus puniendi não era exercido com exclusividade pelo estado. Tínhamos a era da vingança privada, onde um simples furto tinha como pena a morte.

O estudo da vítima na relação com o crime, segundo Penteado  Filho (2020), divide-se em 3 fases: a primeira denominada idade de ouro, traz em seu bojo o protagonismo da vítima, é a era do “olho por olho” ou “vingança de sangue”, contemporânea às monarquias absolutistas, que davam à vítima o direito do revide. Neste sentido teria a vítima o direito à replicação do mal perpetrado para com o autor.

 Já a segunda fase marca a neutralização do poder que a vítima tinha na fase anterior. Este período traz o estado como detentor da iniciativa da ação penal em sua grande maioria, tendo a vítima somente a iniciativa em casos determinados (ação penal privada ou ação penal condicionada à representação).

A última fase remonta à revalorização da posição da vítima a partir da escola clássica da criminologia (Carrara, Beccaria e Carmignani) como também a macrovitimização após grandes conflitos históricos, como a segunda grande guerra, onde estima-se que mais de 60.000.000 (sessenta milhões) de vidas tenham sido perdidas[4].

Outro ponto importante foi o surgimento de delegacias especializadas de combate a certos tipos de delito, como delegacias das mulheres, idoso e da criança, que siginificaram uma demonstração de que o estado passou a dar mais atenção às vítimas mais vulneráveis da sociedade. Em 1985, A primeira delegacia da mulher[5] no Brasil foi criada no Estado de São Paulo. Hoje, em todos os estados da federação, há a presença dessas delegacias, entretanto, apenas 8,3% dos municípios brasileiros possuem este aparelhamento estatal[6].


VIOLÊNCIA EM NÚMEROS NO BRASIL

O Atlas da violência[7] do IPEA – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, entidade governamental, expõe uma realidade difícil na mancha criminal brasileira. Só na questão dos números de homicídio registrados no ano de 2017, o estado de Pernambuco apresentou o total de 5.419 pessoas assassinadas, um número maior que os homicídios registrados em todo o estado de São Paulo que, naquele ano, teve 4.631 assassinatos.

Mapa da incidência de homicídios no Brasil em 2017.

Fonte: IPEA (2017).

Já no quesito de roubos e furtos, o Brasil registrou, no ano de 2019, mais de 2.000.000[8] (Dois milhões) desse tipo de ocorrência: um número substancial que demonstra uma sociedade com forte desigualdade social e com políticas criminais que têm se demonstrado ineficientes para reduzir esses índices.

Muitos desses furtos têm como destino a viabilidade do consumo de entorpecentes, pois, infelizmente, milhares de brasileiros cometem esse tipo de delito por conta do vício e por já não terem mais meios legais de sustentá-lo.


DIFERENÇAS ENTRE O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL E A TRANSAÇÃO PENAL CONTIDA NA LEI 9.099/90.

Primeiramente, é mister salientar que a aplicabilidade da lei 9.099/90, no que tange às infrações de menor potencial ofensivo, estas que estão estampadas no artigo 60 da referida lei, não excluem crimes que tenham sido praticados com violência ou grave ameaça, somente se remetendo ao quantum da pena máxima, que não poderá ultrapassar os dois anos. Já o acordo de não persecução penal, contido no artigo 28-A do Código de Processo Penal, tem, como um de seus requisitos, o crime ter sido praticado sem violência ou grave ameaça, conforme está exposto no caput do referido artigo.

Outro contraste entre os dois institutos reside na confissão por parte do acusado, acerca da autoria delituosa. No acordo de não persecução penal, esta confissão não se faz necessária para a incidência da lei 9.099/90, porquanto não se vê o requisito da confissão como mitigação do princípio da presunção da inocência, pois, como se sabe, o acordo de não persecução penal não se reveste de obrigatoriedade na sua celebração, sendo portanto faculdade do acusado a sua aceitação.

Um ponto também que merece o devido destaque está no afastamento da incidência do acordo de não persecução penal quando houver hipótese de cabimento da Lei 9.099/90, conforme expõe o inciso I do parágrafo segundo, do artigo 28-A no Código de Processo Penal. Logo, chegamos à conclusão que os institutos estudados são excludentes, não podendo coexistirem ante um mesmo caso em concreto.

O Conselho Nacional do Ministério Público editou a resolução 181, que dispõe acerca do procedimento investigatório criminal a cargo do parquet, versando acerca da faculdade que o membro do Ministério Público tem no oferecimento do acordo de não persecução penal. Neste sentido, leciona Barros[9]:

Através da regulamentação restritiva dada ao instituto em comento pelo CNMP, pode-se perceber que o acordo de não-persecução penal, na prática, tem incidência seletiva, sendo aplicável apenas aos delitos de média lesividade, funcionando como mais um instrumento ligado à justiça restaurativa, ao lado da composição civil dos danos, da transação penal, dentre outros.

O advento do acordo de não persecução penal traz, em seu bojo, mais uma ferramenta de se fazer com que haja uma reparação, quando possível, do dano perpetrado pelo autor em relação a vítima, de modo à se aproximar da efetivação da justiça.


 O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL E A JUSTIÇA RESTAURATIVA.

O movimento da Justiça Restaurativa, que nasce sob a perspectiva de uma maior integração das partes na solução dos conflitos, vem tomando corpo no Brasil à medida que as políticas criminais adotadas nos últimos anos não estão conseguindo diminuir os números dos crimes, de maneira significativa.

Em um sistema onde as penas privativas de liberdade se diferem conforme a reprovabilidade do delito, não é cabível se ter somente o cárcere como forma de sanção ao delito. Neste sentido, defende Pinto:

É preciso avançar para um sistema flexível de justiça criminal, com condutas adequadas à variedade de transgressões e de sujeitos envolvidos, num salto de qualidade, convertendo um sistema monolítico, de uma só porta, para um sistema multiportas que ofereça respostas diferentes e mais adequadas à criminalidade. (PINTO, 2014, p. 19)

O efeito perseguido pelo modelo restaurador se substancia na reparação do dano que o cárcere do autor, por si só, não é suficiente para restaurá-lo. Desta forma, não se pode relegar a participação da vítima no processo de resolução do conflito: não é que teremos sempre a melhor solução, mas a justiça restaurativa pretende se aproximar do melhor desfecho possível.


O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL E A FRAGMENTARIEDADE DO DIREITO PENAL.

No processo de busca da otimização da aplicação do direito penal, onde boa parte da doutrina aponta seu caráter fragmentário, sendo o alemão Claus Roxin[10] um de seus expoentes, se busca eleger o direito penal afeto, apenas, às graves ofensas aos bens jurídicos protegidos.

Leciona Cleber Masson[11] acerca desta fragmentariedade:

“...Nem todos os ilícitos configuram infrações penais, mas apenas os que atentam contra valores fundamentais para a manutenção e o progresso do ser humano e da sociedade. Em resumo, todo ilícito penal será também ilícito perante os demais ramos do direito, mas a recíproca não é verdadeira.” (MASSON, 2020, p.46)

O princípio da intervenção mínima, que é corolário da fragmentariedade do Direito penal, aponta a aplicação da sanção punitiva como a última ratio. Desta forma, a fronteira da seara penal só seria transposta quando os outros ramos do direito falhassem. Assim nos traz oportuno ensinamento o professor Rogério Sanches[12]:

O Direito Penal só deve ser aplicado quando estritamente necessário, de modo que a sua intervenção fica condicionada ao fracasso das demais esferas de controle (caráter subsidiário), observando somente os casos de relevante lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado (caráter fragmentário). (SANCHES, 2015, p.69)

Neste diapasão, a aplicabilidade do acordo de não persecução penal se dá de forma a prestigiar o caráter fragmentário do direito penal em comento, visto que o referido acordo tem como incidência os crimes perpetrados sem violência ou grave ameaça, deixando a mão pesada do estado para crimes considerados mais graves, que carecem de uma repreensão mais robusta.


O PAPEL DA VÍTIMA NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL

Na simples leitura do artigo 28-A do Código de Processo Penal, percebe-se que cabe ao Ministério Público a faculdade de propor o referido acordo, nos casos em que haja o preenchimento dos requisitos legais. Entretanto, ao analisarmos se haveria alguma manifestação da vítima, de modo a participar efetivamente dessa propositura, vemos que a resposta é negativa, ou seja, não há nenhum tipo de cientificação, ou concordância, daquele(a) que teve seu bem jurídico lesado.

A única menção à vítima que o dispositivo legal em comento traz é a questão do aviso do não cumprimento do acordo e de seu descumprimento, que está estampado no nono parágrafo do referido artigo. Neste sentido, registramos a ausência de manifestação da vítima no processo de concessão do acordo. E não se trata de invasão do jus puniendi estatal, mas sim, de uma possível revitimação do polo passivo, visto que, além de ter seu bem jurídico ofendido, tem também a opinião na propositura do acordo negada pela legislação.


PERSPECTIVAS NA APLICAÇÃO DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL NO BRASIL.

   Inegavelmente, o Brasil apresenta números vultosos no que se refere à demanda criminal que bate a porta do poder judiciário. Dados do relatório Justiça em Números[13] 2020 do CNJ – Conselho Nacional de Justiça, apontam que, no ano de 2019, ingressaram no Poder Judiciário mais de 2,4 milhões de novos casos criminais. Somado a isso, somente no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, existe mais de um milhão de processos criminais pendentes, conforme ilustra o gráfico abaixo:

Gráfico representando o número de processos novos e pendentes, excluídos os em fase de execução penal, por tribunal.

       

Fonte: CNJ (2020).

Analisado os números de processos criminais em curso no País, bem como o advento do acordo de não persecução penal, o prognóstico que se tem é da possibilidade de uma redução substancial nos números dos processos, à medida que ocorra a construção de uma solução que seja efetiva na reparação do dano e célere aos que recorrem ao judiciário.

No tocante à ausência de participação efetiva da vítima no processo de construção do acordo de não persecução penal, necessário que se diga que, embora ele deixe de prestigiar a voz de quem teve o bem jurídico ofendido, revela-se, sobremaneira, uma importante ferramenta para a efetivação da reparação do dano causado, dando mais celeridade a quem dela recorre.  


REFERÊNCIAS

PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Manual Esquemático de Criminologia. São Paulo: Saraiva, 2020.

MASSON, Cléber. Direito Penal Parte Geral. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Método, 2020.

CUNHA, R. S. Manual do Direito Penal. 3. ed. rev. e atual. Bahia: Juspodivm, 2015.

BARROS, F.D et al Acordo de Não Persecução Penal. 3. ed. rev. e atual Bahia: Juspodivm, 2019.

INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS APLICADAS. Atlas da violência: modelo institucional. Brasília: 2020.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2020. Brasília: 2020.


[1] Disponível em <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/28668-ibge-divulga-estimativa-da-populacao-dos-municipios-para-2020>, Acesso em: 15 de out 2020.

[2] Disponível em <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-02/brasil-tem-mais-de-773-mil-encarcerados-maioria-no-regime-fechado#:~:text=Publicado%20em%2014%2F02%2F2020,e%20nas%20carceragens%20das%20delegacias>., Acesso em: 15 de out 2020.

[3]  Disponível em <https://www.gazetadopovo.com.br/republica/homicidios-taxa-brasil-primeiro-semestre 2020/#:~:text=No%20total%2C%20foram%2025.712%20assassinatos,dois%20anos%20seguidos%20de%20queda.&text=Os%20dados%20de%20homic%C3%ADdios%20no,de%20Seguran%C3%A7a%20P%C3%BAblica%20(FBSP), Acesso em: 04 de nov 2020.

[4] Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_guerras_por_n%C3%BAmero_de_mortos Acesso em: 05 de nov 2020.

[5]Disponível em <https://www.saopaulo.sp.gov.br/ultimas-noticias/criacao-da-1-delegacia-de-defesa-da-mulher-do-pais-completa-30-anos/> Acesso em: 05 de nov, 2020.

[6] Disponível em <https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2019-09/em-917-das-cidades-do-pais-nao-ha-delegacia-de-atendimento-mulher> Acesso em: 05 de nov, 2020.

[7] Disponível em <https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/dados-series/17> Acesso em: 05 de nov, 2020.

[8] Disponível em <https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/epidemia-do-crime-furtos-e-roubos-passam-da-casa-do-milhao-todo-ano-no-brasil/#:~:text=Certo%20%C3%A9%20que%2C%20contabilizando%20apenas,comerciais%2C%20resid%C3%AAncias%2C%20pedestres%2C%20institui%C3%A7%C3%B5es> Acesso em: 06 de nov, 2020.

[9] Procurador Geral de Justiça, Promotor de Justiça Criminal e Eleitoral, Mestre em Direito

[10] Jurista alemão, doutor honorário em 17 universidades.

[11] Promotor de Justiça do Estado de São Paulo, Bacharel e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

[12] Promotor de Justiça do Estado de São Paulo, Professor de Direito e Processo Penal do CERS Cursos Online e do Lesen Cursos.

[13] Disponível em <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf> Acesso em 06 de nov, 2020.


Autor

  • Aldemar Anderson Gondim Ferreira

    Servidor Público Estadual Graduado em Administração de Empresas - Faculdade Metropolitana da Grande Recife Graduado em Direito - Faculdade Osman Lins - Vitória de Santo Antão/PE Pós-Graduado em Direito Público - Universidade Estácio de Sá Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal - Faveni

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor


Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelo autor. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi.