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Educação infantil como meio de prevenção ao abuso sexual

Educação infantil como meio de prevenção ao abuso sexual

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Examina-se a implementação da educação sexual no ensino infantil como ferramenta de prevenção e combate ao abuso sexual do infante.

RESUMO:O presente artigo tem por objetivo propor a reflexão sobre a educação sexual na infância como um meio de prevenção e combate ao abuso sexual infantil. A construção do presente artigo se dará através da análise de dados obtidos como respostas de um questionário online, formulado em conjunto com profissionais da educação e da psicologia,  tendo por base, ainda, estudos científicos anteriormente publicados com temas correlatos, doutrina e Legislação Brasileira aplicável.  Trata-se da busca pelo entendimento da assimilação social acerca da necessidade da aplicação da educação sexual desde o ensino primário como forma de prevenção e combate ao abuso sexual infantil.

Palavras-Chave: Educação sexual. Família. Prevenção. Combate. Abuso Infantil.


1. INTRODUÇÃO

Pesquisar a educação sexual infantil em escolas em parceria com a comunidade familiar foi pensada no intuito de prevenir e combater atos de violência sexual contra crianças.

O abuso sexual é um crime que possui consequências físicas e psicológicas, deixando marcas para sempre na vida da vítima. Dessa maneira, faz parte dos objetivos gerais desta pesquisa, a necessidade de conscientizar as crianças de que seu corpo é inviolável, e desmistificar o conceito preexistente na sociedade de que a educação sexual se traduz em ensinar, de fato, a prática sexual para a criança, ou que a educação sexual irá despertar curiosidades antes do tempo considerado adequado.                                                                                                             

O tema pode ser apresentado  de forma sutil e natural, envolvendo família e escola, visando  orientar e apresentar para as crianças as partes do seu corpo, quais são seus nomes, o porque que algumas delas não devem ser tocadas por outras crianças e por adultos além de seus pais e/ou responsáveis, sempre com respeito à faixa etária e utilizando-se de meios pedagogicamente adequados.                                                                                                                                   

Como objetivos específicos incluem a aplicação da educação sexual na infância, visando proporcionar o aprendizado sobre o próprio corpo e a  compreensão da importância da preservação e higienização do mesmo, além de trabalhar o diálogo com os pais e/ou responsáveis sobre qualquer tipo de violação, por menor que possa ser, possibilitando, assim a redução e o combate à violência sexual de crianças.

A criança deve ser capaz de reagir à eventual violação, pois poderá obter a compreensão de que “no meu corpo, não se toca sem a minha permissão".  Sendo válido ressaltar, que a educação sexual deve ser considerada como responsabilidade tanto da escola quanto da família.


2. INFÂNCIA E EDUCAÇÃO INFANTIL

Antes do início da abordagem acerca da educação sexual na infância, é essencial conceituar e contextualizar o que é considerado criança pelo ordenamento jurídico brasileiro. 

“A palavra infância, é originária do latim infantia e significa “incapacidade de falar”  (MELLO, et al; 2013) sendo que o conceito de infância vem sendo construído ao longo da história, tratando-se ainda hoje, de uma palavra de difícil conceituação.

Considera-se criança a pessoa com até 12 anos de idade incompletos, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei n°8.069/90. Ariès(1973) retrata que no século 12, Idade Medieval, as crianças a partir dos 07 anos de idade, após tardio desmame, passavam a ser independentes de suas mães, ingressando no mundo adulto, e vivendo da forma como estes viviam, nas noites de jogos, e trabalhando como estes trabalhavam, como se fossem mini adultos. De acordo com Aline Melo, “quando as crianças eram representadas através de pinturas, elas eram frequentemente retratadas numa perspectiva de um adulto em miniatura.” (MELLO, et al; 2013)

Entre os séculos XV e XVII, na idade moderna, a preocupação com a educação foi tomando força, tornando-se essencial na sociedade. (ARIÈS, 1973). Já durante o século XX, na Europa, havia uma preocupação dominante em encaminhar as concepções sobre a infância a um estudo mais rigoroso. No período  seguinte à Primeira Guerra Mundial, destacaram-se na psicologia e na pedagogia as idéias a respeito da infância como fase de valor positivo e de respeito à natureza. (OLIVEIRA, 2011. Pág.77).

No Brasil, aprovada em 1961, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional aprofundou a perspectiva apontada desde a criação dos jardins de infância com a sua inclusão no sistema de ensino. (OLIVEIRA, 2011. Pág 97 a 102). Além disso, determina  em seu artigo 2°, a  educação como dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tendo por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, reforçando o dever do Estado e da família em promover o acesso das crianças à educação, sendo esta uma forma de desenvolvimento saudável da criança.

Ressalta-se que a Constituição de 1988 prevê em seu artigo 208, inciso IV, a garantia da educação infantil em creche e pré- escola, até os 5 anos de idade, ou seja, de 0 (zero) aos 5 (cinco) anos de idade.

Ainda no artigo 205 da Constituição Federal, está descrito que além de dever do Estado, a educação é também um dever da família e da sociedade. No mesmo sentido, expressa-se o Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 4º,  prevendo que a família, a sociedade em geral e o poder público tem o dever de assegurar com absoluta prioridade, o acesso das crianças aos direitos fundamentais que incluem a educação e a dignidade, baseando-se a presente discussão no segundo. 

2.1 A educação como garantia do direito à dignidade humana

Segundo Barroso (2010), a dignidade da pessoa humana teve origem inicialmente no âmbito religioso, e após, com o surgimento do Iluminismo e a centralização do homem, este conceito migra para a filosofia, fundamentando-se na busca pela razão, e no século XX passa a ser um objetivo político e social. Após a 2ª Guerra Mundial, a dignidade humana começa então a fazer parte da esfera jurídica. 

A dignidade humana é protegida no âmbito nacional através da Constituição Federal, e fundamenta o Estado Democrático de Direito (Art.1°, III, CF/88).

Vê-se que a expressão “dignidade humana” é de difícil conceituação, mas trata-se de garantia que visa proporcionar ao ser humano uma vida em que possa usufruir com liberdade e integridade de todos os seus direitos e deveres. Mencionada em incontáveis documentos, inclusive de alcance internacional, como constituições, leis e tratados, a dignidade da pessoa humana é um dos poucos e grandes consensos éticos do mundo ocidental e, embora possua inúmeras variações, remete a situações de discussão acerca do controle sobre o próprio corpo, direitos igualitários, exercício de crenças, limites científicos e limites a penalidades a serem aplicadas em condenações criminais, além da definição do que é considerado vida, e suas implicações.

Este Princípio Constitucional trata da valorização da pessoa humana de múltiplas formas, buscando a garantia do exercício dos direitos do ser social sem que haja a necessidade de termo específico como referência em cada campo de vida e convivência social. Embora amplo, é parte fundamental da construção do direito contemporâneo, desde o resguardo aos direitos fundamentais constitucionalmente protegidos até às relações internacionais advindas da globalização. Ressalta-se que embora não haja uma especificação do modo de aplicação deste princípio presente na Carta Magna brasileira, é inquestionável o dever de observar essa garantia em todas as decisões no âmbito judicial, em qualquer relação em âmbito público e particular, devendo ser resguardado os direitos individuais, desde físicos aos culturais.

O Estado, quando garante à educação desde o primeiro ano de vida, proporcionando o resguardo dos direitos constitucionalmente garantidos, promove a dignidade humana, sendo que a escola exerce um importante papel de complementação da educação infantil. Nas palavras de Pedro Goergen, percebe-se que a educação vem evoluindo conforme a sociedade, e a evolução é capaz de proporcionar melhorias na vida das crianças e consequentemente, nas novas gerações. 

A educação, antes destinada a aprimorar a conformidade do ser humano com os desígnios divinos, passa a ser concebida como um instrumento de aprimoramento de uma racionalidade que seja capaz de, desvendando os segredos da natureza tanto humana, quanto material, alcançar  uma vida melhor para o ser humano, aqui mesmo, na Terra.(GOERGEN, 2005, p. 59) 

Os números mostram que o abuso sexual contra crianças vem aumentando desde 2018. De acordo com dados disponíveis no site do governo brasileiro, de 2018 para 2019, o aumento foi de 14%, um grande aumento, conforme demonstra dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde:

Dos 159 mil registros feitos pelo Disque Direitos Humanos ao longo de 2019, 86,8 mil são de violações de direitos de crianças ou adolescentes, um aumento de quase 14% em relação a 2018.

Com a crescente estatística de abusos sexuais cometidos contra crianças, é necessária a evolução no sentido de tratar o assunto de forma mais efetiva com as próprias crianças, de modo preventivo. 

A proposta de incluir a educação sexual desde a infância tem o intuito de educar a criança a respeito de seu corpo e de suas características, levando-a a compreender os limites do contato físico com outras crianças e até mesmo com outros adultos. Isso extrapola o âmbito educacional, sendo relevante discussão com o objetivo de minimizar a ocorrência e a sensação de impunidade quanto aos crimes previstos no ordenamento jurídico brasileiro que visam a proteção da dignidade sexual pela ausência de informação àquelas que são as maiores vítimas, as crianças.

2.2 Senso comum acerca do tema

Para complemento deste estudo, foi realizada uma pesquisa  via preenchimento de formulário com diversas pessoas com idades entre 14 e 67 anos, as quais terão suas identidades preservadas em sigilo.

Quando indagados com a seguinte pergunta: “Você poderia explicar resumidamente, a diferença entre as expressões "educação sexual" e "incentivo a sexualidade"?” - do total de respostas obtidas, aproximadamente 86.54% se manifestaram no sentido de traduzir a educação sexual como um meio de orientação acerca do corpo, entendendo ser o autoconhecimento um meio de proteção, e tratando o incentivo à sexualidade como uma forma de incentivar a criança à prática do ato sexual propriamente dito.

Com relação à pergunta: “Você considera interessante que as escolas infantis abordem assuntos relacionados à sexualidade e abuso sexual?” - aproximadamente 18,5% dos entrevistados se manifestaram total ou parcialmente contra, expressando que seria dever da família abordar este assunto, sendo que entre os entrevistados, 59,23% não possuem filhos e apenas 18,44% não possui convivência próxima com crianças. Dos que se manifestaram a favor, alguns reconhecem que essa tratativa desde a infância pode prevenir algumas situações de abuso, e que muitas vezes o abuso pode ocorrer no próprio seio familiar. 

Das respostas obtidas, aproximadamente 36,89% dos entrevistados afirmaram que não abordaram com crianças assuntos como toques indevidos, e daqueles que apresentaram justificativas, algumas foram no sentido de que ainda não consideram o momento de abordar esse assunto, e outros entendem que essa abordagem é de responsabilidade das mães dos infantes.

Diversas respostas afirmativas quanto à concordância da prática da educação sexual, se manifestaram no sentido de que essa abordagem deve ser feita de uma forma lúdica, leve ou de forma adaptada para o fácil entendimento. 


3. ABUSO NA INFÂNCIA

Atualmente, o termo abuso sexual é utilizado de forma ampla para classificar diversos atos de violação sexual em que não há manifestação ou possibilidade de consentimento da outra parte. Compõe o rol de atos que caracterizam esse tipo de violência a prática de atos sexuais que sejam forçados, dentre eles, os atos libidinosos, de forma a qual a vítima resta impossibilitada de discernir  a prática do ato, ou que, não possa oferecer resistência. 

A Childhood Brasil caracteriza Abuso Sexual como “toda forma de relação ou jogo sexual entre um adulto e uma criança ou adolescente, com o objetivo de satisfação desse adulto e/ou de outros adultos. Pode acontecer por meio de ameaça física ou verbal, ou por manipulação/sedução.” 

No presente estudo, antes da análise direta da legislação aplicável, destaca-se que o bem juridicamente protegido face os crimes a serem mencionados, é a dignidade sexual, que é uma das ramificações protegidas pelo Princípio da Dignidade Humana, sob o objetivo da busca pelo respeito ao corpo humano, constituindo parte importante na formação da personalidade de qualquer indivíduo.

A dignidade sexual é um conjunto dos fatos e ocorrências que está ligada ao direito à inviolabilidade do próprio corpo, autoestima e intimidade da vida privada, estando diretamente ligada a sexualidade humana, ou seja, a vida sexual de cada um, independentemente de idade, raça, etnia, classe social, gênero ou qualquer forma de separação. Nesse sentido, é socialmente abominável a prática de qualquer tipo de constrangimento ilegal visando a prática de ato com conotação sexual.

A legislação brasileira prevê diversos crimes que atentam contra a dignidade sexual, porém, para o presente estudo considerando-se que o objetivo é o debate acerca da prevenção ao abuso sexual infantil, os crimes a serem abordados, para fins de fundamentação, são os que atentam contra a dignidade sexual dos infantes, quais sejam, o estupro de vulnerável, a corrupção de menores,  e a satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente. O Código Penal prevê outros crimes que ferem a dignidade sexual do vulnerável, e que tratam de formas de abuso mediante exploração sexual do vulnerável, porém estes não serão objeto do presente estudo. Os crimes sexuais contra o vulnerável estão dispostos no Capítulo II, do Título VI do Decreto Lei 2848/40, Código Penal em vigência no Brasil.

3.1 Dos crimes sexuais contra o vulnerável 

O Código Penal proíbe a prática de ato sexual por vulnerável, sendo estes os menores de 14 anos e o doente mental que não possua discernimento para a prática do ato, ou por algum motivo não possa oferecer resistência.

Vulnerável é qualquer pessoa em situação de fragilidade ou perigo. A lei não se refere aqui à capacidade para consentir ou à maturidade sexual da vítima, mas ao fato de se encontrar em situação de maior fraqueza moral, social, cultural, fisiológica, biológica etc. Uma jovem menor, sexualmente experimentada e envolvida em prostituição, pode atingir à custa desse prematuro envolvimento um amadurecimento precoce. Não se pode afirmar que seja incapaz de compreender o que faz. No entanto, é considerada vulnerável, dada a sua condição de menor sujeita à exploração sexual. Por esse motivo, não se confundem a vulnerabilidade e a presunção de violência da legislação anterior. São vulneráveis os menores de 18 anos, mesmo que tenham maturidade prematura. (CAPEZ, 2019. P. 157)

Entre os crimes sexuais contra o vulnerável, estão o estupro de vulnerável, cometido por aquele que pratica conjunção carnal ou ato libidinoso com menor de 14 anos; corrupção de menores, quando o sujeito induz menor de 14 anos a satisfazer lascívia de outrem - de acordo com PIMENTA (2016) lascívia é o “comportamento de quem apresenta uma inclinação para os prazeres do sexo, despudor; característica daquilo que está destinado à libidinagem ou do que possui uma inclinação para a sensualidade”, podendo ser conjunção carnal ou outro ato libidinoso; e satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente, 

O tipo penal pune a ação de praticar, na presença de alguém menor de 14 anos, ou induzi-lo (convencê-lo, persuadi-lo, aliciá-lo, levá-lo) a presenciar conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem. Incrimina-se, dessa forma, a realização de conjunção carnal ou de ato libidinoso diverso, pelo agente com outrem, na presença de menor de 14 anos. Da mesma maneira, incrimina-se a ação de persuadir menor a assistir a prática da conjunção carnal ou outros atos libidinosos levados a efeito por terceiros. Em ambas as condutas típicas, não há qualquer contato corporal do menor com o agente ou com outrem. (CAPEZ, 2019. P. 172)

Observa-se, que conforme expressado por Capez, nesta modalidade, não há a necessidade de haver qualquer tipo de contato físico da vítima com o agente do delito ou com terceiro, bastando apenas que a vítima presencie a prática do ato mencionado. 


4. INTERAÇÃO ENTRE FAMÍLIA E ESCOLA COMO MEIO DE PREVENÇÃO AO ABUSO NA INFÂNCIA

Mesmo com a mudança no comportamento das pessoas acerca da sexualidade com o passar do tempo, o assunto envolve questões que algumas pessoas preferem não discutir, o que por si, promove a ignorância de crianças e jovens acerca dessa temática. Segundo Severo, "A sexualidade é um elemento  importante da condição humana e sua história pode e deve ser investigada a partir de uma perspectiva que não tenha a intenção de excitar ou ofender" (2013, p. 70). Nessa perspectiva, de acordo com a Ministra Sueca, Carina Justin, “a sexualidade é parte da essência humana”, em suas palavras, 

De acordo com Carina Justin, ministra sueca de Cooperação  Internacional  para o Desenvolvimento,  citado por Cornwal e Joel (2008): A sexualidade reside na essência da vida humana, naquilo que torna as pessoas plenamente humanas - é a chave de nossa capacidade de contribuir positiva e plenamente para as sociedades nas quais vivemos[...] os temas de sexualidade e direitos sexuais dizem respeito ao direito de toda pessoa à vida e à boa saúde. (Cornwall e Jolly, 2008, p.31  apud. SEVERO, 2013, p. 70).

Dessa forma, tendo em vista que a sexualidade possui caráter intrínseco à existência humana, a preocupação com a inviolabilidade do direito à dignidade sexual deve ser entendida como uma questão inerente à vida, à educação, à dignidade e à saúde desde a infância, cujo objetivo é de ampliar saberes acerca do assunto e, consequentemente, prevenir ações de objetivam tal violação. Logo, a educação em sexualidade se torna relevante no sistema educacional, reunindo, organizando e ministrando esse conceito na formação humana. 

A cartilha de orientações técnicas sobre sexualidade produzida pela UNESCO, em parceria com a UNICEF e a OMS, adaptada em 2014, dispõe sobre a educação sexual no ambiente escolar visando a orientação para desenvolvimento e construção de currículos escolares adaptados, considerando a localização de implementação das diretrizes, entendendo que a educação sexual no ambiente escolar compreende toda forma de socialização experimentada durante a vida, estando presente em todos os espaços, porém ocorrendo de forma fragmentada e não conexa ao conceito de dignidade humana.         

Nessa orientação, o documento propõe a divisão dos tópicos de aprendizagem, nele denominados como “ideias-chaves”, em quatro níveis, visando a inserção de informações de acordo com faixas etárias específicas, com início aos 05 anos de idade, e sendo reforçadas e aprimoradas nas faixas etárias superiores. Ressalta-se que, pelo estudo realizado, foi identificado que assuntos relativos a toque, identificação e busca de ajuda em situações de abuso, por exemplo, encontram-se nos conceitos-chaves 2 (Valores, atitudes e habilidades) e 3 (Cultura, sociedade e direitos humanos) da referida cartilha, sendo uma das interessantes e importantes  formas de abordagem acerca do tema com as crianças.

Resta evidenciado, pelo contexto geral da educação, que embora seja importante a  tratativa acerca da educação sexual no cronograma da educação infantil,  demonstra-se indispensável a participação da família no âmbito educacional externo ao ambiente escolar.

Conforme expressado por Zilda de Morais (2011), “o processo de aprendizagem evolui de uma participação imitativa sincrética, em que o parceiro mais experiente empresta à criança  suas funções psicológicas", o que permite entender que o que a criança vê, quando criança, refletirá consequentemente em seu desenvolvimento. Portanto, a participação da família em um contexto geral, é essencialmente eficaz quando trabalhada da maneira correta, pois a criança vê os pais ou seus responsáveis como um tipo de exemplo a ser seguido.Um estudo de mapeamento de fatores de risco para abuso sexual intrafamiliar identificados nos processos jurídicos do Ministério Público do Rio Grande do Sul – Brasil por violência sexual, no período entre 1992 e 1998, incluiu a análise de 71 expedientes e apresenta o perfil das vítimas e dos agressores, conforme abaixo,

Na maioria dos casos este era do sexo masculino (98,8%) e tinha vínculos afetivos e de confiança com a vítima. Em 57,4% dos casos, o agressor era pai da vítima e em 37,2% dos casos, este era padrasto ou pai adotivo desta. Estes resultados corroboram a literatura especializada que aponta que o abuso sexual contra crianças e adolescentes é perpetrado, na maioria dos casos, por cuidadores do sexo masculino. (Habigzang, L. F. & Caminha, R. M. 2008)

Conforme apresentado, em grande parte dos casos, o abusador, quando não é integrante da família, possui certa proximidade com a vítima ou com sua família, podendo ser ainda mais intensificados quando comparado à fatores de desemprego, desigualdade social e de gênero, “do total de casos investigados, 83% aconteceram na própria família, concedendo à violência sexual um caráter intrafamiliar” (Habigzang, L. F. & Caminha, R. M. 2008)

Essa violação praticada no seio familiar, além do abuso sexual, acarreta outros tipos de violência, como a psicólogica, física e até mesmo a moral, pois a pessoa que comete o abuso precisa esconder seu delito a todo custo, conforme expressado por Furniss,  

O abuso sexual intrafamiliar é desencadeado e mantido por uma dinâmica complexa. Tal dinâmica envolve dois aspectos que se apresentam interligados: a "Síndrome de Segredo", que está diretamente relacionada com a psicopatologia do agressor (pedofilia) que, por gerar intenso repúdio social, tende a se proteger em uma teia de segredo, mantido às custas de ameaças e barganhas à criança abusada; e a "Síndrome de Adição" caracterizada pelo comportamento compulsivo do descontrole de impulso frente ao estímulo gerado pela criança, ou seja, o abusador, por não se controlar, usa a criança para obter excitação sexual e alívio de tensão, gerando dependência psicológica e negação da dependência (Furniss, 1993, apud Habigzang, L. F. & Caminha, R. M. 2004)

Estes dados reforçam a importância da interação entre família e escola, com a gradual inserção do tema nas aulas e no âmbito familiar, devendo a família atuar ainda na observação dos sinais apresentados pela criança a fim de identificar a existência do abuso para efetivo combate e prevenção à violência sexual infantil.

Entretanto, é compreensível a dificuldade em levar às autoridades competentes informações que indiquem a prática de abuso sexual em face de um infante e/ou incapaz, tendo em vista a possibilidade da existência de relação próxima entre a pessoa que comete o abuso, a que pretende denunciar e a criança. Nesses casos, diante do temor em indicar casos de violação ao direito à dignidade sexual, especialmente se não há base probatória sólida, a pessoa interessada pode realizar uma denúncia utilizando-se do canal “Disque Direitos Humanos”, também conhecido como “Disque 100”.


5. EDUCAÇÃO SEXUAL COMO MEIO DE PREVENÇÃO AO ABUSO NA INFÂNCIA

Durante a evolução humana, a noção social a respeito da infância modificou-se continuamente, desde momentos em que as crianças eram reconhecidas como miniaturas de adultos até a conscientização da necessidade de se respeitar as fases de desenvolvimento e aprendizado e a noção da responsabilidade inerentes à criança. Em momento posterior, a consciência da necessidade de comunhão de esforços entre escola e família a fim de preservar o desenvolvimento da criança de forma saudável ganhou força, havendo a criação de dispositivos legais que positivaram  deveres da família e do Estado para com os menores.

Estabelecendo que o respeito à dignidade sexual do indivíduo é abrangida pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, sendo direito constitucionalmente protegido, a necessidade de esforço coletivo para  busca de meios eficazes de proteção às crianças, frente à vulnerabilidade delas, demonstra-se cada dia mais indispensável.

Com o crescimento do número de casos de abuso sexual, a legislação brasileira possui diversos dispositivos que positivam sanções a serem aplicadas em casos de constatação de violação à dignidade sexual, especialmente tratando-se de vulneráveis. Ressalta-se o avanço no sentido de ampliação nos meios de reconhecimento do abuso em suas diferentes formas, sendo efetivamente admitido que é dispensável a existência do contato físico para a caracterização dos danos à vítima do abuso, demonstra um certo progresso no longo caminho a ser percorrido na busca pela proteção das crianças, ainda que longe do que pode ser considerado suficiente, conforme estatísticas apresentadas.

 Tendo em vista as mudanças ao longo do tempo, acerca da conceituação do que é considerado criança, é complexa a definição da faixa etária ideal para que haja o início da abordagem acerca da educação sexual com as crianças. Entretanto, tendo em vista que grande parte dos casos de abuso sexual infantil ocorrem em âmbito familiar, mediante ameaça, e sem testemunhas, é imprescindível que as crianças possuam pepel efetivo na prevenção, através do conhecimento de meios de identificar os abusos e procurar ajuda, não podendo que elas sejam excluídas da busca pelo cuidado.

Com base nas informações coletadas nos formulários, e por todo o conteúdo levantado durante a composição do presente trabalho, a inserção gradual e moderada da abordagem acerca da temática da sexualidade desde a educação infantil demonstrou-se um meio de prevenção, e por consequência, meio efetivo de combate aos abusos sexuais perpetrados contra crianças. 

Nas entrevistas realizadas, foi averiguada a concordância por parte dos entrevistados na implantação da educação sexual no ambiente escolar, desde que seja realizada de forma a respeitar o vocabulário e os meios recomendados por profissionais qualificados, o que é plenamente razoável. Embora alguns entrevistados tenham apresentado resistência, foi possível observar que a deturpação de informações acerca do tema contribui muito para a oposição apresentada. Foi possível verificar ainda, o desinteresse no debate sobre o assunto, visto que para alguns entrevistados, a responsabilidade de proteção e discussão sobre o tema é apenas da mãe ou mulher responsável legal pela criança.

Resta evidente, portanto, que o esforço que tenha por pretensão o resguardo da criança ante a  prática de abuso sexual deve ser realizado de forma conjunta entre núcleo famíliar e escola. Não podendo as famílias serem isentadas de tratar o assunto, pois em vários casos, a violência é perpetrada no próprio seio familiar, e sendo este o caso,  a ajuda da qual a criança necessita pode vir a ser efetivada através da escola, e caso a violência seja no ambiente escolar, a confiança estabelecida entre a família e a criança será também uma possibilidade de obtenção de ajuda, pois a criança estará melhor preparada para lidar com a situação.

Conforme demonstrado nos resultados obtidos através de respostas ao questionário proposto, grande parte dos genitores ou responsáveis concordam que a inserção do assunto na grade curricular infantil iria repercutir de forma positiva, especialmente se realizada através de abordagem que objetive a prevenção e levando em conta a faixa etária da criança. Proporcionar informações e ensinar as crianças sobre seu corpo, e que este não pode e não deve ser violado, é um grande passo para que, caso a criança venha a ser vítima de qualquer tipo de abuso, ela possa identificar e buscar ajuda. 


REFERÊNCIAS

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APÊNDICE

Abaixo apresentaremos os quesitos apresentados aos entrevistados. Todas as perguntas foram marcadas com respostas obrigatórias, o que pode ter causado, ocasionalmente, respostas repetitivas. 

Pergunta 1 - Qual sua idade?

Pergunta 2 - Você possui filhos?

Pergunta 3 - Você é educador infantil / Professor?

Pergunta 4 - Você possui contato direto com crianças?

Pergunta 5 - Você poderia explicar resumidamente, a diferença entre as expressões "educação sexual" e "incentivo a sexualidade"?

Pergunta 6 - O que você entende ser a educação sexual infantil?

Pergunta 7 - Como você descreveria a forma ideal de abordar sobre o assunto sexualidade com uma criança, seja na escola, ou em casa.

Pergunta 8 - Você considera interessante que as escolas infantis abordem assuntos relacionados à sexualidade e abuso sexual?

Pergunta 9 - Com as crianças que eventualmente ou normalmente estão sob sua responsabilidade, você já abordou assuntos como, "toques indevidos em partes íntimas"?

Pergunta 10 - Você acredita que a educação sexual desde a infância pode prevenir abusos sexuais contra crianças e adolescentes?

Pergunta 11 - Você gostaria de deixar sua opinião, ou alguma outra consideração acerca do tema? Fique à vontade!

Através do link abaixo é possível visualizar as respostas dos entrevistados às perguntas propostas: 

https://docs.google.com/spreadsheets/d/1ZcoDM_I5B13EBykkqehL9_DOP45898-XDITzFkkdFlI/edit?usp=sharing


Autores


Informações sobre o texto

Trata-se de Trabalho de Conclusão de Curso elaborado sob a orientação da Mestre em Direito do Trabalho, Gabriela Nogueira Xavier Matias, como requisito parcial para obtenção da Graduação em Direito Pelo Centro universitário UNA de Betim.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEOCÁDIO, Jéssica; LIMA, Bárbara Letícia Teixeira de. Educação infantil como meio de prevenção ao abuso sexual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6537, 25 maio 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90609. Acesso em: 6 maio 2024.