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Danos morais e materiais e acidente de trabalho

Competência da justiça do trabalho à luz da Emenda Constitucional nº 45/2004

Danos morais e materiais e acidente de trabalho. Competência da justiça do trabalho à luz da Emenda Constitucional nº 45/2004

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1.Considerações introdutórias.

Este artigo visa primordialmente a tratar na novel competência da Justiça do Trabalho, ampliada significativamente pela Emenda Constitucional n. 45/2004, com enfoque no inciso VI, inserido ao art. 114 da Carta Magna.

Dentro dessa perspectiva, nossa apreciação recairá, nos termos do novo texto constitucional, sobre a competência para "processar e julgar" [sic] as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho.

Sobre o assunto, é imperioso dedicar maior atenção ao aspecto que maior celeuma vem despertando: a competência para as ações decorrentes de acidente de trabalho, movidas por empregado em face do empregador.

Portanto, a abordagem a ser desenvolvida destacará outros ângulos do tema proposto, mas se concentrará, por pragmatismo, no aspecto mais polêmico que a matéria suscita.

Por essa razão, antes de adentrar diretamente à análise da temática proposta, buscaremos de modo rápido e sucinto estabelecer o conceito dos fenômenos e institutos que firmarão a base teórica necessária à crítica que se seguirá.


2.Conceito de acidente de trabalho.

Como frisado anteriormente, não é nosso objetivo, neste ensaio, abordar profunda e conceitualmente o acidente do trabalho, porém é preciso, para efeitos metodológicos, definir o fenômeno objeto de estudo.

O conceito mais abrangente de acidente de trabalho é dado pela própria lei. O Plano de Benefícios da Previdência Social (Lei n. 8.213/91) estabelece, verbis:

"Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.

(...)

Art. 20. Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas:

I - doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social;

II - doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I."

Doutrinariamente, de forma mais concisa, Cesarino Júnior conceitua o infortúnio laboral (gênero do qual é espécie o acidente de trabalho) como um evento casual, prejudicial para a capacidade laborativa e relacionada com a prestação subordinada de serviço. [01]

Segundo essa expressão oriunda do Direito Italiano, o infortúnio pode não produzir dano ao trabalhador, tendo-se então o denominado incidente. Interessa-nos, todavia, as hipóteses em que do infortúnio laboral decorrem danos ao trabalhador, caso em que configurado o acidente de trabalho.


3.Responsabilidade civil do empregador.

É alarmante o número de acidentes de trabalho que ocorrem no Brasil. É conhecida a estatística que conferia ao Brasil, durante a década de 1970, o desonroso título de "campeão mundial" em quantidade de acidentes de trabalho.

Desde então, a progressiva diminuição dos índices dos infortúnios laborais pode ser atribuída em parte à atenção dispensada pelo legislador às normas de proteção ao trabalho. Todavia, certamente a falta de notificação ao INSS de acidentes havidos é o fator decisivo para essa aparente melhora nos dados sobre a questão. O trabalho informal, o temor da configuração da garantia ao emprego (Lei n. 8.213/91, art. 118), o afastamento por período curto ou mesmo a ausência de afastamento, todos são fatores que, estatisticamente, concorrem para a equivocada percepção de sensível melhora nesse cenário.

Não se deve desprezar a baixa escolaridade e capacitação de parte dos trabalhadores brasileiros, que em diversas situações é a causa fundamental ou contribui decisivamente para a ocorrência dos infortúnios.

Com efeito, a experiência tem-nos feito constatar que grande parcela dos trabalhadores não apresenta a menor preocupação com os riscos ocupacionais do trabalho, agindo sem qualquer cuidado ou cautela em circunstâncias de risco acentuado.

Nada obstante, é certo que a maior parte dos acidentes de trabalho tem por pano de fundo a negligência do empregador, seja no tocante aos defeitos das instalações físicas, máquinas e equipamentos, seja no que se refere ao fornecimento de equipamentos de proteção efetivos. Ademais, parte dos infortúnios laborais deve ser debitada à omissão do poder diretivo e disciplinar do empregador, por deixar de exigir do empregado um comportamento em conformidade com as normas preventivas de acidente de trabalho.

De ordinário, para se estabelecer a responsabilidade civil do empregador, em razão do acidente de trabalho, é necessário seja configurada seu dolo ou culpa (CPC, art. 927, c/c art. 186 e 187). Trata-se, portanto, da denominada responsabilidade subjetiva do empregador.

Certas atividades, todavia, apresentam tal grau de risco ao empregado que prescindem da configuração da culpa do empregador para que nasça a responsabilidade reparatória (objetiva). Ilustrativamente, empregados dos setores de energia elétrica e serralheria, na eventualidade de sofrerem acidente de trabalho, não necessitam demonstram a culpa do empregador pelo infortúnio, nascendo a obrigação de indenizar tão-só do fato em si do acidente, aliado à atividade perigosa, no sentido lato do termo, do empregador. Bastará ao ofendido demonstrar a relação causal entre a atividade do empregador e o dano sofrido.

Nesse sentido dispõe o art. 927, parágrafo único, do Código Civil de 2002, verbis: "Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem" (grifamos).

Essa novel disposição obviamente não revive a teoria do risco integral, antes possibilita ao empregador demonstrar a culpa exclusiva da vítima pelo evento danoso, a fim de se desvencilhar da reparação pecuniária.

Desse modo, tem-se que a responsabilidade civil do empregador por acidente de trabalho sofrido pelo empregado é de natureza subjetiva, como regra, comportando excepcionalmente e na forma da lei, o reconhecimento da responsabilidade objetiva.


4.Danos morais e materiais decorrentes de acidente de trabalho.

Maria Helena Diniz define-se dano "como a lesão (diminuição ou destruição) que, devido a um certo evento, sofre uma pessoa, contra sua vontade, em qualquer bem ou interesse jurídico, patrimonial ou moral" [02].

Do excerto final do conceito, vislumbra-se as esferas sobre as quais o dano pode incidir.

De um lado, estão os danos materiais ou patrimoniais, de objetiva mensuração. Conforme ensinamento de Pontes de Miranda, "tem-se de considerar o patrimônio do ofendido no momento (momento em que ocorreu a ofensa) e mais o que seria se o ato (ou fato) não houvesse ocorrido e o que é no momento da indenização. Tal é id quod interest" [03].

Bastante elucidativo o conceito de Maria Helena Diniz, para quem

"o dano patrimonial mede-se pela diferença entre o valor atual do patrimônio da vítima e aquele que teria, no mesmo momento, se não houvesse a lesão. O dano, portanto, estabelece-se pelo confronto entre o patrimônio realmente existente após o prejuízo e o que provavelmente existiria se a lesão não se tivesse produzido. O dano corresponderia à perda de um valor patrimonial, pecuniariamente determinado." [04].

De outra parte, há os danos morais, que guardam natural relação com direitos não patrimoniais, como a honra, a moral e a dignidade pessoais. Sua definição é sobremodo tormentosa e a reparação do prejuízo – posta em dúvida até tempos recentes pela doutrina e jurisprudência – é eminentemente subjetiva, sem parâmetro fixo e seguro para avaliação.

Buscando superar os obstáculos conceituais, para Rafael Garcia López o dano moral é "o resultado prejudicial que tem por objeto a lesão ou menoscabo de algum dos bens ou direitos correspondentes ao âmbito estritamente pessoal da esfera do sujeito de direito, que se ressarcem por vias satisfatórias sob o critério eqüitativo do juiz." [05].

De forma mais didática, a lição de Guilherme A. Caputo Bastos", in verbis:

"Em nossa perspectiva, podemos definir o Dano Moral como toda e qualquer lesão proveniente de ato ilícito perpetrado por terceiro, que venha atingir valores magnânimos, juridicamente tutelados, de uma determinada pessoa, causando-lhe, contra sua vontade, prejuízos de ordem imaterial e sem conteúdo econômico, mas que podem materializar-se, economicamente, de forma reflexa." [06].

O acidente de trabalho pode causar a um empregado danos materiais e morais, concomitantemente.

Da perda ou diminuição da capacidade laborativa, devidamente avaliada e atestada, bem como as despesas de tratamento, emerge o prejuízo patrimonial. Possivelmente o mesmo fato ofenda a esfera pessoal da vítima, ocasionando-lhe constrangimento, sofrimento físico e psicológico, que caracterizam o dano moral.

Superada a tese de irreparabilidade dos danos morais, que não nos compete abordar nesse artigo, restou igualmente ultrapassada, por fim, a corrente jurisprudencial que negava a cumulação de danos morais e materiais decorrentes de um mesmo fato. Lapidar nesse sentido, por sua concisão, a redação da Súmula n. 37, do Colendo Superior Tribunal de Justiça, vazada nos seguintes termos: "São acumuláveis as indenizações por dano material e dano moral, oriundos do mesmo fato".


5.Competência para ação indenizatória – Acidentes de trabalho.

Feita essa rápida, porém necessária, introdução, chega-se ao ponto nodal de nossa abordagem: definir o ramo do Poder Judiciário materialmente competente para julgar as ações para reparação de danos morais e materiais decorrentes da relação de trabalho - e em especial, ante a controvérsia instalada, quando o prejuízo advém de acidente laboral.

Por longo período, grassou dissensão doutrinária e jurisprudencial acerca da competência da Justiça do Trabalho para apreciar ações versando sobre indenização por danos morais.

O argumento usualmente esgrimido pela corrente que negava a competência da Justiça Especializada para julgamento de tal sorte de conflito se estribava na tese de que essas lides demandavam aplicação de norma de Direito Civil, daí a corrente restritiva.

É interessante notar que a premissa equivocada que norteia a posição restritiva serviria para excluir da competência da Justiça do Trabalho a apreciação, também, da indenização por danos materiais, a qual não temos notícia de maior resistência, mesmo em espíritos mais conservadores, em admitir a competência material da Justiça Laboral.

Em todo o caso, ilustre-se essa tese nos termos do seguinte acórdão do c. STJ, a Corte mais resistente à aceitação da competência da Justiça do Trabalho na hipótese ora versada:

"PROCESSUAL CIVIL – CONFLITO DE COMPETÊNCIA – Ação ordinária de indenização por danos morais e materiais. I – Pedido indenizatório, por danos materiais e morais resultante de lesão pela prática de ato ilícito, imputado a empregado, na constância da relação empregatícia, que culminou em sua dispensa por justa causa. Matéria que não se sujeita à CLT. II – A jurisprudência do STJ firmou entendimento no sentido de que a causa petendi e o pedido demarcam a natureza da tutela jurisdicional pretendida, definindo-lhe a competência. III – Conflito conhecido para declarar-se competente o Juízo Comum, suscitado." (STJ, CC 3.931, 1992, Rel. Min. Waldemar Zveiter, pub. DJU 22.3.93, p. 4501)

O argumento restritivo, todavia, é notadamente falho, sem nenhum embasamento jurídico. Não é relevante que a norma subjacente ao caso concreto, ou que embase a pretensão deduzida em juízo, seja de Direito Comum ou Trabalhista. Antes, basta que as causas de pedir próxima e remota estejam conectadas à relação de trabalho entre as partes.

Não raras vezes o Juiz do Trabalho necessita recorrer às normas de direito comum, para dirimir lides postas à sua apreciação. A utilização subsidiária de norma de direito comum, em casos de omissão de norma tipicamente trabalhista, não tem condão de modificar a competência. Na verdade, há previsão legal expressa para essa circunstância (CLT, art. 8º, parágrafo único), a demonstrar o desacerto da pressuposto em que se baseou o acórdão acima reproduzido.

Interessante, no particular, a seguinte observação de Rodolfo Pamplona Filho:

"Permitindo-nos um trocadilho, é preciso lembrar que a Justiça é do Trabalho, e não da C.L.T.! Se não for superada a mentalidade retrógrada que pretende ser do Poder Judiciário laboral somente dissídios previstos na Consolidação das Leis do Trabalho, dever-se-ia negar, logo, o cabimento de ações de procedimentos especiais na Justiça do Trabalho, como, por exemplo, a consignação em pagamento, eis que está prevista somente nos arts. 972/984 do Código Civil [arts. 334 a 345 do CC/2002]e 890/900 do Código de Processo Civil, sem qualquer norma específica no texto consolidado." [07].

Semelhante é o ensinamento do douto Min. João Oreste Dalazen, que assim se expressa, com a sapiência que lhe é peculiar:

"... o que dita a competência material da Justiça do Trabalho é a qualidade jurídica ostentada pelos sujeitos do conflito intersubjetivo de interesses: empregado e empregador. Se ambos comparecem a juízo como tais, inafastável a competência dos órgãos desse ramo especializado do Poder Judiciário nacional, independentemente de perquirir-se a fonte formal do direito que ampara a pretensão formulada. Vale dizer: a circunstância de o pedido alicerçar-se em norma do Direito Civil, em si e por si, não tem o condão de afastar a competência da Justiça do Trabalho se a lide assenta na relação de emprego ou dela decorre. Do contrário, seria inteiramente inócuo o preceito contido no art. 8º, parágrafo único da CLT, pelo qual a Justiça do Trabalho pode socorrer-se de "direito comum" como "fonte subsidiária do Direito do Trabalho". Se assim é, resulta evidente que a Justiça do Trabalho não se cinge a dirimir dissídios envolvendo unicamente a aplicação do Direito do Trabalho, mas todos aqueles não criminais, em que a disputa se dê entre um empregado e um empregador, nessa qualidade jurídica." [08].

A evolução jurisprudencial refletiu essa orientação doutrinária, mais condizente com as prescrições legais. Revelou-se decisiva, praticamente colocando termo à controvérsia, julgado histórico do Excelso Supremo Tribunal Federal, assim ementado, verbis:

"Justiça do Trabalho. Competência. Constituição, art. 114: ação de empregado contra empregador, visando a observância das condições negociais da promessa de contratar formulado pela empresa em decorrência da relação de trabalho.

1. Compete à Justiça do Trabalho julgar demanda de servidores do Banco do Brasil para compelir a empresa ao cumprimento da promessa de vender-lhes em dadas condições de preço e modo de pagamento, apartamentos que, assentindo em transferir-se para Brasília, aqui viessem a ocupar, por mais de cinco anos, permanecendo a seu serviço exclusivo e direto.

2. A determinação de competência da Justiça do Trabalho não importa que dependa a solução da lide de questões de direito civil, mas sim, no caso, que a promessa de contratar, cujo alegado conteúdo é o fundamento do pedido, tenha sido feita em razão da relação de emprego, inserindo-se no contrato de trabalho" (CJ 6.959-6, Rel. Desig. Min. Sepúlveda Pertence, j. 23.05.90, pub. DJU 22.2.91, p. 1259 - destacamos).

Posteriormente a essa decisão, amenizou-se a oposição ao entendimento consagrado pela Suprema Corte, tendo a Seção de Dissídios Individuais - 1, do C. TST, editado a Orientação Jurisprudencial n. 327, de seguinte redação:

"Dano moral. Competência da Justiça do Trabalho. Nos termos do art. 114 da CF/1988, a Justiça do Trabalho é competente para dirimir controvérsias referentes à indenização por dano moral, quando decorrente da relação de trabalho." [09]

Portanto, nessa perspectiva, a alteração do art 114, da Lei Maior, levada a cabo pela EC 45/2004, notadamente ao inserir a disposição do inciso VI, não representou novidade alguma, apenas confirmou o que antes já restara assentado na jurisprudência. Com efeito, dispõe a nova redação do art. 114, competir "à Justiça do Trabalho processar e julgar: VI – as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho".

Ante esse quadro, supunha-se – ou ao menos essa era nossa percepção pessoal – que a nova redação do art. 114, VI, da Carta Magna, tivesse aparado toda divergência jurídica acerca da competência material para ações de indenização por danos morais em virtude da relação de trabalho.

Supreendentemente, porém, reacendeu-se a discussão, justamente quanto ao aspecto anteriormente mais controverso da questão: a competência material para julgamento das ações indenizatórias decorrentes de acidente de trabalho.

Cabe, portanto, fazer breve escorço histórico sobre o tema.

Enquanto vigia a Constituição da República de 1967, era pacífico o entendimento de que a competência para julgar as controvérsias referentes à indenização por responsabilidade civil decorrentes de acidentes de trabalho era da Justiça Comum Estadual. Isso porque o art. 142, que fixava a competência da Justiça do Trabalho, contemplava uma exceção no § 2º, com o seguinte teor: "Os litígios relativos a acidentes do trabalho são de competência da justiça ordinária dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, salvo exceções estabelecidas na Lei Orgânica da Magistratura Nacional".

Com o advento da Constituição Federal de 1988, a questão mereceu tratamento diferenciado, o que não pode ser ignorado.

Primeiramente, porque o art. 114 não repetiu a ressalva acima registrada, não devendo o intérprete criar distinção onde a lei não distinguiu, configurando-se aqui o que se convencionou denominar de "silêncio eloqüente do legislador"; em segundo lugar, porque a indenização a cargo do empregador, proveniente do acidente do trabalho, foi incluída no elenco dos direitos dos trabalhadores, como expressamente prevê o art. 7º, XXVIII. Nesse dispositivo, paralela e independentemente do seguro contra acidentes do trabalho, o constituinte fixou o direito à indenização civil deles oriundos, nas hipóteses dolo ou culpa do empregador. Dessa maneira, trata-se de duas ações distintas, a primeira de natureza previdenciária, atribuída à Justiça Comum, e a segunda de conteúdo trabalhista, reparatória do dano material, de competência da Justiça Laboral.

Conseqüentemente, os dissídios individuais entre empregados e empregadores referentes às indenizações derivadas do acidente de trabalho estão no âmbito de competência da Justiça do Trabalho.

Ademais, quer-nos parecer que, nesse caso particular, busca-se inexplicavelmente criar dificuldades interpretativas inexistentes. Afinal, não cabe dúvida de que o acidente de trabalho é sinistro que se materializa dentro da relação de emprego, é decorrente desta. Portanto, tanto antes, como depois da EC 45/2004, a conformação jurídica não sofreu modificação, tendo-se, também aqui, apenas a nova disposição tornado mais clara opção do legislador, para atribuir à Justiça do Trabalho a competência para ações indenizatórias por acidente do trabalho, movidas pelo empregado em face do empregador.

O douto José Augusto Rodrigues Pinto menciona que a Constituição de 1946 (art. 123, § 2º) e a Constituição de 1967 (art. 142, § 2º) expressamente excluíam o acidente de trabalho da competência da Justiça do Trabalho. E acrescenta:

"Considerando não haver na Constituição atual nenhuma norma conservando essa exclusão da competência trabalhista para conhecer de dissídios de acidentes de trabalho, parece-nos fora de dúvida que eles devem passar a ser julgados pelos órgãos da Justiça do Trabalho, em harmonia com a regra geral e natural da competência em razão da matéria." [10] .

Confirma-se, portanto, o que foi registrado há pouco: os danos sofridos pelo empregado, provenientes dos acidentes do trabalho, estão diretamente relacionados à execução do contrato de trabalho. Consoante visto de forma breve no item 3, retro, a culpa do empregador nesses casos, desde que comprovada, normalmente resulta da não observância das normas regulamentares de segurança, higiene e saúde no ambiente de trabalho previstas na legislação trabalhista.

Sob essa ótica, irretocável o teor da Súmula n. 736 do Supremo Tribunal Federal, verbis:

"COMPETÊNCIA – AÇÕES QUE TENHAM COMO CAUSA DE PEDIR O DESCUMPRIMENTO DE NORMAS TRABALHISTAS RELATIVAS À SEGURANÇA, HIGIENE E SAÚDE DOS TRABALHADORES – JUSTIÇA DO TRABALHO. Compete à Justiça do Trabalho julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores".

Nesse passo, as decisões que atribuem competência à Justiça Estadual para apreciar tais controvérsias, data venia, só tem como sustentáculo o apego a construções jurídicas do passado. Não há qualquer disposição constitucional atribuindo à Justiça Estadual essa competência, razão pela qual há de prevalecer a norma genérica do art. 114 da Lei Maior, combinada com o art. 652 da CLT que estabelece competir às Varas do Trabalho julgar "IV- os demais dissídios concernentes ao contrato individual de trabalho".

O Juiz do Trabalho da 3ª Região, Vander Zambeli Vale, em lúcido e cuidadoso artigo doutrinário assinala:

"Data maxima venia, incidem em deslize de interpretação, passando ao largo de noções básicas de processualística, os que argumentam pela incompetência da Justiça especial para o julgamento de ação de (ex) empregado em face do (ex) empregador, quando se pede indenização por dano decorrente de acidente do trabalho. Seu raciocínio eiva-se de simplismo na medida em que procuram primeiramente enquadrar a matéria no âmbito de competência da Justiça comum, sabidamente residual, sem antes verificarem o campo delimitado parta as Justiças especiais. Ora, se a competência comum é eminentemente residual, para fixação de seu âmbito, o primeiro passo há de ser a delimitação das competências das especiais, adotando-se obviamente em tal mister os critérios estabelecidos pela Constituição e demais leis, situando-se, assim, por exclusão, o campo de atuação da Jurisdição comum. A inversão da ordem atenta contra a Constituição e fere o senso lógico quando se procura a competência residual sem se considerar a expressamente prevista." [11].

Pode-se argumentar que o art. 109, I, da Constituição, exclui da competência da Justiça Federal as causas relativas ao acidente de trabalho, bem como aquelas sujeitas à Justiça do Trabalho. Entretanto, esse dispositivo apenas registra uma exceção à regra geral, qual seja, sempre que participar da relação processual entidade autárquica federal – como é o caso do INSS – a competência é da Justiça Federal, exceto quando se tratar de causas relativas a acidentes do trabalho, as sujeitas à Justiça Estadual e à Justiça do Trabalho.

Tal interpretação e conclusão do dispositivo constitucional não demanda maiores esforços de exegese: o art. 109 cuida da competência da Justiça Federal, trazendo no inciso I a regra fundamental, no sentido de atribuir-lhe competência sobre causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes.

Ora, não fosse a exceção estabelecida ao final do inciso, mesmo as ações tipicamente acidentárias, vale dizer, aquelas em que no pólo passivo da lide figure o INSS, seriam de competência da Justiça Federal. Portanto, quanto à referência às ações de acidente do trabalho, o objetivo do constituinte é cristalino: afastar as ações tipicamente acidentárias (repise-se por clareza, mesmo ante o preço da repetição desnecessária: em que seja demandado o INSS) do âmbito da Justiça Federal, relegando-as à Justiça Comum Estadual.

No que pertine à menção à Justiça do Trabalho, o raciocínio segue a mesma lógica: trata-se de exceção à regra geral, expressa no inciso I. Assim, quando o litígio competir à Justiça do Trabalho – e aqui a referência se faz às ações trabalhistas típicas -, ainda que envolvam as pessoas referidas no mesmo inciso na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, a competência não será da Justiça Federal. Também aqui, não fosse a exceção prevista ao final do inciso, as ações tipicamente trabalhistas movidas, dentre outros, em face do INSS, seriam de competência da Justiça Federal.

Como se percebe, a disposição do art. 109, I, em nada interfere ou afeta a competência amplamente reconhecida na mesma Carta Magna à Justiça do Trabalho (art. 114 e parágrafos). E, como é evidente a impossibilidade de acidente de trabalho desvinculado da relação de emprego, inafastável a competência desta Especializada para apreciar pedidos de danos decorrentes do infortúnio acidentário.

É particularmente acurada a observação a esse respeito de Reginaldo Melhado, verbis:

"Ao recorrer ao conceito de fato histórico e unidade de convicção [questão a ser tratada mais adiante neste ensaio], o STF parece admitir tacitamente que o art. 109, i n ciso I, da Constituição, refere-se exclusivamente às ações previdenciárias do acidente de trabalho, e nunca às ações indenizatórias promovidas em face do empregador. Isso já estava relativamente claro até mesmo antes da Reforma do Poder Judiciário: só é possível excluir o que integra a regra geral. Se dou aos juízes federais a competência que se encontra neste saco (as causas em que haja interesse da União, suas autarquias e empresas públicas), não posso retirar desse saco, como exceção, aquilo que lá não se encontrava." [12] (grifamos).

Por outras palavras, o art. 109, I, da Lei Maior, há de ser interpretado sistematicamente. No dispositivo citado há uma previsão de competência em razão da pessoa. Logo, não se pode dar à exceção uma extensão maior do que a regra a que se refere.

Como visto, continuar atribuindo a competência à Justiça Estadual para as ações relativas a acidentes do trabalho, sem qualquer restrição, significa esquecer que a atual Constituição não repete a anterior no particular. E a mudança não pode ser tida por inócua, vez que patente a intenção de ampliar a competência trabalhista no atual texto.

Convém ainda ressaltar a indiscutível afinidade existente entre a formação do Juiz do Trabalho e as ações indenizatórias fundadas em acidente do trabalho, ajuizadas por empregado. Causas dessa natureza, como outras decorrentes da relação de emprego, demandam conhecimento técnico específico, por envolver lide em que as partes não se encontram, juridicamente, em posição isonômica ou equivalente. Esse argumento básico, que justifica a própria existência das Justiças Especializadas, não pode ser olvidado ao se interpretar o alcance das normas que definem a competência.

Em reforço a esse entendimento, mencionamos ensinamento de Jorge Pinheiro Castelo, verbis:

"O direito civil e a Justiça Comum não têm condições de apreciar o dano moral trabalhista, visto que inadequados a dar conta e compreender a estrutura da relação jurídica trabalhista, bem como um dano moral que é agravado pelo estado de subordinação de uma das partes, já que estruturados na concepção da igualdade das partes na relação jurídica.

O dano moral trabalhista tem como característica uma situação que o distingue absolutamente do dano moral civil, e que inclusive o agrava, qual seja, uma das partes encontra-se em estado de subordinação.

Só o direito do trabalho e a Justiça do Trabalho se mostram adequados a dar conta e compreender as razões específicas da tutela do direito moral atribuídas ao trabalhador subordinado." [13].

Demais disso, como bem ressaltado no excerto doutrinário transcrito em linhas volvidas, a competência da Justiça Estadual é residual, ao passo que a da Justiça do Trabalho é expressa. Concessa venia, buscar fora das disposições que traçam as atribuições da Justiça Laboral a norma definidora de competência para a hipótese em apreço subverte o sistema, em exegese pouco recomendável.

Não é ocioso relembrar: ao contrário do anterior, o legislador constituinte de 1988 não excluiu das atribuições da Justiça Especializada, nas disposições que fixaram a competência desta, as ações indenizatórias movidas pelo empregado em face do empregador em razão de acidente de trabalho (e se fosse essa a intenção do legislador, seria justamente dentro das normas relativas à competência da Justiça Laboral que a exceção deveria ser estabelecida, da mesma forma que ocorreu nas ordens constitucionais anteriores).

Impressiona ainda a desatenção dos adeptos da corrente de entendimento oposto a ora esposada ao § 3º, do art. 109, da Carta Magna, o mesmo preceito constitucional no qual sustentam a sua tese. Dispõe o referido parágrafo, verbis:

"Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual."

Recorde-se que o parágrafo deve ser interpretado de forma integrada com o caput e incisos do artigo. Ora, a leitura do parágrafo, por imperativo lógico, torna induvidoso que a exceção às causas de acidente de trabalho, referida ao final do inciso I, refere-se às ações que envolvem segurado ou beneficiário e instituição de previdência social. Logo, as ações entre empregado e empregador, mesmo decorrentes de acidente do trabalho, não se inserem nessa exceção – e assim sua competência se estabelece, como defendido ao longo dessa exposição, na forma do art. 114, caput, da Constituição, antes da Emenda Constitucional n. 45/2004, e a partir desta, nos termos dos incisos I e VI do mesmo artigo.

No mesmo sentido, o art. 129 da Lei n. 8.213/91, que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social, fixa a competência da Justiça Estadual para os litígios decorrentes dos acidentes do trabalho apenas no que tange aos direitos previdenciários. Isso porque, esses litígios, ainda que provenientes da execução do contrato de trabalho, não têm o empregador como parte, já que a ação é ajuizada em face do INSS.

Por outro lado, a Justiça do Trabalho tem-se dado por competente para apreciar causas em que se postule a reintegração ou indenização substitutiva da estabilidade criada pelo art. 118 da Lei n. 8.213/91. Essa estabilidade é direito resultante de acidente do trabalho, e nem por isso jamais se cogitou devesse ser da competência da Justiça Estadual apreciar pedido a esse respeito. Essa circunstância não pode e não deve ser menosprezada, sob pena de criar-se nova contradição na interpretação das leis em vigor. Ou bem a competência da Justiça Laboral abrange genericamente as causas fundadas em acidente de trabalho, ou então esse ramo especializado do Poder Judiciário sequer pode apreciar causas em que se discuta a reintegração ou indenização substitutiva ao empregado acidentado que tenha a garantia ao emprego.

Nesse contexto deve-se interpretar a Súmula n. 15 do STJ, que reconhece a competência da Justiça Estadual para os litígios decorrentes do acidente do trabalho. Limita-se assim a regra enunciada na Súmula n. 15 do STJ "às questões de infortúnios do trabalho movidas contra o INSS pleiteando o competente auxílio acidentário previsto na lei específica." [14].

Por sua vez, além dos argumentos já destacados, as Súmulas n. 235 e 501 do STF, de disposição similar à de n. 15 do STJ, são anteriores à atual Constituição, estando em consonância com a Carta Magna vigente quando de sua edição. Hodiernamente, porém, seu teor encontra-se dissonante com a própria Lex Fundamentalis.

O Tribunal Superior do Trabalho consagrou esse entendimento seguidamente, conforme se observa do seguinte aresto, citado à guisa de exemplo:

"ACIDENTE DE TRABALHO – AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANO FÍSICO – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. Sendo distinta a ação acidentária ajuizada contra o INSS (CF, art. 109, I, 3) e a ação indenizatória decorrente de acidente de trabalho (CF, art. 7º, XXVIII), e considerando que o Empregado somente poderia, em tese, sofrer acidente de trabalho no exercício de sua profissão, ou seja, estando vinculado contratualmente a um empregador, não há como se afastar a competência material desta Especializada para julgar ação de indenização por dano físico, nomeadamente porque é pacífica a jurisprudência desta Corte no sentido de que a Justiça do Trabalho detém competência material para julgar ação de reparação por dano moral. São danos ontologicamente idênticos, porquanto derivam da mesma matriz – a relação de trabalho. Daí a inafastabilidade da competência desta Especializada. Revista conhecida e não provida" (TST, RR 483206/98.4, Ac. 4ª T., Rel. Min. Ives Gandra Martins Filho, j. 27/09/2000 - in Revista LTr, ano 65, Abril/2001, p. 456).

No corpo do acórdão, o i. Ministro tece argumentos ponderosos em prol da tese ora esposada, in litteris:

"Saliente-se, por oportuno, que a ação indenizatória por acidente de trabalho, ajuizada com amparo no inciso XXVIII do art. 7º da Constituição Federal, não se confunde com a ação acidentária mencionada no inciso I do art. 109 da Constituição Federal, porquanto essa última ação cuida de benefício previdenciário e tem no pólo passivo o INSS, conforme previsão expressa na Carta Magna.

Não há que se confundir, nesse passo , indenização por dano físico com a ação acidentária, que visa obter benefício previdenciário junto aos órgãos governamentais específicos, em face da responsabilidade civil objetiva do Estado.

Cumpre trazer à colação, precedente da SDI-II, que, em pronunciamento unânime, deu provimento ao recurso ordinário do então Réu da rescisória (Reclamante), para julgar improcedente a ação rescisória, rescindindo sentença [sic] que proclamara a incompetência absoluta do juízo deferitório da indenização por dano físico (cegueira adquirida no interior da Caixa Econômica Federal), conforme revela a ementa:

‘Ação Rescisória. Competência material da Justiça do Trabalho. Estágio. Indenização Civil. Decisão rescindenda que, embora não reconheça o vínculo empregatício entre as partes, acolhe pedido de indenização civil a estagiário por deficiência visual adquirida durante estágio a que se submeteu nas dependências da Caixa Econômica Federal. Competência material da Justiça do Trabalho para dirimir a lide. Inocorrência de violação ao art. 114 da Constituição Federal. Recurso ordinário a que se dá provimento para julgar improcedente o pedido formulado na rescisória’ (TST-ROAR-165302/95, SDI-2, Rel. Min. João Oreste Dalazen, in DJU 10.10.97)".

Todos esses argumentos ganharam ainda maior suporte jurídico com a edição da EC 45/2004, especialmente em vista da disposição do art. 114, VI, da Lei Maior.

É bem verdade que o Supremo Tribunal Federal, antes da edição da Emenda 45, a despeito do que já restou consignado, vinha decidindo, vacilante e esporadicamente [15], que competia à Justiça Comum o julgamento das ações indenizatórias decorrentes de acidente de trabalho, ainda que nos pólos da lide figurem empregado e empregador.

Entretanto, mesmo para os então partidários dessa tese restritiva – especialmente alguns dos Ministros do STF - , há que se atentar para a nova disposição do art. 114, VI, da CF/88.

Apreciando a questão sob a perspectiva dos defensores da tese restritiva da competência da Justiça Laboral para a matéria em análise, cabe cogitar se a novel regra constitucional não teria alterado a base jurídica que lhes embasava o entendimento. Há ponderosos argumentos para concluir positivamente.

Ora, como bem ressaltou Edilton Meirelles, em palestra proferida por ocasião do Seminário sobre a Ampliação da Competência da Justiça do Trabalho, realizado recentemente na cidade de São Paulo, é uma pretensão excessiva dos senhores Ministros, como todo o respeito e acatamento devidos, considerar que a nova disposição constitucional veio à lume tão-somente com sentido de confirmar o que vinha sendo decidido por aquela Suprema Corte.

Ainda nos termos referidos pelo citado palestrante, a exegese da nova regra constitucional não pode ser feita com vistas ao passado, olhando-se para trás. A nova regra, dentro desse prisma, teria vida própria, significado efetivo, aplicação prática – do contrário, de nada terão servido o empenho dos atores sociais e o trabalho legislativo que deram ensejo à Emenda Constitucional n. 45.

A regra fundamental de hermenêutica, no que tange à Carta Magna, consoante moderna doutrina mais abalizada, pugna pela interpretação que confira às disposições constitucionais a maior efetividade possível. Para tanto, a expressão "danos morais e patrimoniais decorrentes da relação de trabalho" deve abarcar - para o que não se exige maior esforço interpretativo - as lides trabalhistas de indenização por acidente de trabalho.

Afinal, seguramente, sequer o mais renitente opositor da tese ora defendida negará que o acidente de trabalho insere-se no contexto da relação de emprego. A esse propósito, já foi ressaltado que o infortúnio laboral guarda estreita, íntima conexão com o vínculo laboral, sendo aquela conseqüência deste. Acerca desse fato incontestável, discorre José Antônio Pancotti com propriedade:

"A definição de acidente é fornecida pela lei previdenciária (Lei n. 8.213/91, arts. 19, 20 e 21). Nestes preceitos legais, exceto o segurado especial (art. 11, VII), o segurado é o trabalhador a serviço de uma empresa. De sorte que não tem aplicação a expressão ‘relação de trabalho’ lato sensu, mas no sentido restrito de ‘relação de emprego’.

Com efeito, não obstante o acidente de trabalho constituir-se em ‘fato súbito e violento provocado por uma causa exterior, que ocasiona lesão ao homem’ ocorre em função de trabalho prestado à [sic] uma empresa, pressupondo a existência de contrato individual de trabalho. Reforça essa conclusão o fato de a ação de reparação de dano moral e material ser movida por empregado, em face do empregador, ainda que tenha por fundamento acidente de trabalho." [16].

Partindo dessa premissa, soa algo inusitado não se reconhecer de pronto que a redação do art. 114, VI, da Constituição, abrange as ações fundadas em acidente de trabalho, não excetuadas no novo texto. O estranhamento ante a resistência em reconhecer a competência da Justiça do Trabalho, mesmo após a Emenda Constitucional n. 45/2004, nesse aspecto, foi percebido e ressaltado por Manoel Antônio Teixeira Filho, em arguta observação assim expressada:

"Quer-nos parecer que, agora, a competência se define em prol da Justiça do Trabalho, em virtude da redação do inciso VI, do art. 114, da Constituição. Poder-se-ia objetar esta nossa conclusão com o argumento de que, tendo permanecido com a Justiça Comum a competência para apreciar e julgar ações acidentárias do trabalho, a competência para apreciar pedidos de indenização por dano moral seria, por um motivo de ordem lógica, dessa mesma Justiça. Diante disso, devemos redargüir, em caráter proléptico, que o entendimento de que a competência em questão seria da Justiça Comum conduziria a uma situação algo surrealista, qual seja, a de a norma constitucional em estudo dar à Justiça do Trabalho competência pra julgar ações de danos morais, desde que emanantes de uma relação de trabalho (que, como se disse, é o gênero), mas não possuir competência para apreciar pedido de indenização por dano moral, tendo como origem um acidente do trabalho, ou seja, sofrido por um empregado (relação de emprego). Para clarificar: a prevalecer a opinião contrária à nossa, veríamos a Justiça do Trabalho julgando ações por danos morais promovidas por trabalhadores autônomos, mas impedida de julgar ações por danos morais postas em juízo por empregado, que sofreu acidente de trabalho.

Nossa opinião, portanto, é de que, a contar da EC n. 45/2004, compete à Justiça do Trabalho julgar ações contendo pedido de indenização por dano moral (ou material) proveniente de acidente do trabalho. Em rigor, aliás, o inciso VI, em exame, não faz nenhuma distinção entre o dano moral (ou patrimonial) haver emanado de acidente do trabalho, ou não. O critério exclusivo, fixado pelo texto constitucional, é estar, esse dano, vinculado a uma relação de trabalho – na qual, como se disse, está compreendida a relação de emprego." [17].

Não raro, repele-se essa interpretação com a afirmação de que, nos trabalhos legislativos que culminaram com a edição da EC n. 45/2004, procurou-se inserir de modo expresso, dentre os incisos do art. 114, referência às ações fundadas em acidente de trabalho. Essa tentativa não logrou êxito. Por isso, sustenta-se, descaberia dar interpretação extensiva ao preceito fixado no inciso VI do mesmo artigo.

A nosso sentir, com as vênias de estilo, esse argumento não merece prosperar.

Para efeito meramente argumentativo, detenhamo-nos na possibilidade de que a intenção do legislador constituinte derivado tenha sido a de não estender à Justiça do Trabalho a competência em exame. No entanto, conforme professa Wagner Giglio (embora tratando de questão de outra ordem, seus ensinamentos se amoldam perfeitamente à presente questão), "interessa desvendar a ratio legis (fundamentos da lei), e não a mens legislatoris (pretensão do julgador)" e "onde a lei não limita, não é viável ao intérprete estabelecer restrições" [18].

Com efeito, uma vez publicada a norma legal adquire vida própria, desvencilhada dos motivos que levaram à sua edição. O recurso à interpretação histórica, nesse contexto, não deve sobrepor-se radicalmente ao sentido gramatical do preceito legal (in claris interpretatio cessat [19]), invertendo-lhe o sentido, e menos ainda à interpretação sistemática, esta a mais adequada, da norma.

O aparente antagonismo entre o teor dos arts. 109, I, e 114, I e VI, da Constituição, merece interpretação que concilie tais disposições, de forma a preservar a melhor técnica legislativa e a razão da lei. Para tanto, a única forma possível, segundo nos parece, é esta ora propugnada. Do contrário, permaneceria a contradição no corpo da Carta, o que repele o bom senso. Daí se falar em interpretação sistemática, que preserve a integridade de ambos os dispositivos.

Retomando raciocínio anterior, toda essa argumentação antes referida indicava que a cizânia precedente sobre essa questão ora examinada teria sido definitivamente superada com a edição da EC 45/2004.

Tanto assim que nos dias seguintes à a publicação da mencionada emenda no Diário Oficial da União, juízes estaduais remeteram à Justiça do Trabalho centenas processos que versavam sobre indenizações decorrentes de acidente de trabalho, ante a percepção generalizada de que esta seria a intenção contida no aludido dispositivo constitucional.

Contribuía também para essa convicção julgamento da 1ª Turma da Excelsa Corte, nos dias que se seguiram à promulgação à EC 45/2004. Nesse julgamento, foi negado, por maioria, provimento a recurso extraordinário interposto contra acórdão do Tribunal de Alçada do Estado de São Paulo, o qual entendera competir à Justiça Comum o exame de ação de indenização por danos morais fundada em acidente do trabalho.

Decidiu-se pela manutenção, na espécie, de precedentes da Corte no sentido da competência da Justiça Comum estadual para o julgamento das causas relativas a indenizações por acidente do trabalho, por força do disposto no inciso I do art. 109 da CF, não obstante o advento da EC 45/2004 que, ao dar nova redação ao art. 114 da CF, dispôs expressamente competir à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho (CF, art. 114, VI).

Aqui, todavia, residia o aspecto relevante do julgado: resolveu o plenário da Excelsa Corte manter a competência da Justiça Comum, por motivo declaradamente excepcional, a fim de evitar a declaração de nulidade e perda de toda a atividade judicante anterior, naqueles autos, antes de os mesmos alcançarem o STF. Restaram vencidos os Ministros Carlos Britto, relator, e Marco Aurélio, que davam provimento ao recurso para declarar a competência da Justiça do Trabalho. Do acórdão, extraímos o seguinte trecho:

"Decidiu-se pela manutenção, na espécie, de precendentes da Corte no sentido da competência da Justiça Comum estadual para o julgamento das causas relativas a indenizações por acidente do trabalho, por força do disposto no inciso I do art. 109 da CF, não obstante o advento da EC 45/2004 que, ao dar nova redação ao art. 114 da CF, dispôs expressamente competir à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho (CF, art. 114, VI). Considerou-se que o acórdão recorrido deveria ser preservado em nome do sentido de justiça, uma vez que seria iníquo declarar, a essa altura, a nulidade do processo até a sentença, inclusive, e determinar a remessa dos autos à Justiça trabalhista" (RE 394943/SP, rel. orig. Min. Carlos Britto, rel. p/ acórdão Min. Eros Grau, 1º.2.2005).

Ora, basta um exercício de lógica básica para se depreender que, se foi mantida excepcionalmente para o caso a competência da Justiça Comum, a fim de se evitar o reinício da marcha processual, logo, de ordinário, as ações de indenização movidas por empregado, fundadas em acidente de trabalho, teriam passado à competência da Justiça Comum.

De forma semelhante, o Min. Cezar Peluso, antes mesmo da publicação da EC 45/2004, declarou a competência da Justiça Laboral para ação em que se discutia dano moral vinculado a acidente de trabalho – em que pese tenha citado precedentes do STF nos quais se discutia apenas dano moral não ligado a acidente do trabalho (AI 526444, j. 16.12.2004). Surpreende o teor esse julgamento, principalmente em razão de o ministro relator, de forma contraditória, ter capitaneado exatamente a tese oposta, quando o plenário do STF analisou a questão, na forma a seguir explanada.

Note-se ainda que o próprio teor da Súmula n. 736 da Suprema Corte, já transcrita anteriormente, independentemente dos precedentes que lhe deram origem, sugere que seja da Justiça do Trabalho a competência para as ações em questão. De fato, por meio desse verbete sumular o E. STF sinalizou ser essa a exegese correta, na medida em que, ao menos com nossa limitação intelectual, não conseguimos imaginar hipótese em que o acidente de trabalho haja sido causado, ao menos em tese, por outro motivo que não aqueles elencados na súmula: descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores.


6.O recente julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a questão.

Em que pese o que restou assentado até este ponto, eis que em 9 de março de 2005, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou recurso extraordinário (RE-438.639-MG) interposto pela Mineração Porto Velho S.A., declarando, por maioria de votos, que seria competente a Justiça Estadual para o julgamento das ações de indenização fundadas em acidente de trabalho. A tese majoritária foi sufragada pelos ministros Cezar Peluso, Eros Grau, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Celso de Mello, Carlos Velloso, Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim. Apenas os ministros Carlos Ayres Britto e Marco Aurélio votaram no sentido de declarar competente a Justiça do Trabalho.

Infelizmente, para quem acompanhou a sessão de julgamento, alguns dos ministros do STF tiveram postura claramente preconceituosa em relação à Justiça do Trabalho, além de expressarem uma inacreditável desinformação sobre a mesma, considerando a posição de destaque ocupada pelos membros daquela Corte.

Bem resume o desdém e menoscabo com que foi referida a Justiça Especializada a circunstância de ter sido necessário o Min. Marco Aurélio chamar a atenção de seus pares para o fato de que a mesma, desde 1946, integra o Poder Judiciário, no plano constitucional.

Quanto ao desconhecimento da competência da Justiça do Trabalho, basta rememorar a despropositada afirmação do Min. Cezar Peluso, para quem o Juiz do Trabalho não está acostumado ao julgamento de causas que retratem responsabilidade aquiliana.

Francamente, qualquer pessoa que tenha algum contato com o cotidiano da Justiça Laboral sabe que em seu seio a o julgamento de lides em envolvendo responsabilidade aquiliana não é incomum, antes é matéria rotineiramente apreciada por seus juízes e tribunais.

Causou espécie ainda a desinformação externada pelo Min. Carlos Veloso. Ex-Juiz de Direito (estadual) e ex-Juiz Federal em Minas Gerais, afirmou ele, a pretexto de justificar a maior capilaridade da Justiça Estadual em relação à Justiça do Trabalho, que esta última, no seu Estado de origem, teria, fora da capital, apenas dez ou quinze varas.

Ora, honestamente, não se espera, nem se exige que um Ministro do STF conheça exatamente a estrutura do Poder Judiciário Trabalhista, ainda que em seu próprio Estado. Todavia, o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG) possui 35 (trinta e cinco) Varas do Trabalho na Capital e outras 115 (cento e quinze) espalhadas pelo interior, que abrangem todo o seu extenso território de atuação. Tratou-se, portanto, de erro crasso e grosseiro, declaração infeliz, mormente em se considerando a posição e origem de seu emitente.

De toda forma, dois argumentos fundamentais estribaram a esdrúxula decisão da Suprema Corte, contra a qual se erguem todos os fundamentos expostos anteriormente.

O primeiro deles, como já ressaltado, a maior capilaridade e penetração da Justiça Estadual. Esse argumento é, no mínimo, discutível.

Primeiro, porque a Justiça do Trabalho alcança praticamente todo o país, e no Estado de Minas Gerais, como se viu, é muito bem estruturada.

Segundo, porque o conceito de "acesso à justiça" não se revela exclusivamente Laboral em função da proximidade geográfica do órgão judicante com as partes envolvidas no conflito. Não põe em dúvida que, ante os princípios da gratuidade, jus postulandi e simplicidade ou informalidade, a permear sua atuação, o acesso à Justiça do Trabalho é bastante mais efetivo que à Justiça Estadual.

Por fim e de importância capital, na Justiça do Trabalho, salvo pontuais exceções que confirmam a regra, a celeridade processual é incomparavelmente maior que nas Justiças Estaduais. A razão desse fato incontestável – basta a consulta a estatísticas de que dispõe o próprio Supremo Tribunal Federal – pode ser atribuída a vários fatores: o rito processual trabalhista, mais simples e com menor número de incidentes; a melhor estrutura física e de pessoal desse ramo do Poder Judiciário; a própria especialização, que facilita o julgamento das lides; e ainda à elevada produtividade da maioria dos juízes e tribunais trabalhistas.

Sem embargo, a celeridade, ainda que distante de um plano ideal, com que os processos trabalhistas são julgados decorre de um fator primordial: a urgência com que os trabalhadores hipossuficientes necessitam de um julgamento rápido e eficaz, em vista de sua carência econômica. O Juiz do Trabalho, que labuta nesse contexto cotidianamente, naturalmente empreende esforços para dar ao processo o andamento mais célere possível – sem descuidar do resguardo ao direito de defesa das partes.

Por esses motivos, dentre outros que não atinamos no momento, em nossa experiência profissional temos testemunhado a preferência externada por empregados em ajuizar suas ações na Justiça do Trabalho, em detrimento da Justiça Ordinária, na hipótese em apreço, ainda que por isso tenham de empreender curtas viagens para as audiências designadas.

Extremamente ilustrativo dessa circunstância foi a posição de um advogado trabalhista, procurador de um reclamante que ajuizou ação indenizatória em face do empregador. Entre o ajuizamento da ação e a audiência sobreveio o julgamento do STF que declarou a competência da Justiça Comum para o caso.

Pois bem. Sabedor do risco de o processo empreender longo caminho nos escaninhos da Justiça do Trabalho e depois ter de se reiniciar na Justiça Comum, o pedido do advogado foi surpreendente. Argumentou o causídico que preferiria que a ação seguisse seu curso normalmente na Justiça do Trabalho, ainda que o Juiz, em sentença, acompanhasse a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Assim, disse ele, os autos seriam remetidos à Justiça Estadual já devidamente instruídos, tendo-se anulada apenas a sentença, nos termos do art. 113, § 2º, do CPC. Dessa forma, concluiu, o processo teria tramitação muito mais rápida que se tivesse desde logo sido remetido à Justiça Estadual.

Ao final das contas, os referidos autos de fato foram encaminhados à Justiça Comum, por força de julgamento de Recurso Ordinário da reclamada, em que se declarou a competência material da Justiça Estadual para o caso. Ainda assim o i. advogado não pareceu insatisfeito com a forma como os atos se desenrolaram.

Esse primeiro argumento, portanto, de conteúdo eminentemente político, não se sustenta.

Do ponto de vista jurídico, a razão da decisão da Suprema Corte para cometer à Justiça Estadual as ações em referência foi outra: a chamada "unidade de convicção".

A tese foi esgrimida pelo Min. Cezar Peluso, relator designado, recebendo a adesão majoritária de seus pares. Fundamentou Sua Excelência que "se nós atribuirmos à Justiça do Trabalho a ação de indenização baseada no Direito Comum, mas oriunda do mesmo fato histórico, temos uma possibilidade grave de contradição". Assim, fulcrado no preceito do art. 109, I, da Carta Magna, propugnou pela competência da Justiça Comum na hipótese versada.

A contradição mencionada, explicou ele, configurar-se-ia se e quando a Justiça do Trabalho não reconhecesse sequer a existência do acidente de trabalho, na ação indenizatória movida pelo empregado, e a Justiça Estadual decidisse exatamente o contrário na ação acidentária típica e vice-versa.

Em termos técnicos, segundo a tese capitaneada pelo Ministro, a discussão acerca da existência de dano moral e material, passíveis de indenização, decorrentes do mesmo suporte, em juízos distintos, acarretaria o risco futuro de ocorrerem decisões conflitantes com base na mesma causa de pedir, independentemente da individuação dos pedidos.

Em vão restaram os precisos argumentos desferidos pelo Ministro Presidente do Tribunal, Nelson Jobim, que esclareceu o que nos parece evidente: não há nenhuma interferência entre ambas as ações, distintas juridicamente. A rigor, dos elementos da ação, a coincidência será apenas em relação ao autor. Réu e pedido serão distintos, necessariamente. Nenhuma das duas ações – a trabalhista e a tipicamente acidentária - é prejudicial em relação à outra. Logo, é falacioso o argumento da "unidade de convicção".

Aborda com precisão essa circunstância o Juiz do Trabalho Reginaldo Melhado, em artigo recentemente publicado, consoante os seguintes argumentos:

"Portanto, em sua jurisdição típica o juiz de direito da vara de acidentes do trabalho não examina ilícitos aquilianos. Ao julgar as ações em face do INSS ele não perscruta sobre obrigações da empresa (ou do empregado) quanto aos serviços especializados em segurança e higiene no trabalho, sobre o uso de equipamentos de proteção individual, sobre as técnicas de edificação, luminosidade, conforto térmico, presença de tabaco ou elementos químicos, adequação de máquinas e equipamentos etc.

As normas de segurança e higiene no trabalho estão instituídas basicamente na CLT (arts. 154 a 201) e nos inúmeros decretos e portarias (as famosas NR’s do Ministério do Trabalho) que regulamentam esses dispositivos.

Quando o juiz examina a ocorrência de culpa do empregador, no acidente de trabalho, a cognição envolve basicamente a análise desses dispositivos da CLT sobre segurança e higiene do trabalho. Todas as regras de conduta fixadas na lei ao empregador ou ao empregado são normas trabalhistas. É o descumprimento desse direito positivo trabalhista que pode, em tese, gerar a responsabilidade indenizatória, se presente o nexo causal entre a conduta ilícita do empregador e o resultado danosos do acidente do trabalho.

(...)

A ação acidentária promovida em face do INSS – que é uma ação previdenciária – não abrange qualquer matéria pertinente às obrigações trabalhistas relativas à segurança e higiene no trabalho. O cumprimento ou não dessas normas jurídicas não tem relação direta com o Direito Previdenciário: ele está diretamente vinculado, isto sim, com o Direito do Trabalho" [20].

Diversos exemplos poderiam ser dados em contraposição à tese da chamada "unidade de convicção", fundamento da decisão do E. STF. O Min. Orlando Teixeira da Costa registra nesse sentido:

"Embora incidindo sobre o mesmo fato, nunca houve conflito de competência entre a Justiça Penal e a do Trabalho para se saber se determinado indivíduo deveria ir para a cadeia pela prática dos crimes de injúria, calúnia e difamação ou ser também despedido por justa causa ou condenado ao pagamento de indenizações rescisórias por ofensa à honra ou à boa fama de seu empregado. Apenas não se pode mais questionar sobre a existência do fato, ou quem seja o meu autor, quando essas questões se acharem decididas no crime, a teor do art. 1.525 do Código Civil [art. 935 do CC/2002] ." [21].

Igualmente, assim se posiciona Reginaldo Melhado:

"Ou seja, se a unidade de convencimento deve ser buscada, ela será encontrada a partir da práxis do Direito do Trabalho e não do Direito Previdenciário. Um exemplo bastante simples pode evidenciar esse liame inextrincável. A empresa é autuada pela fiscalização do trabalho por não estar cumprindo normas de segurança quanto ao fornecimento de equipamentos de proteção individual (CLT, art. 166). Não se resignando, ela ingressa na Justiça do Trabalho com ação declaratória de nulidade do auto de infração (Constituição, art. 114, inciso VII). O acidente do trabalho vem a ocorrer exatamente em razão da falta desses equipamentos. O empregado, vítima do acidente, ingressa em juízo postulando indenização por danos patrimoniais e morais decorrentes do infortúnio laboral, atribuindo culpa à empresa empregadora. Haverá conexão incindível entre uma e outra causa, e a competência também em razão da imperiosidade de se evitarem decisões díspares sobre a mesma relação jurídica de direito material. Some-se a isso que, ademais, poderá o mesmo problema implicar outras demandas, cumuladas ou não, sempre da esfera de competência trabalhista (v.g., a reintegração no emprego, a aplicação de multas previstas em convenção coletiva de trabalho, litígios envolvendo a Cipa, o Ministério Público do Trabalho, o sindicato)." [22].

Pena que, de modo contraditório e visivelmente sem estar completamente convencido da tese prevalecente, o Min. Nelson Jobim tenha acabado por votar no mesmo sentido que acabou vencedor naquela sessão.

Essa decisão do E. STF causou incredulidade no seio do Judiciário Trabalhista, expressada com notável bom humor pelo Min. Lélio Bentes, no já referido Seminário recentemente promovido pela ANAMATRA em São Paulo. Sua excelência ilustrou sua perplexidade com um interessante caso. Disse ele que a Justiça do Trabalho teria competência para, em ação civil pública, determinar ao empregador, construtor civil, que fornecesse equipamentos de proteção individual adequados aos pedreiros que trabalham sobre os andaimes da obra. Todavia, de acordo com a decisão do STF, desde que o pedreiro caísse do andaime, sofrendo acidente de trabalho, à Justiça Especializada faltaria competência para julgar ação movida em face do empregador. Logo, se o pedreiro não sofrer o acidente, a competência é da Justiça do Trabalho; caso sofra o infortúnio, então a competência é da Justiça comum. Em tom jocoso, arrematou: "bem, espero e cuido para que o trabalhador não caia do andaime. Mas, se cair, aí o problema já não é meu...".


7.A inviabilidade de edição de súmula vinculante sobre o tema.

Um acontecimento posterior ao malsinado julgamento do STF causou preocupação ainda maior. Foi amplamente divulgada na imprensa entrevista do Min. Cezar Peluso, o qual declarou que a matéria decidida no julgado poderia constituir a base da primeira Súmula vinculante do STF a ser editada após a EC 45/2004, a teor do art. 103-A, da Constituição Federal, acrescido pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Sua Excelência prometeu propor a votação da súmula "assim que o acórdão for publicado".

A idéia, data maxima venia, não tem o menor cabimento, do ponto de vista jurídico. Conforme preceitua a nova disposição constitucional, para que a sumula do STF tenha "efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal" é preciso que antes existam "reiteradas decisões" sobre a matéria constitucional.

Como se vê, a intenção do Ministro é açodada: a matéria em questão foi analisada apenas uma única vez, após a edição da EC 45/2004. Logo, é inviável – por aberrante inconstitucionalidade – a edição de Súmula nesses termos. Resta apenas confiar nos ministros do Supremo Tribunal Federal, para que ao menos sejam observados rigidamente os pressupostos constitucionais para edição das súmulas vinculantes.


8.A repercussão do posicionamento do E. STF, a capitulação do C. TST e a reação dos Juízes do Trabalho.

No Seminário antes mencionado, extraímos do contato com juízes do trabalho de todo o país a impressão de certo desconforto e até ressentimento entre os mesmos, relativamente aos fundamentos e à conclusão da maior parte dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

Alguns juízes do trabalho mostraram-se visivelmente decepcionados e desestimulados a persistir, em suas decisões, em declarar a competência da Justiça do Trabalho para apreciar as ações trabalhistas fundadas em acidente de trabalho, em conformidade com sua convicção. Diminui-lhes a disposição nesse sentido a iminente possibilidade de suas decisões serem anuladas, com desperdício de tempo e de atividade judicante. Vários cogitaram ressalvar o entendimento particular, para declinar da competência, em consonância com o julgado do STF.

É de bom alvitre ressaltar que ao reconhecer a própria competência, esses juízes estão, na prática, trazendo para sua responsabilidade a direção, instrução e julgamento de ações normalmente complexas, que demandam grande dispêndio de tempo e dedicação.

Trata-se, portanto, de juízes laboriosos e preocupados com a efetividade da justiça. Esses magistrados certamente ficaram ainda mais desestimulados com recente decisão do C. Tribunal Superior do Trabalho que, alterando entendimento anterior, prolatou acórdão assim ementado:

"INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAL E MATERIAL DECORRENTES DE ACIDENTE DE TRABALHO - LESÃO POR ESFORÇO REPETITIVO (LER) - INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DA JUSTIÇA DO TRABALHO CONFIGURADA.

Na esteira da jurisprudência cediça do Supremo Tribunal Federal, a qual se adota por disciplina judiciária, tem-se que a Justiça do Trabalho é absolutamente incompetente para julgar pedido de indenização por danos moral e material decorrentes de acidente de trabalho, oriundo de lesão por esforço repetitivo (LER), adquirida no ambiente de trabalho em razão do desempenho da função de caixa bancária, que executava tarefa de digitação de documentos. Recurso de revista conhecido e provido." (RR 50260/2002-900-03-00, Ac. 4ª T., Rel. Min. Ives Gandra da Silva Martins Filho, j. 16.3.2005, pub. DJU 8.4.2005).

Nada obstante, não nos parece que se deva, ante os argumentos desfiados no curso desse estudo, desde logo declinar da competência para a questão posta. Afinal, por ora, o Supremo Tribunal Federal analisou a matéria uma única vez, não havendo motivo para duvidar da possibilidade de reversão da tendência ora sinalizada.

Além disso, ao menos por enquanto, a decisão do Supremo deu-se em controle difuso de constitucionalidade, sem vinculação. Não se prega aqui, genericamente, desapego, indiferença ou rebelião contas o conteúdo dos julgamentos do tribunais superiores, muito menos do Supremo Tribunal Federal. Nada obstante, desde que não seja editada súmula vinculante em sentido contrário, o compromisso dos juízes, firmado com sua posse no cargo, é com o cumprimento da Constituição da República, segundo os ditames de suas consciências.

Portanto, o momento é propício ao comportamento ativo, com rejeição à tese restritiva consagrada no julgamento do Supremo Tribunal Federal. Não custa lembrar, para alento dos juízes que comungam desse entendimento, que já tivemos pela frente situações até mais delicadas, em que a jurisprudência sumulada não refletia a melhor e mais justa interpretação legal. Ilustrativamente, recorde-se da redação original do Enunciado n. 330, do C. TST, alterada algum tempo depois, tantos foram os processos que chegaram ao C. TST, contendo acórdãos e sentenças repudiando o teor primeiro daquele verbete sumular.

O mesmo pode suceder com o caso em tela, para o qual há razões em profusão para convencimento e modificação do entendimento dos i. Ministros do Supremo Tribunal Federal. Portanto, o desânimo não se justifica. Antes devemos, os partidários da tese ora sustentada, lutar e argumentar, nos autos e onde nos for permitido expressar o pensamento, pela prevalência dessa tese, mais justa e conforme a Constituição Federal.


Notas

01 CESARINO JÚNIOR, Antônio Ferreira. "Direito Social". São Paulo: LTr, 1980. p. 479.

02 DINIZ, Maria Helena. "Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil", v. 7, 10 ed., Saraiva, São Paulo, 1996, p. 49.

03 MIRANDA, Pontes de. "Tratado de Direito Privado", Tomo XXII, 2 ed., Borsói, Rio de Janeiro, 1958, p. 208.

04 Ob.cit., p. 51.

05 Apud PEDREIRA DA SILVA, Luiz de Pinho. "A reparação do dano moral no Direito do Trabalho", LTr, São Paulo, 2004, p. 29.

06 CAPUTO BASTOS, Guilherme Augusto. "O dano moral no Direito do Trabalho", LTr, São Paulo, 2003, p. 21.

07 PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Dano Moral e Justiça do Trabalho. Mundo Jurídico, Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em: 25 abr. 2005.

08 Apud COUTO, Osmair. Indenização por danos morais no direito do trabalho: justiça competente. Revista LTr, São Paulo, a. 60, n. 4, abr. 1996. p. 461-471. Abril de 1996, LTr, São Paulo, p. 461.

09 Em 18.4.2005, essa Orientação Jurisprudencial foi convertida na Súmula n. 392 do C. TST.

10 RODRIGUES PINTO, José Augusto. "Processo Trabalhista de Conhecimento", LTr, São Paulo, 1993, p. 113.

11 VALE, Vander Zambeli. "Acidente do trabalho – Culpa do empregador – Indenização – Competência da Justiça do Trabalho", in "Jornal Trabalhista", v. 13, n. 601, São Paulo, 1996, p. 392.

12 MELHADO, Reginaldo. Unidade de convicção e acidente do trabalho. Revista LTr, São Paulo, a. 69, n. 3, mar. 2005. p. 333-335, LTr, São Paulo, p. 334

13 Castelo, Jorge Pinheiro. "Dano Moral Trabalhista. Competência", in "Trabalho & Doutrina", n. 10, Saraiva, São Paulo, Setembro de1996, p. 39.

14 FLORINDO, Valdir, "Dano Moral e o Direito do Trabalho", 2. ed., São Paulo, LTr, 1996, p. 117

15 A referência às decisões "vacilantes" do STF, quer-se reportar a julgados em ambos os sentidos possíveis quanto à questão posta, conforme se abordará mais adiante.

16 PANCOTTI, José Antonio. "A nova competência da Justiça do Trabalho", in Revista LTr, Janeiro de 2005, LTr, São Paulo, p. 88).

17 TEIXEIRA FILHO, Manoel Antônio. "A Justiça do Trabalho e a Emenda Constitucional n. 45/2004", in Revista LTr, Janeiro de 2005, LTr, São Paulo, p. 19/20).

18 GIGLIO, WAGNER G. "Direito Processual do Trabalho", Saraiva, 12 ed., São Paulo, 2002 p. 121.

19 O brocardo traduz regra obsoleta de hermenêutica, sendo que hodiernamente compete ao intérprete um exercício exegético mais amplo, tendo em conta a disposição do art. 5º da LICC. A menção feita no artigo, portanto, deve ser analisada dentro dessa perspectiva.

20 Ob. cit., p. 334/335.

21 Apud PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Ob. Cit.

22 Ob.cit., p. 335.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONSECA, Rodrigo Dias da. Danos morais e materiais e acidente de trabalho. Competência da justiça do trabalho à luz da Emenda Constitucional nº 45/2004. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1291, 13 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9366. Acesso em: 19 abr. 2024.