Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/9433
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Considerações acerca da disciplina do crime de homicídio no Código Penal brasileiro

Considerações acerca da disciplina do crime de homicídio no Código Penal brasileiro

Publicado em . Elaborado em .

Noticia Aníbal Bruno (1979, p. 61) que "a história do homicídio tem poucas particularidades. É o delito típico, logo assim reconhecido e geralmente castigado com extrema severidade". Contudo, como bem destaca Ferrajoli (2001, p. 462), tal crime não "foi sempre proibido e castigado: na Grécia antiga, por exemplo, como em todos os ordenamentos primitivos, proibia-se somente a morte do familiar, que autorizava unicamente a reação coletiva do grupo de parentes da vítima". Mas uma coisa é certa, de um modo ou de outro, o homicídio, até mesmo pelo bem que ofende, é universalmente reconhecido como delito.

Escreve Nélson Hungria (1955, p. 25) que "o homicídio é o tipo central dos crimes contra a vida e é o ponto culminante na orografia dos crimes. É o crime por excelência. É o padrão da delinqüência violenta ou sanguinária, que representa como que uma reversão atávica às era primevas, em que a luta pela vida, presumivelmente, se operava com o uso normal dos meios brutais e animalescos. É a mais chocante violação do senso moral médio da humanidade civilizada".

Comete homicídio quem provoca a morte de outrem, ou, na linguagem do Código Penal, em seu artigo 121, caput, aquele que mata alguém. Como se pode inferir do tipo básico (fundamental/simples), o bem jurídico tutelado é a vida humana extra-uterina. De se observar que o homicídio, segundo a sistemática do Estatuto Penal, apresenta-se sob três modalidades: homicídio doloso simples, homicídio doloso qualificado e homicídio culposo. Não há, pois, se falar em uma quarta modalidade, a qual seria o homicídio privilegiado – Nucci (2005, p. 493) bem observa que não se trata de homicídio privilegiado, e sim de causa de aumento de pena, de modo que o verdadeiro homicídio privilegiado é o infanticídio. Analisemos cada tipo individualmente, bem como as causas de diminuição e de aumento de pena e de perdão judicial, a fim de que possamos bem entender o artigo 121 do Código Penal brasileiro.


2. Homicídio doloso simples

O homicídio doloso simples, previsto pelo caput do artigo 121, é também chamado de tipo básico ou fundamental, uma vez que é o que contém os componentes essenciais do crime, ou seja: matar alguém, mediante conduta dolosa, sem que concorra para isso qualquer causa de diminuição de pena, qualquer circunstância privilegiadora ou qualquer circunstância qualificadora. Assim, se Tício tem a vontade de matar Caio e o mata, haverá a incidência do caput do artigo 121 e a pena in abstrato poderá variar de seis a vinte anos de reclusão.

Trata-se de um delito comum, em que os sujeitos ativo e passivo podem ser quaisquer pessoas, devendo-se observar, apenas, que se houver confusão entre o sujeito ativo e o sujeito passivo não haverá ilícito penal, porque o suicídio não recebe tipificação. Pierangeli (2005, p. 50) traz a situação de homicídio cometido por irmãos siameses (ou xipófagos): se for impossível a separação dos dois mediante procedimento cirúrgico, "a única solução razoável e sensata é a da impunidade do delinqüente", haja vista que não se pode punir uma pessoa inocente.

Quanto ao sujeito passivo, é mister observar que deve ser um ser humano com vida independente, isto é, extra-uterina. Há que se falar, como lembra Bitencourt (2003, p. 32), nos sujeitos passivos especiais: quando o sujeito passivo for o Presidente da República, do Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal Federal o crime será contra a Segurança Nacional (art. 29 da Lei n 7.170/83); quando se tratar de gêmeos xipófagos, e pretender-se matar apenas um deles, mesmo assim haverá duplo homicídio doloso, porque o ato "acarretará, por necessidade lógica e biológica, a supressão da vida de ambos", ao que complementa Mirabete (1998, p. 63): trata-se, a rigor, "de concurso formal próprio, já que não se pode falar, no caso, de desígnios autônomos (art. 70, primeira parte)".

A ação nuclear do tipo é representada pelo verbo matar: a conduta incriminada é a de matar alguém, o que implica dizer que o momento consumativo do crime de homicídio ocorre com o efeito morte, mais precisamente a morte encefálica, da vítima. A consumação é instantânea, e não há como fazer desaparecer os seus efeitos. Assim, trata-se de um crime material, o qual deixa vestígios. A materialidade do delito pode ser provada mediante o exame de corpo de delito ou, excepcionalmente, mediante a exumação.

O exame de corpo de delito é uma espécie de prova pericial e que não se confunde com o corpo de delito, o qual é o conjunto de elementos sensíveis ou perceptíveis (também chamados de vestígios materiais) deixados pelo fato criminoso. Em que pese divergência doutrinária sobre a existência de duas espécies de exame de corpo de delito, apontamos que o exame de corpo de delito só pode ser feito sobre o corpo de delito, porque sempre será um exame, uma perícia. A lei processual penal, em seu artigo 158, estabelece que o exame de corpo de delito pode ser direto ou indireto. O exame direto é aquele que é feito diretamente no corpo de delito; enquanto que o exame indireto constitui-se como o juízo de valor feito pelos peritos, e não se confunde com a prova testemunhal supletiva (Bitencourt, 2003, p. 40). Assim, o que parte majoritária da doutrina erroneamente chama de exame de corpo de delito indireto é, na verdade, a possibilidade de a prova testemunhal suprir a impossibilidade de se fazer o exame de corpo de delito, conforme bem dispõe o artigo 167 do Código de Processo Penal: não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta.

Outra perícia médico-legal que pode ser realizada é a exumação, a qual consiste no desenterro do cadáver, quando o sepultamento foi realizado sem que tivesse havido prévia necropsia, ou quando esta foi feita e surgiram dúvidas posteriores que reclamaram tal medida.

Pergunta que logo surge é se o delito de homicídio admite tentativa: por certo que sim. Verifica-se a aplicabilidade do artigo 14, II: diz-se o crime tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. Ou seja, homicídio tentado é aquele em que o agente já começou a praticar atos executivos, os quais, no entanto, por circunstâncias alheias à vontade do sujeito ativo, não lograram efeito consumativo, verificando-se, pois, o homicídio tentado.

Interessante notar que se trata de crime monossubjetivo (de concurso eventual), ou seja, pode ser praticado por um só agente, de modo que é possível que haja a participação e a co-autoria – concurso de agentes ou de pessoas. E mais: será aplicada a pena da forma simples tanto para a hipótese de haver apenas um agente quanto para a hipótese de haver vários agentes, participando tanto como co-autores quanto como partícipes. O legislador andou mal quanto a este fato, esquecendo-se de colocar, expressamente, no rol das causas qualificadoras o concurso de agentes para o cometimento do delito sob estudo. Não se deve, contudo, confundir o homicídio praticado mediante concurso de agentes com o homicídio praticado em atividade típica de grupo de extermínio, que é considerado crime hediondo (Lei n 8.072/90, artigo 1º, I).

É crime de ação livre, podendo ser utilizados meios físicos/morais/psíquicos, direta/indiretamente e comissiva/omissivamente para a execução do delito em apreço. Lembra Pierangeli (2005, volume 2, p. 53) que constituem meios de cometer homicídio o açulamento de um cão ou de um louco contra a vítima, de modo que haverá autoria mediata. De se notar que o homicídio por omissão se dará, de acordo com o artigo 13, § 2º, quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado, de modo que é possível haver participação mediante omissão: dês que o partícipe tenha o dever jurídico de impedir o resultado e que concorra com o elemento subjetivo, qual seja, o de aderir, com sua omissão, ao comportamento do autor principal.

Como observado alhures, o § 1º não trata acerca de homicídio privilegiado, e sim de causas de diminuição de pena, isto porque o verdadeiro crime privilegiado é aquele cujo limite máximo e cujo limite mínimo da pena, abstratamente estabelecidos, se alteram para montantes menores, o que não ocorre neste caso, como podemos observar da redação do referido parágrafo: se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. As causas de diminuição de pena são aplicadas, como sói dizer, na terceira fase de dosimetria da pena.

A primeira causa se refere ao motivo de relevante valor social, isto é, aquele que corresponde ao interesse coletivo, de modo que o agente é impulsionado pela satisfação de um anseio social. A segunda causa se refere ao motivo de relevante valor moral, ou seja, aquele que é aprovado pela moralidade média e que corresponde a um interesse individual. Interessante notar que o § 1º prevê que o agente atua impelido por motivo de relevante valor social ou moral, o que é diferente de o agente cometer o delito por motivo de relevante valor social ou moral, representando, pois, uma influência da motivação, mas não algo que o domina. Portanto, se o agente agir impelido, haverá causa de diminuição da pena; se agir motivado, haverá atenuante.

A questão da eutanásia, da ortotanásia e da distanásia, faz-se presente na discussão acerca das causas de diminuição da pena. A eutanásia, ou homicídio piedoso por ação, tem por fim abreviar a vida do doente terminal que se encontra profundamente angustiado; a ortotanásia é a eutanásia por omissão, quando o responsável deixa de aplicar medicamentos que prolonguem artificialmente a vida do doente terminal; a distanásia é a prolongação do sofrimento até o fim natural da vida da pessoa. A eutanásia e a ortotanásia, haja vista que abreviam a vida do paciente, são tidas como causas de diminuição de pena, em que o agente atua impelido por motivo de relevante valor social ou moral.

A terceira causa de diminuição de pena é o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima. Tal hipótese ocorre apenas caso a emoção seja violenta, de modo que a resposta tem de se suceder à provocação injusta do ofendido, a qual pode, inclusive, ser putativa. A expressão logo em seguida nos conduz a entender que a reação tem de ser imediata à ciência da provocação. Ainda assim, a lei não exige a atualidade da reação, e sim uma seqüência compatível com o estado emocional do agente, de modo a permitir uma certa elasticidade do requisito temporal (Bitencourt, 2003, p. 62-63). Importa dizer que o agente atua sob o domínio de violenta emoção, o que é diferente de o agente cometer o delito influenciado por violenta emoção. Portanto, se o agente agir sob o domínio, haverá causa de diminuição da pena; se agir influenciado, haverá atenuante.

Não se deve confundir injusta agressão com injusta provocação: a injusta agressão enseja a legítima defesa, a qual é uma excludente de ilicitude; a injusta provocação enseja uma causa de diminuição de pena, o que não exclui a ilicitude do ato. Observe-se que é excepcionalmente possível a concomitância de causas de diminuição, de modo que uma delas funcionará como atenuante, enquanto a outra incidirá como causa de diminuição da pena. Por fim, deve-se estabelecer que a redução, desde que esteja presente a causa, é uma obrigação do magistrado, o qual tem apenas a faculdade de escolher o quantum de diminuição dentro dos limites legais (de um sexto a um terço).

Interessante notar, ainda no que tange à terceira causa, o que preleciona o artigo 28, I: não excluem a imputabilidade pena a emoção ou a paixão. Capez (2005, p. 35-36) observa que, "não obstante isso, a emoção pode funcionar como causa especial de diminuição de pena no homicídio doloso ou como atenuante genérica", mas "somente se violenta autoriza o privilégio, de forma que, se o agente, diante de uma injusta provocação, reage a ‘sangue frio’, não terá direito à minorante".

A Lei n 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos) traz, em seu artigo 1º, I, que o homicídio qualificado é crime hediondo. O § 2º traz uma figura agravada (circunstanciada) em relação ao tipo fundamental previsto no caput do artigo 121, de modo que a pena in abstrato terá seus limites (mínimo e máximo) aumentados, a fim de que a pena possível de ser cominada, a priori, ao caso concreto é a de reclusão de doze a trinta anos.

Deve-se observar que em alguns dos incisos do § 2º, do artigo 121, é possível a interpretação analógica: aquela em que a vontade da lei contempla o caso examinado, mas seu texto diz menos que o pretendido, de forma que o intérprete estende o sentido da lei até o caso examinado. Difere-se de analogia, a qual é forma de auto-integração da ordem legal, a fim de suprir lacunas com dispositivos legais semelhantes, isto é, estendendo a aplicação da lei a casos que ela não regula e de que não cogita. Outrossim, a analogia só pode ser utilizada para beneficiar o réu, enquanto que a interpretação analógica pode tanto ocorrer para beneficiar como para prejudicar. A expressão ou outro, presente em alguns dispositivos da lei penal, leva à interpretação analógica, uma vez que o legislador não previu todos os casos ou condutas possíveis.

É impróprio falar em crime duplamente ou triplamente qualificado. Ou seja, não é possível a pluralidade de circunstâncias qualificadoras. Basta uma única circunstância qualificadora para se deslocar a conduta do caput para o § 2º do artigo 121. As demais qualificadoras serão consideradas como circunstâncias judiciais do artigo 59, pois o artigo 61 é expresso ao afirmar que as circunstâncias não podem funcionar como agravantes quando forem, ao mesmo tempo, qualificadoras.

As circunstâncias qualificadoras, quando tiverem caráter subjetivo não se comunicam jamais ao partícipe, salvo quando elementares do tipo (artigo 30). No entanto, se tiverem caráter objetivo, haverá a comunicação se for do conhecimento do partícipe a presença da circunstância material, ou seja, se com relação a ela tiver agido com dolo ou culpa.

Tem sido posição predominante (tanto na doutrina quanto na jurisprudência) a admissão da forma qualificada-privilegiada, em que pese a presença de atecnia, haja vista que a denominação correta é coexistência entre causas qualificadoras e causas de diminuição de pena. Para existir pretendida coexistência é preciso que haja compatibilidade lógica entre as circunstâncias.

Há a possibilidade de coexistência das circunstâncias qualificadoras objetivas (meio e modo de execução) com as causas de diminuição, as quais são sempre circunstâncias subjetivas. Inadmite-se, contudo, a coexistência de circunstâncias subjetivas. Assim, a aplicação da pena será feita do seguinte modo (artigo 68): (1) se foi reconhecida existência de qualificadora, a pena base será fixada entre o limite de doze a trinta anos de reclusão; (2) serão analisadas as circunstâncias agravantes e atenuantes; (3) serão aplicadas as causas de diminuição.

Nucci (2005, p. 499) faz excelente observação: não há que se admitir a tipificação de crime hediondo para o homicídio em que há coexistência entre causas de diminuição de pena e qualificadoras, haja vista que "a Lei n 8.072/90, no art. 1º, inciso I, faz expressa referência apenas ao homicídio simples e ao qualificado. A figura híbrida admitida pela doutrina e pela jurisprudência, configura situação anômala, que não deve ser interpretada em desfavor do réu".


2. Homicídio doloso qualificado

Estabelecidas tais circunstâncias, passemos à análise de cada causa qualificadora. O homicídio doloso qualificado é chamado em outras legislações de assassinato. Procura-se, didaticamente, separar cada qualificadora dentro de um grupo específico, de modo que podemos apresentar a seguinte divisão: homicídio qualificado pelos motivos que o determinam (incisos I e II); homicídio qualificado pelos meios de execução (inciso III); homicídio qualificado pelos modos de execução (inciso IV); homicídio qualificado pelos fins pelos quais é praticado (inciso V).

No primeiro grupo, estão posicionados os motivos torpe e fútil, os quais são qualificadoras subjetivas, porque dizem respeito aos motivos que levaram o agente à prática do crime. Como são circunstâncias de caráter pessoal, não se comunicam ao partícipe, nos termos do artigo 30: não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime.

Motivo torpe é aquele que ocorre quando se barganha a vida para obter outra coisa. Demonstra sinal de depravação do espírito do agente. Qualquer motivo, incluindo a paga ou promessa de recompensa, que se encaixe dentro desse conceito será enquadrado como qualificadora do homicídio simples doloso. Por exemplo, o homicídio mercenário, o qual decorre de recompensa paga (o agente é recompensado previamente pela morte da vítima) ou de promessa de recompensa (ao agente foi prometido um prêmio, o qual será pago após a eliminação do sujeito passivo).

Para a recompensa paga ou para a recompensa prometida, é requerida a existência do sujeito que oferece o pagamento ou a recompensa e daquele que, motivado pelo lucro, realiza o delito. Assim, poder-se-ia questionar se a qualificadora incide para os dois sujeitos, ao que Prado (2006, p. 68) responde que não, haja vista que a razão de ser da qualificadora é o "lucro, considerado especialmente reprovável. Logo, incabível a aplicação da qualificadora àquele que oferece a paga ou recompensa, já que este atua imbuído de motivação diversa".

A vingança, por sua vez, nem sempre constituirá motivo torpe, pois, apesar de ser um sentimento por si só reprovável, é, geralmente, a retribuição a um malefício causado anteriormente ao homicida ou a qualquer pessoa ligada a ele – nem sempre, no entanto, causará repugnância a ponto de ser considerada um motivo torpe. Pode constituir, vale lembrar, causa de diminuição de pena (artigo 121, § 1º).

Deve-se suscitar a divergência doutrinária verificada em relação à natureza da recompensa. A doutrina se divide em duas correntes principais: por um lado, aquela que entende que a natureza da recompensa deva ser econômica; por outro lado, aquela que entende que a natureza da recompensa pode tanto ser, como não ser, econômica. A primeira corrente é a que predomina e é a que deve ser acolhida, haja vista que o juiz pode avaliar, como circunstâncias judiciais (artigo 59), aquelas que não tenham conteúdo econômico, de acordo com o caso concreto, de forma a gerar segurança jurídica (Prado, 2006, p. 67-68).

Motivo fútil é aquele motivo notadamente desproporcionado ou inadequado, do ponto de vista do homo medius e em relação ao crime de que se trata. A doutrina diverge acerca do homicídio imotivado e do homicídio moralmente reprovável. Prado (2006, p. 67) assim se posiciona: "o motivo fútil não se confunde com a ausência de motivo (inexistência de motivo) ou com o motivo injusto (moralmente reprovável)", e com ele entendemos, uma vez que a lei não diz nada expressamente, e, como também não há viés para a interpretação analógica, não se pode aplicar a analogia, uma vez que se consubstanciaria a analogia in malam partem. Ademais, pondera Bitencourt (2003, p. 67) que "motivo fútil não se confunde com motivo injusto, uma vez que o motivo justo pode, em tese, excluir a ilicitude, afastar a culpabilidade ou privilegiar a ação delituosa".

No segundo grupo, estão posicionadas situações que qualificam o homicídio de acordo com os meios (instrumentos) de que se serve o agente para a prática do delito. São qualificadoras objetivas, porque dizem respeito aos meios de execução do delito, os quais são três: insidiosos, cruéis ou que causem perigo comum. O legislador, no inciso III, apenas dá exemplos (veneno, fogo, explosivo, asfixia) destes três tipos de meios.

Meio insidioso é aquele em que se verifica o emprego de mecanismos para a prática do crime sem que a vítima tenha qualquer conhecimento. Meio cruel constitui-se como aquele que causa sofrimento desnecessário à vítima, ou que revela uma brutalidade incomum, em contraste com o mais elementar sentimento de piedade humana. Por fim, meio que possa resultar perigo comum é aquele meio cruel ou insidioso que pode expor a perigo um número indeterminado de pessoas, fazendo periclitar a incolumidade social.

Dentre os meios listados pelo legislador a título de exemplo, há que se dar grande atenção à tortura, a qual é um meio cruel por excelência, em que o agente causa sofrimento desnecessário à vítima antes de matá-la. Como já dissemos, o homicídio qualificado é crime hediondo (Lei n 8.072/90, artigo 1º, I); além disso, deve-se observar que o homicídio qualificado pela tortura é diferente da tortura qualificada pela morte, tipo penal tratado pela Lei n 9.455/97 (Lei de Tortura) e que é crime hediondo equiparado. Caso a tortura não seja a causa da morte, haverá concurso material entre o homicídio e a tortura.

No terceiro grupo, encontramos os modos de execução, isto é, os modos que, se usados pelo agente, qualificam a sua conduta. São qualificadoras objetivas, haja vista que dizem respeito ao modo de execução do crime. Os exemplos dados pelo legislador (traição, emboscada, dissimulação) são modos insidiosos de executar o delito, uma vez que a vítima desconhece a ação e, conseqüentemente, tem a sua defesa dificultada ou impossibilitada. Apesar de o rol trazido pelo inciso IV ser exemplificativo, trataremos brevemente sobre cada um deles, a saber: traição, emboscada e dissimulação.

A traição consiste em um ataque súbito e sorrateiro que atinge o sujeito passivo, o qual, descuidado, porque confiante, não percebe o gesto criminoso. Assim, a traição só figura quando existe a quebra de lealdade entre o agente e a vítima. A emboscada, também conhecida por tocaia, é ação premeditada que ocorre quando o agente aguarda ocultamente a passagem ou a chegada da vítima, a qual se encontra desprevenida, para o fim de a atacar. Por fim, a dissimulação, em que o agente oculta o próprio desígnio criminoso, isto é, o sujeito ativo age de forma a iludir a vítima, a qual passa a pensar que não tem motivos para desconfiar de um possível ataque, de modo que, desta forma, é apanhada desatenta e indefesa.

Há ainda um quarto modo de execução que seria o recurso que dificulta ou impossibilita a defesa da vítima. Na verdade, trata-se de hipótese que admite a interpretação analógica, em que há outro recurso (que não a traição, a emboscada ou a dissimulação) empregado para auxiliar no cometimento do crime. Exemplo disso é a surpresa, a qual é um ataque inesperado, em que o sujeito ativo atua de modo a dificultar ou a impossibilitar a defesa da vítima (Bitencourt, 2003, p. 74).

Por fim, temos o quarto grupo, o qual apresenta a qualificação do delito de acordo com os fins pelos quais a conduta é praticada. Aqui, há que se tomar cuidado porque a qualificadora ora apresenta-se como subjetiva (por ser motivação torpe) e ora como objetiva (por ligar-se aos meios e modos de execução). Genericamente, podemos dizer que o quarto grupo se caracteriza pela evidência do ânimo especial de agir. Assim, temos que o homicídio qualificar-se-á quando cometido com o fim de assegurar: a execução de outro crime (mesmo que este não se tenha consumado), a ocultação do crime (o qual ainda não é conhecido, mas que pode vir a ser devido à prova testemunhal existente), a impunidade do crime (o qual é conhecido, e não se conhece ainda quem o praticou, de modo que o agente elimina quem o possa delatar ou levantar suspeitas) e a vantagem de outro crime (isto é: para garantir a fruição de vantagem, econômica ou não, advinda da prática de outro crime).

Observe que se o homicídio for praticado para assegurar a execução, ocultação, impunidade ou vantagem de uma contravenção penal, não incidirá a qualificadora em questão, podendo incidir o motivo torpe ou fútil, conforme o caso concreto.

Visando maior repressão de condutas criminosas violadoras do direito à vida da criança, do adolescente e do idoso, o artigo 121, § 4º, segunda parte, prevê um aumento de pena de um terço para os casos em que o crime for praticado contra pessoa menor de 14 anos ou contra pessoa maior de 60 anos. Assim, entendemos que tais causas de aumento de pena, por expressa disposição do § 4º, só podem ser aplicadas aos homicídios em suas formas dolosas, isto é, o homicídio doloso simples (do caput do artigo 121) e o homicídio doloso qualificado (do § 2º do artigo 121). Outrossim, entendemos perfeitamente possível a coexistência de causas de aumento com causas de diminuição (previstas no § 1º do artigo 121) de pena, por exemplo: Tício, 61 anos, é famoso e temido criminoso no bairro Xis, Mélvio, impelido por motivos de relevante valor social, resolve matar Tício, e efetivamente o faz.

De maneira geral, como sói dizer, o delito de homicídio tem por tipo subjetivo, o dolo, direto ou eventual, que de acordo com o artigo 18, I, assim pode ser entendido: diz-se o crime doloso, quando o agente quis o resultado (dolo direto) ou assumiu o risco de produzi-lo (dolo eventual). Como dispõe o parágrafo único do mesmo dispositivo: todos os crimes previstos na parte especial do Código Penal ou nas leis penais extravagantes são, por definição, dolosos, a não ser que a lei preveja a possibilidade de o delito ser culposo. Assim, de acordo com o artigo 18, II: diz-se o crime culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. O artigo 121, § 3º, prevê a possibilidade de o homicídio ser culposo – como o agente não quis, nem assumiu o risco de produzir o resultado, o legislador alterou, para menos, a pena in abstrato para detenção de um a três anos. De se observar definição dada pela doutrina: na conduta culposa, há uma ação voluntária dirigida para uma finalidade lícita, mas que, por imprudência, imperícia ou negligência do agente, sobrevém um resultado ilícito não querido, cujo risco nem sequer foi assumido, mas que era objetivamente previsível.


3. Homicídio culposo

O homicídio culposo é um tipo penal aberto em que se faz a indicação pura e simples da modalidade culposa, sem se fazer menção à conduta típica ou ao núcleo do tipo. A culpa não está descrita nem especificada, mas apenas prevista genericamente no tipo, isso porque é impossível prever todos os modos em que a culpa pode apresentar-se na produção do resultado morte. Depende, pois, da análise subjetiva do caso concreto.

Deve-se observar que: inexiste, no Direito Penal, a figura da compensação de culpas, de modo que a culpa recíproca poderá, contudo, influenciar na fixação da pena, na análise das circunstâncias judiciais (artigo 59); a culpa exclusiva da vítima exclui a culpa do agente; é possível a concorrência de culpas quando dois ou mais agentes, em atuações independentes, causam, culposamente, o resultado lesivo, de forma que ambos os agentes respondem por este; a participação stricto sensu não é possível, e sim apenas a co-autoria; o homicídio cometido na direção de veículo automotor é tipificado pela Lei n 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), artigo 302.

Destaque-se o § 4º, primeira parte, em que o legislador prevê o aumento de um terço da pena de homicídio culposo, caso este resulte de um dos seguintes fatores: inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, se o agente não procura diminuir as conseqüências do seu ato e se o agente foge para evitar a prisão em flagrante. Observe-se que, de acordo com a Exposição de Motivos, o objetivo de tais causas de aumento era o de cuidar, com maior rigor, dos crimes cometidos na condução veículos automotores. Com o advento do Código de Trânsito Brasileiro (1997), tais causas não mais se aplicam aos crimes cometidos na direção de veículos automotores; mesmo assim analisaremos cada causa de aumento de pena do homicídio culposo, haja vista que a aplicabilidade, apesar de ter sofrido restrição, permanece.

Na primeira hipótese, ou seja, quando o homicídio culposo resultar de inobservância de regra técnica de profissão, de arte ou de ofício do agente, não há se falar em imperícia, haja vista que o agente é perito (profissional) no que realiza, mas deixa de observar as regras técnicas da atividade que exerce.

A segunda hipótese (caso o homicídio culposo resulte de o agente não ter prestado socorro à vítima) deve ser analisada juntamente com a terceira (se o homicídio culposo resultar do fato de o agente não ter procurado diminuir as conseqüências de seu ato), uma vez que esta é decorrência daquela (Nucci, 2005, p. 507). Assim, se o agente podia prestar socorro à vítima e não prestou, fala-se em incidência da segunda situação, mas, se não podia prestar socorro, deveria, ao menos, ter procurado diminuir as conseqüências de seu ato, buscando auxílio de terceiros. Observação válida é a de que a segunda causa de aumento não se confunde com o crime de omissão de socorro (artigo 135), no qual a pessoa que está obrigada a prestar o socorro não se confunde com aquela que causou a situação de perigo.

Quarta hipótese é aquela em que o agente, depois de provocar o homicídio culposo, foge do local, a fim de evitar ser preso em flagrante. Trata-se de causa de aumento de pena de constitucionalidade duvidosa, haja vista que é o princípio do nemo tenetur se detegere, ou seja, ninguém é obrigado a se auto-incriminar, ninguém é obrigado a produzir provas contra si próprio (Nucci, 2005, p. 507).


4. Perdão judicial

Por fim, há que se falar no perdão judicial, permitido pelo § 5º: na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária. O perdão judicial é a clemência do Estado, o qual deixa de aplicar a pena prevista para determinados delitos, em hipóteses expressamente previstas em lei (artigo 107, IX), extinguindo a punibilidade.

O perdão judicial, para ser concedido no delito de homicídio, requer que: o homicídio cometido seja na modalidade culposa, sejam geradas conseqüências muito graves para o agente e a aplicação da pena seja desnecessária, uma vez que não será necessário atingir-se qualquer das finalidades da pena (ressocialização, retribuição ou prevenção).

Uma vez presentes todos os requisitos previstos em lei, não cabe ao magistrado negar o benefício – apenas se não estiver convicto de que é uma situação concreta compatível com o perdão pode negá-lo, desde que o faça de modo fundamentado (princípio do livre convencimento motivado).

As conseqüências do ilícito podem ser físicas ou morais. No caso de conseqüências morais, a aplicação do perdão judicial só será cabível se for averiguado que o agente realmente padeceu de insuportável dor moral, não sendo, pois, suficiente a tão-só constatação da relação de parentesco ou de afinidade entre ele e a vítima.

O perdão judicial tem aplicação extensiva, não se limitando ao crime de que se trata. Assim, se num mesmo contexto o agente matou culposamente o seu filho e um estranho, o perdão judicial estender-se-á a ambos os delitos.

Quanto à natureza jurídica da sentença que concede o perdão judicial, há dois posicionamentos: de acordo com o Supremo Tribunal Federal, a sentença é condenatória sui generis, afastando apenas o efeito principal da condenação, que é o cumprimento da pena imposta, e a reincidência, subsistindo os efeitos secundários, entre eles a obrigação de reparar o dano e o lançamento do nome do réu no rol dos culpados; de acordo com o Superior Tribunal de Justiça, a sentença é declaratória, afastando todos os efeitos da condenação, principais e secundários. Mas uma coisa é pacífica: de acordo com o artigo 120, a sentença que concede perdão judicial não será levada em conta para efeitos de reincidência.

Necessário lembrar que o Código de Trânsito Brasileiro (Lei n 9.503/97) trouxe importantes inovações legislativas, na medida em que passou a tipificar os crimes de homicídio e de lesões corporais, na modalidade culposa, praticados na direção de veículo automotor. Contudo, a lei não menciona a possibilidade de aplicação de perdão judicial, sendo certo que o artigo 291 refere-se apenas à possibilidade de aplicação das regras gerais do Código Penal, que, em princípio, não abrangem o perdão judicial. O fato de a lei não mencionar a aplicabilidade, ou não, do perdão judicial, gera divergências doutrinárias.

O entendimento minoritário, isto é, pena inaplicabilidade, defende que não se aplica subsidiariamente o artigo 121, § 5º, do Estatuto Penal, porque o artigo 291, do Código de Trânsito Brasileiro restringiu essa aplicação às normas gerais do Código Penal. Afirma-se, também que há a impossibilidade de aplicação analógica em se tratando de normas penais não-incriminadoras excepcionais.

O entendimento majoritário é pela aplicabilidade do perdão. São utilizados três argumentos: o delito do artigo 302 trata-se de crime remetido ao tipificado no artigo 121, §§ 3º e 5º, do Código Penal; o artigo 12, do Código Penal, dispõe que as regras gerais do mesmo aplicam-se às leis especiais, salvo se estas dispuserem em sentido contrário; trata-se de caso de analogia in bonam partem, uma vez que a lei apresenta lacuna – este último argumento é o melhor e se encaixa perfeitamente na situação.


BIBLIOGRAFIA

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial, volume 2. 1ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2003.

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial: dos crimes contra a pessoa a dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos (arts. 121 a 212), volume 2. 5ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2005.

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Madrid: Editorial Trotta, 2001.

FIRMO, Aníbal Bruno de Oliveira. Crimes contra a pessoa. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979.

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, volume V, arts. 121 a 136. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1955.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial – arts. 121 a 234 do CP, volume 2. 13ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 1998.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

______; NUCCI, Náila Cristina Ferreira. Prática forense penal. 1ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte especial (arts. 121 a 234). 1ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.

PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro: parte especial – arts. 121 a 183, volume 2. 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.


Autor

  • Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira

    Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira

    Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Diretor Secretário-Geral da Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH). Membro do Comitê de Pesquisa da Faculdade Estácio de Sá, Campus Vitória (FESV). Professor de Introdução ao Estudo do Direito, Direito Financeiro, Direito Tributário e Processo Tributário, no Curso de Direito da FESV. Pesquisador vinculado ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da FDV. Consultor de Publicações; Advogado e Consultor Jurídico sócio do Escritório Homem de Siqueira & Pinheiro Faro Advogados Associados. Autor de mais de uma centena de trabalhos jurídicos publicados no Brasil, na Alemanha, no Chile, na Bélgica, na Inglaterra, na Romênia, na Itália, na Espanha, no Peru e em Portugal.

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor

    Site(s):

Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Considerações acerca da disciplina do crime de homicídio no Código Penal brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1304, 26 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9433. Acesso em: 20 abr. 2024.