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Análise da decisão do Supremo Tribunal Federal no mandado de injunção coletivo nº 4.733/DF à luz do garantismo penal

Análise da decisão do Supremo Tribunal Federal no mandado de injunção coletivo nº 4.733/DF à luz do garantismo penal

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Neocriminalizações impostas pelo Poder Judiciário seriam compatíveis com a ordem constitucional brasileira?

Resumo:

O presente artigo tem por objeto a análise do Mandado de Injunção Coletivo n° 4733 à luz do garantismo penal. O que está em foco é a decisão do Supremo Tribunal Federal no âmbito do referido remédio constitucional, de relatoria do Ministro Edson Fachin. O mandado de injunção foi impetrado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT). Com efeito, o Pretório Excelso se posicionou pela procedência do mandado de injunção em tela, com fulcro no caráter atentatório ao Estado Democrático de Direito da discriminação em razão da orientação sexual das pessoas ou em sua identidade de gênero, reconhecendo a mora inconstitucional do Congresso Nacional e determinando a aplicação, até que seja criada a lei específica a respeito, a Lei nº 7.716/89, no sentido de estender a tipificação prevista para os crimes resultantes de discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero. Esta pesquisa cuidou de examinar a (in) compatibilidade desta decisão com os princípios constitucionais penais informados pela perspectiva do garantismo penal.

Palavras-chave: Discriminação Homofobia Mandado de Injunção n° 4733 Supremo Tribunal Federal Garantismo Penal.

Sumário: Introdução. 1. Jurisdição Constitucional, Ações Constitucionais e Remédios Constitucionais. 3. O Mandado de Injunção Coletivo n° 4733/DF. 4. A Doutrina do Garantismo Penal. 5. Análise da Decisão do Supremo Tribunal Federal no Mandado de Injunção n° 4733/DF à luz do Garantismo Penal. 6. Conclusão. 7. Referências.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objeto a análise do Mandado de Injunção Coletivo n° 4733/DF à luz do garantismo penal. O que está em foco é a decisão do Supremo Tribunal Federal no âmbito do referido remédio constitucional, de relatoria do Ministro Edson Fachin. O mandado de injunção foi impetrado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT). Cumpre referir também a ação direta de inconstitucionalidade por omissão ajuizada pelo Partido Popular Socialista (PPS), também julgada pelo Supremo Tribunal Federal. A análise específica desta ação direta foge ao objeto do presente estudo. Com efeito, este artigo aborda apenas o referido mandado de injunção, eis que o objeto da pesquisa deve ser o mais delimitado possível. Sem embargo, conforme consta da decisão do Supremo Tribunal Federal, ambas as ações têm por objetivo obter a criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, p. 5).

No julgamento do writ injuncional, o Pretório Excelso se posicionou pela procedência do mandado de injunção em tela, com fulcro no caráter atentatório ao Estado Democrático de Direito da discriminação em razão da orientação sexual das pessoas ou em sua identidade de gênero, reconhecendo a mora inconstitucional do Congresso Nacional e determinando a aplicação, até que seja criada a lei específica a respeito, a Lei nº 7.716/89, no sentido de estender a tipificação prevista para os crimes resultantes de discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero. Esta pesquisa cuidou de examinar a (in) compatibilidade desta decisão com os princípios constitucionais penais informados pela perspectiva do garantismo penal.

A nossa posição é a de que é dever elementar do Estado Democrático e Constitucional de Direito o combate à homofobia. Todas as formas de discriminação contra a pessoa humana devem ser combatidas em um regime democrático. A democracia não pode tolerar práticas violadoras da dignidade da pessoa humana. São aspectos primordiais de uma verdadeira democracia a proteção da dignidade humana, a afirmação da igualdade entre os seres humanos e a proibição dos atos atentatórios aos direitos fundamentais.

Portanto, esta pesquisa não se opõe à legítima luta da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) pela afirmação de seus direitos. A positivação dos direitos fundamentais da pessoa humana em sede constitucional é fundamental no Estado Democrático de Direito. Mas não adianta a positivação desses direitos sem a preocupação com a sua efetivação. Portanto, zelar pelos direitos fundamentais é dever não apenas dos Poderes do Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário), mas de toda a sociedade.

Esta primeira premissa deve ficar clara: a criminalização da discriminação de natureza homofóbica faz todo o sentido em um Estado Constitucional de Direito. Não se trata de uma ideia incoerente a inserção, pelo legislador, dessa prática como crime. Trata-se, afinal, de um grave problema estrutural de nossa sociedade: o crime não é um tumor nem uma epidemia, senão um doloroso problema interpessoal e comunitário (MOLINA; GOMES, 2008, p. 363).

Com efeito, a teoria do bem jurídico-penal a partir de um viés constitucional reconhece a legitimidade da lei penal para proteger os bens jurídicos mais importantes que estejam tutelados constitucionalmente. O Direito Penal, enquanto ultima ratio, não deve incidir sobre qualquer comportamento. Somente devem ser etiquetados nos tipos penais as violações mais graves aos bens jurídico-constitucionais mais relevantes. O combate à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero no âmbito da legislação penal faz todo o sentido, razão pela qual esta pesquisa não se opõe à criminalização dessa conduta. O que este artigo almeja questionar é a (in) compatibilidade da decisão do Supremo Tribunal Federal em relação aos princípios constitucionais penais sob a ótica do garantismo penal. Uma coisa é o Congresso Nacional criminalizar a conduta; outra coisa bem diferente é a criminalização em sede jurisdicional.

Portanto, ainda que seja legítima a preocupação do Estado em combater a homofobia, há meios adequados para esse combate no Estado Democrático de Direito. O ordenamento jurídico no regime democrático não pode admitir, a pretexto de promover a proteção às vítimas de determinadas práticas deletérias, sejam violados garantias e princípios fundamentais da ordem constitucional.

2. JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL, AÇÕES CONSTITUCIONAIS E REMÉDIOS CONSTITUCIONAIS

O problema examinado neste artigo tange ao exercício da jurisdição constitucional. Sobre esta temática ensina Paulo Bonavides:

Não há dúvida de que exercido no interesse dos cidadãos, o controle jurisdicional se compadece melhor com a natureza das constituições rígidas e sobretudo com o centro de sua inspiração primordial a garantia da liberdade humana a guarda e proteção de alguns valores liberais que as sociedades livres reputam inabdicáveis. A introdução do sobredito controle no ordenamento jurídico é coluna de sustentação do Estado de Direito, onde ele se alicerce sobre o formalismo hierárquico das leis (BONAVIDES, 2010, p. 301).

Dispõe o art. 102 da Constituição da República Federativa do Brasil que compete precipuamente ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição. Este órgão exerce o controle concentrado de constitucionalidade bem como o controle difuso. Conforme preleciona Gilmar Ferreira Mendes, o Supremo Tribunal Federal possui:

Uma peculiar posição tanto como o órgão de revisaão de última instância, que concentra suas atividades no controle das questões constitucionais discutidas nos diversos processos, quanto como Tribunal Constitucional, que dispõe de competência para aferir a constitucionalidade direta das leis estaduais e federais no processo de controle abstrato de normas (MENDES, 2005, p. 21).

Como o objeto deste artigo é a análise do julgamento do STF em sede de um mandado de injunção, insta mencionar brevemente as ações constitucionais previstas no Direito brasileiro. Preleciona Teresa Arruda Alvim Wambier:

Na ordem jurídica brasileira, instituída pela CF/1988, a previsão das seguintes ações constitucionais: habeas corpus, habeas data, mandado de segurança (individual e coletivo), mandado de injunção, ação direta de inconstitucionalidade, ação direta de constitucionalidade, ação direta de inconstitucionalidade por omissão e ação civil pública. Pode-se dizer, grosso modo, que estas ações têm o objetivo de tutelar precipuamente contra o Estado, devidamente representado por seus agentes ou órgãos, situações subjetivas derivadas de direitos fundamentais, com exceção da ADIN e ADCON, ações em que não existe situação fática subjacente, em que tenha incidido a norma, mas em que se discute apenas direito, ou seja, se discute acerca da compatibilidade da norma apontada com o texto constitucional (WAMBIER, 2013, p. 20).

A respeito da noção e da nomenclatura remédios constitucionais, remédios de Direito Constitucional ou garantias de Direito Constitucional, Manoel Gonçalves Ferreira Filho reflete:

A expressão remédio de Direito Constitucional parece não ser das mais felizes, por ser risível a metáfora que encerra. Entretanto, é ela consagrada, para designar uma espécie de ação judiciária que visa a proteger categoria especial de direitos públicos subjetivos (Alfredo Buzaid), as chamadas liberdades públicas, ou direitos fundamentais do homem. Em lugar dela, muitos preferem usar a expressão garantias de Direito Constitucional. O emprego desta expressão não é errôneo. O habeas corpus, o mandado de segurança etc. garantem direitos fundamentais. É bem de ver, porém que, rigorosamente falando, as garantias dos direitos fundamentais são as limitações, as vedações, impostas pelo constituinte ao poder público. O habeas corpus, o mandado de segurança etc. são meios de reclamar o restabelecimento de direitos fundamentais violados: remédios para os males da prepotência (FERREIRA FILHO, 2009, p. 317-318).

Verdadeiro remédio constitucional ou, como prefere Manoel Gonçalves Ferreira Filho , verdadeira garantia de Direito Constitucional, o mandado de injunção está consagrado no ordenamento jurídico brasileiro como instrumento de combate à síndrome da inefetividade das normas constitucionais, como bem explica o autor:

A prática constitucional tem demonstrado, ao longo do tempo, que alguns dos direitos e liberdades conferidos pela Constituição deixam de efetivar se em razão da falta de norma Regulamentadora que o implemente. Atento a essa circunstância o legislador constituinte cunhou medida inovadora para viabilizar o exercício de direitos e liberdades constitucionais, entretanto, de alcance bastante limitado. Trata-se do mandado de injunção previsto no art. 5°, LXXI (FERREIRA FILHO, 2009, p. 323).

Dispõe o texto constitucional, no referido art. 5°, LXXI: conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. O fundamento deste instituto é esclarecido por Teresa Arruda Alvim Wambier:

O mandado de injunção foi um modo de se tentar evitar que as normas constitucionais que provêem direitos fundamentais restassem ineficazes como consequência da inércia do legislador ordinário. Este instituto é semelhante à ação direta de inconstitucionalidade por omissão, ação de que se podem valer órgãos do estado e entidades como, por exemplo, a OAB, também para evitar a frustração da previsão constitucional de direitos fundamentais que, pela inércia do poder público, poderiam transformar-se em letra morta. Ambas as ações a que acima se aludiu não se consubstanciam, em nosso sentir, em processos objetivos (WAMBIER, 2013, p. 20).

Feitas estas considerações sobre os remédios constitucionais e, especialmente, sobre o mandado de injunção, cumpre abordar o mandado de injunção n° 4733/DF, que é o objeto central deste estudo.

3- O MANDADO DE INJUNÇÃO COLETIVO N° 4733/DF

Julgado pelo Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do Ministro Edson Fachin, o mandado de injunção n° 4733/DF foi impetrado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) com o desiderato de obter a criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima.

O STF julgou procedente writ injuncional. Foram estes os fundamentos da decisão:

1. É atentatório ao Estado Democrático de Direito qualquer tipo de discriminação, inclusive a que se fundamenta na orientação sexual das pessoas ou em sua identidade de gênero. 2. O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero e a orientação sexual. 3. À luz dos tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil é parte, dessume-se da leitura do texto da Carta de 1988 um mandado constitucional de criminalização no que pertine a toda e qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais. 4. A omissão legislativa em tipificar a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero ofende um sentido mínimo de justiça ao sinalizar que o sofrimento e a violência dirigida a pessoa gay, lésbica, bissexual, transgênera ou intersex é tolerada, como se uma pessoa não fosse digna de viver em igualdade. A Constituição não autoriza tolerar o sofrimento que a discriminação impõe. 5. A discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, tal como qualquer forma de discriminação, é nefasta, porque retira das pessoas a justa expectativa de que tenham igual valor. 6. Mandado de injunção julgado procedente, para (i) reconhecer a mora inconstitucional do Congresso Nacional e; (ii) aplicar, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito, a Lei 7.716/89 a fim de estender a tipificação prevista para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero..

Eis os termos do Acórdão:

Por maioria, julgou procedente o mandado de injunção para (i) reconhecer a mora inconstitucional do Congresso Nacional e; (ii) aplicar, com efeitos prospectivos, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito, a Lei 7.716/1989 a fim de estender a tipificação prevista para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, nos termos do voto do Relator, vencidos, em menor extensão, os Ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli (Presidente) e o Ministro Marco Aurélio, que julgava inadequada a via mandamental.

Portanto, não tendo sido unânime o provimento, colocaram-se contrariamente os Ministros Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Marco Aurélio. Desde já, insta esclarecer que julgar inadequada a via jurisdicional para criminalizar a homofobia não significa rechaçar a importância do combate à homofobia. O sistema jurídico é formado por pilares que não podem ser fragilizados, ainda que essa fragilização seja empreendida em nome da afirmação dos direitos fundamentais. Um desses pilares é a separação dos poderes. Outro é o princípio da reserva legal. O regime democrático precisa preservar esses pilares, em nome do princípio do Estado de Direito e de suas garantias fundamentais, garantias estas que foram construídas em nome da proteção da pessoa humana.

Cumpre trazer à baila o congruente posicionamento de Clève, Sarlet, Coutinho, Streck e Pansieri, a respeito da decisão em análise:

As indagações que cabem são: Qual seria a relação de uma criminalização com o livre desenvolvimento da personalidade? Qual é o papel do direito penal em um Estado Democrático? Cuida-se, aliás, de questionamentos que não dizem respeito apenas ao caso da criminalização da homofobia, mas que tocam a problemática mais ampla do uso (ou abuso?!) do direito penal como resposta adequada aos problemas da sociedade, que aqui não se poderá desenvolver.

Nessa quadra, vale enfatizar que respeitamos o pleito da ABGLT. O que aqui se questiona é o foro adequado para a satisfação de sua pretensão, que não há de ser o Poder Judiciário. A luta pela criminalização, entretanto, em si, embora contrária à melhor filosofia do direito penal, não é evidentemente inconstitucional, como também não seria inconstitucional eventual lei (desde que proporcional, portanto,  contemplando as exigências da Constituição Penal) tratando do assunto (CLÈVE ET AL, 2014).

Acrescem os autores:

Numa palavra: pretendemos ser duros na defesa do direito constitucional, mas tolerantes com a divergência e prontos para o diálogo democrático, circunstância que envolve, necessariamente, o fundamental papel desempenhado pelo Ministério Público brasileiro, em especial na sua fala máxima com assento na Suprema Corte, onde tais questões, muitas vezes por carência de diálogos institucionais, deságuam e acabam por resultar, como se pretende no Mandado de Injunção aqui questionado, em provimento que desborda dos limites do Estado Democrático de Direito. O combate eficaz que deve ser travado contra toda e qualquer forma de discriminação atentatória aos direitos humanos e fundamentais, no que se inclui a luta contra a homofobia, há, contudo, de ser travado sem violar princípios sagrados à Democracia e ao constitucionalismo (CLÈVE ET AL, 2014).

Faz sentido o entendimento acima transcrito. O abuso do Direito Penal como via de afirmação de direitos não é uma prática consentânea com o caráter mínimo, subsidiário e fragmentário que há de ter esse ramo do Direito, consagrado que é como ultima ratio. Ainda que seja válida a pretensão da ABGLT, qual seja a de buscar o amparo do Estado para a afirmação de seus direitos e para a luta contra a homofobia e a transfobia, não é válida a via jurisdicional para a prática de uma neocriminalização. Afinal, a competência para a criação de novos tipos penais é do Congresso Nacional.

4- A DOUTRINA DO GARANTISMO PENAL

Foucault conclui seu Vigiar e Punir com os seguintes termos:

Estamos agora muito longe do país dos suplícios das rodas, dos patíbulos, das forcas, dos pelourinhos; estamos muito longe também daquele sonho que, cinquenta anos antes, alimentava os reformadores: a cidade das punições, onde mil pequenos teatros levariam à cena constantemente a representação multicor da justiça e onde os castigos cuidadosamente encenados sobre cadafalsos decorativos constituiriam a quermesse permanente do Código. (FOUCAULT, p. 301-302).

A análise histórica da evolução do exercício do Jus Puniendi reúne uma série de atrocidades. Tais atrocidades não se limitam ao passado. Estão vivas. Se, por um lado, já não existem, em Estados Democráticos de Direito, as penas cruéis referidas por Foucault, por outro, as violações aos direitos fundamentais da pessoa humana ainda são elementos reais do sistema penal. Argumenta Eugenio Raúl Zaffaroni:

Hoje, temos consciência de que a realidade operacional de nossos sistemas penais jamais poderá adequar-se à planificação do discurso jurídico penal e de que todos os sistemas penais apresentam características estruturais próprias de seu exercício de poder que cancelam o discurso jurídico penal e que, por constituírem marcas da de sua essência, não podem ser eliminadas, sem a supressão dos próprios sistemas penais. A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais (ZAFFARONI, 2001, p. 15).

O sistema penal, justamente por apresentar as características estruturais referidas por Zaffaroni, deve ser limitado. E estes limites emanam do texto constitucional. O Direito Penal deve andar sempre de acordo com os comandos constitucionais e este é um imperativo de um regime jurídico tipicamente democrático.

Este artigo adota o ponto de vista difundido por Luigi Ferrajoli: o Garantismo Penal. O Direito Penal está submetido à supremacia da Constituição. Sempre que dela se afastar, será ilegítimo o exercício do jus puniendi.

De acordo com Luigi Ferrajoli, existem dez axiomas que devem ser respeitados pelo Estado. São princípios que limitam o poder punitivo estatal. Segundo o autor, são estes os princípios: retributividade ou consequencialidade da pena em relação ao delito; legalidade; necessidade ou economia do direito penal; lesividade ou ofensividade do evento; materialidade ou exterioridade da ação; culpabilidade ou responsabilidade pessoal; jurisdicionariedade; princípio acusatório ou separação entre juiz e acusação; princípio do ônus da prova ou da verificação; princípio do contraditório ou da defesa, ou da falseabilidade (FERRAJOLI, 2002, p. 75).

Ferrajoli aborda três significados de garantismo. O primeiro deles se refere ao garantismo como um modelo normativo de direito: um modelo de estrita legalidade, próprio do Estado de Direito. O segundo significado designa uma teoria jurídica da validade e da efetividade como categorias distintas não só entre si mas, também, pela existência ou vigor das normas. Neste sentido, a palavra garantismo exprime uma aproximação teórica que mantém separados o ser e o dever ser no direito. O terceiro significado define o garantismo como uma filosofia política que requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade (FERRAJOLI, 2002, p. 684-685).

A nosso sentir, o Direito Penal deve ser um sistema garantista, ou seja, com limites estabelecidos constitucionalmente, em nome da preservação dos direitos fundamentais da pessoa humana. Seria irracional um modelo oposto, pautado no punitivismo e na noção de Direito Penal máximo. Para ser racional, o sistema penal deve ser mínimo e limitado pelas normas constitucionais. O modelo penal garantista é, assim, um parâmetro de racionalidade, de justiça e de legitimidade da intervenção punitiva (FERRAJOLI, 2002, p. 683).

Pese embora a nossa concordância de que toda a forma de discriminação violadora de direitos fundamentais da pessoa humana deve ser combatida pelo Estado Democrático de Direito, este mesmo modelo de Estado impõe determinadas garantias fundamentais que não podem ser desconsideradas ao longo do referido combate. Quando o Poder Judiciário faz as vezes do legislador no âmbito penal, esta prática mostra-se incompatível com um modelo penal garantista, afinal, não há falar em garantismo penal sem o respeito ao princípio da reserva legal. Como ensina Luigi Ferrajoli, de todos os princípios garantistas ou garantias expressos por nossos dez axiomas e pelas dez teses deles derivadas, aquele que caracteriza especificamente o sistema cognitivo SG é o princípio da legalidade estrita (FERRAJOLI, 2002, p. 76).

Nullum crimen sine lege. Este axioma é essencial no Estado Democrático e Constitucional de Direito e restou violado pelo provimento do Supremo Tribunal Federal, ao pretender criminalizar uma conduta no lugar do legislador penal. Portanto, a decisão do Pretório Excelso há de ser considerada incompatível com um sistema penal constitucionalizado, ou seja, um sistema penal garantista.

5- ANÁLISE DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO MANDADO DE INJUNÇÃO COLETIVO Nº 4.733/DF À LUZ DO GARANTISMO PENAL

Como foi destacado no tópico anterior, um sistema jurídico penal racionalizado precisa efetivar o respeito aos limites constitucionalmente estabelecidos, em nome da preservação da liberdade individual e dos direitos fundamentais da pessoa humana. O Direito Penal não pode ser máximo. O Direito Penal no modelo garantista é um Direito Penal mínimo, uma ulltima ratio. Afirma Sérgio Salomão Shecaira:

Só devemos utilizar os mecanismos formais de controle social, entre os quais as penas se incluem, quando falharem as demais formas de controle social. É o que o direito chama de ultima ratio regum, princípio informador de todo o direito penal consubstanciado no chamado direito penal mínimo (SHECAIRA, 2008, p. 69).

Para além da caracterização do Direito Penal como ramo de aplicação subsidiária, existe uma gama de garantias constitucionais que determinam a limitação do poder punitivo estatal. Todas essas garantias devem ser respeitadas.

Analisar a decisão do STF no âmbito do mandado de injunção coletivo n° 4733/DF à luz do garantismo penal significa analisar este julgado do ponto de vista dos princípios constitucionais penais ou princípios limitadores do poder punitivo estatal. Afinal, o garantismo penal impõe a constitucionalização do Direito Penal, ou seja, a aplicação do Direito Penal dentro dos limites estabelecidos pela Constituição.

Ensina Ruy Samuel Espíndola:

Diante dos postulados da teoria dos princípios, não há que se negar ao princípio constitucional a sua natureza de norma, de lei, de preceito jurídico, ainda que com características estruturais e funcionais bem diferentes de outras normas jurídicas, como as regras de direito (ESPÍNDOLA, 2002, p. 80).

Cármem Rocha, por sua vez, afirma:

Os princípios constitucionais são os conteúdos primários diretores do sistema jurídico normativo. Dotados de originalidade e superioridade material sobre todos os conteúdos que formam o ordenamento constitucional, os valores firmados pela sociedade são transformados pelo Direito em princípios. Adotados pelo constituinte, sedimentam-se nas normas, tornando-se pilares que informam e conformam o Direito que rege as relações jurídicas no Estado. São eles, assim, as colunas mestras da grande construção do Direito, cujos fundamentos se afirmam no sistema constitucional (ROCHA, 1994, p. 25-26).

Esta ideia defendida pela autora é também preponderante entre os autores do Direito Penal. O exame da principiologia jurídico-penal demonstra a sua sede constitucional, precisamente no art. 5° da Constituição da República Federativa do Brasil. Os princípios limitadores do poder punitivo estatal, então, encontram fundamento nesse dispositivo e podem estar implícita ou explicitamente previstos. É o que afirma Luiz Luisi:

A Constituição de 1988 incluiu em seu texto uma série de princípios especificamente penais. Alguns estão equivocadamente explicitados. Outros se deduzem no contexto das normas constitucionais por nele implícitos. Dentre estes princípios merecem especial destaque o da legalidade, o da intervenção mínima, o da humanidade, da pessoalidade da pena e o da individualização da pena (LUISI, 2003, p. 17).

É necessária a relação entre Direito Penal e Direito Constitucional. Sem o acordo com a Constituição, não há Direito Penal válido. Ensina Paulo Bonavides:

O Direito Constitucional relaciona-se também com outros ramos do Direito Público, ministrando as regras capitais de certos institutos. Com o Direito Penal, no caso da Constituição brasileira, a relação manifesta-se diante das garantias penais de natureza constitucional que se estendem do inciso XXXVII ao inciso LXVII do art. 5° do Capítulo I, sobre direitos e deveres individuais e coletivos (BONAVIDES, 2010, p. 45).

A decisão do Supremo Tribunal que está em análise neste artigo afastou-se do princípio da legalidade penal, também conhecido como princípio da reserva legal. Somente o legislador pode criar delitos. Só a lei formal tem esse poder. Não pode o Poder Judiciário criminalizar condutas como se legislador fosse.

Trata-se de uma decisão incompatível com o Garantismo Penal. Com efeito, o princípio da legalidade é um dos mais importantes axiomas defendidos pela doutrina de Luigi Ferrajoli. A respeito desse princípio fundamental, explica José Afonso da Silva:

Trata-se também de garantia individual prevista no artigo 5º, XXXIX, segundo o qual não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal, em que se consubstancia o princípio nullum crimen nulla poena sine lege. O dispositivo contém uma reserva absoluta de lei formal, que exclui a possibilidade de o legislador transferir a outrem a função de definir o crime e estabelecer penas. Demais, a definição legal do crime e a previsão da pena hão que preceder o fato tido como delituoso. Sem lei que o tenha feito não há crime nem pena (SILVA, José Afonso da, 2010, p. 429).

A decisão do Supremo Tribunal Federal acabou, a nosso sentir, por ensejar a chamada inconstitucionalidade orgânica, que tem lugar quando determinado ato promana de órgão distinto daquele definido na Constituição Federal para a sua edição. Ainda que seja legítima a intencionalidade de proteção de pessoas que sofrem com as discriminações, o órgão de cúpula do Judiciário brasileiro não pode deixar de observar os limites constitucionais ao poder de punir do Estado. Neste caso, essa desatenção do Supremo Tribunal Federal resultou em inconstitucionalidade orgânica. A legalidade estrita (art. 5º, XXXIX, CF) requer lei formal para a criação de tipos penais. Trata-se de competência do Congresso Nacional, e não do Supremo Tribunal Federal. Portanto, houve inconstitucionalidade orgânica.

Referida inconstitucionalidade resulta, ademais, em violação à separação dos poderes. Com efeito, o Congresso Nacional atua como representante da vontade popular, possuindo função típica de legislar. E em matéria penal, não há outra via legítima. Ao ampliar a interpretação da lei de racismo, o Supremo Tribunal Federal praticou um ativismo, atuando fora de sua competência constitucionalmente atribuída e violando princípios fundamentais da ordem jurídica brasileira.

Sabe-se que os poderes estatais exercem funções típicas e atípicas. Não se deve confundir, porém, o válido exercício de função atípica com usurpação de competência. Portanto, a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal no mandado de injunção em exame não corresponde ao exercício legítimo de função normativa atípica legislativa, senão de violação ao princípio da reserva legal em matéria penal. Não se trata de uma elaboração de seu regimento, o que seria legítimo exercício de função atípica normativa, mas sim de neocriminalização por via judicial, o que contraria o princípio da legalidade, que tem sede constitucional e também infraconstitucional. Assim, prevê a Constituição Federal, no art. 5º, XXXIX:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (BRASIL,1988).

Este princípio tem também previsão infraconstitucional. Destarte, o art. 1º do Código Penal dispõe: Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal. O posicionamento aqui adotado, assim, é o de que o uso extensivo de uma matéria incriminadora, por meio de uma decisão judicial, significa violação ao princípio em comento.

Cumpre fazer uma menção às palavras do Ministro Ricardo Lewandowski em seu voto no Mandado de Injunção Coletivo nº 4.733/DF:

Não obstante a repugnância que provocam as condutas preconceituosas de qualquer tipo, é certo que apenas o Poder Legislativo pode criminalizar condutas, sendo imprescindível lei em sentido formal nessa linha. Efetivamente, o princípio da reserva legal, insculpido no art. 5º, XXXIX, da Constituição, prevê que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. A Carta Magna é clara: apenas a lei, em sentido formal, pode criminalizar uma conduta. A extensão do tipo penal para abarcar situações não especificamente tipificadas pela norma penal incriminadora parece-me atentar contra o princípio da reserva legal, que constitui uma fundamental garantia dos cidadãos, que promove a segurança jurídica de todos (LEWANDOWISK, 2019, p. 17-19).

Ressalte-se que o uso da analogia nas decisões judiciais ocorre nas circunstâncias em que a lei for omissa, conforme previsão da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, precisamente no art. 4°: Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Ocorre que no Direito Penal é proibida a aplicação da analogia para a criação de tipo penal incriminador, conforme preleciona Rogério Sanches Cunha ensina:

Proíbe-se o uso da analogia para criar tipo incriminador, fundamentar ou agravar a pena. Tendo como norte este princípio da legalidade, o STF declarou a atipicidade da conduta do agente que furta sinal de TV a cabo, asseverando ser impossível a analogia (in malam partem) com o crime de furto de energia elétrica, previsto no artigo 155, §3º, CP (CUNHA, 2018, p.99).

Em matéria penal só se admite a analogia in bonam partem, sendo proibida a analogia in malam partem, ou seja, é vedada a interpretação extensiva que causar prejuízos ao réu. A decisão do Supremo Tribunal Federal em análise ensejou analogia in malam partem, o que revela a sua inadequação perante a ordem constitucional pátria. Insta lembrar que o princípio da legalidade constitui verdadeira cláusula pétrea, por proteger os direitos fundamentais individuais da pessoa humana, nos termos do art. 60, § 4º da Carta Magna de 1988.

A decisão de enquadrar as condutas homofóbicas e transfóbicas na interpretação da lei de racismo, assim, constitui analogia maléfica ao réu. Como ensina Luiz Regis Prado:

A limitação consta, de forma expressa no artigo 1.º do Código Penal e tem amparo constitucional (art.5.º XXXIX, CF). Em outras palavras: em matéria penal é vedada a analogia in malam partem, ou seja, analogia prejudicial ao réu (PRADO, 2017, p.117).

No mesmo sentido, explica Guilherme de Souza Nucci:

[...] o Direito Penal é regido pelo princípio da legalidade, não havendo crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal, nos termos do artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal, e do artigo 2º do Código Penal. 2. Em observância ao mencionado postulado não se admite o recurso à analogia em matéria penal quando esta for utilizada de modo a prejudicar o réu. (NUCCI, 2018, p.27).

Destarte, ainda que a intenção do Supremo Tribunal Federal não tenha sido a de abalar o princípio da reserva legal e o princípio da separação dos poderes, mas a de proteger as vítimas de atos deletérios e atentatórios à sua dignidade humana, resta claro que o provimento jurisdicional no âmbito do mandado de injunção em comento acabou por perpetrar analogia in malam partem, contrariando os comandos constitucionais. Após estas reflexões, passa-se à etapa das considerações finais.

7. CONCLUSÃO

Toda a forma de discriminação que atente contra a dignidade da pessoa humana há de ser combatida no Estado Democrático de Direito. A homofobia não é compatível com a democracia e o sistema de direitos fundamentais da pessoa humana. Práticas homofóbicas devem ser rechaçadas pelo Estado e pela sociedade civil e os direitos fundamentais da pessoa humana devem ser protegidos por estes mesmos destinatários.

No entanto, no Estado Democrático de Direito existem meios adequados para a afirmação de direitos e para o combate às transgressões aos direitos. Neocriminalizações perpetradas pelo Poder Judiciário não são compatíveis com a ordem constitucional brasileira. A Constituição prevê o princípio da reserva legal, que exige lei formal (lei em sentido estrito, ou seja, elaborada pelo Congresso Nacional) para a criação de novos tipos penais, sendo vedada a analogia in malam partem.

Por entender que a decisão do Supremo Tribunal Federal no âmbito do mandado de injunção n° 4.733/DF abala o princípio da reserva legal, ao promover uma neocriminalização por via jurisdicional, o posicionamento defendido neste artigo é o de que essa decisão não é conforme a ordem constitucional pátria. Pela mesma razão, a decisão contraria a essência do Garantismo Penal, sendo esta uma teoria que promove a relação entre o Direito Penal e a Constituição, proclamando a supremacia desta.

A reserva legal é um axioma fundamental do Garantismo Penal de Luigi Ferrajoli. Com efeito, a decisão do Supremo Tribunal Federal não se justifica à luz dessa teoria que preza pelo respeito à legalidade estrita: somente lei do Congresso Nacional pode criar novos tipos penais, sendo vedada a neocriminalização por via jurisdicional.

A decisão objeto do presente artigo excedeu a competência jurisdicional do Supremo Tribunal Federal. Ao órgão de cúpula do Judiciário brasileiro compete precipuamente a guarda da Constituição Federal, nos termos do art. 102, não estando autorizado a lançar mão da analogia prejudicial ao réu em matéria jurídico-penal. Isso porque a Constituição impõe limites, fundados na proteção da pessoa humana, que devem ser observados pelos órgãos estatais.

O Congresso Nacional é o órgão ao qual a Constituição atribui a competência legislativa. Este aspecto demonstra o caráter democrático desse órgão bicameral, a partir da noção de representação popular. Assim, a criação das leis, função típica do Congresso Nacional, deve ocorrer mediante o respeito aos parâmetros materiais e formais previstos constitucionalmente, sob pena de configuração de inconstitucionalidades, como é o caso da referida inconstitucionalidade orgânica.

A previsão da referida competência do Congresso Nacional está nos artigos 44 e 49, XI da nossa Constituição: O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional; XI - zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes.

Da leitura destas previsões normativas, conforme reiterado ao longo desta pesquisa, pode-se compreender que ao ampliar a interpretação da lei de racismo para incluir a homofobia, o Supremo Tribunal Federal, mesmo que sem a intenção, acabou por usurpar a competência normativa do Congresso Nacional em matéria penal, em abalo à reserva legal e à separação dos poderes.

Portanto, é legítimo o combate a todas as formas de discriminação. A democracia precisa enfrentar o problema da homofobia. No entanto, o Estado Democrático de Direito impõe garantias que precisam ser respeitadas. É dever fundamental do Estado zelar por essas garantias. Ao promover neocriminalização por via de analogia in malam partem, com efeito, o Supremo Tribunal Federal afastou-se de um axioma essencial para o Estado Democrático de Direito: a reserva legal. Ao julgar o mandado de segurança nº 4.733/DF, o órgão de cúpula do Judiciário brasileiro adotou posicionamento que não pode ser considerado legítimo à luz do Garantismo Penal.


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SILVA, José Luiz Peres da. Análise da decisão do Supremo Tribunal Federal no mandado de injunção coletivo nº 4.733/DF à luz do garantismo penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6723, 27 nov. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/94992. Acesso em: 19 abr. 2024.