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O Provedor de Justiça em Moçambique

O Provedor de Justiça em Moçambique

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Apresentam-se propostas para repensar a figura do Provedor de Justiça no contexto moçambicano, a partir de análise das suas atribuições constitucionais.

Resumo: Pretende-se neste artigo, analisar a figura do Provedor de Justiça em Moçambique. A questão surge com particular interesse de compreender, no contexto moçambicano, enquanto Estado de Direito Democrático, o papel do Provedor de Justiça na concretização dos direitos dos administrados e na garantia da legalidade. São tomadas como bases de perquirição, a legislação em vigor no país, nomeadamente, a Constituição da República de Moçambique, texto de 2018 e a Lei nº 6/2007, de 16 de Agosto (Lei que estabelece o âmbito de actuação, Estatuto, as competências e o processo de funcionamento do Provedor de Justiça na República de Moçambique. A perquirição da competência atribuída ao Provedor de Justiça, traduzida na emissão de pareceres para a Administração Pública, constitui objecto principal das abordagens a desenvolver. A questão suscita particular interesse por se constatar que maioritariamente, a Administração Pública na maioria das vezes não responde às notificações do Provedor de Justiça e, noutras vezes, não acata às recomendações contidas em seus pareceres, facto que impõe uma reflexão e compreensão sobre a natureza jurídica do próprio órgão, dos seus pareceres e o seu grau de importância no ordenamento jurídico moçambicano. O estudo permitiu aferir que, presentemente, em Moçambique, o Provedor de Justiça é um órgão do Estado ainda em processo de consolidação razão pela qual ainda não conseguiu se impor de modo a persuadir a Administração Pública no acatamento das suas notificações e pareceres como mecanismo de materialização das garantias dos direitos dos administrados e de garantia da legalidade, premissa da boa actuação de quem tem a responsabilidade de gerir a coisa pública.

Palavras-chave: Provedor de Justiça, natureza jurídica, garantia de direitos e defesa da legalidade.


Introdução

Propõe-se no presente artigo, estudar a figura do Provedor de Justiça em Moçambique, tema que se enquadra no Direito Constitucional, posto que se pretende em primeiro linha, analisar a natureza jurídica do retro mencionado órgão, se é político, administrativo/executivo ou judicial. Seguidamente, procurar-se-á compreender o regime jurídico que lhe é aplicável (essencialmente, a Constituição da República de 2018 e a Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto) e por último, compreender os mecanismos colocados pelo Estado à disposição do Provedor de Justiça para fazer valer as suas intervenções no âmbito das suas competências. Destarte, o artigo 255 da Constituição moçambicana define o Provedor de Justiça como órgão cuja função primordial é zelar pela garantia dos direitos dos cidadãos, pela defesa da legalidade e da justiça na actuação da Administração Pública. Depreende-se desta definição que o legislador constituinte, à par dos mecanismos instituídos juntos de outros órgão do Estado, como por exemplo, o Ministério Público, acometido na defesa dos interesses que a lei determina e no controlo da legalidade[2]; o Tribunal Administrativo, que tem como parte da sua missão controlar a legalidade dos actos administrativos e da aplicação das normas regulamentares emitidas pela Administração Pública, bem como fiscalizar a legalidade das despesas públicas, de entre outras funções, como se impõe no nº 2 do artigo 227 da Constituição, institucionalizou o Provedor de Justiça, talvez com o propósito de reforçar, no geral, o controlo da legalidade. Nesta vertente, o Provedor de Justiça aparece como órgão singular e de assessoria à Administração Pública. Outra das particulares que decorre da Constituição da República é que, o Provedor de Justiça, estando embora adstrito apenas a obedecer à Constituição e às lei na sua actuação, feita com independência e imparcialidade no exercício das suas funções, caracteriza-se por ser um órgão e não concretamente um poder do Estado, porquanto, não está investido do privilégio de tomar decisões.[3] Resulta ainda da perquirição dos artigos 7, 9, 10 e 11, todos da Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto, que o legislador ordinário moçambicano institucionalizou o Provedor de Justiça como órgão para-judicial, porquanto, goza dos privilégios atribuídos aos magistrados, faltando-lhe apenas o poder decisório. A efectividade de funções do Provedor de Justiça em Moçambique é um fenómeno novo. O primeiro Provedor de Justiça em Moçambique, José Ibraimo Abudo, Juiz de Carreira e antigo Ministro da Justiça entre 1994 e 2004, foi eleito no dia 15 de Maio de 2012, num processo de votação pela Assembleia da República, por uma maioria de 175 votos. A novidade da efectividade de funções do Provedor de Justiça em Moçambique e a necessidade de compreender as dinâmicas da sua actuação, constituem o móbil do interesse na sua investigação. Para efeito, a presente pesquisa seguirá o enfoque qualitativo, sendo de tipo exploratório, alicerçando-se no método interpretativo/hermenêutico, com base na bibliográfica e legislação. Por conseguinte, são tomados como temas principais: O Provedor de Justiça: Ideia Geral; Competências do Provedor de Justiça; Natureza Jurídica do Provedor de Justiça no Ordenamento Jurídico Moçambicano; Acção do Provedor de Justiça na Actividade Forense; Valor Jurídico das Recomendações do Provedor de Justiça; e Considerações Finais.


O Provedor de Justiça: Ideia Geral

O Provedor de Justiça é o órgão que pela génese da sua origem e funções, corresponde ao Ombudsman, figura originária da Suécia, que remonta de 1809 e que igualmente inspirou o surgimento do Alto-comissário Contra a Corrupção e a Ilegalidade Administrativa, em Macau.[4]

O autor em citação refere ainda que uma das características da ordem constitucional dos Estados modernos é a incorporação nas suas Constituições, dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos e, no leque dos princípios constitucionais e de direitos, liberdades e garantias, encontra-se o direito de acesso ao Provedor de Justiça, exercido através da apresentação de queixas e reclamações contra os actos ilegais na actuação da Administração Pública.

Assenta ainda o citado autor que, com a deposição do Rei Gustavo IV, o surgimento da figura de Ombudsman na Suécia em 1809, tornou-se o marco do termo do regime absolutista de concepção vertical e horizontal dos poderes na Coroa, fenómeno similar ao que ocorre em toda a Europa Continental e deu lugar a uma Constituição da qual floresceu o princípio de controlo do poder parlamentar sobre o exercício do poder executivo.

De maior relevância, como efeito da Revolução Sueca, foi a criação de um comissário parlamentar, o Ombudsman, tão independente da Coroa, do Governo e dos Tribunais, quanto do próprio órgão que o designara, com competências especiais para a fiscalização e investigação a partir das queixas dos cidadãos, órgão historicamente caracterizado pela actuação com independência e imparcialidade.

O provedor de Justiça encontra variadas denominações quanto o ilustram os exemplos que vão desde «ombudsmen regionais» a «ombudsmen nacionais». Em Espanha recebeu o nome de «Defensor del Pueblo»; em França, «Médiateur de la Republique»; em Itália, o «Difensore Civico», a nível apenas regional; em Inglaterra, o «Parliementary Commissioner»; no Quebeque, o «Protécteur des Citoyens» e na Venezuela, o «Fiscal General». Muitas outras ilustrações poderiam ser encontradas em Israel, nos Países Baixos, na Áustria, na Zâmbia, na índia, na Austrália, em Hong Kong ou no Papua-Nova Guiné.[5]

Conclui o autor referindo que os países que não adoptaram a figura do Provedor de Justiça, têm recorrido às denominadas Comissões Parlamentares de Petições, as quais estendem a sua actuação até bem perto do modelo do Provedor de Justiça.

Curiosamente, Moçambique agrega no seu ordenamento jurídico, quer a figura de Provedor de Justiça, bem como a Comissão Parlamentar de Petições, Queixas e Reclamações, que é uma Comissões da Assembleia da República, que actua sob o manto das disposições conjugadas da alínea h) do nº 1 do artigo 84 e artigo 92, ambos do Regimento da Assembleia da República, aprovado pela Lei nº 12/2016, de 30 de Dezembro.

Ao nível do Direito Comunitário Europeu, merece especial destaque o Tratado de Maastricht, que instituiu a figura do Provedor de Justiça Europeu, com o assumido propósito de combater a má administração no âmbito da actividade das instituições e organismos comunitários, sendo de referenciar o postulado do artigo 43.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia que igualmente consagra o direito dos cidadãos europeus de apresentarem petições ao Provedor de Justiça Europeu, com fundamento na má administração.[6]

Estatui a norma em referência que Qualquer cidadão da União, bem como qualquer pessoa singular ou colectiva com residência ou sede social num Estado-Membro, tem o direito de apresentar petições ao Provedor de Justiça Europeu, respeitantes a casos de má administração na actuação das instituições, órgãos ou organismos da União, com excepção do Tribunal de Justiça da União Europeia no exercício das respectivas funções jurisdicionais.

O direito de petição é igualmente alargado ao Parlamento Europeu porquanto se estabelece na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que Qualquer cidadão da União, bem como qualquer pessoa singular ou colectiva com residência ou sede social num Estado-Membro, goza do direito de petição ao Parlamento Europeu.[7]

Para a experiência do Direito Comunitário Africano, denota-se que na maioria dos países da região austral, por exemplo, se acha previsto o órgão Provedor de Justiça, não obstante esse facto, ainda não foi aprovada a legislação especial sobre um Provedor de Justiça da Região, embora esta intensão seja presente nas reuniões dos Provedores de Justiça dos países da região, como sucedeu, por exemplo, na VI Sessão da Assembleia Geral da Associação dos Provedores de Justiça e Mediadores de África (AOMA) realizada em Kigali - Ruanda, no dia 30 de Novembro de 2018. A Associação integra os Provedores de Justiça da República de Angola, da República da África do Sul, da República do Botswana, da República do Lesoto, da República de Moçambique, da República do Malawi, da República do Quénia, da República da Namíbia, da República da Zâmbia e da República do Zimbabwe. [8]

O propósito desta associação, no que ao escopo histórico-natural do Provedor de Justiça diz respeito, assenta na promoção da boa governação, de acordo com os direitos humanos e a transparência administrativa.[9]

Na maioria dos casos dos países da região austral de África, o Provedor de Justiça é um órgão do Estado, eleito pelas respectivas Assembleias Nacionais, é independente e tem como função principal promover a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, através de meios informais, para assegurar a legalidade da administração pública.[10]

Conclui-se por conseguinte que as concepções africanas e europeias sobre o Provedor de Justiça têm um denominador comum que traduz a intenção de estabelecer um mecanismo adicional posto à disposição dos cidadãos para apresentarem as suas manifestações de repulsa nos casos em que a Administração Pública no lugar de cumprir a sua missão nos termos previamente angularizados pela lei, entende agir em oposição aos preceitos legais, desembocado tal actuação numa má administração que por via de consequência gera resultados adversos do interesse público, enquanto fundamento e essência da existência da Administração Pública.


Competência do Provedor de Justiça

No contexto jurídico moçambicano, o Provedor de Justiça afigura-se como um órgão do Estado, um Estado de Direito que se subordina à Constituição e se funda na legalidade.

No Estado de Direito, a existência, a organização estrutural e o funcionamento dos órgãos e instituições do Estado e de outras pessoas colectivas de direito público está intrinsecamente submetida ao princípio da legalidade, sem o qual, pelo menos do ponto de vista formal, a premissa de Estado de Direito seria uma inutilidade. Quer isso significar que, cada órgão com existência legal estrutura-se e funciona dentro de um parâmetro pré-estabelecido por normas-comandos que enformam os demais órgãos e instituições a não exercerem simultaneamente as atribuições e competências adstritas expressamente a um determinado órgão.

Legalmente, o Provedor da Justiça em Moçambique exerce as suas funções na estrita obediência às competências e poderes instituídos nos artigos 15 e 16 da Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto.

São competências do Provedor de Justiça:

  1. endereçar recomendações aos órgãos competentes com vista à correcção dos actos ou omissões ilegais ou injustos dos poderes públicos ou melhoria dos procedimentos;
  2. assinalar as deficiências da lei que constatar, emitindo recomendações, para alteração ou revogação ou sugestões para a elaboração de nova legislação, ao Presidente da República, à Assembleia da República e Governo;
  3. emitir pareceres a pedido da Assembleia da República sobre quaisquer matérias relacionadas com a sua actividade;
  4. requerer ao Conselho Constitucional a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade de normas, nos termos da alínea f) do número 2 do artigo 244 da Constituição da República;
  5. promover a divulgação da legislação relativa aos direitos, deveres e liberdades fundamentais dos cidadãos;
  6. intervir, nos termos da lei aplicável, na tutela dos interesses colectivos ou difusos, quando estiverem em causa as entidades públicas.

2. As recomendações e pareceres referidos nas alíneas b) e c) do número anterior são publicadas no Boletim da República.

A Constituição bem como a Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto, não se referem de forma expressa sobre a forma ou natureza dos actos que traduzem a actuação do Provedor de Justiça, no entanto, pode-se inferir do postulado no nº 1 do artigo 258 em conjugação com o artigo 255, ambos da Constituição que, os actos dirigidos à Administração Pública, para observar a legalidade na sua actuação, toma a forma de recomendações, desprovidas do poder vinculativo. Ou seja, as recomendações emitidas pelo Provedor de Justiça perante a Administração Pública, não têm a propensão de, de per si, desencadear responsabilidade por seu desacatamento.

Uma questão de especial peculiaridade no Direito, prende-se com o conteúdo da norma da alínea b) do artigo 15 da Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto, que estabelece a competência do Provedor de Justiça para emitir recomendações para alteração ou revogação ou sugestões para a elaboração de nova legislação ao Presidente da República, à Assembleia da República e ao Governo. Trata-se de uma norma de constitucionalidade duvidosa, posto que, o princípio orientador da actividade do Provedor de Justiça encontra-se esquadrinhado no artigo 255 da Constituição, nos termos do qual O Provedor de Justiça é um órgão que tem como função a garantia dos direitos dos cidadãos, defesa da legalidade e da justiça na actuação da Administração Pública.

O legislador constituinte limitou de forma expressa, a actuação do Provedor de Justiça, a recair sobre os actos de actuação da Administração Pública que importam a violação dos direitos dos cidadãos, assentes em ilegalidade e injustiça. No entanto, através da alínea b) do artigo 15 da Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto, o legislador ordinário veio conferir competências ao Provedor de Justiça para emitir recomendações aos órgãos que não estejam em exercício de actividade administrativa, facto que gera a suspeita de inconstitucionalidade desta norma.

Nos estudos sobre a constitucionalidade das normas, os constitucionalistas são unânimes em considerar que a ideia de controlo de constitucionalidade está ligada à supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico e, também, à de rigidez constitucional e à protecção dos direitos fundamentais, de tal modo que se uma norma ordinária contrariar a Constituição será considerada como estando enferma do vício de inconstitucionalidade, devendo por isso ser irradiada do ordenamento jurídico[11].

Não sendo embora de interesse abordar com profundidade a questão da suspeita da inconstitucionalidade, por não subscrever o objecto da presente pesquisa, a matéria é sempre de recomendação para os juristas, por revestir a natureza de questão prévia em qualquer estudo, porquanto as consequências da inconstitucionalidade se assemelham grande medida com os efeitos da declaração da nulidade. Regra geral, a declaração da inconstitucionalidade propaga seus efeitos para o passado, salvo nos casos em que por necessidade de protecção de certos efeitos jurídicos, haja reserva relativamente aos efeitos já produzidos.

Atento aos limites constitucionais e da lei, o funcionamento do Provedor de Justiça traduz-se nas competências de dimanar recomendações apenas para a Administração Pública[12], emitir pareceres em matérias estritamente relacionadas com a sua actividade, quando solicitado[13], peticionar pela declaração de inconstitucionalidade e ilegalidade de normas[14] e realizar as demais acções tendentes a assegurar que a Administração Pública não viole os direitos e deveres fundamentais[15].


Natureza Jurídica do Provedor de Justiça no Ordenamento Jurídico Moçambicano

A Constituição da República de Moçambique fixa o quadro legal dos princípios recomendadores sobre o Provedor de Justiça nos artigos 255 à 259, sem embargo da reserva feita para o legislador ordinário, no artigo 260, para estabelecer a disciplina sobre os aspectos inerentes ao estatuto, procedimento e estrutura organizativa de apoio ao Provedor de Justiça.

Assim, a Constituição concebe o Provedor de Justiça como órgão cuja função é de garantir os direitos dos cidadãos, a defesa da legalidade e da justiça na actuação da Administração Pública, promanando da eleição por uma maioria de dois terços dos deputados da Assembleia da República.

Ainda sobre o manto da Constituição, na sua actuação, o Provedor de Justiça goza de independência e imparcialidade, estando subordinado apenas à Constituição e às leis que vinculam o Estado moçambicano.

Com feito, e por necessidade de garantir a efectividade da acção do Provedor de Justiça no exercício das suas competências, o legislador constituinte impôs aos órgãos e agentes da Administração Pública, o dever de respeitosa colaboração perante os requerimentos apresentados pelo Provedor de Justiça, embora inexista ao nível da Constituição a previsão sobre a cominação legal decorrente da violação desse dever de respeitosa colaboração. Grave ainda é que, a Constituição não cuidou sequer de recomendar o legislador ordinário a regulamentar a questão da violação do dever de prestar colaboração com o Provedor de Justiça.

Decorre daí a recorrência do Provedor de Justiça, nos seus Informes Anuais, a apresentação de reclamações sobre o baixo grau de colaboração dos Órgãos dos Poderes da Administração Pública e seus Titulares.

A título de exemplo, refere do Informe Anual de 2016 que, Alguma parte das autoridades públicas tem facultado o que é solicitado pelo Provedor de Justiça e manifestam disponibilidade para a prestação de esclarecimentos e explicações que se mostram necessários. Outra parte responde fora do prazo fixado, após ofícios de insistência de pedidos de resposta e outra parte opta pelo silêncio absoluto e até mostrando indisponibilidade na participação quando o Provedor de Justiça, em sede de mediação, promove reuniões entre elas e os queixosos ou peticionários com vista à concertação e conciliação de interesses envolvidos, para solucionar e ultrapassar o diferendo que opõe as partes litigantes.[16]

Esta questão já era objecto de colocação no Informe Anual do Provedor de Justiça apresentado em 2015.[17]

A norma do artigo 260 da Constituição unicamente autorizou o legislador ordinário a dispor sobre aspectos do estatuto do Provedor de Justiça, procedimentos de sua actuação e da estrutura organizativa dos respectivos serviços de apoio ao Provedor de Justiça.

O conceito do provedor de Justiça que é eminentemente de natureza funcional do órgão, é retomado no artigo 1 da Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto, nos termos do qual O Provedor de Justiça é um órgão do Estado que tem como função a garantia dos direitos dos cidadãos, a defesa da legalidade e da justiça na actuação da Administração Pública.

Trata-se de funções apenas voltadas para a defesa da legalidade e da justiça sobre actividade da Administração Pública em toda a jurisdição do Estado moçambicano, incluindo a actividade das empresas públicas e concessionárias de serviços públicos, das sociedades com capital maioritariamente público e dos serviços de exploração de bens de domínio público.[18] Ora;

Nos artigos 9, 10 e 11, todos da Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto, estão vertidas as incompatibilidades, imunidades, direitos e regalias do Provedor de Justiça, com expressa remessa para as incompatibilidades próprias dos magistrados.[19]

Perscrutando as incompatibilidades constantes do artigo 9, as imunidades do artigo 10, bem como os direitos e regalias, neste último caso, as alistadas nas alíneas do nº 1 do artigo 11, em sintonia com os princípios da independência e da inamovibilidade do artigo 7, e ainda a panóplia das competências e poderes contidos nos artigos 15 e 16, todas normas da Lei que temos vindo a citar, infere-se que o ordenamento jurídico moçambicano encontra no Provedor de Justiça, um órgão de natureza singular; de assessoria da Administração Pública e para-judicial.


Órgão de natureza Singular

O Provedor de Justiça exerce as suas funções e emite as suas recomendações e pareceres sem dependência de um poder deliberativo prévio provindo de um determinado quórum.

A natureza singular do Provedor de Justiça deve ser entendida em contraposição à natureza colectiva que caracteriza por exemplo, órgãos como a Assembleia da República, que, nas decisões para a eleição do Provedor de Justiça e nas decisões de aprovação de leis e monções, necessita de reunir um certo quórum deliberativo.

Trata-se de um órgão singular que, diferentemente do que sucede com outros órgãos singulares com idoneidade constitucional, funciona sem estar sustentando em um outro órgão de substrato colegial. Veja-se que, por exemplo, o Presidente da Assembleia da República, é um órgão de natureza singular mas assente em um órgão de base colegial, a Assembleia da República, sendo que, algumas das suas competências se traduzem na presidência do órgão colegial no procedimento de tomada de decisões, e ainda, é incumbido da função de representação do órgão que preside, de acordo com o estabelecido nas alíneas a) e e) do artigo 190 da Constituição.

O Governador de Província e o Administrador de Distrito, são outros órgãos singulares com idoneidade constitucional, assentes em outros órgãos de substrato colegial, respectivamente, o Conselho Executivo Provincial vide o nº 1 do artigo 279 e o Conselho Executivo Distrital vide o nº 1 do artigo 283, ambos da Constituição.

Atento à função contida no artigo 255 e às competências elencadas no artigo 258 da Constituição e mesmo recorrendo à perquirição das normas de organização e funcionamento do Provedor de Justiça, aprovadas pela Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto, com fundamento no artigo 260 da Constituição, resulta comprovado que o Provedor de Justiça e um órgão excelentemente singular desprovido de suporte em outro órgão de substrato colegial.


Órgão de Assessoria da Administração Pública

Examinando a Constituição da República de Moçambique, constata-se que o órgão Provedor de Justiça está enquadrado no Capítulo III do Título XII, sob epígrafe Administração Pública, Polícia e Provedor de Justiça.

Não há dúvidas que a Administração Pública integra vários órgãos de natureza administrativa, caracterizados essencialmente pelo exercício de actividades de gestão pública através da prática de actos administrativos. Temos como exemplo, as Autarquias Locais que, pelo disposto no artigo 286 da Constituição, prenuncia ser uma pessoa colectiva pública, dotada de órgãos representativos próprio. Enfatizando, o legislador constituinte, através da disposição do artigo 289 do mesmo dispositivo legal atrás referenciado, descrimina os três órgãos das autarquias locais, nomeadamente, uma Assembleia Autárquica com poderes deliberativos; um Conselho Autárquico e um Presidente do Conselho Autárquico, com poderes executivos.

Nos órgãos de governação descentralizada Provincial e Distrital, se destacam os artigos 277 e 281, igualmente da Constituição, que alistam como órgãos, respectivamente para cada um destes níveis, a Assembleia Provincial, o Governador de Província e Conselho Executivo Provincial e ainda, a Assembleia Distrital, o Administrador de Distrito e o Conselho Executivo Distrital.

A Polícia da República de Moçambique é um serviço público, apartidário, de natureza paramilitar, integrado no Ministério que superintende a área da ordem e segurança pública[20], tendo como missão garantir a lei e a ordem, a salvaguarda da segurança de pessoas e bens, a tranquilidade pública, o respeito pelo Estado de Direito democrático e a observância estrita dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.

Denota-se que o Provedor de Justiça não é um órgão de natureza administrativa, embora, como todos os órgãos do Estado, tem funções mínimas de natureza administrativa. Não é um órgão de natureza paramilitar, pois as suas competências não fazem parte e nem completam a acção militar, como sucede com a Polícia da República de Moçambique.

Da perquirição de suas competências feita nos números precedentes, constatou-se igualmente que o Provedor de Justiça em Moçambique não exerce funções de natureza legislativa e nem de natureza judicial. Exerce, no entanto, funções de assessoria da Administração Pública, através da emissão de recomendações não vinculativas.

Neste sentido, porque de forma efectiva a Constituição não conceitua e nem o caracteriza como tal, tomando como critério de fundamentação, as funções acometidas, se pode concluir que o Provedor de Justiça é um órgão de assessoria da Administração Pública.


Órgão para-judicial

O provedor de Justiça no ordenamento jurídico moçambicano é, na essência dos seus privilégios concernentes às imunidades, direitos e regalias e ainda, porque o exercício das suas funções se encontra protegido pelos princípios da independência e da inamovibilidade, um órgão para-judicial, posto que goza actua como se de um magistrado se tratasse, faltando-lhe nesta vertente, apenas o poder de tomar decisões revestidas de carácter vinculativo.


Acção do Provedor de Justiça na Actividade Forense

A Ciência Forense é genericamente vista como a aplicação de um conjunto de técnicas científicas para responder a questões relacionadas ao Direito, podendo se aplicar a crimes ou actos civis e/ou administrativos. O esclarecimento de factos com relevância jurídica é tido com sendo a função de destaque da prática forense.

Recapitulando o conteúdo do artigo 255 da Constituição da República de Moçambique, o Provedor de Justiça é um órgão do Estado imbuído da função de agir no propósito de garantir os direitos dos cidadãos, a defesa da legalidade e da justiça, na actuação da Administração Pública.

Outrossim, o Provedor de Justiça em Moçambique, tem-se debruçado igualmente sobre a persistente falta de colaboração dos Tribunais, no que respeita à actividade jurisdicional, suportando a sua actuação nesse âmbito, com base na disposição do nº 1 do artigo 26 da Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto, que impõe de um modo geral, sobre o dever de colaboração de todas as Autoridades Públicas.

É amostra desse facto, o relato contido no Informe retro citado, nas suas páginas 11 e 12, nos termos do qual se refere que:

No tocante à esta parte do grau de colaboração dos órgãos dos poderes e seus titulares, notou-se um retrocesso em relação às respostas aos pedidos dos cidadãos sobre a morosidade processual que reina nos tribunais e procuradorias, desde que se entendeu que o Provedor de Justiça não deveria encaminhá-los, directamente aos tribunais ou procuradorias, mas sim para os Conselhos Superiores da Magistratura Judicial, da Magistratura Judicial Administrativa e da Magistratura do Ministério Público, órgãos de gestão e disciplina dos magistrados, que se responsabilizariam pelo envio aos tribunais ou procuradorias em causa, para finalmente, estes responderem directamente aos cidadãos com conhecimento que deveria ser dado ao Provedor de Justiça através dos respectivos órgãos de gestão e disciplina dos magistrados. (destacamos).

Dos mapas de pedidos aos Conselhos Superiores da Magistratura Judicial, da Magistratura Judicial Administrativa e da Magistratura do Ministério Público, que veremos mais adiante, conclui-se pela existência de pedidos de informação aos tribunais comuns e administrativos de todos os níveis e das procuradorias da Cidade de Maputo e do Distrito da Machava, de que não se obtém resposta, há mais de dois anos, um ano e meio, oito meses, etc., mesmo com pedidos de insistência.

E mais, o quadro nº 7 do acima referenciado Informe Anual do Provedor de Justiça à Assembleia da República, sob epígrafe Instituições Demandadas, enuncia a existência de 57 (cinquenta e sete) Tribunais e 08 (oito) Procuradorias em demanda, no período compreendido ente os meses de Abril de 2016 e Março de 2017.

No âmbito dos processos judiciais, o Informe é mais incisivo quando aborda sobre o direito à justiça, ao referir que no período acima indicado, foram abertos 51 processos relacionados com a morosidade processual nos tribunais nacionais. Considera ainda que do total dos processos abertos pelo Provedor de Justiça, 8 (oito) incidiam directamente sobre conteúdos de decisões judiciais, razão pela qual mereceram despacho de indeferimento liminar, por força do disposto no n.º 3, do artigo 18, da Lei n.º 7/2006, de 16 de Agosto.

Como estratégia discursiva para encontrar legitimidade da sua actuação no âmbito judicial, realça o Informe que o Provedor de Justiça solicita informações dos tribunais e das procuradorias relativos aos atrasos processuais, através dos Conselhos Superiores da Magistratura Judicial, da Magistratura Judicial Administrativa e da Magistratura do Ministério Público, órgãos de gestão e disciplina dos magistrados, para respondê-las directamente, mas com o conhecimento do Provedor de Justiça, o que não ocorre com frequência, como pode-se ver do rol de pedidos de informações dirigidos ao Conselho Superior da Magistratura Judicial, ao Conselho Superior da Magistratura Judicial Administrativa e ao Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público.

Para conferir robustez ao Informe, foram apresentadas três tabelas constantes nas páginas 21, 22 e 23. A primeira é referente aos Pedidos dirigidos ao Conselho Superior da Magistratura Judicial; a segunda respeita aos pedidos dirigidos ao Conselho Superior da Magistratura Judicial Administrativa, e a terceira concerne aos pedidos dirigidos ao Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público.

Conclui o Informe que, para além da conformação com os atrasos processuais, alguns dos referidos tribunais e procuradorias posicionam-se com manifesto desinteresse em prestar informações que os particulares lhes solicitam, o que contraria o princípio deles colaborarem com os particulares (vide artigo 8, das Normas de Funcionamento dos Serviços da Administração Pública, aprovadas pelo Decreto n.º 30/2001, de 14 de Outubro, bem como o princípio do dever de colaboração com o Provedor de Justiça (vide artigo 26, da Lei n.º 7/2006, de 16 de Agosto).

Seja questionando directamente aos Tribunais e Procuradorias, como indirectamente sobre a actividade jurisdicional, por via dos Conselhos Superiores das Magistraturas Judicial, Judicial Administrativa e do Ministério Público, tal actuação não encontra amparo quer na Constituição como na lei, por não integrar as competências do Provedor de Justiça.

No entanto, impõe-se que a norma do nº 1 do artigo 26 da Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto, retro citada, que tem sido considerada pelo Provedor de Justiça para realizar incursões fiscalizadoras junto dos Tribunais em matéria judicial, seja interpretada e aplica conforme a Constituição, no sentido de que as autoridades públicas aí consideradas são unicamente aquelas da Administração Pública, com expressa exclusão das autoridades de natureza judicial, quando se trata de questões igualmente judiciais.

Aliás, da interpretação sistemática do conteúdo do nº 1 acima citado, com o conteúdo dos nºs 2 e 3 do mesmo artigo, e considerando o carácter imperativo do princípio da independência que que regra geral caracteriza a acção dos magistrados, conclui-se que ser de Constitucionalidade duvidosa, pretender que o Provedor de Justiça, por via directa ou indirecta tome acção no questionamento da actividade jurisdicional dos magistrados.

É, por conseguinte, questionável a constitucionalidade e legalidade da intervenção nesse âmbito, se se tomar em consideração que a actuação do Provedor de Justiça está limitada à acção da Administração Pública, como tempestivamente demonstrado.


Valor Jurídico das Recomendações do Provedor de Justiça

A abordagem feita nos pontos precedentes permitiu concluir que o Provedor de Justiça é um órgão de natureza singular; de assessoria à Administração Pública e para-judicial.

Questionar o valor jurídico das recomendações do Provedor de Justiça traduz a necessidade de compreender se as referidas recomendações vinculam ou não o seu destinatário.

Entende-se por recomendações vinculativas, aquelas que devem ser acatadas pelo respectivo destinatário sob pena de imposição de consequências imanentes à omissão do dever de obediência.

A título exemplificativo, no ordenamento jurídico moçambicano vigoram as denominadas Instruções de Execução Obrigatória, no âmbito de processos sujeitos à fiscalização do Tribunal Administrativo, aprovados pelo Despacho nº 06/GP/TA/2008, de 02 de Julho, do Venerando Presidente do Tribunal Administrativo. Por exemplo, o artigo 9 das mencionadas Instruções dispõe sobre informação de cabimento de verba, impondo que:

1. A informação sobre cabimento de verba, necessária à verificação da cobertura orçamental da despesa resultante do acto ou contrato a visar deve ser exarada no documento a submeter a visto e no respectivo duplicado.

2. Tal informação conterá:

a) A indicação da rubrica orçamental pela qual será suportada a despesa e do ano a que respeita o orçamento;

b) A referência à dotação global da referida rubrica, do saldo disponível antes da assunção dos encargos emergentes do acto ou contrato a visar;

c) A data, a assinatura e a identificação do funcionário responsável pela informação.

O incumprimento das normas contidas nas instruções de execução obrigatória importa a denegação da pretensão contida no processo, através da recusa do Visto, por exemplo, por aplicação do disposto na alínea b) do artigo 77 da Lei nº 14/2014, de 14 de Agosto, republicada pela Lei nº 8/2015, de 6 de Outubro.

Decorre destas Instruções efeitos imanentes ao seu descumprimento, nomeadamente, a improcedência da pretensão da Administração Pública, podendo ainda culminar com a aplicação de sanções por infracção financeira.

Recorrendo ao Direito comparado, o Código do Procedimento Administrativo português, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015 - Diário da República n.º 4/2015, Série I de 2015-01-07, através do Capítulo VII - Dos pareceres, Artigo 91 - Espécies de pareceres, determina que:

1 - Os pareceres são obrigatórios ou facultativos, consoante sejam ou não exigidos por lei, e são vinculativos ou não vinculativos, conforme as respectivas conclusões tenham ou não de ser seguidas pelo órgão competente para a decisão.

2 - Salvo disposição expressa em contrário, os pareceres legalmente previstos consideram-se obrigatórios e não vinculativos.

O regime adoptado pelo legislador moçambicano em matéria das competências do Provedor de Justiça, excluiu a obrigatoriedade de acatamento das recomendações deste órgão. No entanto, há que considerar a relevância excepcional no que concerne ao disposto no nº 3 do artigo 26 da Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto, que dispõe no sentido de que, A falta de comparência não justificada ou justificação não aceite por parte de quem houver sido convocado para prestar esclarecimentos ou explicações pelo Provedor de Justiça, constitui crime de desobediência, sem prejuízo do procedimento disciplinar que houver lugar.

O legislador moçambicano considerou duas situações distintas:

A primeira, em que perante a falta de acatamento das recomendações dadas pelo Provedor de Justiça, numa determinada situação processual, no que respeitar às posições a serem adoptadas pela Administração Pública, não decorrem quaisquer efeitos.

E, a segunda situação é aquela que, no decurso da tramitação de um processo legal, decorrente do exercício de competências, fundado em queixas apesentadas pelos cidadãos ou por iniciativa própria do Provedor de Justiça, perante aos factos de que por qualquer outro modo tenha conhecimento, havendo notificação legal para comparência de um agente, se este não o fizer sem justificação ou com justificação infundada, degenera no crime de desobediência, sem embargo de concomitantemente haver lugar a procedimento disciplinar.

Resulta, por conseguinte, que as recomendações emitidas pelo Provedor de Justiça no exercício das suas funções não impõem vinculações, pelo menos, de per si, à Administração Pública. Trata-se de recomendações de cumprimento meramente facultativo, distintamente do que sucede com as decisões judiciais, por exemplo, que à luz do disposto no artigo 214 da Constituição, impõe-se o seu acatamento quer pelos destinatários imediatos e bem assim pelas demais pessoas jurídicas, ainda que delas não se concorde, desde que não tenham sido invalidadas por via de recurso.


Considerações Finais.

O Provedor de Justiça é um órgão de titularidade singular eleito por maioria de dois terços dos deputados da Assembleia da República, de acordo com o plasmado nos artigos 255 e 256 da Constituição e se encontra incumbido da função de receber e apreciar, queixas e petições dos cidadãos, contra acções ou omissões dos poderes públicos, devendo apreciá-las e emitir recomendações aos órgãos competentes com vista à reparação ou prevenção da ilegalidade ou da injustiça, sem qualquer poderes decisórios, à luz do artigo 258 da Constituição.

Do ponto de vista da sua natureza, e dando relevância ao quadro das suas funções, procedentes da Constituição da República, o Provedor de Justiça é concebido como órgão singular com idoneidade constitucional e de assessoria pública aos órgãos da Administração Pública.

Destaque-se que as funções exercidas pelo Provedor de Justiça não se distinguem em profundidade da sua finalidade, com as funções fiscalizadoras acometidas aos Tribunais Administrativos e ao Ministério Público e, pesa sobre elas, a inexistência de força vinculativa. Por conseguinte, trata-se de um órgão que aparentemente, existe no nosso ordenamento jurídico como resposta à necessidade da adopção de órgãos similares aos existentes em outras jurisdições estatais, todavia, do ponto de vista prático, a sua inexistência na estrutura organizativa do país, não causaria qualquer impacto negativo.

A experiência extraída dos Informes anuais apresentados à Assembleia da República nos anos de 2014 e 2017, propiciaram compreender que a actuação do Provedor de Justiça tem sido realizada num contexto de insatisfatório, decorrente da falta do cumprimento do dever legal de prestação da colaboração devida pela Administração Pública, como mecanismo de permitir que as queixas apresentadas pelos administrados obtenham os necessários esclarecimentos dentro de prazos razoáveis.

A falta de aprovação de um regime jurídico sancionatório, nos casos das omissões injustificadas da prestação de esclarecimentos e informações por parte dos órgãos e titulares da Administração Pública constitui um dos principais vectores do desacatamento do dever de colaboração. Como regra em direito, as normas jurídicas são constituídas por uma previsão e uma estatuição, de modo a que, o descumprimento das leis deve ter consequências, sob penas de as leis aprovadas permanecerem ineficazes.

Denota-se a intervenção do Provedor de Justiça em matéria jurisdicional, por necessidade de aferir os fundamentos da morosidade processual. Trata-se de actuação enfermada de fundamentos jurídico-constitucionais, porquanto, o limite da actuação do Provedor de Justiça esgota-se na perquirição dos actos e procedimentos da Administração Pública, de acordo com a estatuição da norma do artigo 255 da Constituição.

Por conseguinte, e perante as constatações acima listadas, recomenda-se que:

  1. Seja repensada a figura do Provedor de Justiça no contexto moçambicano, posto que as matérias de que se debruça são objecto de tratamento vinculado nos Tribunais Administrativos e no Ministério Público;
  2. A existência na Assembleia da República, de uma Comissão especializada para receber e tramitar queixas, petições e reclamações, considerando a relevância da representatividade do povo na Assembleia da República, pode melhor justificar a adequação das suas competências para as funções que pretende atribuir ao Provedor de Justiça;
  3. A concepção de um órgão (Provedor de Justiça), com poder decisório, pode propiciar a ocorrência de conflito de competências, postos que o âmbito do controlo dos actos administrativos já se encontra especialmente atribuído à jurisdição do Tribunal Administrativo e dos Tribunais Administrativos;
  4. A existência do Provedor de Justiça no ordenamento jurídico moçambicano, órgão que actua sem poderes decisórios, pode influenciar negativamente a opinião dos administrados que, poderão deixar de exercitar tempestivamente os seus direitos nos Tribunais, confiantes da resolução pelo Provedor de Justiça; e
  5. Os Tribunais e as Procuradorias ou os respectivos Conselhos Superiores, devem impugnar judicialmente, as solicitações do Provedor de Justiça, recaídas em processos de natureza judicial, sob pena de criação de antecedentes de violação do princípio da independência da actuação dos magistrados.


Referências:

Legislação/Jurisprudência

MOÇAMBIQUE, Constituição da República de Moçambique, Boletim da República, I Série, número 115, de 12 de Junho de 2018.

MOÇAMBIQUE, Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto, Boletim da República, I Série, número 33.

MOÇAMBIQUE, Lei nº 7/2014, de 28 de Fevereiro, Boletim da República, I Série, número 18.

MOÇAMBIQUE, Lei nº 14/2011, de 10 de Agosto, Boletim da República, I Série, número 32.

MOÇAMBIQUE, Lei nº 14/2014, de 14 de Agosto, alterada e republicada pela Lei nº 8/2015, de 6 de Outubro, Boletim da República, I Série, número 79.

MOÇAMBIQUE, Lei nº 12/2016, de 30 de Dezembro, Boletim da República, I Série, número 156.

DESPACHO nº 06/GP/TA/2008, de 02 de Julho Instruções de Execução Obrigatória do Tribunal Administrativo.

Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Literatura

CAETANO, Marcello, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 10ª Edição, 10ª Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2010.

DE MORAES, Alexandre, Direito Constitucional, 13ª Edição, Actualizada com a EC nº 39/02, São Paulo, Editora Atlas S.A. 2003.

DO AMARAL, Diogo Freitas, Curso de Direito Administrativo, Vol. I, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 1998.

MAZZA, Alexandre, Manual de Direito Administrativo, 2- Edição, Saraiva, 2012.

MORREIRA NETO, Diogo de Figueiredo, Curso de Direito Administrativo, 16- Edição, Revista e Actualizada, Rio de Janeiro, 2014.

KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito (Tradução: João Baptista Machado), São Paulo, 1999.

Informe do Provedor de Justiça à Assembleia da República, de 2014 a 2015.

Informe do Provedor de Justiça à Assembleia da República, de 2016 a 2017.

Consulta na internet

MEDAUAR, Odete, Acto de Governo, Rio de Janeiro - 191:67-85,1993 (Consulta em 21/06/2020).

RIBEIRO, Manuel, Actos Administrativos, Conceito e Classificação 23649-42926-1-PB.pdf (consulta em 23/06/2020).

PIMENTEL, Menéres, in: https://www.safp.gov.mo/safppt/WCM-003964 (Administração, nº 23, Vol. VII, 1994-1º,39-55), (consulta feita em 10/05/2021).

DE ALMEIDA, Mário Aroso, in: http://www.provedor-jus.pt O Provedor de Justiça Estudos Volume Comemorativo do 30º Aniversário da Instituição, pg. 15. (extraído em 12/05/2021).

http://www.provedordejustica.ao/ficheiros/66.pdf - PRIMEIRA CONFERÊNCIA DA ASSOCIAÇÃO DOS PROVEDORES DE JUSTIÇA E MEDIADORES DE ÁFRICA (AOMA) PARA A ÁFRICA AUSTRAL: Conferência realizada no Hotel Avani, em Gaborone, República do Botswana, de 5 a 8 de Agosto de 2019.

https://www.caicc.org.mz/images/documentos/Informe_Anual_Assebleia_da_República_2016_1017pdf.

http://www.provedor-justica.org.mz/wp-content/uploads/2020/10/Informe-Anual-a-Assembleia-da-Rep%C3%BAblica-2014-2015.pdf.


  1. .......
  2. De acordo com o disposto no artigo 235 da Constituição da República de Moçambique, ao Ministério Público compete representar o Estado junto dos tribunais e defender os interesses que a lei determina, controlar a legalidade, os prazos das detenções, dirigir a instrução preparatória dos processos-crime, exercer a acção penal e assegurar a defesa jurídica dos menores, ausentes e incapazes.
  3. Cfr. artigos 257 nº 1 e 258 nº 1, ambos da Constituição.
  4. Cfr. PIMENTEL, Menéres, in: https://www.safp.gov.mo/safppt/WCM-003964 (Administração, nº 23, Vol. VII, 1994-1º,39-55), (consulta feita em 10/05/2021).
  5. PIMENTEL, Menéres, in https://www.safp.gov.mo/safppt/WCM-003964 (Administração, nº 23, Vol. VII, 1994-1º,39-55), (consulta feita em 10/05/2021).
  6. Cfr. DE ALMEIDA, Mário Aroso, in: http://www.provedor-jus.pt O Provedor de Justiça Estudos Volume Comemorativo do 30º Aniversário da Instituição, pg. 15. (extraído em 12/05/2021).
  7. Cfr. Artigo 44 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
  8. In: http://www.provedordejustica.ao/ficheiros/66.pdf - PRIMEIRA CONFERÊNCIA DA ASSOCIAÇÃO DOS PROVEDORES DE JUSTIÇA E MEDIADORES DE ÁFRICA (AOMA) PARA A ÁFRICA AUSTRAL: Conferência realizada no Hotel Avani, em Gaborone, República do Botswana, de 5 a 8 de Agosto de 2019, pg. 4. (Consulta em 13/05/2021).
  9. Ibdem.
  10. Ibidem, pg. 6.
  11. Cfr. DE MORAES, Alexandre, Direito Constitucional, 13ª Edição, Actualizada com a EC nº 39/02, São Paulo, Editora Atlas S.A. 2003, pg. 468
  12. Alínea a) do nº 1 do artigo 15 da Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto.
  13. Alínea c) do nº 1 do artigo 15 da Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto.
  14. Alínea d) do nº 1 do artigo 15 da Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto.
  15. Alíneas e) e f) do nº 1 do artigo 15 da Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto.
  16. https://www.caicc.org.mz/images/documentos/Informe_Anual_Assebleia_da_República_2016_1017pdf, pg. 11
  17. http://www.provedor-justica.org.mz/wp-content/uploads/2020/10/Informe-Anual-a-Assembleia-da-Rep%C3%BAblica-2014-2015.pdf, pg. 12
  18. Cfr. o artigo 2 da Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto.
  19. Vide o nº 1 do artigo 9 da Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto (O Provedor de Justiça está sujeito às incompatibilidades dos magistrados em exercício.)
  20. Cfr. artigo 253 da CRM e artigo 1 da Lei nº 16/2013, de 12 de Agosto

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NAIFE, Helder Manuel. O Provedor de Justiça em Moçambique. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6839, 23 mar. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96908. Acesso em: 28 abr. 2024.