ESTADO DE GOIÁS
PODER JUDICIÁRIO
ingressou em juízo com ação monitória em face de OVÍDIO MARTINS DA SILVA aduzindo,
em síntese, ser credor do requerido na importância de R$ 3.573,28 (três mil, quinhentos
e setenta e três reais e vinte e oito centavos), resultante de contrato de abertura de
crédito em conta corrente. Postula a constituição do título executivo judicial,
juntando documentos, dentre eles os extratos bancários do período ensejador do débito.
Expedido mandado de pagamento, o requerido foi citado pessoalmente (fls. 57), o qual opôs, tempestivamente, embargos, oportunidade em que alegou a inépcia da inicial em preliminar e, no mérito, sustentou que o credor aplicou taxas de juros acima do percentual legalmente admitido, asseverando que o contrato contempla cláusulas abusivas. Postula o acolhimento da preliminar, com a extinção do processo, ou, no mérito, que do débito sejam excluídos as taxas, despesas e encargos bancários ilegalmente cobrados.
O requerente impugnou os embargos, sob o argumento de que a norma constitucional que limita a taxa de juros não é auto-aplicável e que às instituições financeiras não se aplica a lei de usura.
Relatado, decido.
De logo, tenho como praticável a decisão antecipada a lide, por prescrindir de provas a ser produzida em audiência ou mesmo pericial. Com efeito, as questões debatidas, de direito e de fato, dispensam a produção de qualquer outra prova, bastando as documentais, existentes no autos, não sendo necessária nem mesmo a prova pericial contábil, porquanto não paira dúvidas sobre os índices contratados, de modo a reclamar mera operação aritmética, passível de apuração pelo contador, razão pela qual conheço diretamente do pedido.
A preliminar argüida, de inépcia da petição inicial, não encontra abrigo legal, porquanto o requerente expôs, embora sucintamente, as razões de pedir e o pedido, o qual guarda correlação com aquelas, motivo pelo qual rechaço-a e adentro ao meritum causae.
A ação injuntiva assenta-se em contrato de abertura de crédito em conta corrente, destinado este a garantir a cobertura de cheques e demais modalidades de saques, em uso nas atividades bancárias, emitidos pelo correntista contra a instruição financeira e que, à sua apresentação, não encontre provisão bastante.
Hodiernamente, a jurisprudência tende a negar força executiva a esse tipo de contrato, mesmo que acompanhado de título de crédito que lhe seja vinculado ou de demonstrativo gráfico de evolução do débito, em razão da questionável liquidez e certeza, de modo que a ação manejada mostra-se adequada ao desiderado colimado.
Antes de adentrar ao busílis da cizânia, permito-me fazer uma ligeira digressão pela História do Brasil, porque, a meu ver, contribui grandemente para a compreensão do momento histórico que protagonizamos atualmente e, também, para o deslinde da questão posta em juízo.
A história do Brasil principiou em 22 de abril de 1.500 da era cristã, quando o espírito conquistador português, embarcado em várias naus comandadas por Pedro Álvares Cabral, com o propósito de descobrir um caminho mais rápido para as Índias, aportou numa terra desconhecida, inicialmente denominada de Ilha de Vera Cruz, posteriormente batizada Terra de Santa Cruz e, finalmente, Brasil, um lugar ocupado por gentios e de natureza tão exuberante que inspirou a bela carta de Pero Vaz de Caminha, endereçada ao rei de Portugal.
Nesse momento, iniciou-se a história de uma, hoje, nação, marcada pela exploração, principiando pelo modo de colonização, onde o objetivo não era o povoamento, com a economia voltada para atender os interesses dos colonos, mas com a finalidade de suprir a falta de matérias-primas do reino português, instrumentalizada pelo pacto colonial.
O pau-brasil, encontrado na Mata Atlântica, foi o precursor dos produtos brasileiros explorados pelo colonizadores, seguido pela cana-de-açucar, obtido pela divisão das terras descobertas em quinze grandes lotes, doados a treze capitães-donatários.
O bandeirantismo proporcionou a descoberta do ouro no fim do século XVII, ao que a Coroa portuguesa, para controlar a mineração e garantir seus lucros, dividiu as terras descobertas em datas, repartindo-as entre colonos de maior influência e preservando para si significativo quinhão, além de cobrar o quinto, tributo incidente sobre o minério encontrado pelos agraciados com as concessões.
A sanha exploradora do reino resultou em aumento dos impostos incidentes sobre a extração do ouro, elevando-os grandemente, fazendo eclodir movimento liderado pelos mineradores e fazendeiros, que contou com o apoio popular, denominado de Inconfidência Mineira que, entres outras coisas, pregava a independência e a proclamação da República, movimento esse sufocado com a condenação à morte de um dos principais líderes, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, enforcado e esquartejado em praça pública.
A fuga da família real portuguesa para o Brasil, em 1.807, provocada pela fúria de Napoleão, ensejou a radicação de D. Pedro I nas novas terras, filho do rei de Portugal, que permaneceu na colônia quando o pai retornou ao reino.
D. Pedro I, pressionado por vários grupos, dentre eles comerciantes e senhores de terras, proclamou a independência em 7 de setembro de 1.822, outorgando a primeira Constituição brasileira, a Imperial, em 25 de março de 1.824, a qual instituiu os Poder Moderador, que dava ao imperador poderes absolutos, inclusive de controle sobre o Legislativo e Judiciário.
Revoltas e guerras marcaram o primeiro e o segundo reinado brasileiro, no qual a indústria açucareira e o cultivo do café, com o emprego da mão-de-obra escrava, comandou a atividade econômica, sobrevindo a proclamação da República (1.889) logo após a abolição da escravidão, dando lugar a promulgação de uma nova carta constitucional (1.891). O novo regime, num primeiro momento foi chamado de República da Espada e, depois, República das Oligarquias.
A República Velha sucumbiu diante do golpe da Revolução de Trinta, sobrevindo a Constituição de 1.934, promulgada na Era Vargas, governante autoritário, ditador que, para manter-se no poder, entre tantas medidas antidemocráticas, fechou o Congresso Nacional, outorgando nova Constituição (1.937) ao que denominou de Estado Novo, que lhe dava amplos poderes, inclusive sobre os governos estaduais, que perderam autonomia.
Após a derrota dos alemães, na segunda guerra mundial, explodiu no Brasil, a exemplo do resto do mundo, movimento em prol da democracia, culminando com a deposição de Getúlio Vargas, dando lugar à Segunda República e a um novo regime constitucional (1.946), período caracterizado pelo processo de redemocratização, até que, em 1º de abril de 1.964, sobreveio o golpe militar, depondo o então Presidente João Goulart e outorgando nova Constituição (1.967).
O período ditatorial militar, de triste memória pelas atrocidades cometidas, se estendeu por longas duas décadas, até a ascensão de um civil à Presidência da República (1.985), por eleição indireta, não obstante a existência do movimento denominado Diretas Já, em que, por covardia do Congresso Nacional, deixou-se de aprovar emenda constitucional instituindo eleições direta para Presidente da República, parte da história que passei a testemunhar.
A Nova República, assim denominada, iniciou sua trajetória convocando uma Assembléia Nacional Constituinte, com o propósito de editar uma nova carta constitucional, culminando com a promulgação, em 05 de outubro de 1.988, da vigente Constituição, denominada por alguns de Constituição Cidadã, na qual os constituintes tiveram a preocupação de reduzir, tanto quanto possível, o número de dispositivos, transformando muitos artigos em parágrafos, numa tentativa de perseguir a técnica constitucional.
Surge, então, uma nova nação com objetivos bem definidos: "construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais..." (CF, art. 3º).
Embalado por esse espírito, o constituinte extremou o papel do Sistema Financeiro Nacional, outorgando-lhe a tarefa de "...promover o desenvolvimento equilibrado do País e servir aos interesses da coletividade..."(CF, art. 192, caput), e, arrematando, estabeleceu que "as taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar"(§ 3º do art. 192 da CF).
Contudo, quão grande não terá sido a decepção daqueles que esperavam a realização da vontade constituinte ao se depararem com a realidade do Sistema Financeiro Nacional, dominado por um pequeno grupo pessoas que ocupam o ápice da pirâmide social e, como numa terra sem lei, cobram aviltantes taxas de juros que lhes asseguram, cada vez mais, lucros inimagináveis, completamente desproporcionais à atividade dispendida e ao senso de razoabilidade.
O Pretório Excelso, ao julgar a ADIn 4/DF, relatada pelo Min. Sidney Sanches, decidiu, por maioria (votaram contra os Ministros Marco Aurélio de Melo, Otávio Galloti, Neri da Silveira e Paulo Brossard), que "...tendo a Constituição Federal, no único artigo em que trata do Sistema Financeiro Nacional (art. 192), estabelecido que este será regulado por lei complementar, com observância do que determinou no caput, nos seus incisos e parágrafos, não é de se admitir a eficácia imediata e isolada do disposto em seu § 3º, sobre a taxa de juros reais (12 por cento ao ano), até porque estas não foram conceituadas. Só o tratamento global do Sistema Financeiro Nacional, na futura lei complementar, com observância de todas as normas do caput, inicialmente, e a declaração de inconstitucionalidade permitirá a incidência da referida norma sobre juros reais e desde que estes também sejam conceituados em tal diploma" (Em. de Jurisp., v. 1.709-01, p. 1. DJ 1 de 25/06/93, p.12.637).
A mesma Corte Constitucional, diante dessa decisão do pleno, tem, reiteradamente, julgado procedente mandados de injunção reconhecendo, em acórdãos relatados por quase todos os seus integrantes, a mora do Congresso Nacional em editar a lei complementar, consoante evidenciam os seguintes arestos:
"MANDADO DE INJUNCÃO. JUROS. LIMITE CONSTITUCIONAL DE 12%: AUSÊNCIA DE NORMA REGULAMENTADORA DO ART. 192, PAR-3., DA CONSTITUICÃO. Mora do Congresso Nacional reconhecida, para a regulamentacão do dispositivo. Precedentes. Mandado de injuncão parcialmente deferido para comunicar ao Poder Legislativo sobre a mora em que se encontra, cabendo-lhe tomar as providências para suprir a omissão." (STF - MI-430/DF - rel. Min. Marco Aurélio, rel. do acórdão Min. Maurício Corrêa - DJ de 18.08.95, p. 24893)
"I - MANDADO DE INJUNCÃO COLETIVO: ADMISSIBILIDADE, POR APLICACÃO ANALÓGICA DO ART. 5., LXX, DA CONSTITUICÃO; LEGITIMIDADE, NO CASO, ENTIDADE SINDICAL DE PEQUENAS E MÉDIAS EMPRESAS, AS QUAIS, NOTORIAMENTE DEPENDENTES DO CRÉDITO BANCÁRIO, TÊM INTERESSE COMUM NA EFICÁCIA DO ART. 192, PAR. 3., DA CONSTITUICÃO, QUE FIXOU LIMITES AOS JUROS REAIS. II. MORA LEGISLATIVA: EXIGÊNCIA E CARACTERIZACÃO: CRITÉRIO DE RAZOABILIDADE. A MORA - QUE É PRESSUPOSTO DA DECLARACÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA OMISSÃO LEGISLATIVA -, É DE SER RECONHECIDA, EM CADA CASO, QUANDO, DADO O TEMPO CORRIDO DA PROMULGACÃO DA NORMA CONSTITUCIONAL INVOCADA E O RELEVO DA MATÉRIA, SE DEVA CONSIDERAR SUPERADO O PRAZO RAZOÁVEL PARA A EDICÃO DO ATO LEGISLATIVO NECESSÁRIO À EFETIVIDADE DA LEI FUNDAMENTAL; VENCIDO O TEMPO RAZOÁVEL, NEM A INEXISTÊNCIA DE PRAZO CONSTITUCIONAL PARA O ADIMPLEMENTO DO DEVER DE LEGISLAR, NEM A PENDÊNCIA DE PROJETOS DE LEI TENDENTES A CUMPRI-LO PODEM DESCARACTERIZAR A EVIDÊNCIA DA INCONSTITUCIONALIDADE DA PERSISTENTE OMISSÃO DE LEGISLAR. III. JUROS REAIS (CF,ART.192, PAR. 3.): PASSADOS QUASE CINCO ANOS DA CONSTITUICÃO E DADA A INEQUÍVOCA RELEVÂCIA DA DECISÃO CONSTITUINTE PARALISADA PELA FALTA DA LEI COMPLEMENTAR NECESSÁRIA À SUA EFICÁCIA - CONFORME JÁ ASSENTADO PELO STF (ADIN 4, DJ 25.06.93, SANCHES)-, DECLARA-SE INCONSTITUCIONAL A PERSISTENTE OMISSÃO LEGISLATIVA A RESPEITO, PARA QUE A SUPRA O CONGRESSO NACIONAL. IV. MANDADO DE INJUNCÃO: NATUREZA MANDAMENTAL (MI 107-QO, M. ALVES, RTJ 133/11): DESCABIMENTO DE FIXACÃO DE PRAZO PARA O SUPRIMENTO DA OMISSÃO CONSTITUCIONAL, QUANDO - POR NÃO SER O ESTADO O SUJEITO PASSIVO DO DIREITO CONSTITUCIONAL DE EXERCÍCIO OBSTADO PELA AUSÊNCIA DA NORMA REGULAMENTADORA (V.G, MI 283, PERTENCE, RTJ 135/882) -, NAO SEJA POSSÍVEL COMINAR CONSEQUÊNCIAS À SUA CONTINUIDADE APÓS O TERMO FINAL DA DILACÃO ASSINADA." (STF MI-361/RJ Relator Min. Neri da Silveira, rel. acórdão Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 17.06.94, p. 15707)
"Mandado de injuncão. Juros reais. Parágrafo 3º. do artigo 192 da Constituicão. - Esta Corte, ao julgar a ADIn. n. 04, entendeu, por maioria de votos, que o disposto no parágrafo 3º do artigo 192 da Constituicão Federal não era auto-aplicável, razão por que necessitava de regulamentacão. - Passados mais de cinco anos da promulgacão da Constituicão, sem que o Congresso Nacional haja regulamentado o referido dispositivo constitucional, e sendo certo que a simples tramitacão de projetos nesse sentido não é capaz de elidir a mora legislativa, não há dúvida de que esta, no caso, ocorre. Mandado de injuncão deferido em parte, para que se comunique ao Poder Legislativo a mora em que se encontra, a fim de adote as providências necessárias para suprir a omissão." (STF - MI-457/SP rel. Min. Moreira Alves DJ de 04.08.95, p. 22440)
A mora do Congresso Nacional, que insiste em ignorar a vontade constituinte, do Estado Novo surgido com Constituição Cidadã (já que a cada Constituição surge um novo Estado), proporciona resultado diametralmente contrário aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (CF, art. 3º), coroando a injustiça social e tornando cativos aqueles que se arriscam na atividade econômica, obstando o desenvolvimento nacional e propagando a pobreza e a marginalização e, ainda, ampliando as desigualdades sociais.
A maior ironia, no entanto, é que essa situação não é inédita. Essa história é exatamente igual à de outrora, exposta sucintamente em linhas volvidas, apenas com atuação de outros personagens.
No Brasil de hoje vige a ditadura civil, onde o Presidente da República, aliado a determinado "cacique" (que outrora andava de mãos dadas com a ditadura militar), o qual, em imensurável demagogia, diz: "queremos o máximo para o mínimo", que tem assento no Legislativo, dispõe de poderes inconciliáveis com a tripartição idealizada por Montesquieu e instituída constitucionalmente (CF, art. 2º). Exemplo desse poder, próprio do absolutismo e do vetusto Poder Moderador, se pôde assistir recentemente, quando o STF julgou inconstitucional o desconto de previdência dos aposentados, o Executivo Federal, de imediato, anunciou o envio de proposta de emenda constitucional prevendo a incidência da contribuição (não se discute a justiça da medida), e assim ocorre com as outras matérias de interesse do Governo Central que, contando com maioria no Congresso Nacional, garante tranqüila aprovação, o que deixa bem evidente a ultra flexibilidade do nosso regime constitucional, que alguns dizem rígido.
Essa situação tem gerado intensa atividade reformadora constitucional, ditada não pela transformação social, que a legitimaria, mas pelo projeto de um governante, ao passo que matérias de vital repercussão social, como a regulamentação dos juros e reforma tributária, são simplesmente esquecidas, porque contrariam os próprios interesses dos congressistas ou os interesses de grandes grupos econômicos, que possuem representantes no Congresso Nacional (à custa de financiamento de suas campanhas eleitorais), numa acintosa afronta aos princípios constitucionais, especialmente o da isonomia.
No Brasil de hoje as capitanias hereditárias não são formadas por terras, mas por lotes da atividade econômica: telecomunicações, energia elétrica e, especialmente, o sistema financeiro. Os "capitães-donatários" de agora levam o nome de Setúbal, Brandão e Simonsen, entre outros, além de controladores de imensas instituições financeiras, como o Banco Santander e o HSBC Bamerindus.
As instituições financeiras praticam, atualmente, uma das maiores taxas de juros mundiais, exatamente num momento em que a economia nacional mostra-se relativamente sob controle, de inflação baixa em comparação a outras épocas, situação que proporciona aos bancos espetacular lucro líquido anual, que se aproxima a 40% do seu patrimônio, enquanto que em outros países esse lucro não excede a 3%. É a nova versão da "corrida do ouro".
Em janeiro último, a imprensa divulgou, em tom de júbilo, o lucro líquido do Banco Itaú S/A no ano de 1.999, de incríveis 1 bilhão e 800 milhões de reais, seguido de perto pelo Bradesco S/A, que anunciou lucro de 1 bilhão e 300 milhões de reais. Essa notícia me fez refletir sobre o acerto e, especialmente, sobre a justiça das minhas decisões que, acompanhando "a dicção da maioria do STF", trilharam o entendimento que a norma insculpida no § 3º do art. 192 da CF não era auto-aplicável e, ainda, amparado na Súmula 596 do Pretório Excelso, proclamavam que "as disposições do Decreto n. 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por intituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro".
A meditação acurada me fez concluir que esse entendimento contraria o princípio da igualdade perante a lei, assegurado constitucionalmente, e importa em conceder licença para o arbítrio das instituições financeiras, que avistaram o terreno fértil do lucro no vácuo do sistema legal destinado a regular as taxas de juros bancários atualmente normatizado por resoluções do BACEN e do CMN , e que, talvez até por comodismo, eu, assim como tantos magistrados, estivesse aplicando a súmula vinculante antes mesmo da sua existência. Estivesse silenciando antes da "mordaça" que alguns, desconhecedores dos benefícios da democracia, tentam impor.
Nos tempos modernos, os mutuários inadimplentes, por não suportar satisfazer o apetite voraz do banco credor, são condenados ao "pelourinho moral", são "esquartejados moralmente": é o SPC, SERASA, CADIN e tantos outros órgãos de proteção ao crédito. É o escárnio do escarnecido. E isso para garantir lucros cada vez mais incríveis, os quais são reiteradamente secundados por sentenças que aplicam o princípio do pacta sunt servanda.
A meu ver, ao juiz e ao Judiciário, no desempenho de sua missão constituicional, cabe papel bem mais honroso do exercer a função de "capitão-do-mato" na caça dos mutuários explorados. É vero que existem maus tomadores que, ardilosamente, contraem obrigações e não as cumprem com o propósito de obterem vantagem ilícita, constituindo a inadimplência uma das explicações das instituições financeiras para a cobrança de juros tão elevados, mas a solução encontrada pelos bancos, de transferir o ônus da inadimplência aos bons tomadores, é extremamente injusta. A solução, sem dúvida, é a capacitação de seus prepostos, que devem se cercar de garantias suficientes do recebimento do crédito.
Esse despertar dos juizes já não é de agora. Existem decisões de magistrados, inclusive do segundo grau de jurisdição, de diversas regiões do Brasil admitindo a auto-aplicabilidade da norma constitucional limitadora dos juros, no que, hoje, as vejo acertadas.
É chegada a hora de dizer "basta". Basta de contrariar os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (CF, art. 3º), de promover as desigualdades sociais, onde os ricos ficam mais ricos e os pobres mais pobres; basta de contribuir para a construção de uma sociedade injusta, cativa do capital e egoísta, onde a assustadora criminalidade encontra-se diretamente ligada ao regime de exploração do homem pelo homem e do homem pelo capital.
Já de antanho, José Afonso da Silva, um dos mais respeitados constitucionalistas pátrios, lecionava que: "Está previsto no § 3º do art. 192 que as taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direita ou indiretamente referidas à concessão do crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar. Esse dispositivo causou muita celeuma e muita controvérsia quanto à sua aplicabilidade. Pronunciamo-nos, pela imprensa, a favor de sua aplicabilidade imediata, porque se trata de uma norma autônoma, não subordinada à lei prevista no caput do artigo. Todo parágrafo, quando tecnicamente bem situado (e este não está, porque contém autonomia de artigo), liga-se ao conteúdo do artigo, mas tem autonomia normativa. Veja-se, p. ex., o § 1º do mesmo art. 192. Ele disciplina assunto que consta dos incs. I e II do artigo, mas suas determinações, por si só, são autônomas, pois uma vez outorgada qualquer autorização, imediatamente ela sujeita às limitações impostas no citado parágrafo. Se o texto, em causa, fosse um inciso do artigo, embora com normatividade formal autônoma, ficaria na dependência do que viesse a estabelecer a lei complementar. Mas, tendo sido organizado num parágrafo, com normatividade autônoma, sem referir-se a qualquer previsão legal ulterior, detém eficácia plena e aplicabilidade imediata. O dispositivo, aliás, tem autonomia de artigo, mas a preocupação, muitas e muitas vezes revelada ao longo da elaboração constitucional, no sentido de que a Carta Magna de 1988 não aparecesse com demasiado número de artigos, levou a Relatoria do texto a reduzir artigos a parágrafos e uns e outros, não raro, em incisos. Isso, no caso em exame, não prejudica a eficácia do texto. Juros reais os economistas e financistas sabem que são aqueles que constituem valores efetivos, e se constituem sobre toda desvalorização da moeda. Revela ganho efetivo e não simples modo de corrigir desvalorização monetária. As cláusulas contratuais que estipularem juros superiores são nulas. (Curso de Direito Constitucional Positivo, Ed. Malheiros, 9ª ed., 3ª tiragem, p. 703/704).
Não há, de fato, como negar a eficácia plena desse dispositivo constitucional, porquanto idôneo, desde a sua entrada em vigor, a disciplinar as relações jurídicas entre mutuante e mutuário, por conter todos os elementos imprescindíveis para que haja a produção imediata de seus efeitos, não reclamando regulamentação por legislação subseqüente para lhe emprestar aplicabilidade.
A preocupação do legislador constituinte em reduzir, tanto quanto possível, o número de artigos da Constituição, visando perseguir a técnica legislativa constitucional, levou o Relator, Deputado Bernardo Cabral, a elaborar vários substitutivos, cada qual contando com menor número de artigos do que o texto anterior, o que explica a deficiente localização técnica do § 3º do art. 192, que, não obstante autônomo, desvinculado do caput, passou a ocupar a posição de parágrafo. A destinação de um único artigo para cuidar do sistema financeiro nacional deixa evidente essa preocupação.
E não será a atecnia na localização dessa norma constitucional que lhe impedirá de produzir, de imediato, seus efeitos, porque acima da ausência de técnica estão os princípios constitucionais, e estes sim restaram extremados, reservando aos sistema financeiro nacional o papel de promover o desenvolvimento equilibrado do Pais e de servir aos interesses da coletividade (CF, art. 192, caput), e, por essa razão, coadjuvar a tarefa de construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo o desenvolvimento nacional, objetivando erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais (CF, art. 3º).
Não há, de sua parte, como reinventar o conceito de "juros reais" a não ser emprestar-lhe a definição de remuneração do capital, excluída a reposição do desgaste monetário da moeda.
Nessa esteira de raciocínio, o eminente Ministro Marco Aurélio de Melo, do STF, tem se posicionado pela auto-aplicabilidade do § 3º do art. 192 da CF, consoante excertos de um de seus vários votos nesse sentido: "... os ditames da consciência levaram-me a assumir, ultimamente, posição diversa, voltando a sustentar a tese que desde o início defendi", ou seja, o da eficácia imediata do preceito contido na norma do art. 192, § 3º, da nossa Constituição. ...Quando a Corte apreciou a questão alusiva à auto-aplicabilidade do § 3º do artigo 192 da Carta da República, no que impõe o respeito ao limite máximo de doze por cento para os juros reais - Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4, relatada pelo Ministro Sydney Sanches -, fiquei vencido, na companhia honrosa dos Ministros Carlos Velloso, Paulo Brossard e Néri da Silveira, no tocante à conclusão sufragada pela Corte de origem, ou seja, da eficácia imediata do preceito. Passei a ressalvar, no campo monocrático e na Turma, a convicção pessoal. Todavia, os ditames da consciência levaram-me a assumir, ultimamente, posição diversa, voltando a sustentar a tese que desde o início defendi. É que a usura vem vencendo o Brasil, com nefastos efeitos no campo social. Grassa o desemprego, fato que contribui para o aumento da criminalidade. As contas públicas estão seriamente comprometidas com os acessórios da dívida interna. Por isso, voltei a expressar o convencimento externado nos idos de 1991, e que, com a passagem do tempo, somente restou robustecido. Tenho como auto-aplicável, tal como vem proclamando o Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul, a regra do § 3º do artigo 192 da Carta, que, a rigor, deveria estar em dispositivo autônomo. A única justificativa para o lançamento da norma em parágrafo é a notória fuga do legislador constituinte de 1988 à elaboração de um diploma constitucional com número excessivo de artigos." (voto proferido no Agravo de Instrumento nº 234441/RS, em 04/02/99)
O então Ministro Paulo Brossard, ao proferir seu voto na ADin n. 004-DF, adotou idêntico posicionamento: "Tenho para mim que o § 3º do art. 192 tem em si mesmo elementos bastantes para imperar desde logo e independente de lei complementar, até porque esta, querendo ou não o legislador, não poderá deixar de ter como juro máximo 12% ao ano, incluídas nessa taxa que, aliás, não é nova entre nós, toda e qualquer comissão ou tipo de remuneração direta ou indiretamente referida à concessão do crédito. Isto porque, como é sabido, como a chamada lei de usura prescrevesse como limite máximo a taxa de juros de 12%, instituições financeiras, sob a pressão do fenômeno inflacionário, passaram a cobrar outras taxas sob rótulos distintos. Querendo ou não querendo o legislador ele não poderá autorizar a cobrança de qualquer remuneração seja a que título for, direta ou indiretamente ligada à concessão de crédito, além do juro, juro este que será de até 12% e em caso algum superior a essa taxa" (RTJ 147/830).
Nos sodalícios estaduais, de diversas unidades federativas, existe entendimento enraizado pela auto-aplicabilidade da norma constitucional em questão, in verbis:
"a mencionada lei reguladora está prevista no caput do artigo e atinge somente as questões elencadas nos incisos (I a VII). O parágrafo 3º trata de questão totalmente desvinculada do caput e seus parágrafos. Nestes, a Lei Maior contém disciplina do Sistema Financeiro Nacional, determinando que a lei infraconstitucional deverá dispor sobre sua estrutura e funcionamento. Enumerando os casos que necessitam de regulamentação. Os juros está disciplinados em parágrafo que tem conteúdo de autonomia. Se o constituinte quisesse submetê-lo à lei complementar, tê-lo-ia inserido num dos incisos" (Apel. Civ. N.º. 197021603 4ª Câm. Civ. Rel. Des. Manuel Martinez Lucas, TARGS 1997).
O sodalício gaúcho, em seu pioneirismo característico, inaugurou entendimento no sentido de buscar a limitação de juros dentro da própria norma do art. 1 do Decreto n 22.626/33:
"Juros. Limite de 12% a/a. Os juros estão limitados a 12% a/a, porquanto a Constituição Federal não recepcionou a norma que, segundo a Súmula nº 596, delegava ao Banco Central, como órgãos do CMN, regular as taxas de juros. Segundo os arts. 22 e 48 da CF, a matéria hoje é de competência exclusiva do Congresso Nacional. Os arts. 68 da CF e 25 do ADCT claramente revogaram as delegações de competência normativa. Revogada a Lei n.º 4.595/64, nessa parte, continua em vigor a Lei de Usura." (TACRS 5ª Câmara Cível AC n. 195132154 - Rel. Des. Jorge Alcebíades Perrone de Oliveira)
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por sua vez, decidiu:
"AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO PEDIDO DE NULIDADE DAS CLÁUSULAS ABUSIVAS VIABILIDADE LIMITE CONSTITUCIONAL ART. 192, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL AUTO-APLICABILIDADE NORMA QUE DISPENSA REGULAMENTAÇÃO, SENDO DE EFICÁCIA PLENA COM INCIDÊNCIA IMEDIATA. O § 3º do art. 192 da CF é norma auto-aplicável e de incidência imediata, não dependendo de regulamentação por lei complementar. Trata-se de norma autônoma, não condicionada à lei prevista no caput do artigo. Estabelecida a regra da taxa de juros reais de 12% ao ano, com ou sem lei complementar, os juros não poderão ser superiores a esse limite. A lei a ser elaborada é que estará subordinada ao § 3º do art. 192, e não este subordinado àquela; tudo que prescreverá a lei complementar deverá estar de acordo com a norma constitucional, ou então será inconstitucional. O limite de juros de 12% ao ano, previsto na Constituição chega a ser elevado diante do atual quadro econômico do país. Não se pode permitir a cobrança de juros excessivos e de forma em que todos são obrigados a aceitar. Fica muito difícil suportar as taxas de juros da maneira em que são praticadas, não podendo o Judiciário ficar omisso, devendo intervir ainda que se trate de contrato firmado "livremente" entre as partes." (TJSC Apelação cível n. 98.011495-0, de Lauro Müller Rel. Des. Carlos Prudêncio.
A Corte Recursal paranaense adotou posicionamento idêntico:
"APELAÇÃO CÍVEL AÇÃO MONITÓRIA CHEQUE ESPECIAL CORREÇÃO MONETÁRIA DEVIDA CAPITALIZAÇÃO DE JUROS NÃO CONFIGURADA, MAS LIMITADA INCIDÊNCIA. EXEGESE DO ARTIGO 192, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, POR SER NORMA AUTO-APLICÁVEL. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. A correção monetária, como forma de corrigir o valor aquisitivo da moeda, não pode ser afastada, mas os juros se norteiam em face do art. 192, § 3º, da Constituição Federal, por ser norma auto-aplicável. Quanto a alegada capitalização de juros, não houve inequívoca demonstração de sua existência" (TJPR Apelação Cível nº 72106600 Rel. Des. Antônio Gomes da Silva j. em 29/06/99)
Dir-se-iam, alguns, que esses julgados são frutos do espírito reconhecidamente vanguardista da magistratura que atua no sul do País, mas, contrariando essa expectativa, o entendimento pela auto-aplicabilidade da norma constitucional em debate se espraiou, alcançado tribunais que, até então, eram havidos como conservadores. O Tribunal de Justiça do Mato Grosso é um desses exemplos, de onde se extrai as seguintes ementas:
"EMBARGOS À EXECUÇÃO - CRÉDITO RURAL - JUROS - LIMITE CONSTITUCIONAL - NORMA DE EFICÁCIA PLENA COM INCIDÊNCIA IMEDIATA - INTELIGÊNCIA DO ART. 192, PARÁGRAFO 3º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - VERBA HONORÁRIA - INCIDÊNCIA SOBRE A CONDENAÇÃO. A norma do parágrafo 3º do artigo 192 da Constituição Federal é de eficácia plena, por isso que contém, em seu enunciado, todos os elementos necessários à sua aplicação. Logo, é auto-aplicável, de incidência imediata. Se parcial o acolhimento do pedido, os honorários devem ser arbitrados com base no valor da condenação". (TJMT - Apel. Civ. 15.973 - 1ª Câm. Civ. Rel. Des. Ernani Vieira de Souza - j. em 28-3-94)
"AÇÃO DE REVISÃO CONTRATUAL VISANDO A EXPULSÃO DOS JUROS QUE SOBEJAM O LIMITE ESTABELECIDO NO ART. 192, § 3º DA CF. ASSIM COMO O ANATOCISMO PRATICADO - NORMA CONSTITUCIONAL QUE NÃO CARECE DE REGULAMENTAÇÃO RECURSO DE APELAÇÃO PROVIDO. A norma constitucional que limita a taxa de juros é auto-aplicável, não carecendo de lei-complementar que a regulamente. Somente as operações financeiras por leis especiais admitem a capitalização semestral dos juros, sendo vedado o anatocismo mensal diante do contrato de abertura de crédito em conta corrente". (TJMT - 1ª Câm. Civ. - Apel. Civ. 18.267 - Classe II - 20 - Rel. Des. Orlando de Almeida Perri - j. em 25-11-96)
"APELAÇÃO CÍVEL - EMBARGOS À EXECUÇÃO - CRÉDITO RURAL - JUROS LIMITADOS AO QUE ESTABELECE O ART. 192, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL CAPITALIZAÇÃO E CUMULAÇÃO DA CORREÇÃO MONETÁRIA COM COMISSÃO DE PERMANÊNCIA - IMPOSSIBILIDADE - INTELIGÊNCIA DAS SÚMULAS 121 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E 30 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - REAJUSTE DA DÍVIDA PELO IGPM - CRITÉRIO CORRETO - RECURSO IMPROVIDO POR MAIORIA. O art. 192, § 3º, da Constituição federal é auto-aplicável e tem eficácia plena, limitando-se os juros ao máximo de 12% ao ano. A capitalização de juros, mesmo que convencionada, no entendimento do Supremo Tribunal Federal é de ser vedada, ainda que se trate de créditos rurais. A comissão de permanência não pode ser cumulada com a correção monetária. O reajuste da dívida, através do índice Geral de Preços e Mercadorias (IGPM), com recomendação da E. Corregedoria Geral de Justiça, se constitui em atualização justa, coerente e real da dívida. Sentença mantida." (TJMT 1ª Câm. Cív. Apel. Cív. nº 19.983, Classe II 23 - Rel. Dr. Gerson Ferreira Paes - j. em 17/06/98)
"APELAÇÃO - EMBARGOS À EXECUÇÃO - AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA À SENTENÇA - INÉPCIA REJEITADA - CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO EM CONTA CORRENTE - CAPITALIZAÇÃO DE JUROS - VEDADA. JUROS - LIMITE DE 12% AO ANO. HONORÁRIOS - APLICAÇÃO DO ART. 20, § 4º DO CPC - RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. Não é inépta a apelação interposta no prazo e conforme as regras contidas no CPC. A capitalização de juros é vedada, mesmo quando expressamente convencionada, em contrato de abertura de crédito em conta corrente. É ilegal a cobrança de juros acima da taxa de 12% ao ano, nos termos do art. 192, § 3º da Constituição federal. Nos embargos à execução os honorários são fixados de acordo com a complexidade da causa, conforme dispõe o art. 20, § 4º do CPC." (TJMT 3ª Câm. Cív. - Apel. Cív. nº 22.117 Classe II 23 Rel. Des. Ernani Vieira de Souza j. em 28/04/99)
O Desembargador Ernani Vieira de Souza, ao apreciar o recurso ensejar da última ementa, abordou com precisão o tema em debate, razão pela qual peço venia para transcrever alguns excertos do voto: "No que tange ao limite constitucional de juros, estabelecido no art. 192, § 3º, da CF, devo confessar que, submisso à orientação emanada da ADin nº. 4-DF, não admitia a auto-aplicabilidade desse parágrafo. Entretanto, após demorado e mais aprofundado exame da questão, mudei meu ponto de vista, sem qualquer constrangimento, diga-se, porquanto, segundo Goethe "só não muda de opinião quem não tem opinião". De sorte que, ao contrário do respeitável entendimento da maioria, passei a admitir e a defender a tese da auto-aplicabilidade daquele parágrafo 3º, deixando, assim, de intimidar-me com a força dos argumentos dos Mestres que emitiram parecer a respeito, pareceres estes que se encontram publicados na RDP, volumes 88 e 89. A tônica desses pareceres é a de que, sendo o parágrafo parte integrante, porém secundária, do artigo, e servindo apenas para completá-lo ou excepcioná-lo, não poderia ele, o § 3º, ser auto-aplicável, por ter sido estabelecido no seu caput que todo o sistema financeiro será regulado em Lei Complementar e, ainda, que a Lei Complementar é necessária para que se defina o que sejam "juros reais" e "crime de usura". Com base nesses pareceres, o STF, por 6 votos a 4, inclinou-se pelo mesmo entendimento ao decidir a ADIN nº. 4-DF, fato este que tem sinalizado o caminho da jurisprudência seguida pela maioria dos juizes, caminho este que nos conduz a certa perplexidade, porque, pretender que uma norma constitucional, que contém um comando proibitivo e sua respectiva sanção, só opere seus efeitos após a superveniência da lei ordinária que nada lhe acrescentará é subverter a hierarquia das normas jurídicas, conferindo-se a lei força maior que a Constituição, como já anotara EROS ROBERTO GRAU (Revista de Direito Constitucional e Ciência Política, vol. 4, p.44, Forense, Rio, 1985). Entende esse ilustre Professor da USP que as normas constitucionais, mesmo programáticas, são imediatamente aplicáveis quando atributivas de direitos sociais ou econômicos. Pode ser uma norma completa, o § 3º, do art. 192 da Constituição federal, no que tange ao limite de juros, é norma que não aceita qualquer outro regramento infraconstitucional, haja vista que a vontade normativa surge e se exaure dentro da própria Constituição, não podendo, segundo o Mestre da USP, ser produzida outra norma que, sob qualquer pretexto, tenda a regulamentá-la, posto que, qualquer legislação subsidiária seria nociva ao seu conteúdo (op. cit., p.43). Outras vozes não menos ilustres insurgiram-se, também, contra o entendimento ditado pelo acórdão proferido na ADin nº. 4, como bem anotado na douta sentença recorrida (fls. 123), citando os ensinamentos de Antônio Janyr Dallagnol): Até o advento da Constituição de 1988, a questão da taxa de juros sujeitava-se a regime dúplice. Era vedada a todas as pessoas a estipulação em contrato de juros superiores a 12 (doze por cento), por força do Dec. 22.626/33, que, todavia, não se aplicava às instituições do Sistema Financeiro. Agora, sob a nova ordem constitucional, cuida-se tão-somente de fazer aplicar a todos, inclusive aos bancos e instituições afins, as regras que já vigoravam há muitas décadas para quase todos. Juridicamente não há qualquer dificuldade nisto, muito embora, deve-se reconhecer, não tenham faltado pareceristas procurando criá-las. O parágrafo 3º, do art. 192, à luz do que se vem de expor e analisar, não é norma programática. Ela define um direito prontamente utilizável por todas as pessoas, que podem invocar a tutela jurisdicional para ser declarada a invalidade de qualquer obrigação que não reverencie o postulado constitucional. ... Bem examinado esse § 3º - e sem cair naquela tentação hermenêutica condenada por Ferrara, segundo a qual, mais perigoso que o excessivo apego à letra da lei, por timidez ou inexperiência, é a tentação de que o intérprete, deixando-se apaixonar por uma tese, trabalhe de fantasia e julgue encontrar no direito positivo idéias e princípios que são antes o fruto de suas lucubrações teóricas ou das suas preferências sentimentais (Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, 3º edição, p. 129, Armênio Amado Editor, Coimbra, 1978) - constata-se ser ela uma norma completa, haja vista que possui um comando de proibição quando diz: as taxas de juros não poderão ser superiores a 12% a.a. Possui, também, uma sanção, qual seja, a de que a cobrança além desse limite constitui crime de usura. E sendo norma completa, que não depende de outra para ser explicitada, é, obviamente, auto-aplicável. São normas de eficácia plena, diz JOSÉ AFONSO DA SILVA (Aplicabilidade das normas Constitucionais, p. 212, 2ª edição, RT, 1982), aquelas a que o legislador constituinte deu formulação suficiente, para reger as condutas, comportamentos e situações nelas cogitadas, geradoras, por isso, de situações subjetivas de vantagem ou desvantagem, desde a entrada da constituição em vigor. Percebe-se, assim, com nitidez, que o caput do art. 192, é regra de eficácia limitada. O mesmo não pode dizer do seu § 3º, que contém preceito e sanção, requisitos que o torna imediatamente aplicável. ...É o caso do § 3º em comento, quando impõe limite às taxas de juros, comando este que contém forte dose de imperatividade e, por isso, dotado de força cogente. Assim só forçadamente, data venia, poder-se-á inferir que nesse preceito não está um comando bastante por si só, haja vista que nenhuma lei infraconstitucional poderá dispor de modo diferente em relação ao limite de 12% a.a. Neste sentido, leia-se NAGIB SLAIBI FILHO - Anotações à Constituição de 1988, p. 405, Forense, 1989. ...Sendo assim, mesmo que não admitíssemos tivesse o tal § 3º eficácia plena, ainda assim, os juros legais seriam, apenas, de 12% a.a., no máximo, para que o crime de usura não seja cometido. Este tipo de crime já estava tipificado no Decreto nº. 22.626/33, conhecido como Lei de Usura, decreto este que ainda em vigor, eis que recepcionado pela Constituição "cidadã". Dir-se-á, como já disseram, que esse decreto foi ab-rogado pela Lei 4.595/64, que criou o Conselho Monetário Nacional e delegou-lhe, além de poderes normativos, o encargo de limitar, sempre que necessário, as taxas de juros (art. 4º, inciso IX). Assim, contrariando a Constituição vigente na época, delegou-se a um órgão do Executivo o poder de, através de resoluções normativas, legislar sobre moeda, créditos e juros. Tal delegação, entretanto, é, segundo a opinião dos doutos, absolutamente inconstitucional, como logo será demonstrado. Dispõe o art. 1º, do Dec. nº 22.626 de 7-4-33, conhecido como Lei de Usura, que: Art. 1º - É vedado, e será punido nos termos desta lei estipular em quaisquer contratos, taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal (Código Civil, art. 1.062). Observem que o art. 1º da Lei de Usura faz remissão expressa ao art. 1.062 do C. Civil que, por sua vez fixa a taxa de juros em 6%, ao ano. Entretanto, para disciplinar o sistema financeiro, beneficiando as instituições financeiras, o Congresso Nacional editou a Lei nº 4.595/64 que delegou poderes ao Conselho Monetário Nacional para disciplinar o crédito em todas as suas modalidades e limitar, sempre que necessário, as taxas de juros (art. 4º), delegação essa mantida pelas leis 4.728/65 e 4.829/65. Essas leis, contudo, eram inconstitucionais, porquanto a Carta Magna de 1946, em seu art. 36, § 2º, vedava a qualquer Poder a delegação de atribuições. A respeito dessa vedação Vicente Ráo (O Direito e a Vida dos Direitos, Vol. I, p. 330, Max Limonad, 1960) observava serem incisivas as prescrições constitucionais no sentido de vedar delegações, e SAMPAIO DÓRIA (Direito Constitucional, 3ª ed.., 1953 p. 291 a 295) enfatizava que a expressão "é vedada" foi utilizada para cortar qualquer discussão doutrinária em torno do assunto. No mesmo sentido, Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1946, vol. I, p. 533 e segts.) e Carlos Maxiliano (Comentários à Constituição Brasileira, vol. I, p. 410 e 411, Freitas Bastos, 1948). Dúvida, portanto, não pode existir sobre a inconstitucionalidade das leis, que sob a égide da Constituição de 1946, vedava a delegação de atribuições. Isto significa que todas as resoluções do Banco Central e do Conselho Monetário Nacional, amparadas por leis inconstitucionais, que autorizavam os bancos comerciais a operarem com juros superiores à taxa de 12%, eram ilegais, haja vista que encontrava-se, como ainda se encontra, em vigor, o art. 1º do Decreto nº. 22.626/33 que disciplinava e ainda disciplina o valor da taxa de juros. Todavia, e só para argumentar, admitamos que essas leis (nsº. 4.595/64, 4.728/65 e 4.829/65) não fossem inconstitucionais. Ainda assim, deixaram de vigorar em face da nova Constituição que não as recepcionou, haja vista que, ao fixar o limite de juros em 12% a.a., tornou com ela incompatíveis todas as normas que dispusessem diferentemente. A respeito, MARIA HELENA DINIZ (Norma Constitucional e Seus Efeitos, p. 41 e segts., Saraiva, 1989), esclarece que: A promulgação de uma nova Constituição impõe a necessidade de contemplar sua incidência sobre as demais normas do sistema a ela anteriores, visto que poderá haver alterações, ou tácita, do critério sobre a constitucionalidade de algumas (p.41). ... Deve haver compatibilidade de um dispositivo legal com a norma constitucional. Havendo contradição entre qualquer norma preexistente e preceito constitucional, esta deve, dentro do sistema, ser aferida com rigor, pois é indubitável o efeito ab-rogativo da Constituição Federal sobre as normas e atos normativos que com ela conflitarem. As normas conflitantes ficam imediatamente revogadas na data da promulgação da nova Carta. Não sendo nem mesmo necessária quaisquer cláusulas expressas de revogação. Tal ocorre porque, com a promulgação da Lei Maior, cria-se todas as normas, sejam elas gerais ou individuais. Essa incompatibilidade entre a legislação ou atos normativos e a nova Carta pode dar-se mesmo apenas relativamente à normas programáticas, já que são constitucionais também e produzem seus efeitos, por não serem destituídas de eficácia (p.42). LÚCIO BITTENCOURT, citado por José Afonso da Silva (Aplicabilidade das normas Constitucionais, 2ª edição, p. 140 e segts., Saraiva, 1982), é enfático, nesse sentido: Uma lei incompatível com a Constituição é, sempre, na técnica jurídica pura, uma lei inconstitucional, pouco importando que tenha precedido o Estatuto Político ou lhe seja posterior. A revogação é conseqüência da inconstitucionalidade. Esta tese, diz JOSÉ AFONSO DA SILVA, vale para todas as normas constitucionais, sejam de eficácia plena, de eficácia contida ou eficácia limitada, inclusive as programáticas. E quanto aos efeitos e eficácia destas, assevera o Mestre: Do que expusemos nos parágrafos anteriores, fácil é extrair outro efeito notabilíssimo das normas constitucionais programáticas, como exprime Balladore Pallieri, que conclui "prescrevem à legislação ordinária uma via a seguir; não conseguem constranger, juridicamente, o legislador a seguir aquela via, mas o compelem, quando nada, a não seguir outra diversa. Seria inconstitucional a lei que pudesse de modo contrário a quanto a constituição comanda." ... Assim, descortina-se a eficácia das normas programáticas em relação à legislação futura, desvendando, aí, sua função de condicionamento do legislador ordinário, mas também da administração e da jurisdição, cujos atos hão de respeitar princípios nela consagrados. PONTES DE MIRANDA é preciso sobre o assunto, prelecionando que: A legislação, a execução e a própria justiça ficam sujeitas a esses ditames, que são como programas dados à sua função"(op. Cit.). JORGE MIRANDA (Manual de Direito Constitucional, Coimbra Ed., 2ª edição, p. 216 e segts.), esclarece que tanto as normas preceptivas como as programáticas, integram uma mesma e única ordem constitucional, sendo certo que estas, as normas programáticas, determinam, de imediato, a cessação de vigência, por inconstitucionalidade superveniente, das normas legais anteriores que disponham em sentido contrário. Indefere-se dessas lições que a legislação citada, que criou o Conselho Monetário Nacional e delegou-lhe poderes para gerir a taxa de juros, ou são inconstitucionais, ou deixaram de vigorar. Em qualquer caso, não se diga que ficou um vazio jurídico. Não; porque continua em vigor o Decreto nº. 22.626/33 - a Lei de Usura - sendo certo que, por tudo isso, não se há mais de falar sobre a prevalência da Súmula 596, do STF, segundo a qual as disposições do Decreto 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas que integram o sistema financeiro, Súmula essa que tantas críticas recebeu de juristas da estirpe de Orlando Gomes, Gilmar Ferreira Mendes, e outros. Serve essa Súmula, entretanto, para evidenciar que se encontra ainda em vigor o decreto nela mencionado, ou seja, a Lei de Usura que, agora, como antes, a todos continua obrigando. Referida Súmula lastreou-se na tese da derrogação do Decreto 22.626/33 pela Lei nº. 4.959/64, que afastou a incidência do limite de juros somente em relação às operações financeiras realizadas pelas entidades integrantes do sistema, mantendo-o, contudo, em relação às pessoas físicas. Entretanto, conforme ARNALDO RIZZARDO (Contratos de Créditos Bancário, p. 237, RT, 1990) nada mais ilegal, discricionário e injusto do que tal diferenciação de tratamento: Em primeiro lugar, a Lei 4.595 em nenhum momento permitiu, a graduação de juros acima da taxa legal. Autorizou o Conselho Monetário Nacional a delimitar as taxas de juros e outros encargos, mas não a elevá-los a quaisquer níveis, ficando liberados aos bancos dos percentuais ordenados pelo Código Civil e pelo Dec. 22.626. Engendrou o STF uma construção fictícia, dando um alcance à Lei 4.595 favorável às entidades bancárias, o que, de certa forma, obedece a uma tradição de nossas instituições, sempre voltadas a consolidar as estruturas das forças econômicas dominantes. Em segundo lugar, as taxas de juros estão previstas em lei. É ignominioso deixar ao arbítrio de um órgão federal a decisão de estabelecer os patamares dos juros, tolhendo qualquer poder de deliberação do mutuário e ferindo o princípio da consensualidade da bilateralidade do contrato. Diante da natureza adesiva deste tipo de negócio, fica a parte na contingência de submeter-se obrigatoriamente às decisões impostas pelo banco, sob pena de não conseguir o mútuo. ...O simples fato da entidade creditícia classificar-se como banco não lhe outorga o direito de situar-se num plano superior e privilegiado, a descoberto de imposições de leis que não tiveram limitado o campo de aplicações, malgrado, entendimentos destorcidos e nocivos a economia nacional, criados numa época em que jazia sepultada a democracia no País. ...Se a Lei 4.595 dava margem a interpretações permissivas de taxas de juros superiores a 12%, desde que toleradas pelo Conselho Monetário Nacional, presentemente ingeriu-se em nossa Lei Maior norma proibitiva, que derroga qualquer outra regra pretensamente autorizadora de percentuais reais mais elevados". Notem, Vossas Excelências, que em relação ao § 2º. do art. 192 da CF, nenhuma celeuma existe e vem ele sendo normalmente aplicado, independentemente da Lei Complementar tida como necessária. A controvérsia diz respeito, apenas, ao § 3º., cuja aplicabilidade imediata não interessa ao sistema bancário e, por isso, como último argumento para justificarem a necessidade de uma lei infraconstitucional, dizem que ela é necessária para se definir o que sejam juros reais. Data venia e com todo respeito, não procede, também, esse argumento. Todos sabem o que são juros e já sentiram na carne o seu significado. Desde a Grécia e Roma antigas os juros já eram conhecidos e proibidos. A proibição continuou na Idade Média, sob a influência da Igreja Católica, que considerava os juros como pecado e sua cobrança implicava em excomunhão. Com a reforma protestante e o advento do liberalismo clássico, a cobrança das taxas de juros ganhou relativa liberdade, e o direito canônico passou a admiti-lo com limites fixados em lei. Entre nós, na esteira dessa orientação, editou-se o já falado Decreto 22.626, de 7-4-33, conhecido como Lei de Usura, em cujo art. 1º. estabeleceu-se o limite para a estipulação da taxa de juros. A usura, em seu art. 13, foi definida como crime. De longa data, portanto, sabe-se o significado de juros, não havendo, pois, necessidade de lei ordinária para explicá-los, até porque do próprio texto constitucional se extrai o conceito de juros reais. Juros, dizem os "experts", é o rendimento do capital. É o preço do aluguel do dinheiro ou, como diz CAIO TÁCITO, em seu parecer publicado na RDP - 88, pág. 156, "o juro é a remuneração pelo tempo durante o qual a o capital fica à disposição do devedor... A comissão, ao contrário, constitui a contrapartida de um serviço prestado ao devedor, e distinto do serviço resultante da simples colocação à sua disposição do capital". Juro real, diz o § 3º. do art. 192, da CF, é a taxa percentual que remunera o capital, acrescida das comissões e demais despesas que incidirem, direta ou indiretamente, sobre o capital emprestado pelas instituições financeiras. Tudo isso dentro do limite de 12% ao ano. "Os juros reais correspondem, dessa forma, à taxa nominal de juros acrescida ou deduzida da taxa de valorização ou desvalorização da moeda". (José Tadeu de Chiara - Enciclopédia Saraiva de Direito, vol. 47, p. 213). Esses acréscimos aos juros nominais decorrentes da inflação e do custo de serviços bancários, já abusivos antes de 1988, obrigou o Constituinte a limitá-los, e a limitar, também, os chamados encargos decorrentes da concessão de crédito, mas, apesar disso, e agora, num período de inflação baixa, os Bancos continuam cobrando taxas de juros demasiadamente a superiores à inflação. Paga-se tudo, desde abertura de conta, depósitos, saques, talões de cheque, etc., até serviços inominados e imaginários que aparecem nos extratos de conta corrente. Não há justificativa legal para uma taxa de juros como a cobrada pelos Bancos que fazem a captação de recursos por um percentual insignificante e os repassam aos tomadores em percentual várias vezes superiores ao seu custo. Foi isto que o § 3º., do art. 192 da CF, quis coibir e não tem conseguido. Os banqueiros estão acima da Constituição. ...Em conclusão, por um motivo ou por outro, quer por ser auto-aplicável o § 3º. do art. 192 da CF, quer porque esteja em vigor a Lei de Usura, é ilegal a cobrança de juros acima da taxa de 12% ao ano."
A jurisprudência, a cada dia, vem se avolumando no sentido de que: "expressão nos termos em que a lei determinar transfere à legislação infraconstitucional exclusivamente a definição da ilicitude penal (crime de usura), naturalmente em respeito ao princípio da reserva legal" (RT 675/188).
A capitalização mensal dos juros, por seu turno, esbarra na proibição contida no art. 4º do Decreto nº 22.626/33 preceitua que "é proibido contar juros dos juros; esta proibição não compreende a acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos em conta corrente de ano a ano".
Os sodalícios também se orienta no sentido de inadmitir a capitalização de juros, mesmo quando expressamente convencionado, vedação que se aplica às instituições financeiras, exceto quando houver permissão legal, ou seja, quando se tratar de débito resultando de cédula de rural, crédito comercial ou industrial (Súmula 93 do STJ).
Desse modo, há que se expurgar do cálculo do débito a capitalização dos juros, permitida apenas anualmente.
Corrobora esse entendimento a seguinte ementa:
"Comercial Crédito em conta corrente Capitalização de juros Correção monetária e comissão de permanência Cumulação. 1. Não se admite a capitalização de juros senão em virtude de lei especial que a preveja, ainda quando pactuada. 2. Não se acumulam correção monetária e comissão de permanência (Súmula 30/STJ)".(REsp nº 23.311-6 GO. Rel. Min. DIAS TRINDADE. Quarta Turma. Unânime. DJ 21/02/94).
De sua parte, na correção monetária do débito, deve-se utilizar índice que retrate a perda do poder de compra da moeda, e não a TR, como habitualmente utilizam as instituições financeiras, impondo-se a aplicação do IPC.
A jurisprudência ampara essa providência, sendo oportuno colacionar o seguinte julgado:
"Correção monetária. IPC. Inaplicabilidade da TR. Não constituindo a TR índice de correção monetária, a teor do entendimento manifestado pelo Supremo Tribunal Federal (Adin n. 493-DF), a jurisprudência pacificou-se no sentido de que o indexador adequado para corrigir valores é o IPC do IBGE". (TJGO AC Rel. Des. Mauro Campos DJ n 12861 de 05/08/98 p 7)
As relações bancárias envolvem contrato complexo, quais sejam, de depósito, de mútuo e de prestação de serviços, sujeitando-se, destarte, à legislação protetiva do consumidor, por encerrar relação de consumo.
O legislador constituinte fez inserir na Carta Magna, no Capítulo reservado aos Direitos Fundamentais do homem, em seu art. 5º, XXXII, o dever do Estado de promover a defesa do consumidor.
Regulamentando esse dispositivo de ordem pública e interesse social, a Lei n.º. 8.078/90 adotou, pela primeira vez entre nós, o princípio da boa-fé objetiva, que tem por escopo equilibrar as relações jurídicas de consumo, corrigindo as cláusulas abusivas, a fim de que prevaleça a tão proclamada justiça e bem estar social - alguns dos objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito.
Aliás, pertine colacionar da opinião autorizada do professor Nelson Nery Júnior, um dos autores do anteprojeto que deu origem ao CDC, a seguir transcrita: "Muito embora nosso Código Civil não contenha preceito expresso no sentido de que as relações jurídicas devam ser realizadas com base na boa-fé, como ocorre no direito alemão (§ 242 do BGB Leistung nach Treu und Glauben "Prestação segundo a boa-fé"), essa circunstância decorre dos princípios gerais do direito e a exigência de as partes terem de comportar-se segundo a boa-fé tem sido proclamada, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência. O comportamento das partes de acordo com a boa-fé tem como conseqüência a possibilidade de revisão do contrato celebrado entre elas, pela incidência da cláusula rebus sic stantibus, a possibilidade de argüir-se a exceptio doli, a proteção contra as cláusulas abusivas enunciadas no art. 51 do CDC, entre outras aplicações do princípio. No sistema brasileiro das relações de consumo houve opção explicita do legislador ao primado da boa-fé. Com menção expressa do art. 4º, n.º III, do CDC à "boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores", como princípio básico das relações de consumo além da proibição das cláusulas que sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade (art. 51, n.º IV) o microssistema do direito das relações de consumo está informado pelo princípio geral da boa-fé, que deve reger toda e qualquer espécie de relação de consumo, de contrato de consumo, etc.". (Código de Defesa do Consumidor Comentado, obra coletiva, 5ª edição, Editora Forense Universitária, pág. 351).
A jurisprudência, inclusive do Colendo STJ, ampara o entendimento da existência de relação de consumo nesses casos:
"Os bancos, como prestadores de serviços especialmente contemplados no art. 3º, § 2º, estão submetidos às disposições do Código de Defesa do Consumidor. A circunstância de o usuário dispor do bem recebido através de operação bancária, transferindo-o a terceiros, em pagamento de outros bens ou serviços, não o descaracteriza como consumidor final dos serviços prestados pelo banco." (STJ, 4ª T., REsp. 57.974-RS, v.u., rel. Min. Ministro Ruy Rosado De Aguiar, DJ de 29.05.1995, p. 15.524).
Ao juiz, incumbe o papel de, verificando a existência de situações que tornem desiguais as prestações entre as partes, promover a revisão ou modificação do contrato (art. 6º, inciso V, do CDC), aplicando o princípio da boa-fé objetiva em detrimento do dogma pacta sunt servanda, sempre em busca da justiça contratual.
Nelson Nery Júnior arremata: "No regime jurídico do CDC as cláusulas abusivas são nulas de pleno direito porque contrariam a ordem pública de proteção ao consumidor. Isso quer dizer que as nulidades podem ser reconhecidas a qualquer tempo e grau de jurisdição, devendo o juiz ou tribunal pronunciá-las, porque normas de ordem pública insuscetíveis de preclusão" (obra citada, pág. 367).
In casu, o contrato de abertura de crédito em conta corrente denominado LIS Portfolio celebrado entre as partes, prevê a incidência de juros por 30 dias corridos na ordem de 11,50% (fls. 07), convencionando, em contrato inquestionavelmente de adesão, juros que extrapolam os limites constitucionais, tornando desiguais as prestações dos contratantes e contrariando o princípio da boa-fé contratual, onde apenas o mutuante obtém vantagem, em detrimento do inevitável sacrifício, da espoliação do mutuário, de sorte a ensejar a revisão da cláusula contratual atinente aos juros. É interessante observar que, em determinado período, o mutuante aplicou os juros constitucionalmente previstos, além da correção monetária pelo IGPM (fls. 10), como se quisesse provar que durante todo o contrato assim procedeu, o que não é vero.
Por outro lado, a revisão há de ser parcial, ou seja, durante o período em que o débito cobrado foi construído, não podendo retroagir para alcançar período pretérito, porquanto trata-se de embargos à ação monitória e não de ação de revisão de contrato, onde se poderia revisar as cláusulas abusivas durante a vigência de todo o contrato, inclusive com eventual restituição de quantia paga indevidamente, desde que, por erro, o tomador tenha realizado o pagamento (art. 965 do Código Civil).
A revisão contratual, com a devolução da quantia paga indevidamente pelo mutuário, é admitida pela jurisprudência, consoante evidencia o seguinte aresto:
"Esta Câmara vem decidindo reiteradamente que, havendo sucessão de contratos bancários, é possível a revisão de todos, com base no Código de Defesa do Consumidor, que abrange as atividades bancárias e financeiras, por força do art. 3º, § 2º. De mais a mais, mesmo que findo esteja o contrato, é viável o pleito de devolução de eventuais importâncias exigidas indevidamente, com base em cláusulas ilegais ou abusivas. Está presente, ainda, a regra do art. 1.007, do Código Civil, segundo a qual "não se podem validar por novação obrigações nulas ou extintas". As renovações de contrato, muitas vezes com confissão de dívida ou novação, representam mera continuidade da avença inicial. Por isso, todas as operações efetuadas sem solução de continuidade, estão sujeitas ao reexame para a correção de eventuais abusos ou ilegalidades". (APELAÇÃO CÍVEL N° 197110562 - QUARTA CÂMARA CÍVEL RELATOR ULDERICO CECATTO - SÃO LUIZ GONZAGA - TARGS 1997).
Contudo, como apontado acima, a revisão há de ocorrer parcialmente, porquanto os embargos à ação monitória têm a natureza jurídica de contestação, em virtude de consistir o modo pelo qual o devedor resiste ao pedido monitório, não alcançando período diverso daquele no qual a dívida restou construída, ante a ausência de reconvenção.
Destarte, no caso em apreço, a revisão terá como termo inicial a data de 20/10/98, a partir da qual a conta corrente do requerido não mais apresentou saldo positivo (fls. 13), e, obviamente, iniciou a construção da dívida cobrada pelo requerente, sendo o período anterior intangível, ao menos pela sentença prolatada nesta ação.
Releva ressaltar, por derradeiro, que as tarifas bancárias representam a contraprestação do correntista no contrato de depósito, sendo, portanto, devidas.
Ante o exposto, declaro constituído, de pleno direito, o título executivo judicial, no valor no valor dos saques e lançamentos de débito de tarifas bancárias na conta de depósitos do requerido a partir de 20/10/98, a ser apurado por meros cálculos aritméticos, nos quais os juros remuneratórios deverão respeitar o limite constitucional, ou seja, 12% a. a., acrescidos de correção monetária pelo IPC, vedada a capitalização, exceto a anual, com fulcro nos dispositivos legais supra mencionados. Em razão da sucumbência recíproca, condeno cada parte no pagamento de metade das custas processuais e honorários advocatícios de seu patrono, com fundamento no art. 21 do CPC.
P.R.I. Após o trânsito em julgado, remeta-se os autos ao contador para a apuração do débito e, em seguida, cite-se o devedor para, no prazo de 24 horas, pagar o débito ou nomear bens à penhora, sob pena de penhora de quantos bens quantos bastem para a garantia da execução.
Itumbiara, 27 de março de 2.000.
Dr. ALTAIR GUERRA DA COSTA
Juiz de Direito