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SUS deve fazer transplante de medula

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Sentença em ação proposta com o fim de assegurar, às custas do Estado, o transplante de medula óssea em adolescente hipossuficiente, a despeito da Portaria nº 1.217/99 do Ministério da Saúde.

Autos nº 2000.61.04.000855-2

2ª Vara Justiça Federal Santos/SP.

Vistos.

Regularmente representado por seu pai Luis Antonio de Barros, GUSTAVO HENRIQUE DE BARROS ajuizou a presente em face de UNIÃO FEDERAL e de INSTITUTO NACIONAL SEGURIDADE SOCIAL- INSS, visando a condenação dos demandados a obrigação de fazer consistente na realização de todos os atos que se apresentem necessários para o transplante de medula óssea.

Em suma, o autor descreveu que é portador de leucemia mielóide crônica, doença que foi diagnosticada aos 22.10.1998 pelo Centro de Tratamento e Pesquisa do Hospital do Câncer, e que esse tipo de leucemia é considerada um câncer no sangue onde ocorre uma proliferação de células jovens dentro da medula óssea (tecido líquido), com o aumento do número de leucócitos (glóbulos brancos).

Afirmou, também, que a leucemia mielóide crônica acarreta inicialmente um aumento do baço e do fígado, e que com o transcorrer do quadro passa a haver febre habitual, hemorragias nasais, de pele e gengivais, ocasionando dores ósseas causadas pela pressão interna do osso, requerendo o tratamento a imediata prescrição de quimioterapia e a aplicação da droga Interferon.

Prosseguindo, aduziu que o tratamento a base de drogas é apenas paliativo, só podendo ser revertido o quadro através do transplante de medula, o que somente é feito no Brasil pelo Hospital de Clínicas da Universidade do Paraná, que embora conveniado ao SUS, não realiza esse procedimento, orçado em duzentos mil reais, pois que não é coberto pelo INSS.

Argumentou, ademais, que seus pais são carentes - sua mãe trabalha como margarida (gari), e seu pai encontra-se desempregado -, não possuindo condições de suportar o custo da cirurgia. Invocando as regras inscritas nos arts. 5º, caput, 196, 203 e 207, todos da Constituição Federal, pugnou pela procedência do pedido a fim de que os réus sejam condenados a:

"...obrigações de fazer com o fim de proceder todos os atos que se façam necessários para o transplante de medula óssea do requerente, inclusive remédios, arcando os requerentes com todas as despesas de qualquer natureza pertinentes ao tratamento do requerido." (fl. 10).

Afirmando a presença dos pressupostos autorizadores estampados no art. 273 do Código de Processo Civil, rogou pela antecipação dos efeitos da tutela, pleito esse que foi acolhido pela r. decisão proferida às fls. 29/32, que foi desafiada por recurso de agravo interposto perante o Egrégio Tribunal Regional Federal da 3ª Região (fls. 54/62).

Citada, a União Federal apresentou resposta às fls. 77/87, suscitando preliminar de falta de interesse processual, em virtude da Portaria nº 1.217/99 do Ministério da Saúde ter regulamentado todo o procedimento para o transplante de medula óssea no país. No mérito, argumentou a improcedência do pedido, ao fundamento de inaplicabilidade à espécie das normas constitucionais invocadas.

Indeferido efeito suspensivo no recurso de agravo (fl. 97), instado, o Ministério Público Federal opinou pela procedência do postulado (fls. 167/173). Regularmente citado, o INSS ofertou contestação, argüindo sua ilegitimidade passiva, em face da Portaria nº 1.217/MS, e a inviabilidade de acolhimento do pleiteado na inicial. Impugnadas as contestações (fls. 206/210), o Órgão Ministerial ratificou o parecer de fls. 167/173.

É o relatório.


Merece ser amparada a preliminar de ilegitimidade passiva suscitada pelo INSS na contestação apresentada, visto competir à União, através do Sistema Único de Saúde - SUS, órgão vinculado ao Ministério da Saúde, o desenvolvimento e a prática de ações e serviços públicos de saúde.

Segundo a abalizada lição de José Afonso da Silva:

"...o sistema único de saúde, integrado de uma rede regionalizada e hierarquizada de ações e serviços de saúde, constitui o meio pelo qual o Poder Público cumpre seu dever na relação jurídica de saúde que tem no pólo ativo qualquer pessoa e a comunidade, já que o direito à promoção e à proteção da saúde é também um direito coletivo." (Curso de Direito Constitucional Positivo, RT, 5ª edição, pág. 697).

No exercício de suas atribuições, o Ministério da Saúde editou a Portaria nº 1.217, de 13 de outubro de 1.999, através da qual foi regulamentado o procedimento para o transplante de medula óssea no país, emergindo patente, assim, a ilegitimidade do INSS para figurar no pólo passivo da presente relação processual.

Acolho, assim, a preliminar arguida pelo Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, extinguindo o feito, com relação a tal pessoa jurídica, na forma do art. 267, inciso VI, do Código de Processo Civil, procedendo o exame da questão posta tão somente com relação ao pleito deduzido em desfavor da União Federal.

De todo impossibilitado o acolhimento da preliminar de falta de interesse processual aventada pela União, em face da caracterizada ineficácia do procedimento a ser observado para transplante de medula óssea, estabelecido através da Portaria nº 1.217/99 do Ministério da Saúde, para a solução urgente que se faz necessária na espécie.

A urgência do transplante necessário a manutenção da vida do autor não foi em momento algum contrariada, me parecendo que o procedimento estabelecido pela multicitada Portaria Ministerial para a realização do transplante, criou obstáculo ao alcance do desiderato, somente suplantável através da utilização da via judicial.

Configuradas, portanto, a necessidade e a utilidade da tutela jurisdicional perseguida, não apresentando-se caracterizada, assim, a falta de interesse de agir, não se podendo falar, também, em impossibilidade jurídica do pedido, visto o postulado não ser expressamente proibido pelo ordenamento jurídico.

Rejeito, pois, a preliminar.

Perquirindo o mérito, destaco que dispõem os arts. 23, inciso II, 194 e 196, da Lei Fundamental:

"art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

.......................................................

II- cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

.......................................................

art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinados a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.

.......................................................

art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação."

Através da presente, o adolescente GUSTAVO HENRIQUE DE BARROS, que conta com quatorze anos de idade, filho de pai desempregado e de mãe que exerce a atividade de margarida (gari), busca assegurar seu direito de viver com saúde, pois, por infortúnio do destino, é portador de leucemia mielóide crônica.

De acordo com os argumentos expendidos na inicial, bem como os documentos que a acompanham, que não foram contrastados, a leucemia que acomete o autor só pode ser combatida de forma eficaz com a realização de transplante de medula óssea, o que no Brasil somente é feito pela Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Paraná.

O tempo urge para o autor. De pronto se submete a cirurgia para o transplante, ou, caso contrário, só lhe resta esperar o transcurso de três a seis meses para morrer. O direito do autor à saúde é previsto nos comandos constitucionais antes transcritos (arts. 23, inciso II, 194 e 196, da Lei Basilar).

Os dispositivos constitucionais citados dão efetividade ao direito à vida, protegido pelo art. 5º, caput, da Constituição, e pelo artigo III, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, que não podem ter seu alcance diminuído ou obstado por entraves estabelecidos em procedimentos previstos em ato administrativo.

A proteção à vida do autor, consagrada pelo Direito das Gentes e pela Constituição Federal, deve ser assegurado pelo Poder Público, de acordo com as disposições contidas nos arts. 194 e 196 da Lei Maior, bem como em face do art. 227 da Constituição, que expressamente prevê o dever do Estado assegurar ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida e à saúde.

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O art. 11 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), assegura atendimento médico à criança e ao adolescente, através do Sistema Único de Saúde, garantindo o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde, preconizando o § 2º do mesmo dispositivo legal que:

"§ 2º. Incumbe ao Poder Público fornecer gratuitamente àqueles que necessitarem os medicamentos, próteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação."

A pretensão deduzida possui suporte nos comandos constitucionais citados, em norma do Direito das Gentes e em dispositivo legal, me parecendo insuscetível de amparo a alegação relativa à natureza de normas programáticas dos preceitos constitucionais que amparam o pleito em apreço, vez que consoante ensinamento de José Afonso da Silva:

"......................................................

Em certos casos as normas programáticas produzem direito subjetivo, considerado este como a possibilidade de exigir ora uma abstenção, ora uma prestação, ora um agir que crie, modifique ou extinga relações jurídicas.

........................................................

Essa situação de dever importa o surgimento de uma situação jurídica contraposta, que confere a seu beneficiário uma possibilidade de invalidação dos atos, decorrentes daquelas atividades, quando contrários aos ditames das normas programáticas.

Se não tem o direito subjetivo no seu aspecto positivo, como poder de exigir um prestação fundada numa norma constitucional programática, surge ele, porém, em seu aspecto negativo, como possibilidade de exigir que o Poder Público não pratique atos que a contravenham." (Aplicabilidade das Normas constitucionais, Malheiros, 3ª edição, 1.998, pág. 177).

Pelos elementos de convicção trazidos aos autos, me parecendo incontestável a necessidade da submissão do autor a tratamento cirúrgico para transplante de medula óssea, sob pena de perder a vida, e, por outro lado, bem demonstrada a impossibilidade dele arcar com os elevados custos da cirurgia e do tratamento, não havendo dúvida quanto o dever do Estado de prestar assistência à saúde, tenho como impositivo o acolhimento do pleito deduzido na inicial.

Dispositivo.

Ante o exposto, com base no art. 267, inciso I, do Código de Processo Civil, julgo extinto o presente processo, sem julgamento de mérito, com relação ao Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, e com apoio no art. 269, inciso I, do Código de Processo Civil, julgo procedente o presente pedido formulado por GUSTAVO HENRIQUE DE BARROS para condenar a UNIÃO FEDERAL a proceder todos os atos necessários para o transplante de medula óssea, devendo satisfazer todas as despesas de qualquer natureza pertinentes à cirurgia para transplante de medula óssea e posterior tratamento, como requerido na inicial.

Condeno o autor ao pagamento de honorários advocatícios em favor do INSS, que fixo em dez por cento sobre o valor atribuído à causa, devendo a execução ficar suspensa na forma do art. 12 da Lei nº 1.060/50, posto ser beneficiário da Assistência Judiciária.

Fica a União Federal condenada ao pagamento de honorários advocatícios em favor do autor que, na forma do art. 20, § 4º, do Código de Processo Civil, arbitro em dez por cento sobre o valor atribuído à causa.

Custas, na forma da lei.

Posto remanescerem presentes os pressupostos do art. 273 do Código de Processo Civil, pelas razões antes expostas, verificando o dever do Estado de prestar assistência à saúde do autor, e o perigo de perecimento de uma vida, em razão da aplicabilidade à espécie do disposto no art. 475, inciso III, do diploma legal antes mencionado, ratifico os provimentos de fls. 29/32 e 175 e verso, concedendo a antecipação dos efeitos da tutela na forma já estabelecida às fls. 29/32 e 175 e verso.

P.R.I.C.

Sentença sujeita ao reexame necessário.

Encaminhe-se cópia desta ao MD. Desembragador Federal relator do recurso de agravo nº 2000.03.00.011244-4.

Santos/SP, 23 de outubro de 2.000.

Roberto Lemos dos Santos Filho

Juiz Federal Substituto
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Sobre o autor
Roberto Lemos dos Santos Filho

Juiz federal em Bauru (SP). Mestre em Direito pela Universidade Católica de Santos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS FILHO, Roberto Lemos. SUS deve fazer transplante de medula. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/16384. Acesso em: 26 abr. 2024.

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