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Habitação: ilegalidade de índices e valores cobrados pelo agente financiador

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02/02/2006 às 00:00
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6. Das cláusulas manifestamente abusivas não alegadas pelo autor

            Dispõe o artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor* serem nulas de pleno direito as cláusulas abusivas, assim a legislação consumerista atribui ao Juiz o encargo de desconstituir de ofício a nulidade das cláusulas prejudiciais, independentemente de requerimento da parte, ou na brilhante colocação de NERY JÚNIOR:

            "Sendo matéria de ordem pública (art. 1º, CDC), a nulidade de pleno direito das cláusulas abusivas nos contratos de consumo não é atingida pela preclusão, de modo que pode ser alegada no processo a qualquer tempo e grau de jurisdição, impondo-se ao juiz o dever de pronunciá-la de ofício." [33]

            Deste modo, analogicamente, se o Juiz pode o mais, também pode o menos que é a adequação da cláusula relativamente abusiva, pois a lei de defesa do consumidor também assegura a conservação do contrato, segundo se verifica do inciso V do artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor.

            No mesmo vértice o §2º do artigo 51 do citado Código assevera a manutenção do contrato e das estipulações válidas, aptas a serem adequadas ao ordenamento legal, eliminando-se apenas as prestações desproporcionais.

            Neste sentido, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:

            Ementa: AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. REVISÃO CLÁUSULAS CONTRATUAIS DE OFÍCIO. POSSIBILIDADE. COMISSÃO DE PERMANÊNCIA. INCIDÊNCIA. CARACTERIZADA A MORA DO DEVEDOR NÃO SUBSISTE A TUTELA ANTECIPADA PARA MANUTENÇÃO DA POSSE DO BEM NAS MÃOS DO RECORRIDO. 1. A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de admitir a revisão ampla dos contratos e a conseqüente modificação das cláusulas abusivas, à luz do Código de Defesa do Consumidor. 2. A comissão de permanência é devida para o período de inadimplência, não podendo ser cumulada com correção monetária (súmula 30/STJ) nem com juros remuneratórios, calculada pela taxa média dos juros de mercado, apurada pelo Banco Central do Brasil, tendo como limite máximo a taxa do contrato (súmula 294/STJ). 3. Reconhecida a mora solvendi não pode subsistir a tutela antecipada deferida para manter a posse do bem nas mãos do devedor. 4. Agravo regimental conhecido e parcialmente provido.(AgRg no REsp 718744 / RS ; AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL - 2005/0011031-9 Relator(a) Ministro FERNANDO GONÇALVES (1107) Órgão Julgador T4 - QUARTA TURMA Data do Julgamento 05/05/2005 Data da Publicação/Fonte DJ 23.05.2005 p. 305)

            Assim, a nulidade deve ser vista como medida extrema para o caso de impossibilidade de manutenção da estipulação firmada pela excessiva onerosidade; ao contrário, se possível o reajuste dos dispositivos contratuais ao que dispõe a lei, assim deve proceder o julgador.

            O que não se pode permitir no Poder Judiciário é a infecção pela síndrome de Pilatos, muito bem relatada pelo escritor, psiquiatra, psicoterapeuta e cientista AUGUSTO CURY:

            "A cúpula judaica ameaçou denunciar Pilatos ao governo de Roma se ele não condenasse Cristo. Pilatos tinha um grande poder conferido pelo Império Romano:o de vida e de morte. Todavia, era um político fraco, omisso e dissimulado.Ao inquirir Cristo, Pilatos não via injustiça nele. Por isso, desejava soltá-lo, mas ele era frágil demais para suportar o ônus político dessa decisão. Assim, cedeu à pressão dos judeus. Entretanto, para mostrar que ainda detinha o poder político, fez uma cena teatral superficial: lavou as suas mãos. Pilatos se escondeu atrás do lavar das mãos. Ele não apenas cometeu um crime contra Cristo, mas também contra si mesmo, contra a fidelidade à sua própria consciência. Aquele que é infiel à sua própria consciência tem uma dívida impagável consigo mesmo.

            A síndrome de Pilatos tem varrido os séculos e contaminado alguns políticos. É muito mais fácil se esconder atrás de um discurso eloqüente do que assumir com honestidade seus atos e suas responsabilidades sociais. A síndrome de Pilatos se caracteriza pela omissão, dissimulação, negação do direito, da dor e da história do outro. (...)" [34]

            Citado pensamento cai como luva aos dias atuais, face a notória crise política vivida pelo país; todavia, se os políticos a quem compete a defesa dos direitos da nação lavam as mãos, descurando-se de que são, ou pelo menos, deveriam ser servidores do bem comum, da coletividade e, como dito, da nação, ao Judiciário cabe a atitude de efetivar os direitos reclamados pela sociedade como meio de injetar ânimo no tão massacrado povo brasileiro, fortalecendo-o com o asseguramento da vida digna.

            Assim, vejamos as claúsulas que reconheço como abusivas.

            6.1. Do seguro

            Segundo se verifica dos contratos acostados aos autos, há estipulação acerca do seguro habitacional, nos seguintes termos:

            Modelo de Contrato de fls. 29-33

            Cláusula Oitava

            Cláusula oitava:Seguros – Durante a vigência do contrato de financiamento são obrigatórios os seguros existentes ou que venham a ser adotados pelo SFH, os quais serão processados por intermédio do PREVISUL obrigando-se o DEVEDOR (A-ES) a pagar os respectivos prêmios. No caso de sinistro, o PREVISUL receberá da Seguradora a importância do seguro, aplicando-o na solução ou amortização da dívida e colocando o saldo, se houver, a disposição do(s) DEVEDOR(A-ES).

            Modelo de Contrato de fls. 213-226

            Cláusula Vigésima Terceira

            Cláusula vigésima terceira: Seguros – Para todos os efeitos de direito, fica fazendo parte integrante deste contrato a Ficha de Informação do Financiado (FIF) emitida em conformidade com as Normas e Rotinas de Apólice de Seguro Habitacional em vigor

            Modelo de Contrato de fls. 267-286

            Cláusula Vigésima Segunda

            Cláusula vigésima segunda: DEVEDOR (ES) declara (m)-se ciente (s) das condições previstas para a operação ora contratada na Apólice de Seguro Habitacional para o Sistema Financeiro da Habitação, em especial as a seguir consignadas (...)

            Parágrafo Sexto: O(s) DEVEDOR (ES) compromete(m)-se ainda pelo presente a indenizar o CREDOR HIPOTECÁRIO de todas as despesas feitas com a realização dos seguros e suas renovações, que porventura se fizerem necessárias em conformidade com a legislação pertinente, as quais lhe(s) serão debitadas, devendo ser pagas juntamente com a primeira prestação da dívida que se vencer, podendo o CREDOR HIPOTECÁRIO, se assim entender, dividir o pagamento correspondente em prestações mensais, a seu critério. Têm ciência, outrossim, de que os prêmios poderão ser majorados em conformidade com o que estipularem o SFH, e a Seguradora, comprometendo-se a paga-las, nas condições em que forem fixadas.

            Modelo de Contrato de fls. 382-393 e 519-526

            Cláusula Oitava

            Cláusula oitava: Seguros – Durante a vigência do contrato de finAciamento são obrigatórios os seguros existentes ou que venham a ser adotados pelo SFH, os quais serão processados por intermédio do PREVISUL, obrigando-se o (a-s) DEVEDOR (A-ES) a pagar os respectivos prêmios. No caso de sinistro, o PREVISUL receberá da Seguradora a importância do seguro, aplicando-a na solução ou amortização da dívida e colocando o saldo, se houver, a disposição do (a-s) DEVEDOR (A-ES).

            Contudo, constata-se dos boletos de pagamento das prestações acostados aos autos às fls. 461; 517; 550 e 662, que não há especificação dos valores cobrados dos mutuários-consumidores a título de seguros avençados.

            O Código de Defesa do Consumidor nos artigos 6º, III e 8º, atribui ao consumidor o direito fundamental à informação adequada sobre os produtos adquiridos, bem como o §1º do artigo 55 atribui competência concorrente entre as pessoas jurídicas de direito público para fiscalização e controle da "produção, industrialização, distribuição, a publicidade de produtos e serviços e o mercado de consumo, no interesse da preservação da vida, da saúde, da segurança, da informação e do bem-estar do consumidor, baixando as normas que se fizerem necessárias."

            Citados dispositivos complementam o artigo 4º, caput, da lei consumerista que positivisa o princípio da transparência nas relações de consumo, que nas palavras de RIZZATO NUNES, " se traduz na obrigação do fornecedor de dar ao consumidor a oportunidade de conhecer os produtos e serviços que são oferecidos". [35]

            Como já dito, as normas do Código de Defesa do Consumidor são de ordem pública; portanto revelam caráter de interesse público indisponível; sob esse prisma é manifesta a preocupação do legislador de garantia do direito à informação, de modo que todos os dados sobre os produtos e/ou serviços consistentes na discriminação de suas características, qualidades, preços devem ser claros e precisos, não se admitindo a ocultação,como está sendo praticado pela parte ré.

            Paralelamente ao direito do consumidor de ser informado a lei consumerista impõe rigidamente ao fornecedor o dever de informar adequadamente, sendo-lhe vedado ocultar descrição específica do preço cobrado, pois este é elemento inerente ao produto, in casu, o seguro.

            Pelo exposto, conclui-se pela obrigatoriedade da parte ré especificar em cada boleto bancário, os valores acessórios cobrados pelo seguro contratado.

            6.2. Da multa e demais encargos de cobrança

            Vejamos as previsões contratuais quanto à cobrança da multa e demais encargos:

            Modelo de Contrato de fls. 29-33

            Cláusula trigésima

            Cláusula trigésima:multa contratual – A multa contratual a que fica sujeito o DEVEDOR, no caso de cobrança judicial é 10% (dez por cento) sobre o valor total da dívida, além dos honorários advogatícios e demais, cominações legais.

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            Modelo de Contrato de fls. 267-286

            Cláusula vigésima sétima

            Cláusula vigésima sétima: Em caso de cobrança da dívida, através de medida judicial ou extrajudicial, segundo os ritos admitidos pelo SFH, e da adoção de qualquer processo judicial contra o(s) DEVEDOR (ES) em decorrência deste contrato, a dívida no seu valor total, abrangendo todos os seus encargos legais e contratuais, juros, taxas, reajuste monetário e outras despesas, será acrescida da multa contratual equivalente a 10% (dez por cento) sobre o valor global, além dos honorários advogatícios desde já estipulados em 20% (vinte por cento) da importância devida, custos e demais despesas contratuais e processuais

            Modelo de Contrato de fls. 382-393

            Cláusula trigésima terceira

            Cláusula trigésima terceira: multa contratual – A multa contratual a que fica(m) sujeito(a-s) o (a-s) DEVEDOR (A-ES) no caso de cobrança judicial, e de 10% (dez por cento) sobre o total da dívida, além dos honorários advocatícios e demais cominações legais.

            As Cláusulas que prevêem multa contratual de dez por cento (10%) é ilegal mesmo para os contratos firmados antes do advento da Lei n. 9.298, de 1º de agosto de 1996 que alterou o Código de Defesa do Consumidor. Isto porque as normas consumeristas decorrem imediatamente de mandamento da Constituição Federal de 1988, portanto de ordem pública e aplicação imediata para alcançar inclusive contratos firmados antes do advento do Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/90) e da lei inovadora de 1996, e, que ainda vigem, ressalvados apenas os pactos extintos.

            É certo que não seria razoável que consumidores na mesma situação prejudicial recebam tratamento diferenciado pela data de assinatura do contrato, como bem menciona BOBBIO:

            "A lei deve ser igual para todos, e significa que a lei deve ser imparcialmente aplicada, e deve ser imparcialmente aplicada porque apenas desse modo assegura igual tratamento dos iguais.(...) uma coisa é dizer que "a lei não é igual para todos" outra é dizer que "nem todos têm igual lei". [36] Para que a lei seja igual para todos o julgador deve aplicá-la segundo o ordenamento da imparcialidade e para que todos tenham igual lei é preciso que seja aplicada a já citada regra da justiça que ordena tratamento igual aos iguais visando garantir a igualdade de direitos.

            Em que pese a Súmula 285 do STJ dispor sobre a aplicação da multa moratória prevista no Código de Defesa do Consumidor somente aos contratos bancários posteriores à lei 9.298/96, não pode ser aplicada analogicamente, in casu, tendo em vista a homogeneidade das situações, devendo ser aplicado o princípio da isonomia dos contratos e o expresso reconhecimento legal de vulnerabilidade do consumidor face a repisada função assistencial dos contratos firmados.

            Afinal o Código de Defesa do Consumidor, conforme já explicitado na parte histórica da sentença, veio atender anseios dos consumidores prejudicados pela produção em massa efetivada unilateralmente pelos fornecedores, passando a reconhecidamente influenciar nas relações essencialmente particulares, principalmente no direito civil contratual, a par do disposto no art. 421 da citada norma material que dispõe sobre o exercício da liberdade de contratar em razão e nos limites da função social do contrato.

            Ademais, igualmente já dito, no presente caso, há que se observar a função social da moradia, direito garantido constitucionalmente, atinente a dignidade da pessoa humana.Assim, em que pese haverem contratos firmados antes da atual redação do Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90), trata-se este Código de legislação que estipula normas de ordem pública, cuja promulgação é conseqüência do surgimento de situação concreta de desigualdade que necessitava de regulamentação; assim, referido diploma legal destina-se exatamente a corrigir o desequilíbrio inegável que havia entre as partes nas relações de consumo, não sendo razoável dar-lhe aplicação apenas nos contratos firmados a partir de sua vigência.

            O Código de Defesa do Consumidor foi instituído justamente com a finalidade de imprimir igualdade jurídica onde há desigualdade econômica.

            Assim, a lei 9.298/96 ao fixar o percentual da multa moratória para 2% (dois por cento) reconheceu como onerosidade abusiva para o consumidor a estipulação contratual em patamares superiores, como até então eram praticados, tornando o contrato excessivo para o consumidor, e, isto por si só autoriza a revisão dos pactos firmados, inclusive anteriormente à legislação consumerista, com fundamento no artigo 6º, inciso V do Código de Defesa do Consumidor*, e princípios da boa-fé e equilíbrio (art. 4º, III, CDC) e vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I, CDC)*.

            O sistema jurisdicional coletivo confere a possibilidade de revisão e adequação do contrato, estabelecendo o equilíbrio nas relações negociais existentes entre as partes, dentro daqueles parâmetros que confere o Estado de Direito e a função precípua do Poder Judiciário.

            Não há falar, portanto, que as disposições inseridas nas cláusulas contratuais dos contratos firmados pelo requerido devem prevalecer da forma como foram pactuadas, por haver contratos em discussão anteriores à redução legal do percentual legal de multa, pois tratam-se de contratos antigos que devem ser adaptados à luz do Código de Defesa do Consumidor, especificamente, na cláusula em comento, quanto a nova redação do artigo 52, § 1°, do Código de Defesa do Consumidor, emprestada ao dispositivo pela Lei n° 9.298/96, de 1° de agosto de 1.996.

            A permissão legal da retroatividade da lei é reconhecida expressamente pelo ordenamento jurídico atual como norma de ordem pública material prevista no parágrafo único do artigo 2.035 do Código Civil, verbis:

            Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.

            Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.

            Firmado, portanto, o contrato antes da vigência do novo percentual legal, este o máximo a incidir na avença (2%) em decorrência dos efeitos produzidos pela lei de ordem pública, nos termos do art. 1º da Lei 8.078/90, afastado o que lhe superar.

            Neste sentido, vale transcrever o brilhante voto proferido pelo eminente relator DES. JORGE EUSTÁCIO DA SILVA FRIAS em julgamento de recurso de apelação:

            Ementa: AÇÃO REVISIONAL - COMPRA E VENDA COM FINANCIAMENTO PELO SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO - INSTITUIÇÃO FINANCEIRA PRIVADA INTEGRANTE DO SFH - APLICAÇÃO DO REGIME ESPECIAL DO SFH - CONTRATO CELEBRADO ANTES DA VIGÊNCIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - REVISÃO DE CLÁUSULAS INVÁLIDAS, NO ENTANTO, POSSÍVEL, SEJA NO SISTEMA DO CDC, SEJA À LUZ DO CCB - TAXA REFERENCIAL COMO ÍNDICE DE CORREÇÃO MONETÁRIA: INCONSTITUCIONALIDADE JÁ DECLARADA PELO STF - SUBSTITUIÇÃO POR OUTRO ÍNDICE QUE APENAS ATUALIZE O PODER DE COMPRA DO DINHEIRO - AMORTIZAÇÃO MEDIANTE TABELA PRICE - OFENSA AO ART. 6º, C, DA LEI 4.380/64 - DISPOSIÇÃO QUE ONERA EXCESSIVAMENTE O CONTRATO PARA O DEVEDOR - SEGURO CONTRA DANOS - DUPLICIDADE - PREVALÊNCIA DA CONTRATAÇÃO MAIS ANTIGA - HONORÁRIOS DE ADVOGADO: ARBITRAMENTO COM BASE NO § 4º, ART. 20, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - VALOR RAZOÁVEL - RECURSOS A QUE SE NEGA PROVIMENTO. (...) a faculdade que têm os tribunais de suprimir cláusulas contratuais contrárias ao direito vigente não surgiu com a Lei 8.078/90 (CDC). Tal possibilidade é inerente ao sistema de nulidades que faz parte das normas de Direito Privado desde épocas imemoriais. Ainda que assim não fosse, verifica-se que o Código de Defesa do Consumidor estipula normas de ordem pública, cuja promulgação é conseqüência de uma situação fática que necessitava de regulamentação. Referido diploma destinava-se exatamente a corrigir o desequilíbrio inegável que havia entre as partes nas relações de consumo, não sendo razoável dar-lhe aplicação apenas nos contratos firmados a partir de sua vigência. Isto, que alguns chamam indevidamente de "retroatividade", tem ocorrido sempre que se revele de caráter público a lei cujos valores ela protege. É o exemplo da Lei n.º 8.009/90, que regulamentou a impenhorabilidade do bem de família, cujas regras passaram a ser aplicadas imediatamente, mesmo aos contratos firmados anteriormente à sua promulgação. É do Superior Tribunal de Justiça a seguinte decisão. Veja-se: EXECUÇÃO. IMOVEL RESIDENCIAL. PENHORA EFETIVADA ANTES DA EDIÇÃO DA LEI N. 8009, DE 29.03.90.Não sendo suscetível de operar-se a expropriação do bem para pagamento do credor (art. 1º da Lei n. 8009, de 29.03.90), insubsistente torna-se a penhora, mesmo realizada antes da vigência da citada lei.Recurso Especial não conhecido. O mesmo se passa na aplicação do Código de Defesa do Consumidor às relações de consumo: surgiu ele para resolver relações tensas que eram de interesse público resolver, de modo que se aplica, por seu caráter de ordem pública, a todas as relações em curso.(...) Não há falar, portanto, que as disposições inseridas nas cláusulas contratuais devem prevalecer da forma como foram pactuadas, se confirmadas as ilegalidades reconhecidas na sentença. Aplicado o Código de Defesa do Consumidor ou o Código Civil, a cláusula nula não poderá prevalecer.(...) Não é interessante para nenhuma das partes, tampouco para a sociedade, que haja desequilíbrio contratual e imposição de cláusulas excessivamente onerosas para o mutuário. (DJ:10.2.2004 - Primeira Turma Cível - Apelação Cível - Ordinário - N. 1000.075446-7/0000-00 - Campo Grande. Relator: Des. Jorge Eustácio da Silva Frias - Publicação: 19/02/2004 - Nº Diário: 749)

            Deste modo, tanto aos contratos celebrados antes do Código de Defesa do Consumidor, como após a citada lei 9.298/96, que alterou o §1º do art. 52 do CDC*, é imperativo o limite de aplicação de multa de dois por cento (2%) sobre as parcelas vencidas e não pagas.

            Outro ponto de abusividade da referida cláusula oitava identifica-se na redação que estipula aplicação da multa sobre o valor do débito corrigido. Certo é que deve incidir somente sobre as parcelas devidas e não pagas, e não sobre o saldo devedor ou encargos e valores considerados excessivos cobrados pelos fornecedores. É que a redação tal como está lançada pode levar à interpretação de que a multa incide sobre o valor integral da dívida, devendo ser adequada de modo a constar claramente sua incidência tão somente sobre as parcelas vencidas e inadimplidas.

            Neste sentido o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:

            Ementa: Agravo. Recurso especial. Cédula rural. Correção monetária. IPC de março de 1990. Multa moratória. 1. A jurisprudência desta Corte é pacífica quanto à aplicação do BTN de 41,28%, no mês de março de 1990, nas cédulas rurais cujo débito esteja vinculado aos índices da caderneta de poupança. Não aplicável à espécie decisão pertinente ao reajuste das prestações e dos saldos devedores nos financiamentos imobiliários vinculados ao Sistema Financeiro de Habitação. 2. A multa moratória não é devida quando justificada a inadimplência do devedor na cobrança de encargos e valores excessivos pelo credor. Precedentes. 3. Agravo improvido. (Processo AgRg no RESP 216647 / RS ; AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 1999/0046391-9 Relator(a) Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO (1108) Órgão Julgador T3 - TERCEIRA TURMA Data do Julgamento 19/11/1999 Data da Publicação/Fonte DJ 07.02.2000 p. 160)

            Assim, se comprovada que a mora foi ocasionada pelo excesso praticado pelos fornecedores, deve ser descaracterizada e expurgada a aplicação da multa, pois não pode o consumidor como parte obrigada ser responsabilizado por situação a que não deu causa; do mesmo modo que não pode o fornecedor exigir adimplemento de contraprestação sem haver cumprido adequadamente sua prestação contratual.

            Concernente as estipulações de pagamento pelos mutuários dos encargos de cobrança, escancarado o caráter abusivo das cláusulas supramencionadas ao responsabilizar os compradores ao pagamento de despesas sob as expressões "demais encargos", "todos os seus encargos legais e contratuais" e "mais cominações legais", sem especificação de quais sejam, chocam-se com o princípio da informação que deve visar sempre a melhoria do mercado de consumo, nos termos do art. 4º, IV do Código de Defesa do Consumidor.

            As cláusulas devem ser extirpadas dos contratos nessas partes, pois não se pode admitir a exigência de valores sem menção expressa sobre o que se está cobrando; ou seja, segundo dispõe o art. 6º, II do Código de Defesa do Consumidor, deve haver informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com a especificação correta de preço.

            Assim se existem despesas cobráveis devem ser especificadas previamente, discriminando-as de antemão, sem estipulações genéricas como encargos, sob pena de violação do princípio da boa-fé, levantando a presunção de margem a cobranças arbitrárias e ilegais.

            Referente a previsão de cobrança de honorários advocatícios, em alguns casos com a especificação até mesmo do quantum da porcentagem da verba honorária, igualmente é abusiva, pois não cabe ao consumidor arcar com as despesas dos profissionais contratados pelo requerido para cobrança de dívidas, seja judicial ou extrajudicialmente. Esse encargo somente incidirá mediante determinação judicial. A exigência é potestativa e abusiva, devendo ser aniquilada dos contratos, nos termos do inciso V do artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor.*

            6.2. Da aquisição de mais de um imóvel pelo SFH

            Modelo de Contrato de fls. 29-33

            Cláusula trigésima segunda

            Cláusula trigésima segunda: da qualidade de proprietário – O (A-S) DEVEDOR (A-ES) está (ão) cientificado (s) de que, na hipótese de ser (em) proprietário (s), promitente (s) comprador (es), e/ou cessionário (s) de imóvel residencial, financiado nas condições do SFH, no mesmo município do imóvel objeto deste contrato, ou em qualquer município do território nacional, obriga (m)-se a vendê-lo no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, a contar desta data, sob pena do vencimento antecipado da dívida ora constituída, de execução do contrato e da perda dos direitos que lhe (s) estão assegurados pela Apólice de Seguro Habitacional.

            Modelo de Contrato de fls. 267-286

            Cláusula trigésima segunda – item 5

            5 - Declara (m) estar ciente(s) de que, na hipótese de ser (em) proprietário (s), promitente (s) comprador (es), e ou promitente cessionário (s) de imóvel residencial com financiamento nas condições estabelecidas pelo Sistema Financeiro de Habitação – SFH, obriga (m)-se a vendê-lo e ou cedê-lo no prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias, a contar desta data, sob pena do vencimento antecipado da dívida, ora constituída, de execução do contrato, da perda dos direitos que lhe (s) está (ão) assegurados pela Apólice de Seguro Habitacional e a não cobertura do Fundo de Compensação de Variações Salariais – FCVS. Declaração essa que faz (em) sob pena de responsabilidade civil e penal.

            Modelo de Contrato de fls. 382-393

            Cláusula trigésima primeira

            Cláusula trigésima primeira: vencimento antecipado da dívida e execução do contrato – A dívida será considerada antecipadamente vencida, independentemente de qualquer notificação judicial ou extrajudicial, ensejando a execução do contrato, para efeito de ser exigida de imediato na sua totalidade, com todos os seus acessórios, reajustados conforme Cláusula Vigésima Quinta, por qualquer dos motivos previstos em lei, e, ainda: I – Se o (a-s) devedor (a-es): (...)II - NA OCORRENCIA DE QUALQUER DAS SEGUINTES HIPOTESES:a) quando vier a ser provada a falsidade de qualquer declaração feita pelo (as) DEVEDOR (A-ES) na ficha socio-economica (entrevista- proposta), no processo de financiamento ou no contrato; (...) e) quando for verificado que, a qualquer tempo, o (a-s) DEVEDOR (A-ES), como solicitante (s) do financiamento para residência própria, era (m), na data do contrato, proprietário (a-s) de imóvel residencial financiado nas condições do SFH; (...)

            Referidas cláusulas perderam validade jurídica quando da revogação do §1º do artigo 9º da Lei 4.380/64*, que, quando vigente, permitia, ainda, a aquisição de mais de um imóvel pelo Sistema Financeiro de Habitação, com a ressalva apenas desde que não fossem localizados no mesmo Município.

            Deste modo é de pura arbitrariedade a estipulação contratual que imponha aos mutuários a venda no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, de outros imóveis que tenham sido adquiridos pelo SFH ou o vencimento antecipado da dívida. Ora, não é plausível que o Poder Público firme novo contrato de venda de imóvel a quem já é beneficiário de seus sistemas de promoção da moradia e depois imponha o desfazimento do imóvel pelo adquirente ou o pagamento antecipado de toda a dívida.

            Cabe sim, ao Poder Público, assegurar-se no momento da celebração do contrato de venda do imóvel pelo SFH de que não está beneficiando duplamente quem já é mutuário; ou melhor, que adote sempre a estipulação constante do contrato de fls. 213-226, que, como se verifica, o mutuário declara não ser proprietário, nem promitente comprador de outro imóvel residencial na cidade onde se situa o objeto do contrato (fl. 225), pois assim fica ressalvada a responsabilização civil e penal em caso de falsa declaração; todavia, não há a coercibilidade da alienação forçada ou vencimento antecipado da dívida.

            A estipulação de venda forçada dentro de prazo determinado é contrária ao ordenamento jurídico brasileiro, que por certo não admite a coerção à disponibilidade de bens; pelo contrário, a Constituição Federal defende o direito de propriedade como direito fundamental no art. 5º, caput e inciso XXII.*

            Neste sentido o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:

            Ementa: ADMINISTRATIVO. SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. MUTUÁRIO COM DOIS FINANCIAMENTOS. IMÓVEIS SITUADOS EM LOCALIDADES DIVERSAS. CONTRIBUIÇÕES REGULARES PARA O FCVS - FUNDO DE CORREÇÃO DE VARIAÇÕES SALARIAIS. POSSIBILIDADE DE COBERTURA. ART. 9º, § 1º, DA LEI 4.380/64. 1 - O art. 9º, § 1º, da Lei 4.380/64, expressamente rezava que "as pessoas que já foram proprietárias, promitentes compradoras ou cessionárias de imóvel residencial na mesma localidade... (vetado)... não poderão adquirir imóveis objeto de aplicação pelo sistema financeiro da habitação". 2 - Merece ser mantida a interpretação do aresto de segundo grau no sentido de que o dispositivo supratranscrito, quando vigente, permitia a aquisição de mais de um imóvel pelo SFH, desde que não localizados no mesmo Município. 3 - A questão habitacional é um problema que possui âmbito nacional, e suas causas devem ser buscadas e analisadas sob essa extensão, devendo ser assumida pelos vários segmentos da sociedade, em mútua colaboração na busca de soluções, eis que a habitação é elemento necessário da própria dignidade da pessoa humana, encontrando-se erigida em princípio fundamental de nossa República (art. 1º, III, da CF/88). 4 - Recursos especiais improvidos.(Processo REsp 213422 / BA ; RECURSO ESPECIAL 1999/0040697-4 Relator(a) Ministro JOSÉ DELGADO (1105) Órgão Julgador T1 - PRIMEIRA TURMA Data do Julgamento 19/08/1999 Data da Publicação/Fonte DJ 27.09.1999 p. 58)

            No mesmo vértice a cláusula de vencimento antecipado da dívida caracteriza-se como abusiva, porquanto cria vantagem exagerada em favor de um dos contratantes, ferindo o disposto nos arts. 51, IV, XI, e § 1º, e 54, § 2º, ambos do CDC*.

            No caso concreto, referida cláusula revela-se flagrantemente ilegal, devendo ser anulada por não encontrar respaldo no Código de Defesa do Consumidor.

            Portanto, referidas cláusulas devem ser extirpadas dos contratos.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

. Habitação: ilegalidade de índices e valores cobrados pelo agente financiador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 944, 2 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/16665. Acesso em: 25 abr. 2024.

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