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Dívida de alimentos e prisão civil

18/05/2022 às 16:10
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Decisão em que se concede ordem de habeas corpus para revogar o decreto de prisão civil do paciente.

Sumário: Consequência do princípio ético da paternidade responsável, é dever do pai sustentar sua prole. Trata-se de obrigação natural indeclinável, cujo descumprimento sujeitará o inadimplente ao rigor da lei — prisão civil — se não provar, “ad satiem”, que lho obstara a absoluta falta de recursos.


I. É dever legal do pai prover ao sustento, guarda e boa educação dos filhos menores, reza o art. 1.566, nº IV, do Código Civil. Somente a absoluta carência de meios poderá escusá-lo de seu estrito cumprimento (cf. art. 229 da Const. Fed.).

A necessidade do credor e a capacidade do devedor: eis a craveira para aferir a obrigação de prestar alimentos.

Corolário do princípio ético da paternidade responsável, de tanto relevo e alcance é o ônus alimentício, que o devedor inadimplente que não justifica a impossibilidade de fazê-lo sujeita-se, de plano, ao inexorável rigor da lei: prisão civil (art. 733, § 1º, do Cód. Proc. Civil).

Assenta em bom direito, e por isso está ao abrigo da crítica sensata, a decisão que decreta a prisão civil do executado, por não ter ocorrido, injustificadamente, às necessidades alimentares dos filhos menores.

A alegação de haver constituído nova família não serve de escusa ao alimentante para reclamar redução do encargo, se não comprovou a total impossibilidade de cumprir a obrigação natural indeclinável de prestar alimentos ao filho (art. 1.699 do Cód. Civil).

A dar-se o caso, porém, que mudança de fortuna já lhe não permita suprir os alimentos na totalidade de seu valor, fica ao prudente arbítrio do Juiz reduzi-lo, pela via revisional.

É fora de dúvida, entretanto, que constitui modalidade de constrangimento ilegal, reparável pelo remédio do “habeas corpus” a prisão civil do devedor que comprova não ter condições de prestar alimentos porque de todo o ponto falto de recursos e incapaz de atender às primeiras necessidades das pessoas de sua obrigação.

Com efeito, “Nemo tenetur ad impossibilia”. (Em vulgar: Ninguém está obrigado ao impossível),

Entende-se o mesmo daqueles casos em que a prisão civil do executado é decretada como meio coercitivo de cobrança de verba alimentícia pretérita, visto que já não tem esta caráter alimentar nem é urgente à conservação da vida do alimentando.

II. Essa é a doutrina comum acerca do instituto dos alimentos, apadroada por jurisprudência homogênea e torrencial de todos os Tribunais do País. Não discrepou dessa orientação o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, como o certifica o acórdão a seguir reproduzido:

PODER JUDICIÁRIO - Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - Quarta Câmara Seção de Direito Privado

“Habeas Corpus” nº 361.630-4/3-00 - Comarca: Cruzeiro

Impetrante: Dr. José Dulcídio de Oliveira; Paciente: MLS

Voto nº 5820

Relator

– Alimentos Dívida pretérita Inadimplência Prisão civil Inadmissibilidade Ordem de “habeas corpus” concedida.

– Constitui gênero de constrangimento ilegal, reparável pelo remédio do “habeas corpus”, a prisão civil como meio coercitivo de cobrança de verba alimentícia pretérita, visto que já não tem caráter alimentar nem é urgente à conservação da vida do alimentando (Lei nº 5.478/68).

1. O ilustre advogado Dr. José Dulcidio de Oliveira impetra a este Egrégio Tribunal ordem de “habeas corpus” em favor de MLS, a fim de que lhe seja conjurado iminente constrangimento ilegal da parte do MM. Juízo de Direito da 1a. Vara Cível da Comarca de Cruzeiro.

Afirma, na petição de fls. 2/4, que o paciente foi citado para pagar dívida de alimentos referentes aos meses de maio a outubro de 2003, no total de R$ 448,23.

Alega ainda que, em virtude de sua condição de desempregado e, pois, impossibilitado de cumprir a obrigação de uma só vez , requereu ao MM. Juiz autorização para “saldar a dívida relativa aos três últimos meses anteriores à data da citação”; o mais, pagaria nos termos do art. 732 do Código de Processo Civil.

O nobre Magistrado, contudo, não o despachou de boa sombra, antes lhe mandou expedir ordem de prisão.

Assim, porque receia lhe seja infligido mal injusto e grave, requer a esta augusta Corte de Justiça a concessão de “habeas corpus”.

Em prol de sua pretensão argumenta que “saldou o equivalente às três últimas prestações que antecederam à data da citação” (fl. 3). Invoca também jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça relacionada com a espécie.

Instruiu o pedido com numerosos documentos de interesse da causa (fls. 5/23).

O r. despacho do Excelentíssimo Senhor 3º VicePresidente do Tribunal, Dr. Ruy Camilo, mandou processar o pedido, sem concessão de liminar (fl. 27).

A mui digna autoridade judiciária indicada como coatora prestou as informações de estilo, nas quais esclareceu que, nos autos de Execução de Alimentos que lhe promove FLS, representado pela mãe, foi citado o paciente para pagar a quantia referente ao débito em atraso.

Informou ainda que, em face da inércia do executado, da não-comprovação do pagamento do débito e porque a alegação de desemprego não era poderosa a acarretar a extinção da execução, decretou-lhe a prisão civil por um mês e ordenou lhe fosse expedido o respectivo mandado (fls. 35/36).

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O ofício de informações acompanhou-se de novos documentos (fls. 37/48).

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em esmerado e criterioso parecer da Dra. Cintia Mitico Belgamo Pupin, opina pela denegação da ordem (fls. 50/52).

É o relatório.

2. Foi citado o paciente (fl. 13) para, nos termos do art. 5º, § 2º, da Lei nº 5.478/68, pagar, em três dias, a dívida de alimentos ao filho menor FLS, ou justificar a impossibilidade de fazê-lo, sob pena de prisão (art. 733. § 1º, do Cód. Proc. Civil).

Por elidir o decreto de prisão, o paciente ocorreu ao pagamento dos últimos três meses (fl. 17).

Mas, em que pese à providência que dera — satisfação do débito relativo aos últimos três meses —, o nobre Magistrado foi servido decretar-lhe a prisão (fl. 22).

Veio, por isso, o paciente requerer ordem de “habeas corpus” ao Tribunal.

3. Posto que respeitável a inteligência que o distinto Magistrado emprestou ao caso “sub judice”, não se conforma, todavia, com a orientação que, em hipóteses semelhantes à dos autos, têm professado nossos Tribunais.

Em verdade, à luz da boa doutrina, dívidas pretéritas perdem seu caráter alimentar, pois já não são urgentes à conservação da vida do reclamante.

De que a dívida pretérita não deva cobrar-se pelo rito do art. 733 do Código de Processo Civil estão a persuadi-lo os brilhantes arestos do Colendo Superior Tribunal de Justiça, abaixo reproduzidos por suas ementas:

a)   “O rito do art. 733 do Cód. Proc. Civil deve ficar reservado à cobrança das três últimas prestações alimentícias vencidas antes da propositura da ação. E isso porque a demora na cobrança de débito há muito vencido evidencia que a urgência da prestação alimentar já não se faz presente, além de ensejar a constituição de um débito cujo valor dificilmente poderá ser atendido pelo devedor no prazo curto que a lei lhe reserva. Sendo a constrição sobre a liberdade do devedor a mais grave das sanções, que o nosso regime prisional converte em pena inominável, deve ela, em princípio, ficar reservada àquela hipótese” (Rev. Tribs., vol. 791, p. 200; rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar);

b)   “A prisão civil por inadimplemento de obrigação alimentar é constrição excepcional e tem por fim encorajar o devedor a prestar os alimentos atuais e não os pretéritos. Assim, o decreto de prisão deve referir-se a débitos atuais, por isso que os débitos em atraso já não têm caráter alimentar” (Rev. Tribs., vol. 717, p. 144).

Esta, de igual passo, é a doutrina de graves autores:

“A prisão civil, como meio coercitivo de pagamento de pensão alimentícia, não se justifica na cobrança de prestações passadas e de cujo recebimento o credor não necessita para sobreviver; assim, é de se dar habeas corpus a quem tem contra si mandado de prisão civil, acusado de descumprimento de obrigação alimentar” (Yussef Said Cahali, Dos Alimentos, 4a. ed., p. 1.023).

É matéria mui digna de ponderação ainda que, a meter-se o paciente nas sombras de cárcere iníquo, aí também se haverá de encerrar a esperança de poder desempenhar suas obrigações de alimentante.

À derradeira, desempregado há coisa de 9 meses (fl. 13), bem se adivinham os terríveis transes por que terá passado o alimentante, primeiro que a Justiça o chamasse às contas. O caso dos autos, menos que empedernida indiferença à face de obrigação alimentar inescusável, argui exemplo de inadimplência por absoluta falta de recursos. Ninguém dá o que não tem!

Advirta, porém, o paciente que é próprio do pai repartir com o filho necessitado o último pedaço de pão!

Em suma: não há razão atendível para manter a situação de constrangimento à liberdade, de que se queixa o paciente.

4. Pelo exposto, concedo a ordem de “habeas corpus” para revogar o decreto de prisão civil do paciente, expedindo-se-lhe contramandado.

São Paulo, 31 de janeiro de 2005

Des. Carlos Biasotti

Relator

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Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIASOTTI, Carlos. Dívida de alimentos e prisão civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6895, 18 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/96220. Acesso em: 19 abr. 2024.

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