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Retribuição acionária em contratos de participação financeira. Sociedade de economia mista concessionária de serviços de telecomunicações

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01/08/2002 às 00:00
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III - Eficácia e vinculação dos princípios constitucionais

25.- Os princípios possuem essencial importância no sistema jurídico [26], uma vez que constituem-se na gênese e no espírito da construção legislativa. A esse respeito, observa o ilustre Professor CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO [27]: "(...) violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegitimidade porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, costumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra."

26.- Assinala-se, ainda, que Princípios como os da Isonomia e da Legalidade encontram-se Constitucionalmente positivados [28], sendo inegável a exigibilidade de sua observância e aplicação, em face à sua eficácia vinculativa, [29] tanto para o intérprete quanto para o administrador. A Sociedade de Economia Mista, Concessionária de Serviço Público, vincula-se não só ao estrito cumprimento das disposições legais, como ao seu cumprimento de modo a não agredir os direitos e garantias individuais, ou seja: agindo de modo a aplicar a dar vigência à legislação a que encontra-se adstrita e, ao aplicá-la, agir de modo a não ferir preceitos constitucionais [30], principalmente os que dizem respeito aos direitos e garantias individuais, harmonizados com aqueles que regem a Administração Pública. [31]


IV - Legalidade e isonomia

27.- O chamado Princípio da Legalidade, na Administração Pública, tem o significado de vinculação à letra da lei, que condiciona todo procedimento, o sucessivo desencadeamento de atos e seus reflexos. "O princípio da legalidade, no âmbito do direito administrativo, foi desdobrado pela doutrina germânica, desde OTTO MAYER, na dupla idéia de supremacia da lei (Vorrang des Gesetzes) e de reserva de lei (Vorbestand des Gesetzes). (...) Em toda relação administrativa, a liberdade de ação do administrador acha-se vinculada: (...) não pela vontade do administrador estatal, mas pelo disposto em lei. A discricionariedade decisória ou estipulativa do administrador público somente existe, quando e onde a lei assim o determina. Daí porque não se admite nunca a interpretação analógica da lei administrativa nem, a fortiori, criação normativa pela administração Pública, fora dos casos especificamente autorizados por lei." [32]

28.- A impessoalidade da ação administrativa designa a igualdade de todos os administrados perante a lei. [33] Subscrevendo esta assertiva, Professor FÁBIO KONDER COMPARATTO [34], ao tratar do princípio da impessoalidade acrescenta: "exatamente porque a autoridade administrativa somente pode agir quando a lei a autoriza, e, levando-se em conta, ademais, que a única justificativa ou legitimidade da ação administrativa consiste na realização do interesse público, o administrador estatal está terminantemente proibido de fazer acepção de pessoas, entre os administrados, segundo suas preferências subjetivas. No Estado contemporâneo, a ação administrativa é um dos instrumentos de concretização da lei, como norma geral e abstrata."

29.- O constitucionalista JOSÉ AFONSO DA SILVA [35] ressalta que, no direito pátrio, tanto a doutrina quanto a jurisprudência convergem que a expressão da igualdade perante a lei tem como destinatários tanto o legislador quanto os aplicadores da lei. Segundo observa SEABRA FAGUNDES [36] - o princípio significa para o legislador "que, ao elaborar a lei, deve reger, com iguais disposições, os mesmos ônus e as mesmas vantagens - situações idênticas, e, reciprocamente, distinguir, na repartição de encargos e benefícios, as situações que sejam entre si distintas, de sorte a quinhoá-las ou gravá-las em proporção às suas diversidades".

30.- Já foi dito que, se o legislador pudesse criar normas distintivas de pessoas, coisas ou fatos, que devessem ser tratados com igualdade, o mandamento constitucional seria inteiramente inútil. Para FRANCISCO CAMPOS [37] "nos sistemas constitucionais do tipo do nosso não cabe dúvida quanto ao principal destinatário do princípio constitucional de igualdade perante a lei. O mandamento da constituição se dirige particularmente ao legislador e, efetivamente, somente ele poderá ser o destinatário útil de tal mandamento. O executor da lei já está, necessariamente, obrigado a aplicá-la de acordo com os critérios ajustados na própria lei. Se esta, para valer, está adstrita a se conformar ao princípio da igualdade, o critério da igualdade resultará obrigatório para o executor da lei pelo simples fato de que a lei o obriga a executá-la com fidelidade ou respeito aos critérios por ela mesma estabelecidos."

31.- O STF já teve oportunidade de pronunciar-se no sentido de que são inconstitucionais as discriminações não autorizadas pela Constituição. [38] O ato discriminatório é inconstitucional. [39]

32.- Segundo ensinamento de KONRAD HESSE [40], a igualdade jurídica "pede a realização, sem exceção, do direito existente, sem consideração da pessoa: cada um é, em forma igual, obrigado e autorizado pelas normalizações do direito, e, ao contrário, é proibido a todas as autoridades estatais, não aplicar direito existente a favor ou à custa de algumas pessoas. Nesse ponto, o mandamento da igualdade jurídica deixa-se fixar, sem dificuldades, como postulado essencial do Estado de Direito. (...) O direito existente obriga e autoriza portanto, seus destinatários, não só sem consideração da pessoa, sem que se trate de seu conteúdo; mas esse conteúdo mesmo deve corresponder ao princípio da igualdade. (...) O princípio da igualdade proíbe uma regulação desigual de fatos iguais; casos iguais devem encontrar regra igual."

33.- Nas palavras de GILMAR MENDES [41], "o princípio da isonomia pode ser visto tanto como exigência de tratamento igualitário (glichbehandlungasgebot), quanto como proibição de tratamento discriminatório (unglichbehandlungsverbot). A lesão ao princípio da isonomia oferece problemas sobretudo quando se tem a chamada exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade (willkürlicher Begünstigungsausschluss). Tem-se uma exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade se a norma afronta ao princípio da isonomia, concedendo vantagens ou benefícios a determinados segmentos ou grupos sem contemplar outros que se encontram em condições idênticas. Essa exclusão pode verificar-se de forma concludente ou explícita. Ela é concludente se a lei concede benefícios apenas a determinado grupo, a exclusão de benefícios é explícita se a lei geral que outorga determinados benefícios a certos grupos exclui sua aplicação a outros seguimentos. O postulado da igualdade pressupõe a existência de, pelo menos, duas situações que se encontram numa relação de comparação."

34.- A doutrina [42] esclarece que há duas formas de cometer uma inconstitucionalidade ferindo o princípio da isonomia, sendo também dois os possíveis desdobramentos jurídicos:

"Uma consiste em outorgar benefício legítimo a pessoas ou grupos, discriminando-os favoravelmente em detrimento de outras pessoas ou grupos em igual situação. Nesse caso, não se estendeu às pessoas ou grupos discriminados o mesmo tratamento dado aos outros. O ato é inconstitucional, sem dúvida, porque feriu o princípio da isonomia. Contudo, o ato é constitucional, é legítimo, ao outorgar o benefício a quem o fez. Declará-lo inconstitucional, eliminando-o da ordem jurídica, seria retirar direitos legitimamente conferidos, o que não é função dos tribunais. Como, então, resolver a inconstitucionalidade da discriminação? Precisamente estendendo o benefício aos discriminados que o solicitarem perante o Poder Judiciário, caso por caso. Tal ato é insuscetível de declaração genérica de inconstitucionalidade por via de ação direta.

"A outra forma de inconstitucionalidade revela-se em se impor obrigação, dever, ônus, sanção ou qualquer sacrifício a pessoas ou grupos de pessoas, discriminando-as em face de outros na mesma situação que, assim, permaneceram em condições mais favoráveis. O ato é inconstitucional por fazer discriminação não autorizada entre pessoas em situação de igualdade. Mas aqui, ao contrário, a solução da desigualdade de tratamento não está em estender a situação jurídica detrimentosa a todos, pois não é constitucionalmente admissível impor constrangimentos por essa via. Aqui a solução está na declaração de inconstitucionalidade do ato discriminatório em relação a quantos o solicitarem ao Poder Judiciário, cabendo também a ação direta de inconstitucionalidade por qualquer das pessoas indicadas no art. 103."


V - Alguns aspectos de hermenêutica

35.- Os tópicos abordados passarão a mostrar sua importância prática para a análise da questão posta em toda a sua amplitude. Conforme ensina WALDIRIO BULGARELLI [43], a tarefa de subsunção jurídica se põe como a atividade principal do jurista. Para a tarefa interpretativa que deve ser antes de mais nada sistemática, pois o Direito, sob tal aspecto, é conjunto ordenado e estruturado de normas, a avaliação da fattispecie (terminologia de EMILIO BETTI correspondente ao alemão tatbestand, ao suporte fático de PONTES DE MIRANDA e ao fato-tipo de MIGUEL REALE) não pode prescindir do exame completo do fato como valorado pelo Direito, através de conceito, categorias e tipos. A individuação do tipo referido pela norma leva a sua qualificação, ou seja, ao ajustamento do fato à norma aplicável, ganhando relevo e delicadeza a operação em razão do axioma segundo o qual o mínimo desvio no fato leva ao máximo desvio na norma.

36.- Nas sempre lúcidas palavras de MIGUEL REALE "a visão de integralidade é da essência da teoria do conhecimento atual, infensa a todas as modalidades de setorização ou de unilateralidade" [44], lembrando RAIMUNDO BEZERRA FALCÃO [45] que "a interpretação não pode ser feita a contento se não levar em conta o todo", premissa inafastável em razão da ordem jurídica constituir-se em um sistema e, como tal, em uma unidade funcional, onde cada uma das partes ou elementos adquire sentido e função em razão do todo, sendo o sentido, função e aplicação da norma descortinados através de operação de integração, operação que leva em conta "plenitude lógica e plenitude axiológica." [46] O professor JUAREZ FREITAS [47] pontifica: "é bem de sublinhar que a hermenêutica jurídica contemporânea tem avançado a passos largos na senda de interpretar o sistema na sua dimensão de ordem axiológica ou teleológica, não se descurando, ao menos com a demasia de outrora, do nexo mais profundo que tem a ver com a relação entre compreender e aplicar".

37.- CARLOS MAXIMILIANO [48], por sua vez, cita como regras para o emprego do método teleológico de interpretação as seguintes: "a) as leis, conformes no seu fim devem ter idêntica execução e não podem ser entendidas de modo que produzam decisões diferentes sobre o mesmo objeto; b) se o fim decorre de uma série de leis, cada uma há de ser, quanto possível, compreendida de maneira que corresponda ao objetivo resultante do conjunto; c) cumpre atribuir ao texto um sentido tal que resulte haver a lei regulado a espécie a favor, e não em prejuízo de quem ela evidentemente visa a proteger e d) os títulos, as epígrafes, o preâmbulo e as exposições de motivos da lei auxiliam a reconhecer o fim primitivo da mesma" alertando que o direito deve ser interpretado inteligentemente, "não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter conclusões inconsistentes ou impossíveis" [49] evitando-se exegese que resulte um sentido contraditório para o fim colimado e, apresentado tal resultado, "deve-se presumir que foram utilizadas expressões impróprias, inadequadas, e buscar um sentido eqüitativo, lógico e acorde com o sentir geral e o bem presente e futuro da comunidade." [50]

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VI - A questão controvertida

38.- ORLANDO GOMES [51], ao dissertar acerca das características dos contratos pactuados com concessionárias de serviço público, referindo o exemplo específico das telecomunicações, diz:

"A natureza do serviço que exploram exige que estejam em permanente oferta de contratar, não tendo sequer direito a escolher a outra parte. Para as pessoas que precisam de tais serviços, geralmente prestados em regime de monopólio, também se faz sentir a necessidade de contratar, em outro sentido, porém, uma vez que não estão juridicamente obrigadas a fazê-lo. Como, entretanto, esses serviços se tornam dia a dia, indispensáveis a maior número de pessoas, a superioridade em que se encontrariam as empresas em relação aos usuários potenciais é neutralizada pelo Estado ao estabelecer as condições em que devam elas contratar, surgindo, em conseqüência, duas interessantes figuras negociais, o contrato regulamentado e o contrato de adesão. Conquanto as relações entre as empresas concessionárias de serviços públicos e os usuários não sejam consideradas contratuais por alguns, na verdade possuem essa natureza e são regidas pelas disposições concernentes aos contratos. Pouco importa que os pretendentes ao serviço se limitem a aceitar a oferta da empresa nas condições permitidas pelo regulamento inserto em seu conteúdo. Realizam contratos de adesão, mas nem por isso deixam de constituir relação contratual."

"No contrato autorizado, sua realização fica na dependência de autorização da autoridade administrativa. Em alguns, aproxima-se essa autorização da homologação porque irrecusável se as partes cumpriram estritamente as exigências legais para sua realização." [52]

39.- Temos então que o Poder Público concedente, com vistas a atender ao interesse público em área de grande interesse social, permitiu, através de minucioso disciplinamento, contendo a integralidade dos direitos e obrigações das partes vinculadas, que consumidores e concessionária, mediante o acatamento e adimplemento das condições gerais do negócio autorizado, que a expansão dos serviços fosse feita através de Contratos de Participação Financeira. Os consumidores/aderentes adimpliram com a totalidade das suas obrigações e os contratos atingiram sua finalidade econômica, tendo ocorrido a ampliação da planta de telefonia e a instalação dos respectivos terminais individualizados, passando a concessionária a fornecer os serviços de telefonia aos novos assinantes; esta, entretanto, abusivamente, não efetuou a devida retribuição acionária, ferindo o ato jurídico perfeito, o direito adquirido, o direito de propriedade, a isonomia e a legalidade.

40.- Foi estipulada legal e contratualmente a proporcional retribuição em ações da participação financeira efetuada. Negar o direito à eqüitativa retribuição em ações àqueles que aportaram capital à concessionária representa quebra ao citado princípio da isonomia e locupletamento, uma vez que, apesar da contribuição para o aumento do patrimônio físico da concessionária e ampliação do número de consumidores/usuários, cuja retribuição pecuniária pelos serviços gera lucros, não recebem a contrapartida total do investimento - acesso ao terminal telefônico individualizado e retribuição acionária proporcional ao capital aportado. Não recebem a integralidade das ações subscritas e nem tem direito a dividendos e outros benefícios.

41.- Em contrapartida, outros consumidores/aderentes que igualmente aportaram capital à concessionária, no mesmo exercício, nos mesmos valores e nas mesmas condições, recebem seus terminais e também participação acionária maior. Como não são emitidas a totalidade das ações devidas aos aderentes, o capital social acaba dividido em menos frações, elevando o valor patrimonial das ações e concentrando, ainda, a distribuição de dividendos em mãos dos acionistas beneficiados pela arbitrariedade da concessionária. Resulta ferido, aí, o direito de Propriedade, garantia constitucional (art. 5º, XXII da CF/88), sendo abusiva a expropriação não abrigada em Lei e sem benefício público.

42.- Contrato autorizado, ou regulamentado, as obrigações dos aderentes foram integralmente adimplidas, num comportamento concludente. A concessionária, infringindo o princípio da legalidade, furtou-se às suas obrigações e, com isto, gerou prejuízo - diminuição patrimonial aos autores (dano emergente) alijando-os da distribuição de lucros via pagamento de dividendos (lucros cessantes). Deste empobrecimento, resultou o locupletamento dos demais acionistas, que detém ações com valor patrimonial maior em razão da não emissão da totalidade das ações devidas, concentrando o recebimento dos dividendos em detrimento dos contratantes discriminados.

43.- As sociedades de economia mista concessionárias de serviço público, órgãos da Administração Indireta, a exemplo dos órgãos da Administração Pública Direta, subordinam-se aos Princípios positivados no art. 37 da Constituição Federal de 1988, quais sejam: legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. [53]

44.- Além disto, o S.T.J. já pronunciou-se no sentido de que as sociedade de economia mista subordinam-se às normas de direito privado suas atividades e formas de organização e funcionamento [54]. Lê-se no corpo do acórdão:

"Ora, em nosso Direito Constitucional, "a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica sujeitam-se ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias" (CF, Art. 173, § 1º ).

"Na excelente monografia "Administração Indireta Brasileira", JOSÉ CRETELLA JÚNIOR comenta o preceito constitucional, referindo-se ao "empresário público", de quem diz: "Como pessoa jurídica pública que ingressa numa sociedade mercantil, o Estado não se coloca nem acima nem abaixo do direito, nem fora do direito, mas se submete às próprias regras que editou ("suporta a lei que fizeste"), tradução do princípio da legalidade, e no caso, às leis do direito público e às leis do direito privado" (Ed. Forense — 198 — pág. 339).

"JOSÉ AFONSO DA SILVA, em seu precioso "Curso de Direito Constitucional Positivo" (Ed. RT, 4ª Ed., pág. 519) invoca HELY LOPES MEIRELLES, para afirmar: "o que a Constituição submete às normas do direito privado, não é, portanto, a instituição e a organização da empresa ou sociedade; é a sua atividade empresarial. Esta, sim, não pode afastar-se das normas civis, comerciais e tributárias pertinentes, para que não se faça concorrência desleal à iniciativa privada".

"Não se deve esquecer que o § 1º, quase incidindo em redundância, adverte que a empresa pública e a sociedade de economia mista sujeitam-se "ao regime jurídico das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias". O busílis encontra-se na palavra "inclusive". Inclusive, significa: "de modo inclusivo; com inclusão; até, até mesmo" (Novo Dicionário Aurélio — 1ª Ed., pág. 758). Pode-se, assim, dizer que as sociedades de economia mista devem observar, por inteiro, o regime a que estão submetidas as empresas privadas.

"Ainda que existisse preceito infraconstitucional dizendo o contrário, ele seria ineficaz. É que, no Estado de Direito, o ordenamento jurídico parte da Constituição. Assim, qualquer norma que fuja aos ditames da Constituição é ineficaz. Se a norma contrária à Constituição é anterior à vigência desta, ela desaparece, por efeito de revogação. Não cabe, no Estado de Direito em que nos encontramos, interpretação no sentido de enxergar nas empresas estatais, entidades anfíbias, capazes de viver, tanto na seara do direito público, quanto nos limites do direito privado. É a velha questão hamletiana: ser ou não ser.

"Ou a entidade é sociedade de economia mista e se subordina ao direito privado, ou não o é. A segurança do Estado de Direito é avessa ao hibridismo. Quando o Estado cria uma sociedade de economia mista (ou empresa pública), ele o faz, no propósito de a lançar no livre jogo do Direito privado, após avaliar as vantagens e desvantagens que isto representa. Não quisesse enfrentar tais agruras, o Estado teria criado uma autarquia. Pelo Art. 20 do Código Civil, as pessoas jurídicas se diferenciam de forma absoluta de seus sócios.

"O Art. 173 da Constituição, em seu § 1º, diz: "A empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica sujeitam-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias."

"Favorecer empresa pública, dando-lhe acesso à prescrição qüinqüenal é subtraí-la ao regime do direito privado, em desrespeito ao Art. 173, § 1º, da Constituição Federal. Por isto, data vênia, dou provimento ao recurso para, homenageando a Constituição e a Súmula nº 39 desta Corte, reformar o acórdão recorrido e negar provimento ao agravo."

45.- Toda a justificativa da desproporcional - e ilegal - retribuição acionária aos assinantes/aderentes, devida e inadimplida pela concessionária, centrou-se na AUTORIZAÇÃO concedida através de Portaria Ministerial no sentido de que a capitalização e subscrição poderia ser efetuada em um prazo de até 12 (doze meses).

46.- Note-se: a Portaria Ministerial referida pela concessionária, não era IMPOSITIVA de um dado procedimento, mas sim AUTORIZAVA um dado proceder. A Portaria não era, em si, discriminatória entre os aderentes aos contratos. O que gerou discriminações e concretizou ofensa à isonomia entre os assinantes foi o procedimento abusivo da concessionária.

47.- Ao conceder o prazo de 12 (doze) meses para a capitalização, a Portaria não afastou a incidência das regras da Lei da Sociedades Anônimas para emissão e subscrição das ações, nem a fórmula de cálculo das ações devidas. Apenas permitiu que o procedimento não fosse instantâneo, sem todavia, alterar ou afastar os critérios legais (até porque, indubitavelmente, a autoridade administrativa não detinha poderes, competência ou legitimidade para tanto).

48.- O prazo deferido deve ser interpretado como os 12 (doze) meses em que tem validade o balanço anual apurado no fim do exercício anterior ao que se deu a capitalização. A prática dos atos, que deveriam ser instantâneos e concomitantes, foi diferida no tempo, mantendo-se, porém, os critérios legais. [55] Esta interpretação é a única que coaduna-se com os princípios da hierarquia das normas, da legalidade, da reserva legal, da impessoalidade, da vinculação do administrador à lei, do direito de propriedade, do direito adquirido e do ato jurídico perfeito. Quando a administração emite regulamento, este não revoga e nem afasta a legislação ordinária, devendo ser, obviamente, compatibilizado e harmonizado com a legislação vigente. E a Portaria, como já dito, não era, em si, discriminatória; porém o procedimento da concessionária, embasado em interpretação equivocada daquela, indubitavelmente o foi, resultando em lesões indevidas a direitos e garantias individuais.

49.- Vale lembrar magistério de CARLOS MAXIMILIANO [56], em seus Comentários à Constituição Brasileira, considerando que se impõe ao poder regulamentar as seguintes restrições "a) não cria direitos nem obrigações não estabelecidos implícita ou explicitamente em lei; b) não amplia, restringe ou modifica direitos, nem obrigações...; d) não extingue direitos nem anula obrigações dos cidadãos em geral; g) não revoga nem contraria a letra nem o espírito da lei." PONTES DE MIRANDA [57] ensina que "(...) o poder regulamentar é o que se exerce sem criação de regras jurídicas que alterem as leis existentes e sem alteração da própria lei regulamentada (...). Nem o Poder Executivo pode alterar as regras jurídicas constantes de lei, a pretexto de editar decretos para sua fiel execução ou regulamentos concernentes a elas (...) Onde se estabelecem, alteram ou extinguem direitos, não há regulamentos - há abuso de poder regulamentar, invasão de competência (...)" concluindo o mestre que "se o regulamento cria direitos ou obrigações novas estranhas à lei... é inconstitucional... Tampouco pode ele limitar, modificar ou ampliar direitos, poderes, pretensões, obrigações, ações ou execuções".

50.- A AUTORIZAÇÃO, através de Portaria Ministerial, tinha como objetivo, tão somente, permitir uma facilidade operacional à Concessionária, uma vez que, em virtude do maciço volume de contratações a que estava submetida, não teria condições de efetuar, instantaneamente, a emissão e subscrição de todas as ações correspondentes ao capital que era diariamente integralizado por centenas de pessoas. A isto limitava-se o interesse público justificador da interferência regulatória: tornar operacionável a exigência legal de que a Concessionária operasse conforme os ditames da Lei das Sociedades Anônimas. Permitia que procedimentos que deveriam ser concomitantes fossem diferidos no tempo, sem, contudo, repete-se, afastar os critérios legais de cálculo da quantidade das ações que deveriam ser emitidas.

51.- Sobre os desvios administrativos, elucidativa a explanação de ALFREDO LAMY FILHO [58], demonstrando que a ingerência política leva à incongruências gerenciais nas Sociedades de Economia Mista, uma vez que, muito embora organizadas necessariamente sob a forma de Sociedades Anônimas (pessoas jurídicas que, por definição legal, são comerciais e objetivam lucro), tende-se a desconsiderar as técnicas modernas e profissionais de gerenciamento e administração. Afastando-se dos critérios técnicos e profissionais e utilizando-se agentes estranhos ao universo empresarial, (quando não fazia das empresas o centro de retribuições políticas, com escolhas infelizes) e, nos casos mais graves, usando o poder de alterar as regras do jogo. Lembra o estudioso, citando o art. 1.363 do CCB, [59] que toda sociedade supõe, necessariamente, identidade de propósitos de todos os seus partícipes, surgindo a contradição no momento em que o Estado visa o bem comum e o particular, o lucro individual. E a única forma de evitar-se que deste aparente conflito de interesses resultem danos, é identificar-se o interesse público de forma harmonizada com o interesse do particular que participa do empreendimento, atingindo-se o fim social em absoluta consonância com a lei e de modo a não agredir direitos e garantias do sócio/administrado, evitando-se práticas desnecessárias e abusivas e nem mascarando a negligência ou incompetência sob o manto do poder de império sem freios ou limites.

52.- Resulta evidente que o interesse público concretiza-se na vedação à arbitrária subversão do sistema e do ordenamento jurídico vigente, vigas mestras do Estado Democrático de Direito. Sem respeito à ordem e aos critérios legais, estar-se-á a consagrar o arbítrio e submetendo-se toda a população à coerção sem regras e ao conceito subjetivo que cada facção detentora do Poder Político faça de "interesse público". Não há coletividade sadia que se sustente com o esmagamento do indivíduo, nem efetiva liberdade ou democracia.

53.- Quanto ao fato dos aderentes objetivarem o acesso ao serviço público de telecomunicações, e não participação acionária na Companhia, de todo irrelevante a interpretação subjetiva do julgador sobre as eventuais intenções dos contratantes. O fato é que a prestação referente à retribuição acionária estava contratual e objetivamente cominada, e seu modo de execução, rígida e legalmente estipulado.

54.- CARLOS MAXIMILIANO [60], aduz que, "em regra, não se tem em mente contrair determinada obrigação, realizar o fato material que é depois ajuizado; pretende-se apenas um efeito de Direito e, para o conseguir, celebra-se o ato bilateral. Por exemplo, nenhuma das partes pensou propriamente em hipoteca: uma desejou obter dinheiro, para um fim econômico; a outra pretendeu pôr a juros, e sem riscos, o fruto de sua parcimônia; e o meio de chegar ao acordo de vontades, isto é, de conciliar os interesses opostos, foi o contrato de empréstimo garantido pelo ônus real sobre o imóvel do devedor. Aceitaram a construção jurídica; porém tinham em mira apenas o seu efeito."

55.- O caso em apreço comporta igual conclusão: as partes aceitaram a construção jurídica e, daí, os reflexos legais, pretendendo-se manter-se a unidade, coerência, hierarquia e finalidade da ordem jurídica, são induvidosos e inafastáveis. [61]

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

. Retribuição acionária em contratos de participação financeira. Sociedade de economia mista concessionária de serviços de telecomunicações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16509. Acesso em: 19 abr. 2024.

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