12 - CONSEQÜÊNCIAS DA OMISSÃO DO PODER PÚBLICO EM FISCALIZAR E COIBIR O TRANSPORTE COLETIVO SEJA ELE OFICIAL OU CLANDESTINO
Como se viu, o transporte coletivo de passageiros é direito fundamental do cidadão e dever do Estado, sendo o Poder Público Municipal responsável, na área de sua jurisdição, pelo seu gerenciamento, operação, fiscalização e punição, nos temos da lei. Outrossim, além de estabelecer que a prestação de quaisquer serviços públicos, por concessão ou permissão, deve ser obrigatoriamente precedida de regular licitação (art. 175), a Constituição Federal disciplinou a responsabilidade civil do Estado dispondo que:
"as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa" (§ 6º do art. 37 da Constituição Federal).
Mas não é apenas a ação do administrador (e de quaisquer outros agentes públicos) que pode produzir danos e gerar direito `a indenização, mas também a omissão (do latim OMISSIO, de OMITERE) que significa negligência, esquecimento, inatividade, desídia, inércia, ou "o que não se fez, o que se deixou de fazer, o que foi desprezado" (cf. PLÁCIDO E SILVA, "Vocabulário Jurídico", vol. III, p. 1.093).
A omissão do agente público configura culpa in omitendo ou culpa in vigilando, podendo causar prejuízos aos administrados, à própria Administração e ao agente público responsável, pois "se se cruza os braços ou não se vigia, quando deveria agir, o agente, público omite-se, empenhando a responsabilidade do Estado por inércia ou incúria do agente. Devendo agir, não agiu. Nem como o bonus pater familiae, nem como bonus administrator." (CRETELLA JÚNIOR, "Tratado de Direito Administrativo", vol. VIII, Forense, p.210, n.161).
Convém ressaltar que o Tribunal de Justiça de São Paulo vem decidindo reiteradamente pela responsabilização e conseqüente reparação, tanto nos casos de típica omissão, como nos casos de falta de presteza do agente; ainda que não se saiba quem é o responsável pelo prejuízo causado ao particular (culpa anônima), o Tribunal condena a Administração pela reparação dos prejuízos (cf. RJTJESP 97/342). E até mesmo quando haja fiscalização, mas sendo ela deficiente, caracteriza-se a omissão geradora da responsabilidade civil do estado (cf. RT 445/844 e 389/161).
13 - O PODER DE POLÍCIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM SE TRATANDO DE TRANSPORTE COLETIVO
Para que fique bem reforçado o tópico anterior, tem a Administração Pública o dever de fiscalizar e coibir tudo que diga respeito aos transportes coletivos (concessão por licitação), dentro do Município, através do poder de polícia que lhe é inerente.
Deste modo, apresenta-se agora como de importância, empreender-se um delineamento do que vem a ser o poder de polícia, quer em relação a sua dinâmica, quer em relação ao seu objeto. Em assim sendo, de início, impõe-se frisar que o poder de polícia se constitui em um dos poderes da administração. E como tal, espraia-se por todo o tecido administrativo, sendo um dever ao qual a mesma não pode renunciar. Contudo, tal dever tem que ser praticado nos limites da lei, sob pena de ilegalidade, e ainda tem que obedecer aos limites das regras de competência, sob pena de inconstitucionalidade.
DI PIETRO [15] assim entende o poder de polícia: "(...) é a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público".
No mesmo sentido, HELY LOPES [16]: "Poder de polícia é a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado".
O conceito de poder de polícia também está posto no próprio ordenamento jurídico. O Código Tributário Nacional (Lei n.º 5.172/66), em seu artigo 78, assim determina:
"Art. 78- Considera-se poder de polícia a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse, ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos".
Acreditamos que o poder de polícia se revela como um poder conferido ao administrador para que o mesmo venha a condicionar e, quando necessário, restringir o exercício de atividade (ou o uso e gozo de bens e direitos) realizada por particulares, em nome do interesse da coletividade.
O poder de polícia que o Estado possui pode estar afeto tanto à esfera da Administração Pública, quanto à esfera judiciária. Assim, dando origem ao poder de polícia administrativa e ao poder de polícia judiciária.
Poder de Polícia Administrativa é o inerente da Administração Pública que busca evitar que ocorra um dano, tendo por fim impedir atividades que se choquem com o interesse público. Age, em regra, preventivamente. Ao passo que a polícia judiciária é a tipicamente repressiva, exclusiva de corporações (polícia civil e militar), e utilizada no auxílio ao Poder Judiciário.
Cabe anotarmos que a diferença de tais polícias não reside no fato de uma ser preventiva e a outra repressiva, vez que a polícia administrativa é preventiva em regra, mas pode eventualmente ser repressiva, como ocorre, por exemplo, quando se desfaz comício que está perturbando a ordem pública ou quando apreende licença de motorista infrator.
A diferenciação pode ser verificada ainda em face do espectro de atuação, vale dizer, o poder de polícia administrativo exsurge das próprias exigências oriundas da Administração pública, enquanto o poder de polícia judiciária impõe-se sempre que o substrato de atuação ocorrer em face de um ilícito penal.
Pelo que foi visto, pode o poder de polícia administrativa ter por fim uma atividade individual que afete a coletividade, exigindo, por isso mesmo, regulamentação, controle e contenção pelo Poder Público.
A doutrina pátria tem apontado de forma unânime os seguintes atributos do poder de polícia administrativa:
-Discricionariedade;
-Auto-executoriedade;
-Coercibilidade.
A prática de atos discricionários pela Administração traduz-se na livre escolha pela Administração, da oportunidade e conveniência de exercer o poder de polícia. Pode o ato de polícia ser vinculado (depender do que determina a lei em sentido lato); assim, quando isto ocorre, temos um poder de polícia ainda discricionário, sendo entretanto vinculado a regramento próprio aplicável ao caso concreto.
A discricionariedade não deve ser jamais confundida com arbitrariedade, vez que na discricionariedade tem-se liberdade, só que dentro dos limites estabelecidos pelo comando legal. A arbitrariedade decorre de abuso ou desvio de poder. Pela discricionariedade, pode a Administração, em face de uma situação concreta e observando os critérios de conveniência e oportunidade, dinamizar o exercício do seu poder de polícia.
Já a auto-executoriedade é a possibilidade de a Administração executar diretamente as suas decisões, sem necessitar da intervenção do Judiciário. Ao passo que a coercibilidade é a coação em potencial, ou seja, é a possibilidade de a Administração tomar medidas coativas, que são obrigatórias para seus destinatários.
Pode o Poder Público, portanto, agir tanto preventivamente (fiscalizando e coibindo), como repressivamente (inclusive anulando ou revogando concessões que não cumpram a sua finalidade precípua ).
14- O TRANSPORTE COLETIVO NO BRASIL. PROBLEMAS E SOLUÇÕES. A LEI Nº 10.233/2001.
O Direito Administrativo (e Constitucional) Brasileiro, inspirado no Direito congênere francês, compreende o transporte público coletivo como serviço público (art. 30, V da Carta Nacional.
Por esta concepção, a oferta do transporte público é reconhecida como de responsabilidade do Poder Público, não obstante sua execução possa ser delegada à iniciativa privada mediante contrato administrativo.
Nesses contratos, as Administrações Públicas mantêm as competências de planejar o serviço e de determinar as tarifas (concebidas como preços públicos); elas retêm o poder de alterar os termos contratuais e até de suspendê-los, conforme demanda o interesse público. Por outro lado, a companhia contratada têm o direito reconhecido a um equilíbrio econômico-financeiro, assim como à constância do objeto do contrato (isto é, a empresa não pode ser forçada a executar atividades estranhas ao escopo do contrato.
Essa doutrina foi mais uma vez consolidada pela Constituição de 1988. O direito ao equilíbrio econômico-financeiro nos contratos administrativos está resguardado no art. 37, XXI, que prevê que tais contratos devem incluir cláusulas que estabelecem as obrigações de pagamento [da Administração Pública], mantendo-se as condições efetivas da proposta [tais como apresentadas na licitação; complemento dos autores].
Tal prescrição constitucional foi detalhada pela Lei da Licitações e dos Contratos Administrativos (Lei nº 8.666/93). Por esse diploma, a competência do Poder Público de alterar e revogar unilateralmente os contratos, de controlar seu cumprimento pela empresa contratada, e também de aplicar sanções contra a mesma, está confirmada pelo seu a art. 58. Por outro lado, qualquer modificação das condições monetárias e econômicas do contrato depende de consentimento por parte do contratado. A empresa contratada tem de aceitar qualquer redução ou aumento do escopo do contrato, até uma percentagem limite de 15% do volume inicial.
A Lei detalha as regras para os procedimentos licitatórios, as responsabilidades das partes contratante e contratada, as condições para a extinção dos contratos, como também diversos outros aspectos relevantes para sua execução.
Os contratos celebrados entre as autoridades e as empresas se inserem em uma categoria especial dos contratos administrativos, que são os contratos de concessão. Esses estão regulamentados em uma lei especial (Lei nº 8.987/95, a dita Lei das Concessões).
O traço distintivo mais marcante do contrato de concessão é que os custos e os investimentos não são recuperados por um pagamento direto pela autoridade contratante, mas sim pelas receitas tarifárias arrecadadas dos usuários do serviço concedido.
De uma forma geral, as normas da Lei das Licitações e dos Contratos Administrativos permanecem vigentes para as concessões, enquanto não houver norma específica da Lei das Concessões que disponha ao contrário (princípio da prevalência da norma específica sobre a geral). Podemos resumir da seguinte maneira as principais diferenças entre as duas leis:
- a empresa contratada é remunerada pela receita tarifária; a política tarifária deverá, em princípio, ser estabelecida pelo preço pleiteado pela proposta vencedora;
- as propostas podem ser selecionadas ou pelo menor preço, ou pela maior oferta monetária ao Poder Concedente, ou com base em um critério misto, composto dos dois anteriores (menor preço e maior oferta);
enquanto que a Lei das Licitações prevê um prazo contratual máximo de 5 anos, pela Lei das Concessões, os prazos contratuais são definidos de caso a caso, de acordo com a realidade econômica do setor; os contratos de concessão podem ser renovados, enquanto que o contrato administrativo comum, não;
- a Lei das Concessões prevê a probabilidade de subconcessões e subcontratações de terceiros, dependendo da autorização do Poder Concedente; isso não é previsto nos contratos administrativos comuns;
- as condições e regras para a extinção dos contratos de concessão são ligeiramente diferentes das previstas para os contratos administrativos comuns.
Há de se ressaltar que o principal objetivo da Lei de Concessões foi a introdução de um regime efetivamente competitivo (em termos econômicos), e que os critérios de seleção previstos constituem o instrumento central para assegurá-lo. Pelo que, o processo licitatório passa ser o principal momento da competição, merecendo, portanto, uma consideração mais detalhada.
Pela doutrina do Direito Administrativo, o procedimento licitatório deve assegurar o caráter competitivo, maximizando os ganhos econômicos e financeiros da Administração, contudo também a moralidade e objetividade do processo, produzindo barreiras contra favoritismos e até corrupção. Pela Lei das Licitações, o processo licitatório sujeita-se aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, igualdade, publicidade, probidade administrativa, plena observância dos termos do edital e de julgamento objetivo.
Uma preocupação especial da legislação é de evitar a utilização, no edital, de cláusulas discriminatórias desnecessárias, que prejudiquem o caráter competitivo do procedimento.
Por isso, a Lei das Licitações proíbe a inclusão de pré-requesitos para a participação que não sejam estritamente necessários para a execução apropriada do contrato. O processo está igualmente sujeito a auditagem pública (principalmente mediante audiências públicas e a garantia de acesso público aos documentos produzidos pela comissão de licitação), e eventuais irregularidades podem ser apontadas por qualquer cidadão, quer participe ou não da licitação.
Pela Constituição, a licitação é, em princípio, obrigatória para todo e qualquer contrato com a Administração, mas a Lei das Licitações introduziu algumas exceções, onde o procedimento é facultativo (especialmente para contratos de baixo valor ou urgentes, onde a organização de uma licitação é impossível, ou pode prejudicar a solução dos problemas visados).
A Lei prevê diferentes espécies de procedimentos: a mais complexa é a concorrência pública, que é também a aplicável para a seleção de executores de serviços públicos. Aqui, o procedimento tem duas fases: na primeira (fase de habilitação), os proponentes que não conseguem preencher os pré-requesitos legais, financeiros e técnicos exigidos são preliminarmente desqualificados.
Os proponentes qualificados avançam para a segunda fase (fase de seleção), onde nenhum deles pode mais ser desqualificado com base nos pré-requesitos habilitatórios (a menos que a falsidade de uma informação relevante para a qualificação for descoberta depois). Nessa segunda fase, as propostas são abertas publicamente e classificadas conforme os critérios anunciados no edital.
O primeiro colocado adquire o direito de preferência para a contratação pela Administração Pública (nos termos exatos de sua proposta), e também já tem a obrigação de assinar o contrato quando convocado: sua recusa está sujeita a punição severa.
O edital tem uma papel central em todo o processo, uma vez que estabelece as regras para qualquer medida ou ação durante o processo licitatório. Assim, o edital é dito constitui a lei interna da licitação, e seus conteúdos mínimos estão definidos na Lei das Licitação e na das Concessões. Qualquer desrespeito às regras estabelecidas pode (e deve) implicar na anulação de todo o processo.
Quando tudo der certo, a licitação é coroada com a contratação do vencedor.
O contrato de concessão estabelece os elos entre o Poder Público e o contratado, definindo o objeto do contrato, seu prazo, os direitos, as competências e obrigações de cada parte, o preço e regras de ajuste, as garantias, os caso e procedimentos de extinção do contrato e as devidas compensações, as medidas de controle de qualidade, e outros aspectos relevantes previstos pela Lei e os regulamentos.
A Lei das Concessões fixou também os conteúdos mínimos para os termos contratuais, e uma minuta do termo definitivo deverá já estar publicada no edital. Os contratos são considerados como pessoais e não transferíveis (muito embora a subcontratação e a subconcessão podem ser admitidas pelo Poder Concedente) Pela referida Medida Provisória n( 1531/96, a extensão do período contratual requer que a parte contratada ofereça uma vantagem econômica para o Poder Público. De uma forma geral, o concessionário não faz jus a qualquer direito de exclusividade, a menos que esteja comprovada sua necessidade para a viabilidade econômica do contrato.
A obrigação principal do concessionário é de executar o serviço de acordo com as prescrições do Poder Público, e de colaborar com os procedimentos de controle operacional. A Lei estabelece o direito do usuário ao serviço regular, contínuo, eficiente, seguro, acessível, oferecido de forma cortês e com preço moderado (art. 6 da Lei das Concessões). O usuário também goza do direito de participar no controle do serviço e de acessar qualquer informação relevante para a defesa de seus interesses.
O contrato de concessão pode ser extinto por diversas razões. O caso mais simples é a expiração do prazo contratual. Mas o Poder Público pode também terminar o contrato antes do prazo, nos casos de a) interesse público, mesmo que o contratado não tenha cometido nenhuma falta (nesse caso, ele faz jus a uma indenização); b) o concessionário ter cometido uma falta grave (de acordo com o termo contratual e a regulamentação); c) anulação da concessão por falha processual; e d) extinção do concessionário.
Por sua vez, a empresa contratada pode também iniciar a extinção do contrato, se comprovar o inadimplemento contratual por parte das autoridades (entretanto, para tal fim, ele tem de acionar o Poder Concedente na Justiça, e manter a operação até o julgamento final da ação). Uma vez o contrato extinto, as autoridades devem assumir a operação dos serviços (e igualmente as instalações), até o novo contrato ser assinado.
Analisando a atual situação institucional do transporte público urbano, no Brasil, podem ser percebidos os seguintes traços característicos :
- Os serviços são regulamentados localmente, podendo ser detectadas diferenças entre as regulamentações de diversas cidades. Nas cidades maiores, o Poder Público tende a exercer um controle mais estrito sobre os serviços, os operadores e os custos, assim como a assumir um papel mais ativo no planejamento das operações. Já nas menores, (assim como no transporte interurbano), as autoridades não se apresentam de forma tão ativa, limitando sua atuação a aspectos burocráticos da outorga; na verdade, seu papel se reduz a proteger os privilégios dos operadores existentes, impondo dificuldades para novos pretendentes. Elas interferem mito tenuamente na definição dos itinerários, dos horários e das tarifas; nesse campo, elas tendem a apenas oficializar, enquanto decisão de governo, as sugestões de itinerário, tabela horária e de tarifa feitas pelos operadores.
- Mesmo nas cidades, onde as autoridades assumem uma posição mais dominante na administração dos serviços públicos de transporte, os procedimentos de contratação raramente obedecem estritamente as regras formais do Direito Administrativo: muito poucas empresas passaram alguma vez por uma licitação, tendo herdado, na maioria das vezes, as permissões ou concessões décadas atrás, de companhias antecessoras.
Com relação ao instrumento formal de contratação, na maioria das cidades, os operadores possuem uma permissão; algumas, uma concessão. Esse último instrumento garante uma estabilidade maior ao operador, na medida em que ele pode requerer indenizações no caso de uma interferência administrativa que lhe tenha acarretado prejuízos. De uma maneira geral, o objeto do contrato consiste de linha; já em algumas cidades, consiste na operação de um determinado lote de veículos (p.ex. Brasília) ou de uma área (p.ex. Campinas).
No caso de contratos com prazo definido, o mesmo é geralmente prorrogado incondicionalmente por outro prazo igual. Mas na realidade, em muitas cidades as empresas trabalham em uma situação de virtual informalidade, eis que os termos contratuais são extremamente superficiais, indicando quando muito o nome da companhia, seu(s) proprietário(s), o objeto (linha ou área) e (nem sempre) o prazo da outorga.
Como conseqüência desse processo essencialmente não-competitivo, os operadores têm consolidado, nas cidades onde operam, estruturas quase que cartelizadas, compostas por um conjunto de operadores dominantes e um número maior de empresas de menor porte. A sobrevivência dessas é importante para as grandes empresas, na medida em que elas aumentam os custos operacionais médios, com base nos quais as tarifas são calculadas. Assim, os operadores de maior porte podem se beneficiar exclusivamente de seus custos internos menores, com mínimo de repasse dos ganhos de eficiência para a sociedade.
Com lastro em um estudo realizado em oito áreas metropolitanas brasileiras, o Ministério dos Transportes detectou a seguinte situação:
A seleção de empresas operadoras mediante um processo licitatório formal ainda é uma raridade. Diversos regulamentos locais prevêem tal processo, mas ao mesmo tempo incluem diversas regras de exceção para os operadores já atuantes localmente, dispensando-os da sua submissão ao processo seletivo competitivo. Na verdade, apenas empresa de fora é que estão sujeitas à licitação.
As licitações, quando têm sido realizadas, soem lançar mão de critérios qualitativos de seleção; procedimentos de seleção com critérios de caráter econômico são muito raros e, na maioria, recentes.
Usualmente, os novos serviços são outorgados à companhia geograficamente mais próxima; frequentemente, eles são tratados como uma mera extensão de uma linha já existente, e sua atribuição é decidida internamente pelas autoridades (muitas vezes, sem suporte em algum estudo substancial).
Os contratos de operação costumam ser renovados sem nenhuma análise técnica e econômica, ou sem verificação dos méritos do operador.
As autoridades garantem a lucratividade da operação com base em sua política tarifária, mas, na verdade, elas raramente possuem informações precisas sobre os custos operacionais. As planilhas utilizadas na determinação das tarifas incluem viéses metodológicos que aumentam os custos imputados: p.ex., elas assumem que os custos de capital dos veículos diminuem permanentemente como o aumento da idade dos veículos; qualquer inovação tecnológica constitui razão suficiente para aumentar os custos. Os ganhos de eficiência das empresas não são refletidos na tarifa; na verdade, a planilha não recompensa qualquer ganho de eficiência (aumento de produtividade, redução de custos).
Em algumas cidades, os operadores são remunerados diretamente pelos seus custos, e as autoridades conseguem trabalhar com informações econômicas e financeiras mais precisas. Já em outras, os operadores são remunerados direta e exclusivamente pela arrecadação tarifária. Nessas, as informações coletadas pelas autoridades costumam ser extremamente deficientes.
A capacidade das autoridades de controlar efetivamente o cumprimento das regras regulamentares é reduzida. Frequentemente, os indicadores de controle utilizados são inadequados para garantir a qualidade do serviço (p.ex. controle da quantidade de veículos postos em serviços, ao invés do controle da freqüência operacional)
A situação descrita na seção anterior refere-se aos dias de hoje, enquanto a nova legislação (Lei 10.233) não se tornar amplamente aplicada. Evidentemente, é de se esperar que essa ampla aplicação implique em mudanças profundas tanto nas empresas quanto nas próprias administrações públicas, mesmo adotando-se as opções mais conservadoras abertas pela legislação, tais como a seleção pela máxima oferta pecuniária, que ainda resgata a competência do Poder Público em determinar as tarifas.
Entretanto, o novo regime tende a arrancar as empresas de sua estabilidade letárgica (que, inclusive, já hoje verifica ser falsa, dado o desafio recentemente colocado pelo transporte ilegal). As operadoras, pois, passarão a ter de lutar por um contrato que parecia assegurado eternamente. Especialmente o uso de critérios econômicos de seleção haverá de transtornar as empresas de gerência mais tradicional (ou seja, as mais atrasadas), que estavam acostumadas de transferir calmamente sua ineficiência para o custo do sistema.
Por outro lado, o Poder Público haverá de sofrer uma reestruturação profunda, uma vez que novas e complexas tarefas terão de ser dominadas, tais como a execução freqüente de processos licitatórios (que haverão de obedecer estritamente à letra da Lei, cheia de detalhes, uma vez que qualquer deslize poderá acarretar a anulação do custoso processo), assim como a administração dos novos contratos, que haverão de ser mais formais e rigorosos. Esses contratos sujeitarão, de um lado, os operadores a uma disciplina mais rigorosa no tocante ao cumprimento das normas; mas, de outro, consolidarão seus direitos frente às autoridades.
Contudo, o novo regime pode resultar em uma simplificação de algumas rotinas de controle, uma vez que o Poder Público haverá de se concentrar nas variáveis realmente relevantes para a qualidade do serviço, deixando maior espaço para a decisão empresarial. O uso extensivo de tecnologias de informática pode contribuir para essa tendência. Por fim, pode-se prever que o novo regime irá acarretar uma migração interna de pessoal entre os departamentos dos órgãos de gerência, liberando mão-de-obra dos setores que terão suas tarefas simplificadas, e alimentando aquelas atividades relevantes que necessitarão um aumento dos recursos humanos.
De uma maneira geral, e apesar das dificuldades, o novo regime deverá produzir resultados positivos e importantes, especialmente pela transferência dos ganhos de eficiência para a sociedade. Mas o Poder Público e as empresas estarão igualmente no lado dos beneficiados, uma vez que suas relações mútuas tornar-se-ão mais transparentes.
Analisando todo o setor de ônibus urbano, o novo regime reforçará a consolidação e o crescimento dos grupos empresariais modernos, lhes abrindo novos mercados por todo o país e até no estrangeiro (portanto, o novo regime pode ser considerado como uma escola para a competitividade global).
Para as empresas mais atrasadas, as alternativas restantes serão se vender para as empresas vencedoras, procurar novos nichos no transporte de passageiros, (turismo, transporte escolar, entre outros) ou, porque não, celebrar contratos de franquia com as empresas de know-how mais avançado e que não tenham planos de expansão física, além de serem subcontratadas pelas empresas maiores.
Por tudo já escrito, não incorre em equívoco dizer-se que o exercício da atividade de transporte de passageiros poderá e deverá sofrer limitações, ou até mesmo inibição do exercício da atividade, sempre que o interesse maior da coletividade o exigir. Portanto, com muito mais razão há de incidir numa maior fiscalização, controle ou até mesmo vedação em relação ao transporte de passageiros realizado às margens do controle da Administração, ou em afronta a normas técnicas.