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Licenciamento ambiental em área suscetível a enchentes e inundações: preponderância da lei federal sobre a lei municipal menos restritiva

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27/07/2010 às 09:33
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Parecer negou a concessão de licença ambiental prévia a empreendimento projetado sem obediência ao afastamento mínimo das margens de canais e cursos d’água estabelecido em lei federal, a despeito da existência de norma local menos rigorosa. Em razão de o empreendimento se localizar em área suscetível a enchentes e alagamento, exige-se a demonstração técnica de que a construção não causará danos ao meio ambiente e à coletividade.

Parecer Jurídico n.º 000/2010

Processo n.º 000/2010

Interessado: Empresa Ltda.

Objeto: Licença Ambiental Prévia – LAP

Ementa: Licença Ambiental Prévia - Afastamento de 30 metros das margens de canais e cursos d’água- Preponderância da lei federal (norma parâmetro) sobre a lei municipal (norma local) - Empreendimento localizado em área suscetível a enchentes e alagamentos - Ponto de confluência de canais responsáveis pela drenagem de duas sub-bacias (exutória) - Necessidade de demonstração técnica por parte do empreendedor que o empreendimento não causará danos ao meio ambiente e à coletividade - Aplicação dos princípios jus-ambientais da precaução e da prevenção.


PARECER

Trata-se de pedido de Licença Ambiental Prévia - LAP para a construção de um residencial multifamiliar com 11 (onze) blocos e 264 (duzentos e sessenta e quatro) apartamentos, em terreno localizado em Área Mista de Serviços em trecho urbano deste Município (conforme Plano Diretor), formulado por EMPRESA LTDA., como se verifica no presente Processo n.º 000/2010.

Analisados os autos, os documentos exigidos para o empreendimento, a área em questão (de acordo com o Plano Diretor), os potenciais danos e impactos que o empreendimento pode gerar, tanto presentes quanto futuros, a área de entorno do terreno, as eventuais Áreas de Preservação Permanente, os recursos hídricos, flora e fauna da região, a Equipe Técnica da Fundação Municipal de Meio Ambiente manifestou-se, em síntese, da seguinte forma:

"[...]

O interessado apresentou todos os documentos necessários para a análise do Licenciamento Ambiental Prévio, inclusive Alvará de Licença da SUSP e Parecer Técnico SEPLAN [...]. Porém, nas plantas com o projeto da edificação, não foi respeitado o afastamento de 30 metros das margens dos canais e cursos d’água existentes na localidade, exigidos pela lei federal 4.771/1965, conforme consta na consulta de viabilidade fornecida pela SUSP.

De acordo com o Estudo Ambiental Simplificado (EAS) apresentado, o qual foi considerado adequado pelos técnicos desta Fundação, foi promovida a retificação dos cursos de água lindeiros ao terreno, inclusive com a concretagem das margens e do leito de um deles. Porém, o empreendimento está inserido na região de alagamento quando submetida a fortes enxurradas.

[...] Por meio da análise da topografia do terreno na base de dados disponibilizada pela Prefeitura Municipal, foi possível identificar que o empreendimento situa-se na exutória (ponto onde escoa toda a água drenada pela bacia) de confluência de dois canais de escoamento de águas pluviais, responsáveis pela drenagem de duas sub-bacias.

Conforme as conclusões apontadas no estudo de drenagem apresentado no EAS, devido ao sub-dimensionamento dos canais de escoamento existentes no entorno do empreendimento, esta área é suscetível a enchentes, que tendem a ocorrer em períodos curtos, menores que 1 (um) ano. Assim, tornando-se necessário a adoção de medidas de controle para evitar possíveis alagamentos.

[...]" (grifo não original)

Após, com o Parecer Técnico conclusivo, vieram-nos os autos, momento em que passamos a analisar.


I – Os documentos apresentados para a LAP

Conforme as considerações exaradas no Parecer Técnico, o interessado apresentou todos os documentos legalmente exigidos e necessários para a análise do Licenciamento Ambiental Prévio, inclusive Alvará da Secretaria de Serviços Públicos - SUSP, Parecer Técnico da Secretaria de Planejamento e de Desenvolvimento Urbano e Social - SEPLAN e Estudo Ambiental Simplificado – EAS, o qual foi considerado adequado para avaliação do corpo técnico da Fundação Municipal.


II – O afastamento de 30 metros das margens de canais e cursos d’água - Preponderância da Lei Federal (norma-parâmetro) sobre a Lei Municipal (norma-local)

De acordo com as conclusões do Parecer Técnico exarado pelo corpo técnico da Fundação Municipal do Meio Ambiente, nas plantas e projetos do empreendimento não foi respeitado o afastamento legal de 30 metros das margens dos canais existentes no terreno onde se pretende edificar, áreas estas consideradas pela legislação pátria como de Preservação Permanente.

Efetivamente, partes do terreno a ser edificado estão localizadas junto a canais ou cursos d’água, áreas que sofrem proteção e restrições legais quanto ao uso e interferência do homem por diversos diplomas legais, entre eles a Lei Federal n.º 4.771/65, a Lei Federal n. 6.938/65, a Lei Federal n.º 10.257/01, o Plano Diretor do Município, entre outros.

In casu, a questão da Área de Preservação Permanente – APP no terreno do interessado cinge-se a seguinte situação: deverá o interessado respeitar a margem de 30 metros do curso d’água, conforme dispõe o Código Florestal, lei federal que trata de normas e parâmetros gerais; ou deverá o interessado respeitar a margem de 15 metros do curso d’água, conforme dispõe o Plano Diretor do Município, uma lei municipal que trata de assuntos e interesses locais?

Sobre o relevante e delicado tema, permitimo-nos breve digressão.

A proteção ambiental é um dos valores basilares que inspiram o ordenamento jurídico brasileiro. A Legislação Ambiental, como um todo, é prevista num feixe de normas não codificadas ou consolidadas que regulamentam a Constituição Federal, disciplinando as diretrizes gerais a serem seguidas (art. 225 da CF), tendo o Código Florestal (Lei n.º 4.771/65 e suas alterações posteriores) e a Lei n. 6.938/65 sido recepcionados pela nova ordem jurídica trazida pelo constituinte originário de 1988.

O art. 24 da Constituição da República determina que:

"Art. 24 - Compete a União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

(...)

VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição."

E continua a Carta Magna sobre a competência dos Municípios:

"Art. 30 - Compete aos municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber.

(...)

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano."

Do exame conjunto dos dois dispositivos é possível concluir que hoje, tecnicamente, o Município tem, em área ambiental, competência suplementar às normas editadas pela União e pelos Estados.

Em conformidade com os princípios de defesa do meio ambiental constantes na Constituição Federal, a Lei n.º 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente), em seu art. 14, §1º, estabelece que:

"Art. 14. [...]

§ 1º Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente."

A Lei n.º 4.771/65 (Código Florestal), do mesmo modo que a Lei n.º 6.938/65, também foi recepcionada pela nova ordem jurídica trazida pela Constituição Federal de 1988. Regulamentando a situação em análise, do seu texto se extrai:

"Art. 2°. Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas:

a) ao longo dos rios ou de qualquer curso d'água desde o seu nível mais alto em faixa marginal cuja largura mínima será:

1 - de 30 (trinta) metros para os cursos d'água de menos de 10(dez)metros de largura;

2 - de 50 (cinqüenta) metros para os cursos d'água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinqüenta) metros de largura;

3 - de 100 (cem) metros para os cursos d'água que tenham de 50 (cinqüenta) a 200 (duzentos) metros de largura;

4 - de 200 (duzentos) metros para os cursos d'água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura;

5 - de 500 (quinhentos) metros para os cursos d'água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros;

[...]

Parágrafo único. No caso de áreas urbanas, assim entendidas as compreendidas nos perímetros urbanos definidos por lei municipal, e nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, em todo o território abrangido, observar-se-á o disposto nos respectivos planos diretores e leis de uso do solo, respeitados os princípios e limites a que se refere este artigo."

Consigne-se que a referida Lei Federal não fala em zona de expansão urbana, zona residencial, zona industrial, comercial etc., tratando pura e simplesmente de "floresta e demais formas de vegetação natural situadas ao longo dos rios ou de qualquer curso d’água".

Contudo, de forma equivocada a nosso ver, escorada na competência conferida pela Constituição, o Plano Diretor do Município estabeleceu norma menos restritiva do que a prevista no Código Florestal, exigindo que se preserve como APP apenas 15 metros das margens dos rios e cursos d’água (art. 162 do Plano Diretor), ferindo de morte os princípios ambientais da máxima proteção e da norma suplementar mais restritiva, pro meio ambiente.

Cumpre registrar que o parágrafo único do art. 2º do Código Florestal, que foi inserido à lei somente em 18/07/1989, muito embora posterior ao Plano Diretor do Município, que é de 1985, deve ser totalmente respeitado, como norma-regra ou norma-parâmetro que efetivamente é.

Tal dispositivo, o parágrafo único do art. 2º do Código Florestal, não faculta aos Municípios a retirada da qualidade de "preservação permanente" de uma determinada área, nem tampouco autoriza reduzir a restrição estabelecida pelo Código Florestal, sob a finalidade de promover a função social da propriedade, até porque o disposto no artigo 182 da Constituição Federal é claro e preciso ao se referir a tal objetivo.

Por força da noção de proteção máxima do meio ambiente, é corrente a possibilidade dos Estados e Municípios, em atendimento aos seus interesses particulares, ampliarem as determinações contidas na norma federal, sendo vedado, contudo, restringi-las.

Esta Procuradoria Geral não desconhece, por suposto, aquelas situações excepcionais e peculiares que merecem tratamento próprio e diferenciado por parte da Administração Pública, como por exemplo, nos espaços urbanos consolidados e contínuos, já bastante antropizados, onde não há mais riqueza ambiental alguma a ser preservada; locais onde a presença maciça de construções urbanas e ações do homem impedem a preservação do meio ambiente, com rios e cursos d’água correndo em galerias de concreto subterrâneo; locais que historicamente o homem vem se fixando, onde o desrespeito à legislação ambiental e ao meio ambiente é fato e atravessa os séculos etc. Esse não é evidentemente o caso dos autos!

Vejamos o que diz a doutrina pátria a respeito:

"Pela primeira vez em nossa história política, a Constituição de 1988 contemplou o meio ambiente em capítulo próprio, considerando-o como ‘bem de uso comum do povo’ e essencial à qualidade de vida, impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de preservá-lo e defendê-lo, para as gerações presentes e futuras (art. 225). Referindo-se a poder Público, a competência abrange os três níveis de Governo, mas a Carta distinguiu a competência executiva comum, que cabe a todas as entidades estatais (art. 23, VI), da competência legislativa concorrente, que é restrita à União, aos estados e ao Distrito Federal (art. 24, VI e VII). Aos Municípios cabe apenas suplementar a legislação federal e estadual 'no que couber' (art. 30, II), o que significa que só podem fazê-lo nos assuntos de predominante interesse local." (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999, p. 520).

"Também por autorização constitucional, certas regras GERAIS da área urbana serão determinadas pela União, como verdadeira limitação ao conteúdo da lei municipal sobre a ordenação do solo urbano, em razão da redação do art. 21, incisos IX e XX, CF/88. Ambos os dispositivos dão um sentido de homogeneidade do desenvolvimento urbano, ou seja, atua a União na 'limitação à matéria da legislação municipal'." (MORAES, Luís Carlos Silva de. Código Florestal Comentado. 2ª ed., São Paulo: Atlas, 2000, p. 46)

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Especificamente sobre a vedação aos Municípios de restringirem as normas federais de cunho ambiental, destaca-se:

"Além disso, a legislação municipal que regula o uso do solo urbano deve, da mesma forma, ater-se às prescrições gerais da União, na esfera de sua competência. Por exemplo, se norma geral da União, como é o caso do Código Florestal, disciplina determinada matéria, não pode o Município, alegando autonomia, legislar diminuindo a restrição geral. Pode, até criar novas restrições na proteção do meio ambiente, porém não afastar as existentes na lei geral." (FREITAS. Vladimir Passos. A constituição federal e a efetividade das normas ambientais. 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 70).

"A União fica adstrita à edição de normas gerais, embora nem sempre seja claro em que se distinguem as normas gerais das não gerais. Essa legislação da União não exclui o poder dos Estados e do Distrito Federal, suplementarmente, de disporem sobre a mesma matéria. Deve-se entender por suplementarmente o seguinte: na inexistência de lei federal os Estados e o Distrito Federal legislarão livremente, sem restrições. A sobrevinda, contudo, ou a preexistência de uma lei federal sobre a matéria só tornam válidas as disposições que não contrariem as normas gerais da União." (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 306).

Toda esta intelecção representa o reconhecimento, pela Constituição Federal, da importância que tem a gestão unificada ou conjunta da coisa pública, mais precisamente do meio ambiente. A Constituição resguardou a superlativa competência da União e preveniu para que as normas gerais, por ela postas e disciplinadas, em termos de parâmetros constitucionais, não ficassem arranhadas ou fossem invadidas pelas legislações concorrente dos Estados e dos Municípios.

Sobre o assunto em tela, a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina - TJSC, muito embora não seja unânime sobre o assunto, já se posicionou e vem se posicionando da seguinte forma:

"EMBARGOS INFRINGENTES - PODER DE LEGISLAR EM MATÉRIA AMBIENTAL - COMPETÊNCIA SUPLEMENTAR DOS MUNICÍPIOS - PLANO DIRETOR - ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE - IMPOSSIBLIDADE DE MINORAR RESTRIÇÃO PREVISTA NO CÓDIGO FLORESTAL." (Embargos Infringentes n.º 2004.022725-6, de Joaçaba, Voto Des. Volnei Carlin, j. em 08/06/05).

"AÇÃO CIVIL PÚBLICA - PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE - CONFLITO ENTRE LEI FEDERAL E MUNICIPAL - COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONSTITUCIONAL CONCORRENTE - LEI MUNICIPAL DE CARÁTER SUPLETIVO. O Município, através de seus órgãos ambientais responsáveis, terá competência supletiva para estabelecer normas e procedimentos com vistas a adequá-los às peculiaridades locais. Ademais, qualquer ato da Administração Pública não pode ter o condão de permitir dano ao meio ambiente, que goza de proteção constitucional." (Apelação Cível n.º 2001.000831-4, de Joaçaba, Rel. Des. Volnei Carlin, j. em 11/04/02).

"ADMINISTRATIVO - MEIO AMBIENTE - ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE - CÓDIGO FLORESTAL - ALVARÁ DE CONSTRUÇÃO – INVIABILIDADE.

- Age dentro da lei a Administração Municipal que nega concessão de alvará para a construção de edifício em área destinada por lei federal à preservação permanente.

- Não afronta o princípio da razoabilidade a aplicação de norma que visa à proteção do meio ambiente, quando as restrições por ela imposta são proporcionais ao fim a que se destina, qual seja, a garantia e manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, erigido pela Lei Fundamental como direito e dever de todos." (Apelação Cível em Mandado de Segurança n. 2004.002238-7, de Joaçaba, Rel. Des. Luiz Cézar Medeiros, j. em 01/07/2004)

Ante todo o entendimento acima esposado, a Procuradoria do Município, ciente das respeitáveis e jurídicas posições em contrário, é pela imposição da supremacia da Legislação Federal (Código Florestal) sobre o Plano Diretor do Município.

Assim, com vistas ao princípio basilar da máxima proteção, que deve sempre nortear as ações da Administração Pública, deve o interessado, caso a municipalidade entenda por licenciar o empreendimento, respeitar a faixa de 30 metros de APP às margens dos canais e cursos d’água existentes no terreno a ser edificado, conforme dispõe o Código Florestal em seu art. 2º (Lei n.º 4771/65), sendo certo que quaisquer agressões ao meio ambiente, omissões danosas, extrapolações e não atendimento às condicionantes da licença e infrações à ordem legal e jurídica por parte do interessado, deverão ser alvo de rápida e enérgica atuação por parte do Poder Público, para que se promova a efetiva responsabilização civil, penal e administrativa do infrator.


III – O empreendimento está localizado em área suscetível a enchentes e alagamentos - Ponto de confluência de canais responsáveis pela drenagem de duas sub-bacias (exutória)

Tanto no Parecer Técnico exarado pelo corpo multidisciplinar da Fundação Municipal de Meio Ambiente quanto nos diversos documentos e estudos apresentados pelo próprio interessado, notadamente no Estudo Ambiental Simplificado – EAS (fls. 21 a 31, 64 a 66, 90 a 92), que foi considerado adequado pelos técnicos da Fundação, verifica-se que efetivamente o empreendimento visado está inserido em uma região de alagamentos e inundações, isso porque se situa na exutória (ponto onde escoa toda a água drenada pela bacia) de confluência de dois canais de escoamento de águas, responsáveis pela drenagem de duas sub-bacias hidrográficas.

O plexo normativo e legal pátrio preocupa-se e muito com tais áreas suscetíveis a alagamentos e enchentes, tanto que há uma série de dispositivos que visam a proteger, restringir ou mesmo proibir qualquer forma de intervenção do homem nos referidos locais.

A título de exemplo, citamos a Lei n.º 6.766/79, a Lei n.º 4.771/65, a Leis Ordinárias Municipais de números 1.605/85 e 1.606/85, entre muitas outras, que tratam de forma direta ou indireta sobre a delicada questão.

E os motivos desta preocupação são muito simples, porém significativos: a lei visa a proteger não só o meio ambiente, os recursos naturais, os recursos hídricos, o solo etc., mas também o ser humano, as famílias que naquelas áreas procuram se instalar, o empreendedor, e o próprio Poder Público, haja vista que o dano ambiental e os grandes cataclismos, quando ocorrem, e na maioria das vezes de forma imprevisível, atingem a todos indistintamente, havendo responsabilidades múltiplas a serem apuradas no seu contexto.

Os empreendimentos de cunho residencial fazem parte do relevante processo de urbanização, que implica aspectos ambientais, urbanísticos, sanitários, administrativos, civis etc., e devem ser antecipadamente aprovados, por meio de licenciamento, pelos órgãos públicos competentes, manifestando o empreendedor o compromisso pela execução das obras básicas e necessárias para que o empreendimento apresente as condições ambientais e estruturais exigidas por lei, dentro de um determinado prazo. Esse é o mínimo necessário para que a cidade se expanda sustentavelmente.

Os empreendimentos em geral devem se ater não só às comodidades dos que irão habitar a nova área, mas principalmente à segurança e bem estar do meio ambiente, de acordo com específica legislação, e é justamente neste ponto que reside toda a preocupação desta Fundação Municipal.

O art. 3º, parágrafo único, da Lei n.º 6.766/79 (Lei do Parcelamento do Solo Urbano) que, muito embora não se encaixe perfeitamente no presente caso pode ser usado via analogia, tendo em vista principalmente seu caráter protetor, trata a questão da seguinte forma: "não será permitido o parcelamento do solo: I - em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, antes de tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas".

E o dispositivo legal é muito claro: deve o empreendedor demonstrar de forma cabal que tomou e irá tomar todas as providências seguramente necessárias para assegurar o escoamento das águas, respeitando, é claro, todas as áreas consideradas de preservação, sejam permanente ou não, a flora, a fauna, os recursos ambientais etc., o que até agora não comprovou o interessado de forma eficiente!

Cumpre observar que tal vedação tem por finalidade garantir a satisfação das funções sociais da cidade, proporcionando aos seus habitantes vida digna e com qualidade, e ao Poder Público segurança e eficiência no trato da coisa pública.

Nesse ponto, destacamos a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça Catarinense:

"INDENIZAÇÃO. PERDAS E DANOS. AQUISIÇÃO DE LOTE EM ÁREA PANTANOSA E SUJEITA A FREQÜENTES INUNDAÇÕES. APROVAÇÃO DE LOTEAMENTO SEM CONDIÇÕES DE HABITABILIDADE. VÍCIO OCULTO QUE, SE FOSSE DA CIÊNCIA DOS COMPRADORES, SERIA CAUSA DE NÃO CONCLUSÃO DO NEGÓCIO. RECURSO DESPROVIDO.

O vendedor é responsável pela adequação do loteamento às normas técnicas de saneamento e infra-estrutura. Assim, a aquisição de imóvel em terreno alagadiço e pantanoso, com sujeição a perigo constante para a estrutura do imóvel, é caso evidente de dever de indenizar os prejuízos.

O loteamento deve proporcionar não apenas a comodidade dos que irão habitar na nova área, mas principalmente deve garantir a segurança e as condições mínima de higiene e saneamento. O art. 3º, parágrafo único, da Lei n. 6.766/79 (Lei do Parcelamento do Solo Urbano), ademais, é enfático ao dispor que: ‘não será permitido o parcelamento do solo: I - em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, antes de tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas’. "

(Apelação Cível n. 2000.011874-5, de Joinville. Relator Des. Carlos Prudêncio)

Impende destacar que toda esta situação pode sujeitar a própria municipalidade a responsabilidades, uma vez que é seu dever aprovar e licenciar, e posteriormente fiscalizar, os empreendimentos considerados potencialmente nocivos e impactantes ao meio ambiente no trato de questões de interesse local, como é o caso dos autos. Não custa lembrar que as condutas omissivas do Município podem gerar responsabilidades de ordem civil e penal, ainda que a conduta comissiva maior seja praticada exclusivamente pelo empreendedor.

Mais uma vez, vejamos o entendimento do Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina sobre loteamentos, construções e empreendimentos em geral erigidos em área comprovadamente propícia a enchentes e inundações:

"APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS. RESIDÊNCIA DESTRUÍDA POR INUNDAÇÕES. APROVAÇÃO DE LOTEAMENTO QUE NÃO ATENDE ÀS EXIGÊNCIAS MÍNIMAS DE INFRA-ESTRUTURA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA ENTRE O AGENTE LOTEADOR E O MUNICÍPIO. NEXO DE CAUSALIDADE E DANOS DEMONSTRADOS. CULPA, EMBORA DISPENSÁVEL, ANTE A RESPONSABILIDADE OBJETIVA, TAMBÉM EVIDENCIADA. OBRIGAÇÃO EM INDENIZAR CARACTERIZADA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO, APENAS PARA LIMITAR OS DANOS EMERGENTES. NO MAIS, SENTENÇA MANTIDA."

(Apelação Cível n. 2005.035166-5, de São José. Relator Des. Ricardo Roesler)

"AÇÃO CIVIL PÚBLICA. APROVAÇÃO DE LOTEAMENTO COM AFRONTA A REGRAS DE ORDEM PÚBLICA. TUTELA DE INTERESSES DIFUSOS E COLETIVOS. PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO [...].

A omissão do Município, ao aprovar loteamento disforme dos padrões de infra-estrutura legal, em nada socorre o loteador, pois sua responsabilidade pela conclusão dos trabalhos de infra-estrutura permanece inalterada. E esta responsabilidade decorre da própria Lei Substantiva Civil (artigos 159 e 1.518).

Num segundo plano, mas, com idêntica responsabilidade, o Município divide com o loteador a responsabilidade pela lesão a que deu causa, ao aprovar deliberadamente o loteamento, com inobservância das regras estabelecidas pela legislação municipal específica."

(Apelação Cível n. 1988.087420-8, de Canoinhas. Relator Des. Francisco Borges)

Desta forma, esta Procuradoria Geral entende que o empreendimento só pode ser licenciado e autorizado pelo Município caso o interessado demonstre tecnicamente, de forma cabal, segura e eficiente, que a região onde pretende implantar seu empreendimento não apresentará riscos ao meio ambiente nem aos futuros adquirentes dos imóveis do empreendimento, e ainda, que as obras e soluções técnicas que pretende realizar ou efetuar corrigirão ou sanarão totalmente a ocorrência de enchentes, alagamentos e inundações no terreno, tendo em vista que a área escolhida para o empreendimento situa-se no exato ponto de confluência de canais responsáveis pela drenagem de duas sub-bacias hidrográficas do Município (exutória).

Caso o interessado não promova as comprovações técnicas acima estipuladas, ou as promova de forma ineficaz ou inconclusiva, a Procuradoria Geral do Município se posiciona contra o empreendimento, com supedâneo nos princípios da precaução e prevenção, o qual se passará a discorrer no próximo item, que ora se avizinha.

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Sobre o autor
Felipe Neves Linhares

Advogado. Procurador do Município de Palhoça-SC. Professor Substituto da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Membro da Comissão de Meio Ambiente da OAB/SC. Representante da OAB/SC na Câmara Técnica para Assuntos Agro-Florestais do Conselho Estadual do Meio Ambiente - CONSEMA. Pós-graduado pela Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina ESMESC. Pós-graduado com o título de Especialista Acadêmico em Direito Público pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina CESUSC. Pós-graduado com o título de Especialista Acadêmico em Direito Material e Processual Civil também pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina CESUSC.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LINHARES, Felipe Neves. Licenciamento ambiental em área suscetível a enchentes e inundações: preponderância da lei federal sobre a lei municipal menos restritiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2582, 27 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/17048. Acesso em: 21 nov. 2024.

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