LEIS AUTORIZATIVAS MUNICIPAIS. INCONSTITUCIONA-LIDADE. PRINCÍPIOS DA INDEPENDÊNCIA E HARMONIA ENTRE OS PODERES. INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE E NÃO RECEPÇÃO PELA NOVA CONSTITUIÇÃO. Em decorrência dos princípios da independência e harmonia entre os Poderes, as leis de iniciativa de vereadores, com caráter autorizativo, padecendo de vício de origem, são inquinadas de inafastável inconstitucionalidade, devendo ser retiradas do arcabouço jurídico vigente, pela via legal adequada. Consoante a doutrina e a jurisprudência pacífica do STF, a análise da legislação que precedeu à nova ordem constitucional, caso se configure seu desacordo com a nova ordem jurídica então estabelecida, deve ser reconhecido que não foram pela nova Carta recepcionadas, sendo então daquela excluídas.
CONSULTA
Encaminha-nos Câmara Municipal situada em município localizado no Estado do Rio de Janeiro, por intermédio de seu Consultor Jurídico, consulta na qual expõe situação existente e formula, ao final, questões nos seguintes termos:
“No âmbito desta Casa Legislativa, foi formada uma Comissão Especial para análise da legislação vigente no Município, sendo levantada a existência de 624 leis autorizativas das 4.123 analisadas. O objetivo da referida Comissão é eliminar do ordenamento jurídico municipal as leis sem efeito ou que sejam consideradas inconstitucionais. Nesse contexto, gostaríamos da manifestação desta Nobre Instituição quanto às seguintes indagações:
1 – Qual é a opinião desta Instituição em relação às leis municipais autorizativas, cuja iniciativa partiu de um membro do Poder Legislativo?
2 – A Constituição do Estado do Rio de Janeiro foi promulgada em 05 de outubro de 1989. Leis municipais editadas antes da CE devem ser analisadas sob o prisma da recepção ou não recepção pela CE, inclusive quanto à observância do processo legislativo? Enfim, como deve ser analisada, na opinião desta Instituição, a constitucionalidade de leis municipais, inclusive autorizativas, editadas antes da promulgação da CE?”
PARECER
A Constituição Federal estabelece princípios em seu Título I, a serem obrigatoriamente observados, dentre os quais cabe aqui destacar o da independência e harmonia entre os Poderes, expressamente previsto no:
“Art. 2º. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
A Constituição do Estado do Rio de Janeiro, em igual sentido, prevê:
“Art. 7º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
A Lei Orgânica do Município consulente disciplina no mesmo sentido, como não poderia deixar de ser, espelhando ambas disposições, ao estabelecer que:
“Artigo 7º - O Governo Municipal é constituído pelos Poderes Legislativo e Executivo, independentes e harmônicos entre si.
Parágrafo Único - É vedada aos Poderes Municipais a delegação recíproca de atribuições, salvo nos casos previstos nesta Lei Orgânica”.
Ao analisar a matéria, Hely Lopes Meirelles ensina que:
“No sistema brasileiro o governo municipal é de funções divididas, cabendo as executivas à Prefeitura e as legislativas à Câmara de Vereadores. Esses dois Poderes, entrosando suas atividades específicas, realizam com independência e harmonia o governo local, nas condições expressas na lei orgânica do Município.
O sistema de separação de funções - executivas e legislativas - impede que o órgão de um Poder exerça atribuições do outro. Assim sendo, a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regras para a administração; a Prefeitura as executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local”[1] (negritamos).
As normas legais, de atribuição do Legislativo, têm caráter genérico e abstrato (e não caráter individual e concreto), sob pena de invadir a competência constitucionalmente fixada para o Poder Executivo, sendo que este, também, não pode delegar as atribuições que lhe são exclusivas.
As mesmas Cartas estabelecem, em relação à iniciativa legislativa, que:
A – Constituição Federal:
“Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
§ 1º - São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;
II - disponham sobre:
a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;
b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;
c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;
d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI;
f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva” (negritamos).
B – Constituição Estadual do Rio de Janeiro:
“Art. 112 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Ministério Público e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
§ 1º - São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:
I - fixem ou alterem os efetivos da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar;
II - disponham sobre:
a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica do Poder Executivo ou aumento de sua remuneração;
b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, reforma e transferência de militares para a inatividade;
c) organização do Ministério Público, sem prejuízo da faculdade contida no artigo 172 desta Constituição, da Procuradoria-Geral do Estado e da Defensoria Pública;
d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias de Estado e órgãos do Poder Executivo” (negritamos).
C – Lei Orgânica Municipal:
“Artigo 52 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer Vereador ou Comissão da Câmara, ao Prefeito Municipal e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Lei Orgânica.
Artigo 53 - Compete privativamente ao Prefeito Municipal a iniciativa das leis que versem sobre:
I - regime jurídico dos servidores;
II - criação e extinção de cargos e funções da administração direta, fundacional e autárquica do Município, ou aumento de sua remuneração;
III - orçamento anual, diretrizes orçamentárias e plano plurianual;
IV - criação, estruturação e atribuições dos órgãos da administração direta e indireta do Município” (negritamos).
Em decorrência de tais dispositivos das Constituições Federal e Estadual, assim como da Lei Orgânica do Município consulente, resta evidenciado que incumbe privativamente ao Poder Executivo a iniciativa de leis que versem acerca da gestão municipal. Sendo necessárias leis para o seu exercício, somente o Executivo poderá iniciá-las, sob pena de caracterizar-se invasão de competência, viciando o processo legislativo e seu produto, que se configura como inconstitucional.
Portanto, todas as leis “autorizativas” locais, que revestem-se desta característica de ingerência na gestão municipal padece de vício original, sendo insanavelmente inconstitucionais.
Este Centro de Estudos manifestou-se recentemente em idêntico sentido, mediante estudo[2] embasado, além de doutrina abalizada, em farta jurisprudência prolatada no âmbito de Ações Diretas de Inconstitucionalidade, a merecer transcrição:
“A independência e harmonia dos poderes é princípio básico da República brasileira, insculpido no artigo 2º da Constituição Federal, artigo 5º da Constituição do Estado de São Paulo, bem como na Lei Orgânica do Município (...), em seu artigo 2º. Não pode haver invasão na esfera do Poder Executivo pelo Poder Legislativo ao iniciar lei cuja iniciativa pertença ao primeiro, especialmente nas atribuições de gestão municipal, sob pena de desnaturar-se a destinação dos Poderes, base da República.
Decorrente deste princípio é o processo legislativo, que fixa as regras formais de formação das normas pela própria natureza e pelas atribuições dos Poderes. Desobedecer estes princípios implica inconstitucionalidade da lei, conforme disserta José Afonso da Silva:
‘Essa incompatibilidade vertical de normas inferiores (lei, decretos etc.) com a constituição é o que, tecnicamente, se chama inconstitucionalidade das leis ou dos atos do Poder Público, e que se manifesta sob dois aspectos: (a) formalmente, quando tais normas são formadas por autoridades incompetentes ou em desacordo com formalidades ou procedimentos estabelecidos pela constituição; (b) materialmente, quando o conteúdo de tais leis ou atos contraria preceito ou princípio da constituição.
Essa incompatibilidade não pode perdurar, porque contrasta com o princípio da coerência e harmonia das normas do ordenamento jurídico, entendido, por isso mesmo, como reunião de normas vinculadas entre si por uma fundamentação unitária.‘[3]‘ (negritamos).
Várias decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo acompanham esse entendimento. Podemos citar as ações diretas de inconstitucionalidade que tratam de vício de iniciativa de projetos dos parlamentares: 169.680-0/6-00 – Tietê, Órgão Especial, rel. Des. Artur Marques, 17.6.2009; 178.236-0/1-00 - Presidente Prudente, Órgão Especial, rel. Des. A. C. Mathias Coutro, 30.09.2009; 179.359-0/0-00 – São José do Rio Preto, Órgão Especial, rel. Des. Eros Piceli, 04.11.2009; 178.849-0/9– São José do Rio Preto, Órgão Especial, rel. Des. Samuel Júnior, 10.11.2009; 179.997-0/0-00 – São José do Rio Preto, Órgão Especial, rel. Des. José Santana, 18.11.2009; 155.736-0/5 – Dracena, Órgão Especial, rel. Des. Maurício Vidigal, 25.11.2009; 168.963-0/0 – Catanduva, Órgão Especial, rel. Des. Antonio Carlos Malheiros, 03.02.2010; 994.09.228592-0 – Presidente Prudente, Órgão Especial, rel. Des. Boris Kauffmann, 10.03.2010; 182.596-0/8-00– Louveira, Órgão Especial, rel. Des. Artur Marques, 10.03.2010;.994.09.224409-5– Santo André, Órgão Especial, rel. Des. José Reynaldo, 17.03.2010; 180.371-0/7– Catanduva, Órgão Especial, rel. Des. Sousa Lima, 17.03.2010.
No voto do acórdão da ADIn 994.09.220008-8-Guarulhos, Órgão Especial, rel. Des. Maurício Vidigal, 10.2.2010, consta a seguinte passagem:
‘Este tribunal tem reiteradamente decidido que a atuação administrativa do Poder Executivo não pode ser coarctada por atos do Legislativo. Conforme decisões proferidas nas ADINs n°s 553.583-0, 43.987, 38.977, 41.090-1, ‘Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito’.Há, portanto, vício na iniciativa na lei discutida. Como a douta Procuradoria Geral da Justiça já teve a oportunidade de afirmar em outra ocasião, ‘Ao Poder Legislativo é vedada a condução da administração da cidade, tarefa que incumbe, no Município, ao Prefeito, ou ao que, modernamente, chama-se de ‘Governo’, que tem na lei um dos seus mais relevantes instrumentos. O poder de iniciativa neste campo – administração da Cidade – é do Executivo’” (grifos nossos).
Por seu turno, em relação às “leis autorizativas”, desconsideradas aquelas que por definição legal ostentam tal caráter[4], caberia reflexão quanto a sua real caracterização, no caso municipal.
Merece destaque o ensinamento basilar de Miguel Reale[5], no sentido de que:
“Lei, no sentido técnico desta palavra, só existe quando a norma escrita é constitutiva de direito, ou, esclarecendo melhor, quando ela introduz algo de novo com caráter obrigatório no sistema jurídico em vigor, disciplinando comportamentos individuais ou atividades públicas. (...) Nesse quadro, somente a lei, em seu sentido próprio, é capaz de inovar no Direito já existente, isto é, de conferir, de maneira originária, pelo simples fato de sua publicação e vigência, direitos e deveres a que todos devemos respeito”.
O usual é que esse comuníssimo elenco infindável de normas “autorizativas” traga “exemplares” caracterizados pela ausência de imperatividade, objetividade e coerção, o que, por si só, segundo a doutrina abalizada acima, as desnatura enquanto leis.
Cabe, em relação às mesmas, a adoção de medidas destinadas à sua exclusão do arcabouço jurídico, pela via legalmente adequada.
Recomendável, ainda, que futuramente a Casa de Leis local passe a observar, no próprio processo legislativo, o quanto indispensável para a conscientização dos representantes eleitos localmente em relação àquilo que seus pares do âmbito federal estabeleceram (em que pese sua aplicabilidade obrigatória se restrinja internamente à Câmara Federal), na:
“SÚMULA DE JURISPRUDÊNCIA 1 - PROJETOS AUTORIZATIVOS
1. Entendimento:
1.1 Projeto de lei, de autoria de Deputado ou Senador, que autoriza o Poder Executivo a tomar determinada providência, que é de sua competência exclusiva, é inconstitucional.
1.2. (...).
2. Fundamento:
2.1. § 1º do art. 61 da Constituição Federal
2.2. (...)
3. Precedentes:
(...)
3.5. Ofício nº 163/90 - CCJR
Declarou a prejudicialidade de 112 projetos de lei que autorizavam o Poder Executivo a tomar determinada providência, e 37 projetos de lei que dispunham sobre a criação de estabelecimento de ensino.
3.6. Ofício nº 155/91 - CCJR
Declarou a prejudicialidade de 37 projetos de lei que autorizavam o Poder Executivo a tomar determinada providência, e 28 projetos de lei que dispunham sobre a criação ou transformação de estabelecimento de ensino.
(...)
4. Justificação:
4.1. Parecer: Deputado Sérgio Spada
‘O fato de ser autorizativa a lei não modifica o juízo de sua inconstitucionalidade, por falta de legítima iniciativa.’ (PROJETO DE LEI Nº 2084/89)
4.2. Parecer: Deputado Messias Góis
‘No caso concreto, entre as atribuições pertinentes ao Poder Executivo está o de promover o ensino nos três graus. A conveniência e a disponibilidade de recursos, após estudos de viabilidade determinam a construção de uma escola de nível superior ou não, de universidades ou escolas isoladas.
Não sei onde encontrar fundamento legal para sua apresentação, pois mesmo aprovado, não cria uma obrigação, pois fica na dependência de ser, a universidade idealizada, passível de implantação quando houver dotação orçamentária própria e suficiente para tal.
Autorizar o que já está autorizado pela Constituição é redundância.
(...)
Numa hipótese de haver aprovação deste projeto, qual a sanção que sofreria o Executivo pelo seu não cumprimento ? Nenhuma.’ (PROJETO DE LEI Nº 1.892/89)
Sala das Comissões, 01 de dezembro de 1994“[6] (negritamos).
Ademais, a oitiva preliminar da Consultoria Jurídica daquela Casa Legislativa poderia, eventualmente, de maneira salutar, vir a evitar, de forma preventiva, mediante assessoramento técnico qualificado, a promulgação de leis claramente eivadas de inconstitucionalidade.
Por outro lado, em relação à recepção ou não das leis municipais, incluídas as “autorizativas”, editadas antes da promulgação das novas Constituições, “inclusive quanto à observância do processo legislativo”, afigura-se não haver qualquer dissonância em relação ao até aqui exposto, cabendo ser reconhecida a sua não recepção pela nova ordem constitucional.
Isto porque as leis municipais anteriores às novas ordens constitucionais, caso se configure seu desacordo com a ordem jurídica então estabelecida pelas mesmas, conforme posicionamento doutrinário e jurisprudencial pacífico, não são por aquelas recepcionadas.
Não é o caso, nesta segunda hipótese, de ser-lhes reconhecida a inconstitucionalidade, mas, sim, de mera aferição com relação a não recepção das mesmas pela nova Constituição, sendo então excluídas da ordem jurídica vigente.
Este é o entendimento assente no Supremo Tribunal Federal, em v. acórdão[7] prolatado em Ação Direta de Inconstitucionalidade, cuja ementa é a seguir transcrita:
“ADI 74 / RN - RIO GRANDE DO NORTE
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
Relator(a): Min. CELSO DE MELLO
Julgamento ADI: 07/02/1992 Órgão Julgador: Tribunal Pleno
REQTE. : PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
REQDOS. : PRESIDENTE E CORREGEDOR DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 13ª REGIÃO - RN
Ementa
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - IMPUGNAÇÃO DE ATO ESTATAL EDITADO ANTERIORMENTE À VIGÊNCIA DA CF/88 - INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE - INOCORRÊNCIA - HIPÓTESE DE REVOGAÇÃO DO ATO HIERARQUICAMENTE INFERIOR POR AUSÊNCIA DE RECEPÇÃO - IMPOSSIBILIDADE DE INSTAURAÇÃO DO CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO - AÇÃO DIRETA NÃO CONHECIDA.- A ação direta de inconstitucionalidade não se revela instrumento juridicamente idôneo ao exame da legitimidade constitucional de atos normativos do poder público que tenham sido editados em momento anterior ao da vigência da Constituição sob cuja égide foi instaurado o controle normativo abstrato. A fiscalização concentrada de constitucionalidade supõe a necessária existência de uma relação de contemporaneidade entre o ato estatal impugnado e a Carta Política sob cujo domínio normativo veio ele a ser editado. O entendimento de que leis pré-constitucionais não se predispõem, vigente uma nova Constituição, à tutela jurisdicional de constitucionalidade ‘in abstracto’ - orientação jurisprudencial já consagrada no regime anterior (RTJ 95/980 - 95/993 - 99/544) - foi reafirmado por esta corte, em recentes pronunciamentos, na perspectiva da Carta Federal de 1988. - A incompatibilidade vertical superveniente de atos do Poder Público, em face de um novo ordenamento constitucional, traduz hipótese de pura e simples revogação dessas espécies jurídicas, posto que lhe são hierarquicamente inferiores. O exame da revogação de leis ou atos normativos do Poder Público constitui matéria absolutamente estranha à função jurídico-processual da ação direta de inconstitucionalidade” (negritamos).
Dada a significância e clareza do voto do Ministro Relator Celso de Mello com aplicação ao caso sob análise, cabe transcrição de pequeno excerto, sendo seu inteiro teor acessível no site do SFT[8], a merecer, indiscutivelmente, a consulta dos interessados no tema:
“A incompatibilidade vertical superveniente de leis ordinárias anteriores, em face de um novo ordenamento constitucional, opera a imediata revogação dos atos hierarquicamente inferiores. Esse é o pensamento dominante na doutrina constitucional brasileira (CELSO RIBEIRO BASTOS, ‘Curso de Direito Constitucional’, p.. 116, 11ª ed., 1989, Saraiva; MARCELO NEVES, ‘Teoria da Inconstitucionalidade das Leis’, p. 96, 1998, Saraiva; PONTES DE MIRANDA, ‘Comentários à Constituição de 1946’, Tomo VI, p. 395, 3ª ed., 1960, Borsoi).
Admitir a inconstitucionalidade superveniente significaria generalizar, em caráter ordinário, a possibilidade de nulificação, também superveniente, de todos os atos estatais anteriores a uma nova Constituição, inobstante a sua plena e originária conformidade com a Lei Fundamental vigente à época de sua formação. Como sabemos, o fenômeno jurídico da nulidade superveniente desconstitui, ainda que com eficácia ‘ex nunc’, situações jurídicas definitivamente estabelecidas.
(...)
Não há que se falar em inconstitucionalidade superveniente. A incompatibilidade entre uma lei anterior e uma Constituição posterior resolve-se pela revogação da lei. Nesse sentido a jurisprudência de nossos tribunais, e, em especial, a do Supremo Tribunal Federal: RT 179/922, 188/77, 197/406, 208/197, 231/665. ‘Se a lei dada como inconstitucional é anterior à Constituição, não cabe a arguição da inconstitucionalidade, mas a simples verificação se ela foi, ou não, revogada pela mesma Constituição’ (Revista Forense, vol. 221/167).
(...)
Devo registrar que a sucessão de uma ordem constitucional por outra provoca, necessariamente, a análise entre o direito constitucional novo e o direito ordinário anterior, cujas relações são presididas pelo princípio da recepção, que torna subsistentes as normas infraconstitucionais materialmente compatíveis com a nova Constituição e revoga aquelas que não ostentem este perfil.
(...)
A perspectiva da Constituição nova deve ser, nesse tema, o único critério a orientar o intérprete na investigação e análise do fenômeno da recepção, de tal forma que os conflitos do direito ordinário pré-constitucional com o novo regramento político sejam dirimidos pelo reconhecimento da revogação pura e simples dos atos revestidos de menor grau de positividade jurídica.
(...)
As leis que se formam em desacordo com o estatuto fundamental – ou que lhe hostilizam os princípios básicos – apresentam-se eivadas do mais grave vício jurídico que pode afetar a validade de qualquer ato estatal: o vício da inconstitucionalidade.
A referibilidade desse vício opera em face da Carta Política contemporânea ao momento de sua consumação. É esse texto constitucional, vigente no instante mesmo da instauração da ordem normativa inferior, que deve representar o parâmetro de aferição de sua constitucionalidade, ou não (...)” (negritamos).
A clareza deste julgado da mais alta Corte de Justiça do país afasta qualquer dúvida que possa pairar no espírito dos legisladores consulentes.
Isto posto, respondendo objetivamente às questões formuladas na consulta.
“1 – Qual é a opinião desta Instituição em relação às leis municipais autorizativas, cuja iniciativa partiu de um membro do Poder Legislativo?”
Reportando-nos ao anteriormente exposto, reitera-se que, em decorrência dos princípios da independência e harmonia entre os Poderes, as leis de iniciativa de vereadores, com caráter autorizativo, padecem de vício de origem, e, assim, são inquinadas de inafastável inconstitucionalidade, devendo ser retiradas do arcabouço jurídico vigente, pela via legal adequada.
“2 – A Constituição do Estado do Rio de Janeiro foi promulgada em 05 de outubro de 1989. Leis municipais editadas antes da CE devem ser analisadas sob o prisma da recepção ou não recepção pela CE, inclusive quanto à observância do processo legislativo? Enfim, como deve ser analisada, na opinião desta Instituição, a constitucionalidade de leis municipais, inclusive autorizativas, editadas antes da promulgação da CE?”
Consoante a doutrina e a jurisprudência pacífica do STF, a análise da legislação que precedeu à nova ordem constitucional deve merecer tratamento, pela Comissão Especial constituída no âmbito do Legislativo local, consoante exposto acima, ou seja, caso se configure seu desacordo com a nova ordem jurídica então estabelecida, deve ser reconhecido que não foram pela nova Carta recepcionadas, sendo então daquela excluídas.
É o parecer.
notas
[1] Direito Municipal Brasileiro, 16ª ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p. 722.
[2] Parecer CEPAM 28.073, de 19/07/2010
[3] Curso de Direito Constitucional Positivo, 29ª ed., São Paulo: Malheiros, 2007, p. 47.
[4] Art. 167. São vedados: (...) V - a abertura de crédito suplementar ou especial sem prévia autorização legislativa e sem indicação dos recursos correspondentes” (Constituição Federal, negritamos).
[5]Lições Preliminares de Direito. 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 163.
[6]http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/ccjc/sumulas.
[7]http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=ADI.SCLA.+E+74.NUME.+E+19920207.JULG.&base=baseAcordaos.
[8] http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266183.