Petição Destaque dos editores

Ação civil pública contra construção de shopping em imóvel tombado

(Hospital Matarazzo)

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01/11/1999 às 01:00

Resumo:


  • Associação de Amigos e Moradores e Comitê "Vem Pro Bexiga" entram com Ação Civil Pública contra a Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil (PREVI), Prefeitura e Governo do Estado de SP, visando impedir obras no Hospital Matarazzo.

  • Argumentam graves ilegalidades na aprovação do projeto de construção de um shopping, edifício de serviços, flats e mudanças no hospital, aprovadas pelo CONDEPHAAT e pela Prefeitura, apesar do tombamento da área.

  • Requerem medida liminar para não demolição dos prédios, anulação do processo de "destombamento", do Decreto Municipal nº 36.255/96, e do alvará de aprovação, além de condenação da PREVI na obrigação de não fazer e possível indenização por danos ambientais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Ação impetrada por associação de moradores do bairro Bela Vista, em São Paulo, visando a impedir a construção de um prédio comercial, ocupando parte do local onde atualmente fica o Hospital Matarazzo, imóvel tombado pelo Patrimônio Histórico Estadual.

EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA CAPITAL.

          ASSOCIAÇÃO DE AMIGOS E MORADORES EM DEFESA DA QUALIDADE DE VIDA DA BELA VISTA, entidade civil sem fins lucrativos legalmente constituída desde 7 de agosto de 1998, (doc. 1) com sede nesta Capital, à rua dos Ingleses, nº 484, apto. 74, e COMITÊ "VEM PRO BEXIGA", entidade civil sem fins lucrativos legalmente constituída desde 8 de setembro de 1997, com sede nesta Capital, à rua dos Franceses, nº 101, ambas neste ato representadas por sua Presidente, Sra. Ângela M. O. Mello, brasileira, separada, empresária, portadora da cédula de identidade RG nº 4.659.317 (docs. 3/4), ambas por seu advogado infra assinado (docs. 5/6), vêm a presença de V. Exa. para, com fundamento nos dispositivos da Lei 7.347/85 propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA, com pedido urgente de ordem liminar contra a CAIXA DE PREVIDÊNCIA DOS FUNCIONÁRIOS DO BANCO DO BRASIL – PREVI, inscrita no CGC sob nº 33.754.482/0001, com sede no Município do Rio de Janeiro, à Praia do Flamengo, nº 78, CEP 22210-030; a PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, cujos procuradores, com poderes para receber citação, encontram-se à Av. Liberdade, 113; e contra o GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, cujos procuradores, com poderes para receber citação, encontram-se à Av. São Luis, nº 99, 4º andar, pelas razões de fato e de direito a seguir elencadas:


DOS FATOS

A presente demanda versa sobre obras de construção de um "shopping center", um edifício de serviços, um edifício de "flats" e uma mudança parcial no uso das instalações do Hospital Humberto I, também denominado Hospital Matarazzo, localizado nesta Capital à alameda Rio Claro, 190, Bela Vista.

Referidas obras, apesar das gritantes, evidentes e gravíssimas ilegalidades de que estão revestidas (consoante será adiante demonstrado), foram absurdamente aprovadas pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado - CONDEPHAAT, cuja consulta foi necessária em face do tombamento que recai sobre a área, e pela Prefeitura do Município de São Paulo, que estranhamente atestou a legalidade do empreendimento frente à legislação de uso e ocupação do solo do Município de São Paulo.

Diante disso, as autoras, levando em conta o evidente prejuízo à ambiência urbana e à qualidade de vida que as obras podem ocasionar, elaboraram abaixo assinado que contém mais de 4.000 (quatro mil) adesões (doc. 7). Também foi encaminhada representação à Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público do Estado de São Paulo (doc. 8).

As ilegalidades que recaem sobre o empreendimento, tanto no que tange ao que se pretende demolir, que está protegido pelo tombamento, quanto pelo que se pretende construir, o que exige a observância das normas de uso e ocupação do solo, são facilmente perceptíveis e serão demonstradas uma a uma. Antes, porém, de tais considerações, faz-se necessário traçar brevemente o histórico do tombamento do Hospital Matarazzo e de seu "destombamento" efetuado pelo CONDEPHAAT. Desta descrição já ficarão evidentes algumas das inacreditáveis ilegalidades e arbitrariedades praticadas pelos réus.


DO TOMBAMENTO DO HOSPITAL MATARAZZO

Para a instrução da presente demanda, o arquiteto e urbanista Dr. Paulo Bastos, que à época do tombamento era membro do Conselho consultivo do CONDEPHAAT (posteriormente viria a presidir esse órgão) e teve participação direta no processo de tombamento do Hospital Matarazzo, elaborou substancioso e brilhante parecer, fartamente documentado (doc. 9), cujo teor as autoras requerem que seja considerado parte integrante das razões da presente exordial, onde narra detalhadamente o processo de tombamento do imóvel "sub examine".

Segundo o douto parecerista, a idéia de tombar o Hospital Matarazzo surgiu no ano de 1984, quando a Sociedade de Beneficência Hospital Matarazzo, então proprietária, tentou obter autorização para demolir o imóvel em questão e, nesse sentido, encaminhou ofício ao CONDEPHAAT com tal requerimento, datado de 20 de setembro de 1984 (doc. 2 do parecer do Dr. Paulo Bastos). A consulta àquele órgão foi legalmente necessária porque, de acordo com o art. 15 do Decreto-lei nº 149/69, todas as obras que se desejem realizar num raio de 300 (trezentos) metros de um imóvel tombado (o que a lei denomina de "área envoltória"), que possa comprometer a visibilidade daquele imóvel, necessitam de autorização prévia do CONDEPHAAT, e o Hospital Humberto I, embora à época não se encontrasse tombado, situa-se na área envoltória do Museu de Arte de São Paulo – MASP, há muito tempo tombado.

Referido pedido de aprovação de demolição foi analisado pelo Corpo técnico permanente do CONDEPHAAT e este manifestou-se contrariamente à demolição (doc. 3 do parecer do Dr. Paulo Bastos), apoiando-se, inclusive, em parecer técnico do Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura do Município de São Paulo (doc. 4 do parecer do Dr. Paulo Bastos). De posse desses dois pareceres, o Conselho rejeitou o pedido de aprovação daquela demolição (doc. 5 do parecer do Dr. Paulo Bastos). Note V. Exa. que, à época, o Hospital Matarazzo ainda não estava tombado, e mesmo assim sua demolição já foi impedida pelo CONDEPHAAT, por razões de ordem técnica que adiante serão melhor explicitadas.

Inconformada com esse indeferimento, a Sociedade Beneficente "Hospital Matarazzo" reiterou o pedido de demolição (doc. 6 do parecer), tendo sido determinado ao insigne arquiteto Dr. Paulo Bastos que relatasse tal pedido (doc. 7 do parecer do Dr. Paulo Bastos). Nesse parecer (doc. 8 do parecer do Dr. Paulo Bastos), referido arquiteto opinou pela manutenção da decisão de indeferimento.

Por tais razões, num primeiro momento o imóvel ficou livre do risco de sofrer qualquer demolição. Todavia, analisando o conjunto histórico e cultural do imóvel, de fundamental importância para a memória urbana da cidade de São Paulo, chamou a atenção daquele órgão a fragilidade de proteção legal daquele conjunto arquitetônico (o CONDEPHAAT foi consultado apenas porque o imóvel estava na área envoltória do Masp), razão pela qual iniciou-se o processo de tombamento do Hospital Matarazzo, seguindo recomendação do diligente arquiteto Dr. Paulo Bastos, recomendação essa contida no parecer supra referido (doc. 8 do parecer do Dr. Paulo Bastos).

Portanto, em 15 de abril de 1985, o colegiado acatou o parecer do Dr. Paulo Bastos e deu abertura a um processo para análise do tombamento do Hospital Humberto I (doc. 9 do parecer do Dr. Paulo Bastos). Em data de 14/05/86, houve parecer favorável do órgão técnico do CONDEPHAAT.

Como Conselheiro Relator, em data de 19 de maio de 1986, o arquiteto Paulo Bastos emitiu parecer endossando tais conclusões e propondo a aprovação do mesmo, para que o Hospital Matarazzo fosse tombado, o que foi aprovado pelo conselho do CONDEPHAAT no mesmo dia (doc. 1 do parecer do Dr. Paulo Bastos).

De acordo com a Resolução de tombamento resultante de tal processo (doc. 9-A), os edifícios que compõem o Hospital Matarazzo sofreram três graus de proteção, a saber:

O grau de proteção 1, de preservação integral, admitindo apenas pequenas reformas, incidiu sobre a capela e a maternidade Condessa Filomena Matarazzo. O grau de proteção 2, de preservação das fachadas, coberturas e gabaritos, incidiu sobre diversos outros prédios do conjunto arquitetônico, e o Grau de Proteção 3, que preserva apenas e tão somente a volumetria dos edifícios sob os quais incide.


DO "DESTOMBAMENTO" DO HOSPITAL MATARAZZO
E DA APROVAÇÃO DO EMPREENDIMENTO

referentes à possibilidade de revisão da decisão que decidiu pelo tombamento do complexo hospitalar denominado Hospital Humberto I"

Ora, que informações seriam essas? Na folha seguinte do processo, surge documento de lavra do conselho do CONDEPHAAT (doc. 13 do parecer do Dr. Paulo Bastos) no sentido de "rever" a resolução de tombamento de acordo com estudos "a serem desenvolvidos".

Ou seja, pasme V. Exa., a decisão de "rever" o processo de tombamento ocorreu sem qualquer estudo prévio, ao contrário da decisão de tombar o imóvel que, como visto, foi profundamente analisada. Como se não bastasse, foram indicados técnicos do CONDEPHAAT (doc. 14 do parecer do Dr. Paulo Bastos) para que, juntamente com o escritório do arquiteto Julio Neves, indicado pela Sociedade Beneficente Hospital Matarazzo (doc. 15 do parecer do Dr. Paulo Bastos), entrassem em "entendimentos técnicos necessários", a fim de que fosse elaborado "projeto de intervenção na área do Hospital". No mesmo dia (doc. 16 do parecer do Dr. Paulo Bastos), o Presidente do Condephaat determinou que fosse agendada um reunião entre os técnicos do CONDEPHAAT e o Escritório do arquiteto Julio Neves, por mais espantoso que isso possa parecer!!!!!

Portanto, do que se pode inferir dos documentos que integram o parecer do arquiteto Paulo Bastos, técnicos de um órgão público elaboraram parecer em conjunto com um escritório de arquitetura privado, o que evidentemente é uma promiscuidade inaceitável e manifestamente ilegal, uma vez que a motivação dos técnicos de um órgão público, ainda mais da importância do CONDEPHAAT, deve ser obviamente o interesse público, e um escritório de arquitetura privado evidentemente é guiado por outros interesses que, ainda que legítimos, não se confundem com os interesses da coletividade. Custa a crer que imoralidade e ilegalidade desse porte possam ocorrer em plena vigência do Estado de Direito.

Após tal procedimento, o "destombamento" foi aprovado, através da aprovação de um tal "plano de massas". Acerca dessa aprovação, o CONDEPHAAT enviou documentação ao Ministério Público (doc. 10), em resposta a requerimento formulado pelo Dr. Mario Augusto Vicente Malaquias, que atua em virtude da representação formulada pelas autoras, anteriormente referida. De acordo com tal documentação, confirma-se que em 19 de dezembro de 1994 foi indeferida proposta encaminhada pelo escritório técnico Júlio Neves de "liberação parcial" do tombamento do imóvel (doc. 11). Ainda segundo tal documentação, por mais incrível e estranho que possa parecer, na mesma data, o Conselho deliberou pela revisão da Resolução de Tombamento do Hospital Humberto I, conforme supra referido, sem que sejam mencionados quaisquer motivos e sem que seja feita a mais remota menção acerca das razões técnicas pelas quais entende o conselho que tal Resolução deveria ser revista!!!!!! (doc. 12).

Sempre mediante a provocação do Escritório técnico do Sr. Julio Neves, em 10 de abril de 1995 o CONDEPHAAT aprovou o tal "plano de massas", que, segundo consta, permitiria a "revisão parcial" do tombamento. Novamente não são explanadas razões técnicas em face do interesse público que justificariam tal revisão ou a aprovação do "plano de massas". (doc. 13).

Finalmente, em 11 de maio de 1998, o CONDEPHAAT aparentemente aprovou o projeto combatido nos presentes autos e, uma vez mais, não explanou qualquer razão, qualquer justificativa, qualquer motivo, qualquer conveniência ao interesse público de aprovação do empreendimento pretendido. (doc. 14) A única razão para a aprovação, certamente um tanto quanto irônica, para dizer o mínimo, é a de que o projeto poderia ser aprovado porque "atendia o plano de massas", plano de massas esse que foi aprovado a partir de requerimentos do mesmo escritório técnico que o responsável pelo empreendimento objeto dos presentes autos.

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O projeto também tramitou no âmbito da Administração Municipal, para obtenção dos alvarás de aprovação e de execução da obra. Verificando-se tais documentos, constata-se a monstruosidade do projeto e a relutância na sua aprovação por parte de dignos funcionários públicos do município incumbidos apenas tecnicamente de analisar o projeto.

Assim, o processo administrativo municipal teve início com o requerimento do escritório técnico Júlio Neves, contratado pela Previ, para realizar "reforma com aumento de área e mudança parcial de uso das edificações destinadas a Hospital, Centro de compras (shopping center), edifício de serviços e flat service". Portanto, o que pretendem os réus é a construção no local de empreendimento imobiliário de tamanho descomunal (doc. 15).

Aqui há outro fato no mínimo curioso. O requerimento de aprovação do empreendimento pretendido recebeu despacho determinando o prosseguimento do processo administrativo em 15/05/96 (doc. 16), ou seja, após a aprovação, por parte do CONDEPHAAT, do "plano de massas" mas antes da aprovação, por parte do mesmo, do empreendimento em questão! Ora, porque os réus já encaminhavam pedido de aprovação de obra à Prefeitura antes mesmo de saber se o projeto seria aprovado pelo CONDEPHAAT? Tinham certeza da aprovação da obra no CONDEPHAAT?

Em 24/06/96, o Departamento de aprovações da Prefeitura proferiu despacho (doc. 17) determinando o cumprimento de várias providências aos pretendentes do empreendimento, demonstrando que havia constatado algumas ilegalidades que serão adiante esmiuçadas. Nesse despacho foi determinado que os réus apresentassem certidão de diretrizes da CET, para que fosse avaliado o impacto no tráfego da região, relatório de impacto de vizinhança, dentre diversas outras exigências, todas elas estribadas na lei.

Em 31/07/96, os interessados no empreendimento pretenderam cumprir o determinado no despacho supra mencionado, alegando que não seria o caso de realização de relatório de impacto de vizinhança e comprometendo-se a apresentar posteriormente a certidão de diretrizes da Secretaria Municipal de Transportes, dentre outras explicações que julgou pertinentes e oportunas (doc. 18). A Municipalidade, por sua vez, em franco descumprimento da legislação municipal (como adiante se verá) dispensou os interessados da apresentação de tal Relatório!!!!! (doc. 19).

Finalmente, a Certidão de Diretrizes da Secretaria Municipal de Transportes foi apresentada, em data de 5 de setembro de 1996 (doc. 20). Nessa certidão, que é inconclusiva, ou seja, nem aprova nem desaprova o empreendimento, está detalhado o projeto, e de sua leitura podemos perceber que pretende-se construir, no total, 165.523,96 m2 (cento e sessenta e cinco mil, quinhentos e vinte e três metros quadrados e noventa e seis centímetros), excluídas as áreas destinadas a estacionamento de veículos. De acordo com essa certidão de diretrizes, foi firmado termo de compromisso entre o pretendente da obra e a Prefeitura (doc. 21), onde a Previ comprometia-se a financiar pequenas alterações na estrutura viária próxima ao local, que segundo a Secretaria de Transportes seriam necessárias em virtude da magnitude do empreendimento.

Apesar de todas as ilegalidades, o projeto foi aprovado pela Municipalidade, tendo recebido o alvará de aprovação nº 670.099.896-4 (doc. 22). Porém, foi constatado pela Municipalidade que a Previ não cumpriu tudo o que foi determinado como condição para que o projeto pudesse ser executado (doc. 23), o que motivou a suspensão da licença para a obra. Vários requerimentos de revalidação do alvará, por parte da Previ, foram formulados, sendo que várias vezes tal revalidação foi indeferida (docs. 24/30). Todavia, o que tem levado a Prefeitura à não revalidação do alvará de aprovação e execução pretendidos são problemas de ordem técnica passíveis de serem sanados, e não propriamente as aberrações e ilegalidades que são apontadas nessa demanda, evidentemente não passíveis de saneamento.

Cumpre observar, ainda, que o CONDEPHAAT comunicou ao Ministério Público, ao responder a representação formulada pelo insigne e diligente Promotor da Habitação e Urbanismo, Dr. Mario Malaquias, o que segue (doc. 10 – já mencionado):

"Esclarecemos que para revisão da Resolução de Tombamento do Conjunto Hospitalar Humberto I, há necessidade de definição do detalhamento do projeto, que deverá ser desenvolvido pelos interessados já citados com supervisão deste órgão para posterior apreciação do Egrégio Colegiado. Face à ausência de decisão final do Conselho quanto à revisão, inexiste documento de homologação do Senhor Secretário da Cultura sobre a questão".

Ora, afinal, o empreendimento foi ou não aprovado pelo CONDEPHAAT?, se não foi, como pode estar aprovado pela Municipalidade, que já expediu alvará de construção para o imóvel? Tais perguntas devem ser respondidas pelos réus! Evidente que, caso a Prefeitura do Município de São Paulo tenha concedido alvará de aprovação para o empreendimento pretendido sem que o mesmo estivesse aprovado pelo órgão de tombamento estadual, mais uma ilegalidade estará presente, e de natureza gravíssima.

De qualquer forma, de acordo com o projeto aprovado, haveria destruição parcial da Casa de Saúde Francisco Matarazzo, destruição parcial do núcleo original do Hospital Humberto I, destruição parcial da residência das irmãs, do ambulatório e das enfermarias (todos com nível de preservação P2, de acordo com a resolução de tombamento aprovada e supra referida) e destruição total da Cozinha, lavanderia, refeitório, da lanchonete, das lojas e do estacionamento (todos com nível de preservação P3).

Observando-se tal pretensão, fica evidente a afronta à Resolução de tombamento do próprio CONDEPHAAT, uma vez que o nível P2, como já mencionado, visa a preservação das fachadas e do gabarito, e o nível P3, por seu turno, visa a preservação da volumetria dos imóveis, e é fácil perceber que o empreendimento pretendido possui volume de construção bem maior do que o conjunto arquitetônico sob o qual incide o nível de preservação P3. O parecerista Dr. Paulo Bastos, no final de seu parecer, apresenta esquema gráfico mostrando a estrutura atual do complexo hospitalar e a feição que tal imóvel ganharia se fosse construída a obra pretendida, e tal esquema gráfico demonstra com clareza a afronta à Resolução de tombamento.

Feitas tais considerações, as ilegalidades que estão presentes no pretenso empreendimento serão abordadas nos tópicos seguintes, primeiro no que diz respeito ao "destombamento do imóvel", "destombamento" esse no qual se estriba a pretensão de demolição do conjunto arquitetônico do Hospital Matarazzo, e posteriormente serão analisadas as ilegalidades que estão presentes na obra que se pretende construir frente às normas de uso e ocupação do solo do Município de São Paulo.


DO DIREITO DA COLETIVIDADE AO TOMBAMENTO DO HOSPITAL MATARAZZO

O instituto do tombamento vem sendo considerado pela doutrina pátria majoritária como um ato administrativo vinculado, ou seja, uma vez presentes as razões de ordem técnica para que o tombamento ocorra, tal ato passa a ser um direito subjetivo da coletividade à preservação de sua memória histórica e cultural, direito subjetivo esse que impede o órgão responsável de omitir-se em proteger o patrimônio, não havendo qualquer dúvida acerca da possibilidade de controle jurisdicional acerca do cumprimento desse direito público subjetivo.

Nesse sentido, é contundente o magistério do Prof. Hely Lopes Meirelles(1):

"Quando o Poder executivo não toma as medidas necessárias para o tombamento de um bem que reconhecidamente deva ser protegido, em face de seu valor histórico ou paisagístico, a jurisprudência tem entendido que, mediante provocação do Ministério Público (ação civil pública) ou de cidadão (ação popular), o Judiciário pode determinar ao Executivo faça a proteção. De igual forma, a omissão administrativa em concluir o processo de tombamento afeta o direito de propriedade e lesa o patrimônio individual, justificando, assim, a sua anulação pelo Judiciário."

O eminente civilista Orlando Gomes preleciona no mesmo sentido(2):

"O Judiciário tem competência para decidir se a coisa tombada tem ou não valor histórico e artístico; na hipótese afirmativa, subsiste o tombamento, com as restrições que dele decorrem"

O Prof. Antonio A. Queiroz Teles, que elaborou monografia específica sobre o instituto jurídico do tombamento, leciona no mesmo diapasão, citando, inclusive, V. Acórdão do Egrégio STF para embasar sua conclusão. Eis suas palavras(3):

"Mas, se o poder público se atribui a obrigação de qualificar, através do parecer, o bem tombado de características que o tornem suscetível de ser tombado, também é evidente que "ao Judiciário, cabe decidir se o imóvel inscrito no Serviço do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IBPC) tem ou não valor histórico ou artístico, não se limitando a sua competência em verificar apenas se foram observadas as formalidades legais no processo de tombamento" (Julgado do STF, de 19.8.43, RDA 98/586)."

Pontes de Miranda também entende que(4):

"o ato estatal não é discricionário. Há o pressuposto de ter valor artístico, ou histórico, ou de beleza natural, o bem que se tomba como monumento ou documento protegido"

O administrativista José Cretela Junior, por sua vez, assim deixa consignado(5):

"Se o tombamento é decretado por motivo histórico, permanece o ato se a história, realmente, justifica a medida, mas o procedimento se anula se se prova que o bem nada tem de histórico. No caso o critério histórico limita o arbítrio do administrador, impedindo o desvio de poder, a arbitrariedade, a ilegalidade. Ultrapassado o mero exame da legalidade formal ou epidérmica, visível à primeira vista, o poder judiciário desde ao exame da legalidade substancial ou material"

Cite-se, ainda, o eminente Seabra Fagundes(6):

"É certo que essa matéria envolve a apreciação do mérito de atos administrativos (a valia dos bens sob aqueles aspectos), mas também ocorre apreciação do mérito nos casos em que, sendo tombado o bem, se impugnem medidas administrativas, sob o fundamento de que o prejudiquem. O que acontece é que o alargamento do controle jurisdicional, além do aspecto de legitimidade, resulta da vontade da lei, porquanto consequência necessária da ampliação do conceito de patrimônio para fins de propositura de ação popular".

Temos o magistério de Toshio Mukai(7):

"Ora, se é assim, se há um poder-dever da Administração no ato de tombamento, jamais esse ato pode ser discricionário; ao contrário, sendo vinculado esse ato, se um imóvel tiver valor histórico, natural ou artístico ou, ainda, arqueológico, não há como a autoridade deixar de tombá-lo, pois, constitucionalmente, pesa-lhe o dever de fazê-lo. Eis aí a natureza vinculativa do ato de tombamento".

Não podemos deixar de mencionar o magistério do Prof. Paulo Affonso Leme Machado, um dos juristas brasileiros que mais se debruçou sobre o estudo do tombamento(8):

"O conceito de arte, de estética, de história, de turismo e de paisagem deve ser somado ao conceito de valor desses bens e direitos. Essa junção e conceituação muitas vezes não será tarefa fácil, mas, nem por isso, o juiz poderá furtar-se a fazê-las. A prova documental, pericial e mesmo a prova testemunhal ajudarão para a devida prestação jurisdicional"

Por fim, temos talvez o mais contundente magistério acerca da possibilidade do Poder Judiciário determinar o tombamento de um bem quando estão evidenciadas razões técnicas para que o mesmo se realize, do Prof. José Eduardo Ramos Rodrigues:

"Ora, nem a Constituição, nem a lei determinam que esses bens tenham sido previamente reconhecidos como culturais pelo Poder Executivo para serem dignos de proteção do Poder Público. O valor cultural existe como característica intrínseca do bem, desde que reconhecido como portador de referência à identidade, à ação, à memória de algum grupo formador da sociedade brasileira (art. 216 da CF). Já a partir daí cabe ao Poder Público, em conjunto com a comunidade, protegê-lo (art. 216, § 1º)., mesmo que não tenha sido ainda tombado ou protegido formalmente, por algum outro instrumento jurídico. Portanto, é dever do Poder Público, seja da união, Estado ou Município, através do Poder executivo, Legislativo ou Judiciário, proteger os bens integrantes do patrimônio cultural através de quaisquer formas de acautelamento ou preservação (art. 216, § 1º), desde que tenham algum fundamento legal. (...). Com fundamento na lei 7.347/85 (Lei dos Interesses Difusos), pode ser ajuizada ação cautelar no sentido de sustar quaisquer atos que possam vir a causar a descaracterização de um bem não protegido enquanto estiver "sub judice". Na ação principal, através de perícia poderá o bem ser declarado protegido para sempre, mantidas as suas características, em virtude de seu valor cultural."

Também na jurisprudência majoritária dos nossos tribunais essa linha de orientação tem prevalecido, como no V. Acórdão do Egrégio Supremo Tribunal Federal que passamos a transcrever(9):

"Ao Judiciário cabe decidir se o imóvel inscrito no Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional tem ou não valor histórico ou artístico, não se limitando a sua competência em verificar, apenas, se foram observadas as formalidades legais, no processo de tombamento"

O Egrégio Tribunal de Justiça do Paraná também teve oportunidade de consagrar esse irretocável entendimento(10):

"Em matéria de tombamento cabe ao Judiciário um duplo controle: da regularidade do processo administrativo e o controle de mérito referente à existência ou não de valor histórico ou artístico"

No Judiciário Paulista esse magistério é francamente acolhido, como no V. Acórdão abaixo transcrito, de lavra do saudoso Des. Alves Braga(11):

"É dever do Poder público preservar e não destruir a história viva das cidades. Em nome do progresso tudo tem sido destruído e as cidades paulistas perderam suas origens e foram completamente desfiguradas, pouco restando de seu passado. Povo sem memória é povo sem história. Povo sem História é povo sem alma."

Também em primeira instância tem prevalecido o mesmo entendimento, como na r. sentença do insigne magistrado da Comarca de Sertãozinho, Dr. Álvaro Luiz Valery Mirra, cuja ementa transcrevemos(12):

"Imóvel de relevante interesse histórico – Abstenção da realização de alterações, reformas ou demolições que descaracterizem o bem"

Diante de tais manifestações doutrinárias e jurisprudenciais, evidencia-se que, uma vez presentes os requisitos de ordem técnica para que determinado bem imóvel seja tombado, é mais do que legítimo que o Poder Judiciário faça valer seus efeitos, anulando, no caso em tela, o "destombamento" ilegal e arbitrariamente levado a cabo pelo CONDEPHAAT. Em outros termos, fica evidenciado (e nem mesmo poderia ser diferente) que, pelo regime jurídico nacional do instituto do tombamento, não é dado ao órgão tecnicamente responsável (e não politicamente responsável) tombar e destombar um bem ao seu bel prazer, sem que razões fundamentadas justifiquem tal decisão, ao sabor dos casuísmos e de interesses escusos.

Aliás, tais atos administrativos, absolutamente ilegais, devem sempre ser repelidos pelo poder Judiciário, ainda que se tratem de atos discricionários. Nesse sentido, o magistério do Prof. Celso Antonio Bandeira de Mello(13):

"O plexo de poderes depositados em mãos da Administração, ante o seu caráter serviente, instrumental, não é para ser manejado em quaisquer circunstâncias, para quaisquer fins ou por quaisquer formas. Pelo contrário, é previsto como utilizável perante certas circunstâncias, para alcançar determinados fins e através de especificadas formas. Daí que existe um completo entrosamento entre os diversos aspectos denominados "elementos" ou "requisitos" ou "pressupostos" do ato administrativo"

Ocorre que, no caso dos autos, as razões de ordem técnica para o tombamento são bastante robustas, foram profundamente discutidas e analisadas no processo do tombamento, sensibilizam a população, conforme visto no abaixo assinado de mais de 4.000 (quatro mil) assinaturas juntado aos autos e evidentemente não foram abaladas pelo "destombamento" do bem.

A simples descrição de todo o processo de tombamento, desde o seu início, efetuada nos tópicos anteriores da presente vestibular e melhor detalhado no parecer do Dr. Paulo Bastos, demonstra com clareza os motivos que levaram o CONDEPHAAT a, naquela época, tombar o Hospital Matarazzo, não sem antes diversos pareceres de profissionais de áreas de conhecimento distintos (historiadores, arquitetos, etc.) terem recomendado que o tombamento fosse efetivado.

No curso do processo de tombamento, a arquiteta Maria Lúcia Pinheiro Ramalho e as historiadoras Marly Rodrigues e Sonia de Deus Rodrigues apresentaram as razões técnicas pelas quais entendiam necessários o tombamento (doc. 10 do parecer do Dr. Paulo Bastos), que transcrevemos:

"Tendo em conta que o Hospital Matarazzo:

  • é um remanescente altamente representativo das instituições organizadas pela parcela mais significativa dos imigrantes fixados na cidade de São Paulo, os italianos;
  • exerceu papel de destaque no atendimento médico hospitalar da população trabalhadora da cidade, especialmente no período em que a assistência pública era deficitária;
  • desenvolveu uma qualidade de atendimento que o fez ser também procurado – em especial a maternidade – pela população de médio e alto poder aquisitivo;
  • destacou-se como espaço de formação profissional e de estudo da ciência médica;
  • teve papel pioneiro em algumas atividades hospitalares;

Torna-se evidente a importância histórica dessa instituição na cidade de São Paulo.

Outro aspecto a salientar é o valor ambiental intrínseco do conjunto de edifícios que compõem o Hospital Matarazzo – o único sítio de porte que escapou à verticalização pela Avenida Paulista na região em relação a seu entorno."

Portanto, valores ambientais, urbanísticos, culturais, arquitetônicos e históricos justificaram o ato de tombamento efetuado pelo CONDEPHAAT, sendo que a presença de tais valores foi amplamente debatida e corroborada por diversos profissionais. Poucas vezes se encontram imóveis com tantas razões para o tombamento quanto o Hospital Matarazzo, e poucas vezes um processo de tombamento é tão profundamente analisado e fundamentado como ocorre no caso em tela.

Em contrapartida a isso, o que temos? Quais as razões alegadas pelo CONDEPHAAT para o destombamento? Por que razões aprovou as obras em desacordo com a Resolução anterior? Por mais que se consultem os documentos acerca do processo de "destombamento", não se encontra nenhuma justificativa, por mais bisonha que fosse, para que o "destombamento" ocorresse.

Acerca desse ponto, e da exótica e estapafúrdia maneira com que foi conduzido o "processo de destombamento", pedimos vênia para transcrever as considerações do Dr. Paulo Bastos no seu parecer tantas vezes citado:

"Da mesma forma que são exigidos estudos e critérios consistentes para que se efetue qualquer tombamento e se estabeleça a regulamentação urbanística do entorno do bem tombado, no sentido de preservar sua visibilidade e ambiência, o mesmo deve ocorrer com o destombamento ou alterações significativas da concepção original de tombamento, procedimentos que requerem fundamentação ainda mais cuidadosa, posto que, como se sabe, a destruição parcial ou total do bem ou de sua ambiência acaba por assumir, quase sempre, um caráter de irreversibilidade do dano causado.

No caso analisado, o processo não contém nenhum elemento que indique porque o tombamento deveria ser revisto, quais os valores por ele reconhecidos que tenham desaparecido ou perdido significado, ou quais condições teriam sido por ele indevidamente estabelecidas."

Diante disso, é mais do que evidente que o ato pelo qual o CONDEPHAAT "destombou" o imóvel deve ser anulado, porque contrário ao que foi tecnicamente apurado, e o que foi tecnicamente apurado, como fartamente demonstrado, possui caráter vinculado para o CONDEPHAAT, não sendo lícito que tal órgão adote outra solução arbitrariamente.

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GRAMEGNA, Marcus Vinicius. Ação civil pública contra construção de shopping em imóvel tombado: (Hospital Matarazzo). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 36, 1 nov. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16016. Acesso em: 22 dez. 2024.

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