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Ação civil pública contra construção de shopping em imóvel tombado

(Hospital Matarazzo)

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01/11/1999 às 01:00
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O DECRETO MUNICIPAL Nº 36.255/96 – CASUÍSMO E NOVO DESVIO DE FINALIDADE

A Prefeitura do Município de São Paulo, ao aprovar a obra, além de ter cometido a ilegalidade de não exigir o Estudo Prévio de Impacto Ambiental e/ou o Relatório de Impacto de Vizinhança, comete outra fragorosa ilegalidade ao aprovar a obra em franca, nítida e inquestionável afronta à legislação municipal de zoneamento, afronta essa que tenta-se disfarçar através de decreto nitidamente casuístico.

Aliás, a legislação de zoneamento incidente sobre o imóvel é toda ela, também, voltada para a preservação do patrimônio histórico e cultural do local. Com efeito, de acordo com o mapa em anexo, o complexo hospitalar Matarazzo recebeu a classificação legal de Z8-200 (doc. 32). As Z8-200 foram instituídas pela lei municipal nº 8.328/75 (doc. 33), com o objetivo de "proteger os imóveis e logradouros considerados de importância para a identificação da memória cultural da cidade".

O art. 2º da Lei municipal em apreço, com a redação que lhe foi conferida pelo art. 18 da Lei nº 9.725/84 (doc. 34) é do seguinte teor:

"art. 2º - Na zona de uso especial Z8-200, os remembramentos de lotes, desmembramentos de glebas ou desdobros de lotes, as demolições, reformas, ampliações, reconstruções ou novas edificações, bem como o corte de vegetação de porte arbóreo, ficam sujeitos à prévia autorização da Secretaria Municipal do Planejamento, tendo em vista a preservação das características urbanas e ambientais existentes.

§ 1º - Os pedidos referentes ao disposto nesse artigo serão apreciados e decididos no prazo de 90 (noventa) dias, pela Secretaria Municipal de Planejamento, a qual ouvirá a Secretaria Municipal de Cultura e, quando necessário, para os fins de direito, o Conselho do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado.

§ 2º - As normas para a apreciação dos casos que se enquadrem neste artigo serão baixadas por ato do executivo"

Esses, portanto, os contornos básicos do zoneamento para as áreas definidas como Z8-200, zona de uso na qual enquadram-se os imóveis que possuem relevância para a preservação da memória histórica da cidade de São Paulo. Esse dispositivo legal deixa claro que, para os imóveis com tal classificação, no caso de qualquer obra deve ser consultado o CONDEPHAAT, e portanto, caso esse órgão não tenha aprovado o empreendimento, como afirmou ao Ministério Público, ao contrário do que comunicou à Prefeitura, quando disse tê-lo aprovado, estaremos diante de mais uma escandalosa ilegalidade.

Para regulamentar essa lei, nos termos do que determina o § 2º do dispositivo legal supra transcrito, foi editado pelo Poder Executivo o Decreto Municipal nº 19.835/84 (doc. 35) que, para os imóveis localizados na zonas de uso Z8-200 criou, em seu art. 1º, três níveis de preservação (semelhantes ao que contém a Resolução de Tombamento). Transcreve-se:

"Art. 1º - A preservação dos imóveis enquadrados na zona de uso Z8-200, instituída pela Lei 8.328, de 2 de dezembro de 1975, deverá atender aos níveis a seguir definidos:

I – Nível de preservação 1 (P1): para edifícios cuja arquitetura deva ser preservada, tanto externa quanto internamente, sendo admitidos reparos, sem modificação da forma, vãos, estrutura e material utilizado, relativos a:

.......................................

II – Nível de preservação 2 (P2): para edifícios cuja arquitetura externa deva ser preservada, admitidos os reparos externos relacionados no item I, podendo ser objeto de reformas internas compatíveis com a preservação externa;

III – Nível de preservação 3 (P3): para imóveis que são objeto de restrições especiais quanto ao gabarito de altura e recuos, quando necessárias á preservação da volumetria dos conjuntos arquitetônicos classificados como P1 e P2"

Pois bem. Em 16 de agosto de 1991, portanto após o tombamento do CONDEPHAAT no caso em tela, foi editado o Decreto Municipal 30.027/91 (doc. 36), específico para a área em questão que, em seu anexo único, classificou os diversos imóveis do complexo hospitalar de acordo com os níveis de preservação P1, P2 e P3. Especialmente para os imóveis com nível de preservação P3, que é a classificação que recebem os imóveis que se pretende demolir para a realização do empreendimento, foi estabelecido o seguinte:

"3. Edifícios classificados como P3:

a. Alameda Rio Claro, nº 190 (S9,Q15,L23), Rua São Carlos do Pinhal, s/nº, Rua Itapeva, s/nº, todas as edificações excluídas as classificadas como P1 e P2 nos itens 1 e 2;

I – Nos imóveis classificados como P3 e constantes do item 3ª, os usos permitidos são os da zona circundante, o coeficiente de aproveitamento máximo atingido será o determinado pela fórmula constante do artigo 7º da Lei nº 8.848/79, a taxa de ocupação máxima 25% e os recuos, de todas as divisas, 10,00m (dez) metros; a arborização existente deverá ser mantida e preservada."

Ora, dessa forma, se tal Decreto estivesse em vigor, obviamente o empreendimento pretendido não poderia ser efetivado, uma vez que é nítida a sua afronta aos índices urbanísticos ali estabelecidos. Todavia, por mais estupor que tal informação possa provocar, em 31 de julho de 1996, portanto após ter sido aprovado o "plano de massas" elaborado em conjunto pelos técnicos do CONDEPHAAT e pelo escritório técnico privado contratado pela ré, vale dizer, após já terem sido aclaradas as intenções e iniciadas as movimentações dos réus de aprovar empreendimento no local contrário ao tombamento, foi editado o Decreto Municipal 36.255/96 (doc. 37), alterando o texto do Decreto Municipal 30.027/91, sendo que o novo anexo único de tal Decreto, no que tange aos imóveis que devem obedecer o nível de preservação P3, passou a ter a seguinte estapafúrdia redação, lembrando que tal Decreto é específico para o conjunto ee imóveis situados à Alameda Rio Claro, nº 190.:

"3. Edifícios classificados como P3:

a) Alameda Rio Claro, nº 190 (S9,Q15,L31 e 32, Rua São Carlos do Pinhal, s/nº, Rua Itapeva, s/nº, todas as edificações excluídas as classificadas como P1 e P2, nos itens 1 e 2;

4. Nos lotes contidos na zona objeto do presente, inclusive onde estão localizados os edifícios classificados como P3, poderão ser aplicados todos os índices e as características de uso e ocupação do solo estabelecidos para a zona de uso contígua mais permissiva"

          Portanto, o que temos é que, após os réus terem manifestado de forma clara a intenção de realizar e de aprovar o empreendimento em questão, o Decreto Municipal 36.255/96 alterou o Decreto Municipal 30.027/91 para retirar do mesmo qualquer exigência de redução do potencial construtivo, retirar o limite de taxa de ocupação em 25%, retirar a exigência de recuo de 10m em todas as divisas e deixar de preservar legalmente a vegetação do local, passando a permitir sua derrubada!!!!!

Assim, com base no Decreto nº 30.027/91, o empreendimento pretendido era ilegal mas, como base no ridículo e aberrante Decreto Municipal 36.255/96, o incômodo, nocivo, arbitrário, ilegal, egoístico e absurdo empreendimento teria, em tese, se tornado legal!!!!!

E os motivos para a expedição para tal Decreto? E as razões que o justificam em face do interesse público? Novamente, não há qualquer justificativa para a expedição do mesmo. Aliás, esse Decreto Municipal possui dois únicos "considerando", sendo que o primeiro apenas menciona o Decreto anterior, e o segundo diz:

"Considerando que as edificações hospitalares possuem características próprias, que reclamam alterações físicas para se adequarem as necessidades funcionais, decreta"

Ora, seja lá o que isso signifique, é evidente que a redação truncada, que chega às raias do incompreensível, de tal "considerando", bem como a falta de lógica do mesmo, maculam de nulidade por falta de motivo e de motivação o Decreto Municipal em questão, uma vez que esse esquisito texto não pode ser considerado apto a cumprir as exigências constitucionais de motivo e de motivação dos atos administrativos, e o Decreto Municipal induvidosamente é um ato administrativo como outro qualquer.

Novamente, portanto, estamos diante de outro exemplo clássico, outro caso acadêmico, de desvio de finalidade, ou desvio de poder, devendo ser aplicados os mesmos princípios jurídicos ressaltados pela doutrina e já colacionados na vertente vestibular no tópico acerca do desvio de finalidade do CONDEPHAAT, não havendo outra solução que não a anulação de tal Decreto Municipal.

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Assim, a exemplo do "destombamento" do imóvel, o Decreto Municipal 36.255/96 deve ser anulado, revalidando-se, respectivamente, a Resolução de tombamento do CONDEPHAAT elaborada para a área e o Decreto Municipal 30.027/91, respectivamente. É óbvio que, se considerados vigentes tais diplomas legais (o que "data maxima venia, se impõe) a conclusão de ilegalidade do empreendimento pretendido frente a tais normas refluirá cristalina.


DA MEDIDA LIMINAR

Em face de tudo o que foi argüido, resta bastante óbvio que estão presentes os requisitos do "fumus boni juris" e do "periculum em mora" que autorizam a concessão da medida liminar pleiteada. De fato, o "fumus boni juris" está evidenciado pelo direito da coletividade à preservação de sua memória histórica, cultural, arquitetônica, ambiental e urbanística através do tombamento, direito esse largamente reconhecido pela doutrina. Além disso, há nítido desvio de poder contido no "destombamento" dos bens que se visa proteger com a presente demanda, há ausência de estudo prévio de impacto ambiental e/ou de relatório de impacto de vizinhança quando a degradação significativa é evidente e há manifesto desvio de finalidade presente na edição do Decreto Municipal nº 36.255 de 31 de julho de 1996, que modificou o regime jurídico urbanístico do zoneamento incidente no local apenas para favorecer o empreendimento combatido.

Ainda em favor do "fumus boni juris", diga-se que todas essas ilegalidades são facilmente verificáveis de plano e que há parecer substancioso e fartamente instruído do Dr. Paulo Bastos, ex-conselheiro e ex-presidente do CONDEPHAAT, que demonstra clara e nitidamente a gravidade e inconveniência ambiental, urbanística, histórica e cultural do empreendimento pretendido, ficando patente a contrariedade dos desmotivados atos que o autorizam em relação ao interesse público e ao bom senso.

O "periculum em mora", por sua vez, também é evidente. Caso a demolição dos bens tombados tenha início, tornar-se-á difícil e onerosa a reposição do "status quo ante", podendo mesmo ocorrer que não haja condições de recuperação do patrimônio tombado, e há informações seguras de que a Previ pretende iniciar a demolição em qualquer momento.

Dessa forma, são os termos da presente para respeitosamente requerer a V. Exa. se digne conceder medida liminar, com fulcro no art. 12 da Lei 7.347/85, a fim de que seja determinada a obrigação de não fazer consistente na não demolição de nenhum dos prédios localizados à alameda Rio Claro, nº 190, bem como a paralisação imediata de demolição que eventualmente venha a ter início, com a expedição urgente e imediata de Carta Precatória para a cidade do Rio de Janeiro a fim de que a citação e a intimação sejam realizadas, fornecendo as autoras os meios necessários para cumprimento de tal Carta Precatória.


DO PEDIDO

Diante do exposto, e de tudo o mais o que dos presentes autos consta, são os termos da presente para respeitosamente requerer a V. Exa.:

- fique declarada a importância ambiental, urbanística, histórica, arquitetônica e cultural do complexo Hospitalar situado na alameda Rio Claro, 190, Bela Vista, nesta Capital, bem como fique declarada como plena e integralmente em vigor a Resolução de Tombamento do CONDEPHAAT nº 29, de 30 de julho de 1986;

- seja anulado todo o processo de revisão do tombamento do bem em questão, anulando-se inclusive o "plano de massas" aprovado pelo CONDEPHAAT e anulando-se também eventuais documentos de aprovação do empreendimento pretendido emitidos pelo CONDEPHAAT;

- seja anulado o ato administrativo consubstanciado no Decreto Municipal nº 36.255 de 31 de julho de 1996;

- seja anulado o alvará de aprovação nº 670.099.896-4, bem como seja determinada a obrigação de não fazer aos Poderes públicos réus, consistente na não emissão de nenhum outro alvará, licença ou autorização para o empreendimento pretendido;

- seja a "Previ" condenada na obrigação de não de fazer, consistente na proibição de promover qualquer demolição ou construção no imóvel de sua propriedade sito à alameda Rio Claro, nº 190, bem como na obrigação de fazer, consistente na reposição integral do "status quo ante" na hipótese de ter início qualquer demolição ou construção no local;

- no caso da demolição e/ou da construção ter início, sejam condenados solidariamente os requeridos no pagamento de indenização por danos ambientais, cujo montante, que deverá ser arbitrado pelo prudente e elevando critério de V. Exa., nos termos do art. 286,II do Código de Processo Civil, reverterá para o fundo de defesa do meio ambiente a que faz referência o art. 13 da Lei 7.347/85, sem prejuízo da punição civil, criminal e administrativa dos agentes públicos e privados responsáveis;

  1. com fulcro no art. 12 da Lei 7.347/85, a concessão urgente e imediata de medida liminar, "inaudita altera partes", nos termos supra requeridos, com a imposição de multa diária em caso de descumprimento da mesma, no montante de R$ 10.000,00 (dez mil reais);
  2. a citação dos requeridos para que, em querendo, acompanhem os termos da presente demanda;
  3. a intimação da Promotoria do Meio Ambiente do Ministério Público do Estado de São Paulo para que atue no presente feito na condição de "custus legis";
  4. ao final, seja a presente julgada totalmente procedente, a fim de que:
  5. sejam condenados os requeridos no pagamento de custas processuais, honorários advocatícios e demais cominações legais;
  6. seja determinada a extração de cópias da presente demanda a serem enviadas ao Ministério Público para a apuração de eventual crime ambiental, conforme os tipos penais previstos nos arts. 62 e 63 da Lei Federal nº 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais).

Protestando-se provar o alegado por todos os meios de prova em direito admitidos, dá-se à causa, para efeitos meramente fiscais, o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), asseverando que as autoras estão isentas do pagamento de custas processuais, nos termos do art. 18 da Lei 7.347/85.-

Termos em que,

P. Deferimento.

São Paulo, 6 de novembro de 1999.

pp. Marcus Vinicius Gramegna
- OAB/SP 130.376 -


NOTAS

  1. MEIRELLES, Hely Lopes – "Direito Administrativo Brasileiro", 22ª dd., Malheiros, p. 496
  2. GOMES, Orlando – "Direitos Reais", 8ª ed., Rio de janeiro, Forense, 1983, p. 116
  3. TELLES, Antonio A. Queiroz – "Tombamento e seu Regime Jurídico", RT, p. 75
  4. MIRANDA, Pontes – "Comentários à constituição de 1967, t. 4, p.369
  5. CRETELLA JÚNIOR, Josè – "Regime Jurídico do Tombamento", RDA, 112:66-7
  6. FAGUNDES, Seabra – "O controle dos atos admininstrativos pelo Poder Judiciário", 4ª ed., Rio de janeiro, Forense, 1967, p. 32
  7. MUKAI, Toshio – "Direito e Legislação Urbanística no Brasil, Saraiva, p. 158
  8. LEME MACHADO, Paulo Affonso . "Ação Civil Pública e Tombamento", RT, 1986, pp. 15/16
  9. STF - AC 7.377-DF, RDA 2:124
  10. TJPR, RDP, 68: 246
  11. RJTJESP-Lex 136/44
  12. in Revista de Direito Ambiental, vol. 1, RT, p. 219 (2ª Vara de Sertãozinho, proc. 308/92)
  13. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio "Discricionariedade e Controle Jurisdicional", Malheiros, p. 85
  14. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, op. cit. p. 86
  15. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, op. cit. p. 99
  16. MEIRELLES, Hely Lopes, "Direito Administrativo Brasileiro", 22ª ed, Malheiros, p. 96
  17. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, "Curso de Direito Administrativo, 11ª ed. Malheiros, p. 648
  18. LEME MACHADO, Paulo Affonso, "Estudos de Direito Ambiental", 1ª ed.,Malheiros, p. 146/147
  19. LEME MACHADO, Paulo Affonso, op. cit., p. 147
  20. SILVA, José Afonso, "Direito Constitucional Ambiental", 2ª ed., Malheiros, p. 199
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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GRAMEGNA, Marcus Vinicius. Ação civil pública contra construção de shopping em imóvel tombado: (Hospital Matarazzo). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 36, 1 nov. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16016. Acesso em: 28 mar. 2024.

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